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O repensar da fonoaudiologia na epistemologia científica contemporânea

Resumos

OBJETIVO:

refletir sobre a força política do saber da Fonoaudiologia na contemporaneidade.

MÉTODOS:

são apresentados os dois modelos da epistemologia científica, neles focando a Fonoaudiologia, a saber: o fazer científico clássico e o fazer científico contemporâneo.

CONCLUSÃO:

a Fonoaudiologia exerce a autonomia política do seu saber, contextualizada na área da saúde, dela dispondo, desde a formação do fonoaudiólogo, até, efetivamente, a prática dos seus profissionais.

Fonoaudiologia; Epistemologia; Ciência


PURPOSE:

reflecting about the political force of speech language and hearing sciences therapy in the contemporary time.

METHODS

: two models of scientific epistemology are introduced focusing on the speech language and hearing sciences therapy, namely: the classic scientific and the contemporary scientific acting.

CONCLUSION

: the speech language and hearing sciences therapy exercises the political autonomy of its knowledge, contextualized in the health area, arranging it, from the speech therapist formation, until effectively practice of its professionals.

Speech Language and Hearing Sciences; Knowledge; Science


Introdução

Contra a sensação de incerteza diante da realidade e a partir do medo profundo perante as possibilidades incontroláveis do real, surgiu a verdade científica. Não conseguimos suportar um mundo regido pelo acaso e dominado por configurações vitais inauditas. Precisou-se, com isto, da ciência clássica como um meio de se estabelecer alguma necessidade neste acaso e propiciar a dissolução do inesperado. A ciência auxiliou-nos em nossos carecimentos e tornou, por alguns séculos (por volta do XVI/XVII ao XIX/XX), suportável a existência por meio da produção de uma ilusão de segurança.

Avaliando hoje a nossa reinterpretação do mundo, verificamos que o desastre da modernidade, que deu contorno a tal saber científico clássico, foi que ele reduziu todo o conhecimento introspectivo e interpretativo à exterioridade empírica. A tentativa feita por nós hoje é a de reintroduzir a interpretação na própria estrutura e no próprio tecido da vida, querendo ressuscitar os interiores e os modos interpretativos do conhecimento.

Diante de tal cenário é que vivemos hoje o momento de uma crise paradigmática, evidenciado, sobretudo na sociedade pela ação dos seus profissionais que não podem mais se esquivar das anomalias que subvertem a prática científica, conduzindo as profissões a um novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da ciência. Aqui então se encaixa um novo momento para o repensar a Fonoaudiologia que, nas suas marchas e contramarchas, quer assegurar não só a sua legitimação político-social, mas também quer se valer de um saber de perspectiva sistêmica.

O modelo clássico da ciência e a Fonoaudiologia

O modelo clássico da ciência põe para o cientista tudo o que está diante dele, tudo o que se coloca em oposição ao sujeito. É a exterioridade radical entre sujeito e objeto que são, a partir de então, tomados como duas entidades diferentes por natureza e intrinsecamente separadas. Evoca-se aqui o paradigma formulado por Descartes, prescrevendo a relação lógica da disjunção. De um lado, o mundo dos objetos submetidos a observações, experimentações, manipulações; de outro, o mundo dos sujeitos que se questionam sobre problemas de comunicação, de existência, de consciência.

O referencial que regula o modelo dá-se enquanto capacidade que o homem tem de extrair da natureza a ordem lógica que ele, sujeito, representa na linguagem formal de seu pensamento. É o atrevimento humano que ousa dizer que o mundo cabe na expressão da sua capacidade de pensar: justificam-se aí as chamadas ciências exatas, posto que emanadas da lógica racional, criam uma ordem de ideias que podem fechar-se num princípio de verdades próprias e precisas. Tal tipo de transcrição que o homem da ciência cartesiana faz, corresponde ao mapa da realidade, no qual ele representa o que deduziu do território que se põe à sua frente. Se há relação entre o mapa e o território já não importa, uma vez que a lógica abstrata dessa representação garante a leitura mecânica, determinada e formal do mundo.

A inteligência torna-se parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista, avançando para o conhecimento das partes, uma vez que seu método consiste em "dividir cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las"11. Descartes R. Discurso sobre o método. São Paulo: Hemus; 2008.. O sujeito está diante do movimento mecânico do mundo, na atitude analítica, que requer dele distância, a exercer o poder de dominação que esta leitura lhe concede, a dissecar em partes a complexidade que se lhe apresenta, traduzindo-a na formalidade do saber quantitativo e mensurável, próprio da linguagem matemática: a síntese cartesiana.

Vemos o quanto de embates tal proposta ainda arrasta para os nossos dias. Os cientistas, guiados pelo princípio de certezas reguladoras dos organismos vivos, passaram a admitir que os corpos nada mais são que fabulosas máquinas - a vida é essencialmente mecanicista: a biologia é o parâmetro de uma cosmovisão.

A falácia reducionista aí proposta impõe uma condição humana da qual nos ressentimos, pois quantas de nossas patologias foram geradas pela divisão do homem em ser físico (natural) e ser pensante que, na forma de um eu, se instala num corpo mecânico, autônomo e independente.

Da mesma forma, junto com as revoluções científicas, as revoluções econômicas, sociais, políticas visam realizar mudanças proibidas por essas mesmas instituições que se quer mudar. Na medida em que a crise vai-se aprofundando, muitos indivíduos comprometem-se em projetos de ações concretas para a reorganização social perante uma outra estrutura institucional.

Na Fonoaudiologia, vemos que na luta para firmar seu espaço, os confrontos profissionais, políticos e sociais assumem o cenário das revoluções geradas pela própria revisão científica do seu saber.

Ao propor à razão a vontade de se apoderar e controlar o objeto da realidade, o paradigma cartesiano dispõe de graves questões para a Fonoaudiologia. Quantos usuários são penalizados pelo pouco conhecimento dos órgãos fiscais e públicos frente à competência da atuação do fonoaudiólogo. O olhar médico endossa tal desconhecimento por atribuir-lhe, muitas vezes, uma função eminentemente técnica. E a atuação técnica se enreda não só pelo viés do mecanicismo, mas, sobretudo do mensurável, onde o paciente é analisado, objetivamente, em função tão só de dados quantitativos. Tal levantamento técnico argui para si a condição de dados precisos, que isentos da participação subjetiva de parte a parte, estatui a condição de propostas exatas, objetivas, neutras e universais, postulado que o paradigma cartesiano dispõe na hora que faz a disjunção do sujeito com o objeto analisado, ainda que este objeto esteja representado na própria figura do paciente.

Hoje, tais questões levam a Fonoaudiologia à indagação crítica sobre a resistência do real à razão. Ela entende que a realidade transborda de todos os lados das nossas estruturas mentais. Traz para si que o objetivo do conhecimento é abrir e não impedir o diálogo, numa relação que se paute essencialmente entre sujeitos e não numa relação disjuntiva, onde o terapeuta se põe na postura de leitor de um corpo-objeto à sua frente, monologando sobre índices e números exatos. O papel da consciência para esse leitor do corpo-objeto representa tão só o lugar da inteligência. E onde fica o que ele não conseguiu compreender, perguntamos. E o que não ficou preso no signo linguístico? O mundo aí teve o exato tamanho da capacidade da sua representação mental.

A visão crítica da Fonoaudiologia na ciência contemporânea

As três primeiras décadas do século XX mudaram radicalmente a visão científica clássica, por meio de expressivas descobertas no campo da física, culminando com a teoria da relatividade e com a teoria quântica. Noções como espaço e tempo absolutos, partículas sólidas elementares, a substância material fundamental, a natureza estritamente causal dos fenômenos físicos e a descrição objetiva da natureza, expurgando qualquer intromissão do sujeito na participação e construção do mundo, são noções e conceitos que não puderam ser estendidos aos novos domínios em que a física penetrava.

A partir então de tais mudanças revolucionárias em nossos conceitos de realidade, ocasionadas pela física moderna, uma nova visão de mundo começa a surgir.

A grande realização de cientistas da nova época, como Heisenberg, consistiu em expressar as limitações dos conceitos clássicos, introduzindo noções como o princípio de incerteza, o princípio da complementaridade, a perspectiva subatômica e a questão da probabilidade de interconexões.

Os sistemas perfazem a nova concepção de mundo como totalidades integradas. Em vez de se concentrar nos elementos ou substâncias básicas, a abordagem sistêmica enfatiza os princípios básicos da organização e da interrelação processual. Embora possamos admitir partes individuais em qualquer sistema, a natureza do todo é sempre diferente da mera soma de suas partes. É a ênfase, sobretudo das relações em detrimento das entidades isoladas, percebendo que tais relações são inerentemente dinâmicas. É o foco do pensamento redimensionado para a instância processual.

Reiteramos que a descrição reducionista pode ser útil e até necessária. Ela só se torna perigosa quando interpretada como uma explicação completa. Reducionismo e visão relacional, análise e síntese são enfoques complementares que, usados em equilíbrio, ajudam a obter-se um conhecimento mais profundo.

A natureza recusa exprimir-se na linguagem que as regras paradigmáticas da ciência clássica supõem e, então, a crise explode com tanto mais força quanto era cega a confiança. O novo paradigma libertou-se de um fascínio que representava a racionalidade como coisa fechada, o conhecimento como estando em vias de acabamento. Doravante será fundada a imprevisibilidade dialogando com um mundo aberto ao qual pertencemos e em cuja construção colaboramos.

Este novo paradigma dispõe para a Fonoaudiologia que o seu princípio não é o da completude, mas o da incompletude do conhecimento. Aponta para a multidimensionalidade profissional, lutando contra a hegemonia política de um saber que mutila a compreensão de que o homem é, ao mesmo tempo, físico, biológico, social, cultural, psíquico e espiritual.

Entendendo a crise dos conceitos fechados, claros, mensuráveis e separados como sinais de verdades, a Fonoaudiologia admite, então, a ambiguidade, lida com a incerteza, levanta a probabilidade, instala a rede de conexões e vê a dificuldade da demarcação sobre o homem e o meio que o enreda. Quando seu conhecimento é obtido em nível de manipulação, ou seja, quando as relações e as dificuldades de um paciente cabem tão só na lógica de quem o examina, instalam-se, decididamente, a relação de intervenção e de experimentação. Fica, entretanto, cada vez mais evidente para o fonoaudiólogo, hoje, que o conhecimento passa da manipulação técnica para o senso da compreensão, na qual o observador se integra na observação do paciente e acaba por admitir que existirá sempre um núcleo não científico em qualquer teoria científica.

Na característica fundamental da teoria quântica, ressoa a questão de que o observador é imprescindível não só para que as propriedades de um fenômeno sejam observadas, mas também para ocasionar essas propriedades. Na nova física, não pode mais ser mantida a divisão cartesiana entre matéria e mente, entre o observado e o observador. Nunca podemos aí falar algo ou sobre algo sem, ao mesmo tempo, falarmos sobre nós mesmos. Em consonância a tais princípios, vemos o novo olhar da Fonoaudiologia se revisitando, pois o fonoaudiólogo, ao realizar esta espécie de catarse, reinscreve a sua ação na intersubjetividade. É uma nova prática, onde paciente e fonoaudiólogo, por meio da vivência comum, abrem um leque de possibilidades mútuas, configurando o ato recíproco da construção na relação terapêutica.

Ao afirmar a postura crítica da Fonoaudiologia, na complexidade do saber atual, ou seja, no exato sentido do termo "complexus", em latim, que quer dizer o que é tecido junto, o fonoaudiólogo dispõe para si a amplitude de olhares multilaterais, afinando-se com outros conhecimentos, com a intenção não só de prevenção à saúde global, como também estabelece com a rede de saberes, a medida terapêutica efetivada em ações convergentes com outros profissionais.

Entre os ditames do modelo cartesiano e a vertente advinda do paradigma gestado pelo princípio da complexidade do conhecimento, a Fonoaudiologia abre um diálogo com ela mesma. Nascida entre paradigmas, entabula o diálogo com a contradição. Pensando na sua gênesis, no compasso do que é e do que assevera como dever-ser, requer a denúncia e o anúncio de uma nova concepção para a força política do seu saber.

Com o caráter da revisão epistemológica, há a consequente reinstalação da força política dos saberes nas relações de cooperação, desfazendo a verticalidade de um saber sobre o outro. Repõe como fruto amadurecido da nova lógica, o paradigma da ordem geral, do poder congregador, da organização que recupera o olhar dos vieses marginais como integradores de uma ação plural. É o agir, quer social, político, científico, que sustentando a legitimação da Fonoaudiologia, incorpora o modelo da inclusão e da religação dos saberes.

O novo conhecimento, como uma rede sem fundações básicas, leva imediatamente à pergunta: se tudo está interconectado com tudo, como se pode entender qualquer coisa? E esta questão é que impõe ao homem contemporâneo o sentido da cautela frente ao conhecimento aproximado, libertando-o das certezas do conhecimento científico cartesiano. Este desafio nos leva à renúncia do mito da posse original da verdade, mas nos encoraja em direção à única trilha possível da verdade - a de que o nosso conhecimento consiste no eterno e infindável diálogo que travamos com o mundo que nos aloja como forma devida da nossa racionalidade.

Com esta consciência é que vemos a constante atitude das Universidades que, seguindo as orientações do Conselho de Ética de Fonoaudiologia, implantar e alterar os currículos, desde a regulamentação da profissão de fonoaudiólogo em 1981, visando dirigir o eixo da formação acadêmica para as demandas do processo social.

A portaria 302 de 7 de abril de 1998, do CNE, exemplifica tal preocupação, quando afirma que:

"... foi proposta uma formação abrangente, fundamental ao fonoaudiólogo generalista, que além de atuar em avaliação e terapia fonoaudiológicas, o capacite para atuar em ações preventivas, voltadas para o coletivo da população, integrando ensino e pesquisa (...). Entendendo que a comunicação sofre influência de fatores biológicos, sociais, culturais e educacionais, a formação do fonoaudiólogo deve oferecer conhecimentos em múltiplas áreas e experiências em grau suficiente para o exercício da profissão" 2.

Ainda aprimorando o sentido sempre menos técnico e mecanicista, a luta árdua em 2001, por meio das Diretrizes Curriculares do CNE, redelineia mais uma proposta de formação fundamentalmente abrangente para o fonoaudiólogo:

As ações fonoaudiológicas devem considerar a história da vida dos sujeitos para os quais estão voltadas e sua situação em relação ao seu contexto sociocultural. Portanto, não se trata apenas de agregar conteúdos em uma nova grade curricular, mas de aproveitar esta oportunidade para construir novas diretrizes curriculares, nas quais se articulem de modo indissociável, rigor científico e filosófico, competência técnica, sensibilidade social e postura ético/política como condição para realização de toda e qualquer ação do fonoaudiólogo.

A formação generalista requerida pelas novas diretrizes se afina, na essência, com a efetiva ação interprofissional no conjunto das práticas da saúde. Esse reolhar assegura o ressignificar do paradigma cartesiano da análise (operação de distância) e da disjunção de A sobre B, repondo a certeza de que a autonomia de cada saber (quer política, quer epistemológica) só se efetiva na verdadeira ação do conjunto. Atuando em ações conjuntas, o fonoaudiólogo reconhece os fenômenos multidimensionais, compreendendo que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo, e que este está, reciprocamente, articulado ao conhecimento das partes. Estabelece-se a rede de profissionais que substituem um pensamento que isola e separa, por outro que distingue e une. Ao unir o pensamento, a relação de mensuração, de quantitativo, se perde em nome das forças atuantes nas partes, que se modificam, qualitativamente, no exato momento das suas interações.

Conclusão

Com efeito, as ciências "exatas" têm hoje, por função, sair dos laboratórios. Não se pode mais esquecer o enraizamento social e histórico que uma situação concreta supõe. Merleau-Ponty havia já sublinhado essa urgência de pensar naquilo que ele chamava de "verdade na situação":

"Enquanto guardo em minha posse o ideal de um expectador absoluto, de um conhecimento sem ponto de vista, não posso ver em minha situação senão um princípio de erro. Mas se reconheci que estou inserido em toda ação... então o meu contato revela-se como o ponto de origem de toda a verdade, inclusive a da ciência... não me restando mais do que definir uma verdade na situação" 33. Merleau-Ponty. Le philosophe et la sociologie. Idées. Paris: Gallimard, 2005..

Assim é o modelo atual da Fonoaudiologia, que privilegia a condição da saúde, que jamais pode ser puramente quantificada, mas admitida como um estado de bem-estar relacional. É uma concepção sistêmica, pois instada pelo movimento processual contínuo, entrelaça o homem em todas as instâncias de seu bem-estar no mundo.

Este é o tempo da Fonoaudiologia que, na década de 80, teve seu reconhecimento compatível com a nova lógica científica. Este é o tempo da Fonoaudiologia que, revisitando o saber de outras ciências, requereu o seu assentimento na área das ciências da saúde.

É a proposta da ciência, da técnica e da tecnologia re-humanizadas, que na Fonoaudiologia propõe como traço de união aos diagnósticos, às próteses, terapias e profilaxias, o convívio do indivíduo na forma mais plena da saúde emocional, psicológica e social.

  • 1
    Descartes R. Discurso sobre o método. São Paulo: Hemus; 2008.
  • 2
    Cardoso NM. Formação e prática fonoaudiológica: compreendendo o processo de legitimação social. [dissertação]: Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2001.
  • 3
    Merleau-Ponty. Le philosophe et la sociologie. Idées. Paris: Gallimard, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    nov-dec 2014

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2013
  • Aceito
    15 Jan 2014
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