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Perfil de fala na síndrome de Down: apraxia de fala x transtorno de fala de origem musculoesquelética

RESUMO

Este estudo apresenta análise de aspectos linguísticos, em nível segmental e suprassegmental, em indivíduos com síndrome de Down, com ou sem diagnóstico de apraxia da fala. Participaram dez indivíduos, de ambos os sexos, com idade compreendida entre 13 e 32 anos. A coleta dos dados foi realizada individual e separadamente, em uma sessão terapêutica gravada. As tarefas de fala consistiram em repetição de palavras, repetição de sentenças e fala automática. As amostras de fala foram submetidas a transcrições fonéticas, com a descrição e análise das alterações fonoarticulatórias, tipologia das disfluências e alterações prosódicas. Os dados foram submetidos a análise estatística descritiva e inferencial, utilizando o teste de Mann-Whitney para amostras independentes e considerando como significativo o p-valor≤0.05. Os indivíduos com apraxia de fala (n=6), comparados aos sem (n=4), apresentaram maior ocorrência das alterações fonoarticulatórias, com diferença estatisticamente significante entre os dois grupos nas alterações do tipo omissão (p=0,018) e imprecisão articulatória (p=0,030); maior ocorrência de disfluências, principalmente do tipo repetição de sílaba, e ocorrência de alterações prosódicas (83,3%) que não foram encontradas no grupo sem apraxia de fala. Revela-se a importância do diagnóstico diferencial das alterações de fala na síndrome de Down, com avaliação que considere os distintos aspectos linguísticos, pois as características da fala são diferenciadas e a intervenção clínica deve ser precoce e orientada por parâmetros específicos.

Descritores:
Síndrome de Down; Apraxias; Fonoaudiologia; Linguística; Fala

ABSTRACT

This study presents an analysis of linguistic aspects at the segmental and suprasegmental levels in individuals with Down syndrome with or without a diagnosis of speech apraxia. Ten individuals of both sexes, aged between 13 and 32 years, participated in the study. Data collection was performed, individually and separately, in a video recorded therapeutic session. Speech tasks consisted of word repetition, repetition of sentences and automatic speech. The speech samples were submitted to phonetic transcription with a description and analysis of phonoarticulatory alterations, typology of disfluencies and prosodic alterations. The data were submitted to descriptive and inferential statistical analysis, using the Mann-Whitney test for independent samples and considering p-value≤0.05 as significant. Individuals with speech apraxia (n=6), compared with those without it (n=4), presented a higher occurrence of phonoarticulatory alterations, with a statistically significant difference between the two groups in omission (p=0.018) and articulatory inaccuracy (p=0.030) alterations; a higher occurrence of disfluencies, mainly of the syllable repetition type; and the occurrence of prosodic alterations (83.3%), which was not found in the group without speech apraxia. The importance of the differential diagnosis of speech disorders in Down syndrome is revealed with an evaluation that considers the different linguistic aspects resulting from the differentiation of the characteristics of speech. Clinical intervention should be early and guided by specific parameters.

Keywords:
Down Syndrome; Apraxia; Speech, Language and Hearing Sciences; Linguistics; Speech

Introdução

A síndrome de Down (SD) é uma condição genética caracterizada por uma alteração na distribuição dos cromossomos nas células, apresentando um cromossomo extra no par 21, o que provoca um desequilíbrio da função reguladora que os genes exercem sobre a síntese de proteína, perda de harmonia no desenvolvimento e nas funções das células. Esses déficits estarão presentes desde o desenvolvimento intrauterino e caracterizarão o indivíduo ao longo de sua vida, repercutindo consequentemente em diversas características, sendo as principais o déficit intelectual e as alterações morfofuncionais11. Silva MFMC, Kleinhans ACS. Processos cognitivos e plasticidade cerebral na síndrome de Down. Marília. Rev. Bras. Ed. Esp. [Internet]. 2006 [cited 2018 July 13]; 12(1):123-38. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbee/v12n1/31988.pdf.
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O desenvolvimento cognitivo e de linguagem ocorre de modo mais lento e atrasado nas crianças com a SD, quando comparado ao de crianças sem a patologia, com maiores comprometimentos associados aos aspectos linguísticos. Apesar do atraso no desenvolvimento de linguagem previsto na SD - no nível lexical, pragmático e fonológico, a natureza de tais dificuldades no processo de aquisição não é bem estabelecida22. Naess KB, Lyster SH, Hulme C, Melby-Lervåg M. Longitudinal relationships between language and verbal short-term memory skills in children with Down syndrome. J Exp Child Psychol. 2015;24(135):43-55.. As habilidades fonoarticulatórias podem ser um precursor necessário para as habilidades de linguagem, ou seja, desordens ao nível de linguagem e disfunção do sistema sensório motor oral, frequentemente ocorrem de maneira simultânea33. Barata LF, Branco A. Os distúrbios fonoarticulatórios na síndrome de Down e a intervenção precoce. Rev. CEFAC. [Internet]. 2010 [Acesso em: 10 jan. 2018]; 12(1):134-9. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rcefac/v12n1/a18v12n1.pdf.
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. No desenvolvimento de linguagem, a compreensão desenvolve-se melhor do que a expressão, com desafios particulares em fonologia e sintaxe, indicando a existência de maiores prejuízos associados à realização do ato motor da fala.

São bastante perceptíveis as dificuldades na fala na SD, de modo que é necessário que sejam analisadas em um contexto perceptual, motor e linguístico, podendo estar relacionadas a fatores periféricos e de nível central, sendo provável que vários fatores interajam no desenvolvimento e persistência dessas alterações, como déficits sensoriais, disfunções neurológicas e do sistema sensório motor oral44. Kent RD, Vorperian HK. Speech impairment in Down syndrome: a review. Speech Lang Hear Res. [Internet]. 2013 [ cited 2018 Jan 10]; 56(1):178-210. Available from: https://jslhr.pubs.asha.org/article.aspx?articleid=1782045.
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O indivíduo com SD apresenta redução do tamanho da cavidade oral, alterações nos órgãos que compõem o sistema estomatognático, ocasionando distúrbios fonoarticulatórios por dificuldades ou impedimentos na articulação e alterações sobre a fonação33. Barata LF, Branco A. Os distúrbios fonoarticulatórios na síndrome de Down e a intervenção precoce. Rev. CEFAC. [Internet]. 2010 [Acesso em: 10 jan. 2018]; 12(1):134-9. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rcefac/v12n1/a18v12n1.pdf.
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. As alterações estomatognáticas trazem implicações para a fala, modificando praticamente todos os pontos articulatórios das consoantes, caracterizando quadro de transtorno de fala de origem musculoesquelética, no qual as alterações de fala originam-se em decorrência de alterações estruturais ósseas e musculares. Além disso, esse transtorno de fala está associado à presença da respiração oral nesses indivíduos, modo respiratório que favorece modificações ósseas, musculares e posturais.

Além disso, as características da fala de pessoas com SD podem se encontrar alteradas não apenas pelas características do sistema estomatognático desses indivíduos, mas também por dificuldades na programação de movimentos e sequencialização necessárias à produção dos sons da fala. A pessoa com SD pode apresentar um comprometimento na capacidade de programar voluntariamente os movimentos da fala, ou seja, ao se comunicar, o indivíduo sabe quais palavras deseja emitir, entretanto, não é capaz de realizar a programação postural das estruturas fonoarticulatórias e o planejamento da sequência dos movimentos articulatórios adequados à produção dos sons. Associado a este aspecto, há a diminuição na inteligibilidade de fala, inconsistência nos erros, bem como dificuldades na sequencialização dos sons e movimentos orais, aspectos que caracterizam clinicamente uma apraxia de fala.

A prevalência de tipos de distúrbios da fala e distúrbios motores da fala foi investigada em indivíduos com SD, por meio da análise de amostras de fala de 45 participantes, com idades compreendidas entre 10 e 20 anos, utilizando métodos e medidas perceptivas e acústicas do Sistema de Classificação de Distúrbios da Fala. No total, 97,8% dos participantes atenderam aos critérios para distúrbios motores da fala, incluindo disartria infantil (37,8%), atraso motor da fala (26,7%), disartria infantil e apraxia de fala na infância associadas (22,2%), e apraxia da fala na infância isoladamente (11,1%). Pode-se verificar que quase a totalidade dos participantes apresentaram distúrbios motores da fala, demonstrando a importância da realização de estudos nessa área, como também a relevância de considerar estes aspectos na avaliação, com implicações para o processo terapêutico55. Wilson EM, Abbeduto L, Camarata SM, Shriberg LD. Estimates of the prevalence of speech and motor speech disorders in adolescents with Down syndrome, Clinical Linguistics & Phonetics. 2019;33(8):772-89. DOI: 10.1080/02699206.2019.1595735.
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Diante do exposto, propomos realizar uma análise da fala de pessoas com SD com ou sem diagnóstico de apraxia de fala, descrevendo e caracterizando as alterações existentes em nível segmental e suprassegmental. Como objetivos específicos, buscamos investigar o nível fonológico da linguagem, observando os possíveis desvios e os aspectos fonéticos contribuintes para a ocorrência das alterações articulatórias; identificar a ocorrência e a tipologia das disfluências presentes na fala dos participantes; verificar a presença de alterações prosódicas; e correlacionar os achados com os aspectos cognitivos, perceptuais, linguísticos e motores característicos da síndrome de Down.

Apresentação dos Casos

Os aspectos éticos foram considerados, em respeito à resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto de pesquisa foi submetido a Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba, sendo apreciado e aprovado, no parecer de número 1.302.829. Durante a coleta, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ao representante legal do voluntário (para menores de 18 anos) e ao voluntário (para maiores de 18 anos), preservando o sigilo de todos os dados coletados. No caso de menor, também foi apresentado o termo de assentimento do menor.

O estudo foi realizado em uma Clínica-Escola de Fonoaudiologia da instituição de origem, localizada na cidade de João Pessoa-PB. A amostra do estudo foi constituída por 10 indivíduos com Síndrome de Down, participantes do programa de extensão universitária “Letramento em Pauta: Intervenção Fonoaudiológica em Sujeitos com Síndrome de Down”, com idade compreendida entre 13 e 32 anos, divididos em dois grupos: pessoas com diagnóstico de apraxia de fala (6 indivíduos) e pessoas sem diagnóstico de apraxia, mas com transtorno de fala de origem musculoesquelética (4 indivíduos). Quanto ao sexo, cinco indivíduos eram do sexo feminino, com média de idade de 19,6 anos e cinco do sexo masculino, com média de idade de 17,8 anos. A caracterização dos indivíduos participantes de cada grupo quanto ao sexo e idade encontra-se disponível na Figura 1.

Figura 1:
Caracterização dos indivíduos participantes por grupo

Os critérios de inclusão foram a presença de linguagem verbal oral e desenvolvimento cognitivo necessário para a realização das provas do instrumento de coleta de dados. Esses aspectos cognitivos foram avaliados com base em protocolos específicos do projeto de extensão. Para compor os dois grupos de estudo da pesquisa, foram selecionados indivíduos com SD e diagnóstico de apraxia de fala na infância ou transtorno de fala de origem musculoesquelética.

O diagnóstico das alterações de fala dos participantes foi obtido por meio de avaliação global, utilizando o Protocolo MBGR66. Genaro KF, Berretin-Felix G, Rehder MIBC, Marchesan IQ. Avaliação miofuncional orofacial: protocolo MBGR. Rev. CEFAC [Internet]. 2009 June [cited 2018 Jun 03];11(2):237-55. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-18462009000200009&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462009000200009.
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, que é constituído pela história clínica do indivíduo e exame miofuncional orofacial, envolvendo a avaliação dos órgãos e funções do sistema estomatognático por meio da inspeção visual, palpação, mensurações e análise funcional; e o Protocolo de Avaliação da Apraxia de Fala77. Martins FC, Ortiz KZ. Proposta de protocolo para avaliação da apraxia de fala. Fono Atual. 2004;7(30):53-61., constituído de provas para a avaliação da praxia não verbal com solicitação de movimentos isolados e em sequência, executados após comando verbal. Nas provas para avaliação da praxia verbal, o protocolo apresenta tarefas de repetição de palavras e sentenças, fala automática, fala espontânea e leitura em voz alta de palavras e sentenças.

Os dados da amostra de fala foram submetidos à transcrição fonética manual, as alterações fonoarticulatórias, a tipologia das disfluências e a classificação prosódica foram identificadas, selecionadas e descritas por meio de avaliação subjetiva da pesquisadora principal, fonoaudióloga especialista e com experiência clínica na área.

As características da fala dos indivíduos foram divididas nas dimensões: Fala (transcrição da amostra de fala dos participantes), Articulação (alterações fonoarticulatórias - classificadas como adição, substituição, distorção, omissão e imprecisão articulatória)88. Zorzi JL. Diferenciando alterações da fala e da linguagem. In: Marchesan IQ (org). Fundamentos da Fonoaudiologia: aspectos clínicos da motricidade oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2005.p. 69-85., Fluência (tipologia das disfluências)99. Andrade CRF. Fluência. In: Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Fernandes FDM, Wertzner HF (orgs). ABFW: teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. Carapicuiba: Pró-Fono, 2000. c. 3, p. 61-70. e Prosódia (classificada como normal ou alterada, a partir da observação de padrões atípicos de acentuação, entonação e ritmo)1010. Fish M. Avaliação de crianças com suspeita de apraxia de fala na infância. In: Fish M (org). Como tratar a apraxia de fala da infância. Carapicuíba: Pró-Fono; 2019. p. 25-58..

Os resultados obtidos nas avaliações dos participantes foram analisados quantitativamente. Foram identificadas e submetidas à estatística descritiva as alterações fonoarticulatórias, a tipologia das disfluências e a classificação prosódica existentes nos dados das provas de avaliação da apraxia de fala. Posteriormente, os dados foram submetidos à estatística inferencial, a partir da comparação dos resultados obtidos nos dois grupos da amostra do estudo.

As variáveis foram analisadas através de análise descritiva e inferencial, por meio do Software estatístico R, versão 3.2.5. Foi adotado o nível de significância de 95% de confiabilidade. Inicialmente foi realizada análise estatística descritiva a fim de verificar a média e desvio padrão das variáveis estudadas. Em seguida, foram realizados testes de hipóteses, por meio do teste não-paramétrico de Mann-Whitney para amostras independentes, buscando comparar os dois grupos analisados nesse estudo.

Resultados

A análise das alterações fonoarticulatórias e tipologia das disfluências observadas em cada grupo, assim como as comparações intergrupos são apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1:
Comparações intergrupos das alterações fonoarticulatórias e disfluências apresentadas

A frequência das alterações fonoarticulatórias produzidas por cada participante encontra-se na Figura 2. Nos indivíduos com diagnóstico de apraxia de fala, observou-se predomínio das alterações do tipo omissão e substituição, tendo sido encontradas diferenças estatisticamente significantes entre os dois grupos na ocorrência das alterações do tipo omissão (p=0,018) e imprecisão articulatória (p=0,030). No grupo de participantes sem apraxia de fala, com diagnóstico de transtorno de fala de origem musculoesquelética, os indivíduos também apresentaram os processos de substituição e omissão, mas em ocorrência muito menor, como também apresentaram os processos de distorção e adição.

Figura 2:
Frequência das alterações fonoarticulatórias apresentadas pelos participantes

A distribuição e a tipologia das disfluências foram observadas em menor ocorrência nos indivíduos. Considerando o grupo apraxia, o participante A1 apresentou apenas uma repetição de sons; o A2 produziu repetição de palavras (3), repetição de sílabas (3) e bloqueio (1); o A3 produziu apenas um prolongamento; o A4 apresentou repetição de sílabas (3) e intrusão (1); já os participantes A5 e A6 não apresentaram nenhuma disfluência. No grupo com transtorno de fala de origem musculoesquelética, o participante T2 apresentou repetição de sílabas (2) e prolongamento (1); o participante T3 apresentou intrusão (2); os participantes T1 e T4 não produziram disfluências. O grupo de indivíduos com apraxia, quando comparado ao grupo com transtorno de fala de origem musculoesquelética, apresentou maior ocorrência de disfluências, principalmente do tipo repetição de sílabas e de palavras, entretanto os resultados não foram estatisticamente significantes. Em ambos os grupos não foi observada a presença das disfluências comuns do tipo hesitação, interjeição, revisão e palavra não terminada, como também a presença das disfluências gagas do tipo pausa.

A prosódia foi classificada como normal ou alterada para os indivíduos de ambos os grupos. No estudo, identificou-se que 83,3% dos indivíduos com apraxia apresentou a prosódia alterada, destes apenas um - participante A6 - apresentou prosódia normal. Enquanto que, no grupo com transtorno de fala de origem musculoesquelética, nenhum dos participantes apresentou alteração prosódica.

Discussão

Como característica geral das apraxias de fala, as falhas articulatórias mais comuns dizem respeito às substituições, seguidas das omissões, inversões, adições, repetições, distorções e prolongamentos dos fonemas. O comprometimento ocorre primariamente na articulação e, secundariamente, na prosódia. A omissão de sons distingue mais seguramente a apraxia de fala na infância1111. Souza TNU, Payão LMC. Apraxia da fala adquirida e desenvolvimental: semelhanças e diferenças. Rev. soc. bras. fonoaudiol. [Internet]. 2008 June [cited 2018 July 01]; 13(2):193-202. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S1516-80342008000200015&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342008000200015.
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, corroborando com os resultados do nosso estudo, em que indivíduos com síndrome de Down e diagnóstico de apraxia apresentaram maior ocorrência de omissão com diferenças estatisticamente significantes quando comparados ao grupo com diagnóstico de transtorno de fala de origem musculoesquelética.

Os nossos resultados também se assemelham ao de estudo realizado com o objetivo de comparar e analisar as estratégias de reparo utilizadas por vinte e uma crianças com aquisição fonológica típica, atípica e com apraxia de fala, o qual constatou que o grupo com apraxia tende a omitir a sílaba, realizar tanto a substituição usual e, principalmente, a substituição idiossincrática e assimilação1212. Mezzomo CB, Vargas DZ, Souza APR. As diferenças na produção correta e no uso das estratégias de reparo em crianças com desenvolvimento fonológico típico, atípico e com dispraxia. Distúrb. Comun. [Internet]. 2011 [citado 2018 Jul 12]; 23(3):261-7. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/dic/article/view/9103.
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De acordo com a literatura, problemas relativos à anatomia do aparelho fonador, uma das características da SD, comprometem o movimento harmonioso dos articuladores, sendo a hipotonia orofacial um aspecto, entre outros, que dificulta a programação motora dos sons, deflagrando alterações de natureza fonética. Além disso, o déficit cognitivo, outro fator inerente à síndrome, é responsável por agravar o quadro de alteração articulatória: a imaturidade neurológica limita a memorização e a programação motora de cadeias sonoras1313. Silva CAPPG. Transtornos fonético-fonológicos na Síndrome de Down e implicações na lectoescrita. SCRIPTA. 2010;14(26):57-70..

No grupo de indivíduos com SD e transtorno de fala de origem musculoesquelética também foram encontradas alterações fonoarticulatórias, mas em número menor, podendo estar associadas às características do sistema estomatognático e aos déficits sensoriais existentes, aspectos que geram dificuldades ou impedimentos na articulação e alterações sobre a fonação, comprometendo a fala. Os distúrbios fonoarticulatórios encontrados em pessoas com SD são comumente associados à hipotonia muscular, que quando acentuada, pode ocasionar uma menor movimentação dos órgãos fonoarticulatórios (OFAs), refletindo em imprecisões articulatórias, substituições ou distorções de sons.

A hipotonia muscular também provoca um desequilíbrio de forças entre os músculos orais e faciais, alterando a arcada dentária, dando um aspecto de projeção mandibular e contribuindo para que a língua assuma uma posição inadequada. A respiração oral, além de deixar a criança mais suscetível a infecções respiratórias, altera o formato do palato e dificulta a articulação dos sons. As principais características que os predispõem às dificuldades com a fala são a hipotonia e a respiração oral33. Barata LF, Branco A. Os distúrbios fonoarticulatórios na síndrome de Down e a intervenção precoce. Rev. CEFAC. [Internet]. 2010 [Acesso em: 10 jan. 2018]; 12(1):134-9. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rcefac/v12n1/a18v12n1.pdf.
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Além da hipotonia da musculatura orofacial, também são encontradas características do complexo crânio-facial peculiares: palato pequeno e estreito, pseudomacroglossia, língua fissurada, subdesenvolvimento da maxila e terço médio da face, nariz pequeno, perfil facial plano ou prognata e hiperflexibilidade ligamentar1414. Areias C, Pereira ML, Pérez-Mongiovi D, Macho V, Coelho A, Andrade D et al. Enfoque clínico de niños con síndrome de Down en el consultorio dental. Av Odontoestomatol. [Internet]. 2014 Dic [citado 2018 Jul 18]; 30(6):307-13. Disponible en: http://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S021312852014000600003&lng=es.
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. Em indivíduos com a pseudomacroglossia, todos os fonemas que utilizam a língua são prejudicados. A hipernasalidade, característica comum na síndrome de Down, podendo ser justificada pela alteração na mobilidade do esfíncter velofaríngeo, implica em alterações na qualidade da voz e inteligibilidade de fala. O comprometimento e as modificações decorrentes do crescimento craniofacial inadequado trazem transtornos na produção da fala como um todo. As deformidades dentofaciais podem ser do tipo mordida aberta, cruzada e sobremordida, como também padrões de crescimento facial classe I, II e III de Angle, alterando os movimentos mandibulares e influenciando no padrão de fala. Outra característica comum nesses indivíduos é o apinhamento dentário e a ausência de dentes, facilitando movimentações inadequadas da língua e influenciando a passagem do ar pela cavidade oral e por entre os diastemas, como também acúmulo de saliva na cavidade ocasionando assobios e alterações na inteligibilidade de fala.

Em estudo realizado com 5 adultos com síndrome de Down, buscando-se identificar os déficits de inteligibilidade do discurso e buscar os perfis de erros baseados nos ouvintes, foi utilizado um teste de inteligibilidade de palavras, verificando-se que as principais alterações foram a simplificação de consoantes na posição inicial e final das palavras, e os contrastes envolvendo o posicionamento da língua, controle e duração1515. Bunton K, Ledd M, Miller J. Phonetic intelligibility testing in adults with Down syndrome. Downs Syndr Res Pract. [Internet]. 2007 [acesso em: 06 jan. 2018];12(1):1-4. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2805101/.
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. Estes resultados apresentam correspondência com o nosso estudo no que se refere a identificação da ocorrência da alteração do tipo substituição como recorrente na fala de indivíduos com síndrome de Down, gerando prejuízos na comunicação e na inteligibilidade de fala.

A precisão fonológica e inteligibilidade de fala foram investigadas em meninos com a síndrome de Down, síndrome do X frágil associada ao transtorno do espectro autista, síndrome do X frágil apenas, e desenvolvimento típico, verificando-se que os meninos com síndrome de Down obtiveram resultados mais baixos em medidas de precisão fonológica e ocorrência dos processos fonológicos do que todos os outros grupos e usaram menos palavras inteligíveis do que os meninos com desenvolvimento típico1616. Barnes E, Roberts J, Long SH, Martin GE, Berni MC, Mandulak KC et al. Phonological accuracy and intelligibility in connected speech of boys with fragile X syndrome or Down syndrome. Speech Lang Hear Res. 2009;52(4):1048-61. Disponível em: https://jslhr.pubs.asha.org/article.aspx?articleid=1779875.
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, podendo estar associado às alterações oromiofuncionais características da síndrome de Down, como também a existência de dificuldades no planejamento e programação dos movimentos necessários para a adequada realização do ato motor da fala.

Estudo realizado com 45 adolescentes com síndrome de Down para identificar as associações existentes entre os distúrbios motores da fala e a inteligibilidade, a baixa inteligibilidade foi significativamente associada a reduções gerais na precisão fonêmica e fonética, e com inadequações de prosódia e voz. Dos participantes, cinco apresentaram diagnóstico de apraxia de fala na infância, sendo que destes, três apresentaram inteligibilidade reduzida, nenhum apresentou inteligibilidade moderada e dois tiveram alta inteligibilidade. Os resultados apontaram que a inteligibilidade reduzida não foi significativamente associada com as variáveis demográficas, de inteligência ou de linguagem avaliadas no estudo. E significativamente mais participantes com disartria ou apraxia apresentaram inteligibilidade reduzida, conforme observado na análise dos grupos de participantes com disartria, apraxia, ou disartria e apraxia em associação1717. Wilson EM, Abbeduto L, Camarata SM, Shriberg LD. Speech and motor speech disorders and intelligibility in adolescents with Down syndrome. Clinical Linguistics & Phonetics. 2019;33(8):790-814. DOI: 10.1080/02699206.2019.1595736.
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. Nesse sentido, as alterações fonoarticulatórias, encontradas principalmente nos indivíduos com apraxia de fala do nosso estudo, podem repercutir de modo significativo na inteligibilidade de fala, com impactos na comunicação oral.

As características perceptivas da fala foram descritas em vinte e seis crianças com SD, identificando que as mais comprometidas foram: naturalidade, consoantes imprecisas, hiponasalidade, velocidade de fala, silêncios inapropriados, vogais irregulares, intervalos prolongados, nível de intensidade geral, nível de frequência, ressonância orofaríngea, voz rouca, estresse reduzido e fonemas prolongados. Os achados sugerem que os distúrbios da fala na SD se devem a comprometimentos distribuídos envolvendo voz, produção de som de fala, fluência, ressonância e prosódia1818. Jones HA, Crisp KD, Kuchibhatla M, Mahler L, Risoli Jr T, Jones CW et al. Auditory-perceptual speech features in children with Down syndrome. AAIDD Online Journal. 2019;124(4):324-38..

A fluência pode ser considerada um descritor de performance de fala, diferenciando-se dos demais componentes da linguagem por caracterizar um padrão automático, o que torna possível que a fala seja percebida como ininterrupta. A velocidade pode ser entendida como a medida da quantidade de fala produzida em um determinado espaço de tempo. A suavidade da fala é o resultado da produção e transição motoras realizadas sem esforço. Fluência e suavidade da fala decorrem do aprendizado prático, de modo que, conforme os programas motores são produzidos, corrigidos e repetidos, os atos se tornam naturais1919. Juste FS, Ritto AP, Silva KGN, Andrade CRF. Sequential diadochokinesis in fluent and stuttering children: rate of production and type of errors. Audiol., Commun. Res. [Internet]. 2016 [cited 2020 June 29]; 21:e1646. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-64312016000100310&lng=en. Epub May 31, 2016. https://doi.org/10.1590/2317-6431-2015-1646.
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O comprometimento intelectual presente nos indivíduos com SD contribui para uma maior prevalência média de gagueira quando comparado à população em geral. Apesar de ser considerada um sintoma primário em várias síndromes genéticas, os dados sobre a fluência ainda não são claros, o que impede a diferenciação de gagueira do desenvolvimento da gagueira associada a esta alteração2020. Borsel JV, Tetnowski JA. Fluency disorders in genetic syndromes. J Fluency Disord. [Internet]. 2007 [acesso em: 09 jan. 2018]; 32(4):279-96. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0094730X07000411.
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
. A gagueira se perpetua pela vida adulta dos indivíduos com síndrome de Down, pode-se pensar que em virtude do comprometimento motor e da dificuldade no desenvolvimento do nível fonológico o indivíduo incorpore o padrão de disfluência ao seu ritmo de fala2121. Rangel DI, Ribas LP. Características da linguagem na síndrome de Down: implicações para a comunicação. Rev. Conhecimento Online. [Internet]. 2011 [cited 2018 July 17];2:18-29. Available from: http://periodicos.feevale.br/seer/index.php/revistaconhecimentoonline/article/view/170.
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Nesse sentido, no que que diz respeito à fluência e prosódia, em estudo de revisão elaborado, concluiu-se que a gagueira, transtorno de comunicação que se caracteriza pela interrupção involuntária da fala e que atinge 1%, em média, da população em geral, atinge de 10 a 40% da população Down pesquisada. Esses trabalhos ainda apontam para perturbações prosódicas significativas44. Kent RD, Vorperian HK. Speech impairment in Down syndrome: a review. Speech Lang Hear Res. [Internet]. 2013 [ cited 2018 Jan 10]; 56(1):178-210. Available from: https://jslhr.pubs.asha.org/article.aspx?articleid=1782045.
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. Em outro estudo, participaram 76 indivíduos com síndrome de Down, com idades entre 3,8 e 57,3 anos, avaliados pelo inventário “Predictive Cluttering Inventory”. Como resultado, 78,9% obtiveram uma pontuação que os classificou como um disfluente e 17,1% foram qualificados como gagos2222. Borsel JV, Vandermeulen A. Cluttering in down Syndrome. Folia Phoniatrica et Logopaedica. [Internet]. 2008 [acesso em: 09 jan. 2018]; 60(6):312-7. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/23475636_Cluttering_in_Down_Syndrome.
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.

As disfluências de fala também foram analisadas na fala espontânea de vinte e seis crianças com SD e idade compreendida entre 3 e 13 anos. Aproximadamente 30% das crianças com SD apresentaram gagueira, além disso, houve uma diferença na distribuição de tipos de disfluências. A faixa etária mais jovem de crianças com SD apresentou proporcionalmente mais disfluências comuns, enquanto a faixa etária mais velha apresentou proporcionalmente mais disfluências gagas, apontando para uma tendência de desenvolvimento. Na análise da tipologia considerada para classificação das disfluências, observou-se que a maioria dos participantes apresentou interjeições, repetições de palavras multissilábicas e prolongamentos. Repetições de palavras de sílaba única, blocos, repetições de frases e repetições parciais de palavras foram observadas em cerca da metade dos participantes. As revisões ocorreram apenas no discurso de cerca de um quarto dos participantes, e quebras de palavras foram ouvidas apenas em um poucas amostras de fala2323. Eggers K, Van Eerdenbrugh S. Speech disfluencies in children with Down syndrome. J Desordem Comunitária. 2018;71(1):72-84.. Em nosso estudo foram observados padrões distintos, com maior ocorrência de disfluências no grupo com SD e apraxia associada, principalmente do tipo repetição de sílabas e de palavras, os prolongamentos foram observados em dois participantes, e em ambos os grupos não foi observada a presença das disfluências do tipo interjeição e revisão.

Em indivíduos com apraxia, a falta da fluência na fala é primariamente causada por pausas e hesitações, que ocorrem na tentativa de produzir corretamente as palavras, surgindo como uma forma de compensação da contínua dificuldade na articulação2424. Metter EJ. Relação cortical dos distúrbios da fala. In: Metter EJ (org). Distúrbios da fala: avaliação clínica e diagnóstico. Rio de Janeiro: Enelivros; 1991. p.179-83.. Diferentemente do exposto, no presente estudo não foi verificada a ocorrência de disfluências do tipo hesitação ou pausa nos indivíduos avaliados com SD e apraxia, representando uma inconsistência em comparação ao resultado do estudo anteriormente realizado, o que pode indicar padrões diferenciados de fluência na apraxia de fala associada à síndrome de Down, com tendência dos participantes a realizar predominantemente omissão e imprecisão articulatória como ajustes diante das dificuldades na produção dos fonemas, com menores prejuízos à fluência da fala. Os resultados encontrados em nosso estudo também podem representar características particulares dos participantes da pesquisa, que devido a amostra pequena dificulta generalizações.

Para o diagnóstico da apraxia de fala é importante considerar a característica segmental de tateio articulatório, especialmente no início da elocução de fala; erros de substituição, caracterizados principalmente por metátese; trocas de fala inconsistentes; e maior número de erros em vogais. Quanto às características suprassegmentais são referidas: realização inconsistente do acento (sílaba tônica); e percepção de ressonância nasofaríngea2525. Shriberg LD, Fourakis M, Hall SD, Karlsson HB, Lohmeier HL, McSweeny JL et al. Extensions to the Speech Disorders Classification System (SDCS). Clin Linguist Phon. [Internet]. 2010 [cited 2018 July 03];24(10):795-824. Available from: http://www2.waisman.wisc.edu/phonology/pubs/PUB66.pdf.
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. Ao considerar o contexto específico da SD, outras considerações também são importantes para o diagnóstico diferencial do tipo de alteração de fala, devido às características específicas associadas ao fenótipo da síndrome e a possibilidade de co-ocorrência com outros transtornos.

Os déficits sensoriais, como a própria deficiência auditiva, são fatores orgânicos que influenciam na comunicação dos indivíduos com síndrome de Down. Em estudo realizado com 15 indivíduos, a maioria das crianças apresentou alteração de orelha média e perda auditiva condutiva. Tal deficiência prejudica, significativamente, o monitoramento do indivíduo com a síndrome em níveis fonoarticulatórios e prosódicos, pela ausência do feedback auditivo2626. Carrico B, Samelli AG, Matas CG, Magliaro FCL, Carvallo RMM, Limongi SCO et al. Peripheral hearing evaluation in children with Down syndrome. Audiol., Commun. Res. [Internet]. 2014 Set [citado 2018 Jul 17]; 19(3):280-5. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-64312014000300280&lng=en&nrm=iso&tlng=en.
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. Essas dificuldades de origem perceptual atreladas as alterações dos órgãos fonoarticulatórios contribuem para as modificações na fluência e prosódia da fala.

No que se refere aos aspectos prosódicos, os mesmos compreendem diversos elementos acústicos que formam a entoação e também se associam ao ritmo da fala, sendo importantes para a transmissão das emoções e dos sentidos envolvidos na comunicação. As habilidades prosódicas foram investigadas em estudo com nove crianças com síndrome de Down (que variaram em 45 a 63 meses e idade média de desenvolvimento de 30 meses) e doze crianças com desenvolvimento típico e idade equivalente, através do registro de produções espontâneas durante as observações das sessões de brincadeiras mãe-filho. A análise dos dados mostrou que, apesar de suas dificuldades morfossintáticas, crianças com SD foram capazes de dominar alguns aspectos da prosódia em enunciados com várias palavras, produzindo entonação única em enunciados com várias palavras no mesmo nível das crianças com desenvolvimento típico. Além disso, o contorno entoacional de suas expressões não foi negativamente influenciado pela complexidade sintática, ao contrário do que ocorreu nas crianças com desenvolvimento típico, embora seja necessário considerar que os enunciados produzidos por crianças com SD foram menos complexos do que aqueles produzidos por crianças no grupo controle. No entanto, crianças com SD pareciam ser menos capazes de usar entonação para expressar a função interrogativa pragmática2727. Zampini L, Fasolo M, Spinelli M, Zanchi P, Suttora C, Salerni N. Prosodic skills in children with Down syndrome and in typically developing children. Int J Lang Commun Disord. 2016;51(1):74-83..

A avaliação perceptiva e acústica da prosódia foi realizada em três indivíduos com SD com idades entre 16 e 44 anos. Vários parâmetros perceptivos foram classificados como divergindo da faixa normal, em particular o nível de frequência (anormalmente baixo), monopitch, monoloudness, velocidade de fala e expressão de estresse. A análise acústica mostrou maior média de F0 na fala espontânea para os participantes com SD, os intervalos F0 maiores no discurso dos participantes com SD podem refletir inconsistência no controle motor durante a fala. Em relação à amplitude média e variabilidade de amplitude, todos os participantes estavam dentro do intervalo médio para a amplitude média do nível de conversação. Além disso, os três participantes com SD tiveram maior intervalo de amplitude comparados aos seus respectivos controles, indicando maior variação de volume no discurso, que também pode estar associado a dificuldades no controle motor2828. O' Leary D, Lee A, O'Toole C, Gibbon F. Perceptual and acoustic evaluation of speech production in Down syndrome: a case series. Clinical Linguistics & Phonetics. 2020;34(1-2):72-91..

Diferentes aspectos de entonação e fonação na fala de pessoas com síndrome de Down foram analisados acusticamente. Os resultados da espectrografia de entonação e fonação indicaram que os jovens e adultos com síndrome de Down apresentam redução na tessitura orgânica e laríngea, pouca variação melódica e padrões de entonação reduzidos2929. Lee MT, Thorpe J, Verhoeven J. Intonation and phonation in young adults with Down syndrome. J Voice. [Internet]. 2009 [cited 2018 Feb. 04]; 23(1):82-7. Available from: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0892199707000665.
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. Em nosso estudo foi observada a ocorrência de alterações prosódicas apenas no grupo de indivíduos com síndrome de Down associada à apraxia de fala, resultado consistente com os critérios de validade diagnóstica da apraxia, que assumem a prosódia inadequada como uma das três características amplamente reconhecidas, juntamente com as substituições não usuais inconsistentes e as dificuldades nas configurações articulatórias iniciais ou movimentos de transição.

Considerando a apraxia de fala como um transtorno neurológico dos sons da fala, que se caracteriza pela alteração nos parâmetros de planejamento e/ou programação espaço-temporal das sequências de movimentos, resultando em erros na produção da fala e na prosódia, os aspectos encontrados em indivíduos com síndrome de Down e apraxia corroboram com os já descritos na literatura existente na área. Os resultados do presente estudo destacam a importância da observação das dificuldades na programação e sequencialização dos movimentos da fala em indivíduos com síndrome de Down, pois as características da fala dessas pessoas podem estar alteradas devidos a múltiplos fatores, como as características específicas do sistema estomatognático e por razões de ordem neurológica, que incluem o atraso no desenvolvimento cognitivo.

A apraxia de fala existente nesses indivíduos pode relacionar-se com diversos comprometimentos neurológicos, que também justificam os numerosos desafios cognitivos observados. Os indivíduos com SD quando comparados aos com desenvolvimento típico, apresentam diferenças marcantes no funcionamento cognitivo geral. Evidências de estudos de neuroimagem sugerem que os déficits cognitivos experimentados por crianças com SD estão associados com anormalidades neuroanatômicas estruturais e funcionais. Algumas dessas anormalidades são: menos ramificações dendríticas no cérebro, menos sinapses e redução da conectividade cerebral funcional encontrada em muitos recém-nascidos com SD; estudos com crianças mais velhas e adultos jovens com SD indicam que reduziram o volume cerebral, com reduções específicas de áreas encontradas no cerebelo, bem como em regiões frontais e temporais; estudos com crianças em idade escolar e modelos de camundongos com SD revelam uma disfunção significativa no hipocampo, que também tem sido associada à capacidade cognitiva geral3030. Lukowskia AF, Milojevichb HM, Ealesc L. Cognitive functioning in children with Down syndrome: current knowledge and future directions. Adv Child Dev Behav. 2019;56:257-69..

Nossos resultados apontam que os aspectos linguísticos a nível segmental e suprassegmental são distintos nos indivíduos com a SD, de acordo com a alteração do tipo transtorno de fala de origem musculoesquelética ou apraxia de fala, sendo fundamental o diagnóstico diferencial para o estabelecimento de adequada conduta terapêutica e progresso clínico. O diagnóstico pode ser difícil, especialmente quando esse transtorno se apresenta em comorbidade com outras anormalidades de fala e linguagem associadas à síndrome. Diante disto, o estudo e avaliação dos diversos níveis linguísticos pode colaborar nesse processo, contribuindo para um melhor entendimento do processo de aquisição e desenvolvimento de linguagem desses indivíduos.

Considerações Finais

O presente estudo indicou que os indivíduos com síndrome de Down e diagnóstico de apraxia, em comparação aos indivíduos sem apraxia de fala, mas com transtorno de fala de origem musculo esquelética, apresentaram consideravelmente maior ocorrência de alterações fonoarticulatórias do tipo omissão e imprecisão articulatória; também apresentaram maior ocorrência de disfluências, principalmente do tipo repetição de sílaba; e por fim, a ocorrência de alterações prosódicas (83,3%), que foram ausentes no grupo com transtorno de fala de origem musculoesquelética.

A pesquisa traz contribuições relevantes no que diz respeito às características linguísticas nas distintas alterações de fala (de origem musculoesquelética e neurológica) em pessoas com SD. Além disso, abre perspectivas para outros estudos com a temática em questão, levando-se em consideração o reduzido número de publicações nacionais que abordam a apraxia de fala, condição clínica que traz repercussões severas para a fala dos indivíduos e que se apresenta como uma das patologias da fala de tratamento mais difícil e prolongado.

Sugere-se a realização de estudos com amostras maiores e que caracterizem os diversos níveis linguísticos (pragmático, morfossintático, fonológico e semântico), de acordo com as distintas alterações de fala. Revela-se de extrema importância o diagnóstico diferencial das alterações existentes na fala dos indivíduos com síndrome de Down, e, assim, nesta perspectiva, apresentam relevância estudos que contribuam por meio de marcadores clínicos associados à produção de fala desses indivíduos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2020
  • Aceito
    30 Jun 2020
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