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Vocabulário expressivo e receptivo em crianças da pré-escola e fatores socioeconômicos

RESUMO

Objetivo:

avaliar o vocabulário expressivo e receptivo de crianças pré-escolares e traçar a relação com diferentes fatores socioeconômicos.

Métodos:

foram avaliadas 108 crianças, com idades entre 4 e 6 anos, sendo 84 de uma pré-escola pública e 24 de pré-escola particular, com os seguintes instrumentos: CMMS - Escala de Maturidade Mental Colúmbia; ABFW; Teste de Vocabulário por Imagens Peabody (TVIP); CONFIAS - Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial; Teste de Nomeação Automática Rápida (NAR); Questionários para a definição de classificação econômica, saúde geral e hábitos familiares. Para as análises estatísticas foram utilizados: o teste não-paramétrico de Kruskal-Wallis, as correções Bonferroni post hoc para verificar diferenças significantes e a correlação de Sperman.

Resultados:

os resultados demonstraram relação estatisticamente significante entre fatores como faixa salarial, escolaridade da mãe e do pai e desempenho nos testes de vocabulário receptivo, expressivo e maturidade mental.

Conclusão:

evidências mostram a relação dos fatores socioeconômicos com o desenvolvimento da linguagem em pré-escolares.

Descritores:
Desenvolvimento da Linguagem; Fatores Socioeconômicos; Vocabulário

ABSTRACT

Purpose:

to assess the expressive and receptive vocabulary of preschool children and trace the relationship with different socioeconomic factors.

Methods:

108 children, aged between 4 and 6 years, were evaluated, 84 from a public preschool and 24 from a private preschool, using the following instruments: CMMS - Columbia Mental Maturity Scale; ABFW; Peabody Image Vocabulary Test (PPVT); CONFIAS - Phonological Awareness: Sequential Assessment Instrument; Rapid Automatic Naming Test (NAR); Questionnaires for the definition of economic classification, general health and family habits. For statistical analyses, the non-parametric Kruskal-Wallis test, Bonferroni post hoc corrections to check significant differences and Spearman correlation were used.

Results:

the results found showed a statistically significant relationship between factors such as salary range, mother's and father's education and performance on tests of receptive and expressive vocabulary and mental maturity.

Conclusion:

evidence showed the relationship of socioeconomic factors with language development in preschoolers.

Keywords:
Language Development; Socioeconomic Factors; Vocabulary

Introdução

A linguagem pode ser considerada uma habilidade humana básica que diferencia os seres humanos de outros animais, sendo apontada como um sistema de regras e sinais utilizados para fins de comunicação11. Brandone AC, Salkind SJ, Golinkoff RM, Hirsh-Pasek K. Language development. In: Children's needs III: development, prevention, and intervention. Washington, DC, US: National Association of School Psychologists; 2006. p.499-514.. Pode ser definida em diferentes níveis, tais como fonética e a fonologia, referindo-se aos sons da língua falada; semântica voltada para significado das palavras; sintaxe dedicada às regras gramaticais e habilidade de combinar palavras para criar frases; e pragmática que se configura como uso da linguagem adequada a um determinado contexto11. Brandone AC, Salkind SJ, Golinkoff RM, Hirsh-Pasek K. Language development. In: Children's needs III: development, prevention, and intervention. Washington, DC, US: National Association of School Psychologists; 2006. p.499-514.,22. Seabra AG, Dias NM, Capovilla FC. Avaliação neuropsicológica cognitiva: leitura, escrita e aritmética. São Paulo: Memnon; 2013..Em todos os níveis, o desenvolvimento da linguagem se dá por meio da interação da criança com o meio externo em diferentes períodos da infância, com início ainda antes do nascimento, principalmente no nível fonético e fonológico.

Além de dispor de uma relação com o meio social, o desenvolvimento da linguagem depende do desenvolvimento de um aparato neurobiológico altamente complexo que facilita a interpretação dos sons (fonemas) das palavras11. Brandone AC, Salkind SJ, Golinkoff RM, Hirsh-Pasek K. Language development. In: Children's needs III: development, prevention, and intervention. Washington, DC, US: National Association of School Psychologists; 2006. p.499-514.. Kandel et al.33. Kandel E, Schwartz J, Jessell T, Siegelbaum S, Hudspeth A. Princípios de neurociências-5. AMGH Editora; 2014.aponta que o processamento da linguagem envolve redes neurais distribuídas ao longo do encéfalo abrangendo áreas como Núcleos da Base, relacionados com a formação e construção de frases; Área de Broca responsável, além da construção de palavras e frases, na mediação verbal e no processamento fonético; Área de Wernicke e Córtex Auditivo estão responsáveis pelo mapeamento acústico-fonético.

Diversos estudos mostraram que o curso de desenvolvimento na linguagem é preditor para o desempenho acadêmico e se relaciona com facilidade na aquisição de habilidades específicas, tais como de leitura e escrita. Desta forma, as crianças que mostram boas habilidades verbais no desenvolvimento de 1 a 8 anos apresentam melhor e mais rápida aquisição de leitura e escrita, assim como melhor desempenho escolar no ensino fundamental22. Seabra AG, Dias NM, Capovilla FC. Avaliação neuropsicológica cognitiva: leitura, escrita e aritmética. São Paulo: Memnon; 2013.,44. Dias NM, Oliveira DG. A linguagem escrita para além do reconhecimento das palavras: considerações sobre o processo de compreensão de escrita. In: Seabra AG, Dias NM, Capovilla FC, editors. Avaliação neuropsicológica cognitiva: leitura, escrita e aritmética. São Paulo: Memnon. 2013. p.10-8.,55. Andrade O, Andrade P, Capellini S. Modelo de resposta à intervenção RTI-como identificar e intervir com crianças de risco para os transtornos de aprendizagem. São José dos Campos (SP): Pulso Editorial; 2014.. Entre os diferentes níveis de linguagem, estudos investigam principalmente o aspecto semântico e indicam, que a aquisição e ampliação de vocabulário expressivo e receptivo são essenciais para o desenvolvimento de habilidades acadêmicas. Ademais, entre as habilidades relacionadas com a leitura e escrita, incluem-se também as habilidades de consciência fonológica, que pode ser entendida como a capacidade de manipular sílabas e sons de palavras faladas, sendo uma aptidão que se relaciona com propriedades do processo de leitura e escrita66. Seabra AG, Capovilla FC. Problemas de leitura e escrita: como identificar, prevenir e remediar numa abordagem fônica. São Paulo (SP): Memnon; 2011..

Além disso, pensar na questão do nível socioeconômico é de alta relevância, sendo que estudos apontam que a diferença entre crianças de famílias de alta e baixa renda já são evidentes aos 18 meses de vida, com crianças de 3 anos, em famílias de baixa renda conhecendo aproximadamente 600 palavras a menos. Com o passar do tempo, essa disparidade só tende a aumentar. Além disso no Brasil há estudos que apontam um nível de vocabulário inferior ao esperado nas crianças pré-escolares, com evidências de associação entre o nível socioeconômico, a escolaridade dos pais e o desempenho das crianças77. Fernald A, Marchman VA, Weisleder A. SES differences in language processing skill and vocabulary are evident at 18 months. Developmental science. 2013;16(2):234-48.

8. Hart B, Risley TR. Meaningful differences in the everyday experience of young American children. Paul H Brookes Publishing; 1995.

9. Araújo MVM, Marteleto MRF, Schoen-Ferreira TH. Avaliação do vocabulário receptivo de crianças pré-escolares. Estudos de Psicologia. 2010;27(2):169-76.
-1010. Moretti TC da F, Kuroishi RCS, Mandrá PP. Vocabulary of preschool children with typical language development and socioeducational variables. CoDAS. 2017;29(1):1-4..

Dito isto, o estudo teve como objetivo avaliar o vocabulário expressivo e receptivo de crianças pré-escolares e traçar a relação com diferentes fatores socioeconômicos.

Métodos

As crianças e suas cuidadoras foram convidadas a participarem voluntariamente do projeto por meio de contato com os responsáveis legais. Todos os pais ou responsáveis legais das crianças participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (Protocolo 077_2016) da Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil. Foram avaliadas no total 108 crianças, com idades entre 4 e 6 anos, sendo 84 de uma pré-escola pública e 24 de pré-escola particular, as quais a Tabela 1 descreve a quantidade do sexo feminino e masculino no estudo. Além disso as crianças foram divididas em três grupos baseados na série da pré-escola em que se encontravam, onde a Tabela 1 apresenta a média de idade e desvio-padrão em cada.

Tabela 1:
Quantidade de crianças avaliadas divididas por sexo e grupos das séries da pré-escola

Todas as crianças cujos pais demonstraram interesse e disponibilidade para participar do estudo foram incluídas, porém na análise dos resultados não foram considerados dados dos participantes que satisfizeram os seguintes critérios de exclusão: 1. Presença de déficits sensoriais (auditivos e visuais) e motores incompatíveis com desenvolvimento normal da linguagem (com base na informação cedida pela escola). 2. Antecedentes de doenças neurológicas, distúrbio de sono, prematuridade, impulsividade, tiques e transtornos relacionados com a atenção (com base na informação cedida pelos pais e pela escola). As informações sobre saúde geral e desenvolvimento pré e pós natal foram fornecidas pelos pais ou responsáveis legais por meio de um questionário incluindo também questões socioeconômicas.

Para avaliação das habilidades cognitivas foram utilizados os seguintes instrumentos:

- CMMS - Escala de Maturidade Mental Colúmbia1111. Alves I, Duarte J. Escala de maturidade mental Colúmbia: manual para aplicação e interpretação. 1a Edição Brasileira, São Paulo: Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda. 2001. avalia capacidade raciocínio lógico. A criança observada é exigida a estabelecer relação entre diferentes objetos ou símbolos observados em uma prancha de papel e apontar aquele que não obedece a essa relação. As imagens são apresentadas em 92 pranchas organizadas em 8 escalas de diferente dificuldade. A resposta do sujeito é apontar a figura correta, o que viabiliza uso do CMMS mesmo em crianças com atraso na linguagem. Aplicação é individual e demora em média de 20 a 25 minutos e a pontuação bruta no teste foi utilizada para a avaliação.

- ABFW é um teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática1212. Andrade C de, Befi-Lopes DM, Fernandes FDM, Wertzner HF. ABFW: teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. São Paulo (SP): Pró-Fono; 2004.e avalia o nível de desenvolvimento de linguagem da criança. Foi utilizada apenas a parte de avaliação do vocabulário expressivo que consiste em 9 categorias semânticas: roupas, animais, comida, transporte, moveis, objetos, profissões, lugares, formas e cores. A criança deve nomear 118 figuras coloridas apresentadas uma a uma em cartões individuais. A aplicação do instrumento é individual e demora em média 10 a 15 minutos e a pontuação foi determinada pela quantidade de acertos.

- Teste de Vocabulário por Imagens Peabody (TVIP)1313. Capovilla FC, Capovilla AGS. Desenvolvimento linguístico na criança brasileira dos dois aos seis anos: tradução e estandardização do Peabody Picture Vocabulary Test and Language Development Survey de Rescorla. pesquisa e aplicação. Ciência Cognitiva: Teoria, Pesquisa e Aplicação. 1997;1(1):353-80.. O teste avalia a capacidade de vocabulário receptivo, ou seja, de compreender palavra e reconhecer uma figura correspondente. Consiste em 130 telas de 4 imagens que são apresentadas ao sujeito ao mesmo tempo que a palavra alvo é pronunciada, para que ele possa apontar para a figura que foi falada. As pranchas são organizadas em crescente dificuldade e a aplicação é interrompida após 6 erros consecutivos. A aplicação é individual e demora em média de 10 a 15 minutos e a pontuação também foi avaliada pela quantidade de acertos

- CONFIAS - Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial1414. Moojen S, Lamprecht R, Santos RM, Freitas G de, Brodacz R, Siqueira M et al. CONFIAS-Consciência fonológica: instrumento de avaliação sequencial. São Paulo (SP): Casa do Psicólogo; 2003.. O instrumento tem como objetivo avaliar a consciência fonológica de forma abrangente e sequencial. Foram utilizados dois primeiros subtestes do Nível da Sílaba (S), sendo o primeiro S1 - Síntese, onde se diz uma palavra separada em pedaços e a criança precisa responder qual palavra foi dita e S2 - Segmentação, onde se diz uma palavra e a criança precisa responder como separá-la em sílabas.

- Teste de Nomeação Automática Rápida (NAR)1515. Silva PB da. Teste de nomeação automática rápida: evidências de validade para amostra de crianças brasileiras [thesis]. São Paulo (SP): Universidade Presbiteriana Mackenzie, Departamento de Distúrbios do Desenvolvimento; 2015.. O instrumento tem como objetivo principal avaliar a capacidade de nomeação automática. São apresentadas quatro pranchas com 50 estímulos onde a criança deve nomear, o mais rápido possível uma sequência de objetos, cores, números e letras. O teste é de aplicação individual e demora cerca de 10 minutos para concluir sua aplicação, sendo que a pontuação foi definida pela quantidade de pranchas que o indivíduo conseguiu realizar.

- Questionário para a definição de classificação econômica, com os critérios socioeconômicos apontados na atualização da distribuição de classes do Critério de Classificação Econômica Brasil1616. Kamakura W, Mazzon JA. Critérios de estratificação e comparação de classificadores socioeconômicos no Brasil. Rev. adm. empres. 2016;56(1):55-70. que conta com questões sobre itens de conforto no domicílio, bens, grau de instrução do chefe de família e acesso a serviços.

- Questionário socioeconômico, saúde geral e hábitos familiares foi elaborado para os objetivos desse estudo, baseando-se no estudo de Segretin et al.1717. Segretin MS, Lipina SJ, Hermida MJ, Sheffield TD, Nelson JM, Espy KA et al. Predictors of cognitive enhancement after training in preschoolers from diverse socioeconomic backgrounds. Front. Psychol. 2014;5:205.que procurou identificar preditores do aprimoramento cognitivo após o treinamento de crianças pré-escolares de origens socioeconômicas diversas e no estudo de Wehby e McCarthy1818. Wehby GL, McCarthy AM. Economic gradients in early child neurodevelopment: a multi-country study. Soc Sci Med. 2013;78:86-95.que avaliou as influências da disparidade econômica no neurodesenvolvimento em quatro países na América do Sul: Argentina, Brasil, Chile e Equador. Ambos os estudos se basearam no questionário de Lipina e Posner1919. Lipina SJ, Posner MI. The impact of poverty on the development of brain networks. Front Hum Neurosci. 2012;6:238.e juntando essas ideias foram agrupadas as seguintes variáveis: Ocorrências pré-natais positivas e Ocorrências pré-natais negativas para dividir entre situações que ajudariam ou atrapalhariam o desenvolvimento; Ocorrências pós-parto; Total de pessoas em casa; Faixa Salarial; Escolaridade e idade do pai e da mãe da criança; Acesso a saneamento básico; Além de avaliar o total de leitura, sendo a soma da quantidade de livros e frequência de leitura, também foi avaliado quantidade de brinquedos e jogos da criança e quais atividades a criança realizava durante o dia, que foram divididas entre atividades individuais, coletivas, didáticas e tarefas domésticas.

As crianças selecionadas para o estudo eram dirigidas para uma sala isolada fornecida pela escola, onde os pesquisadores faziam um breve rapport e iniciavam a aplicação dos testes com a escala de Maturidade Mental Columbia, em seguida os testes de linguagem ABFW e TVIP e por fim era realizada a aplicação do CONFIAS e Nomeação Rápida. Se a criança demonstrasse sinais de desinteresse ou cansaço em algum dos testes, aplicação era interrompida e continuada em outro momento. A duração da aplicação de todos os testes ficava entre uma hora e uma hora e meia aproximadamente.

Os questionários foram enviados pela escola para os pais preencherem em suas casas e retornarem em envelopes lacrados para a escola. Foi realizado também um mutirão onde os pesquisadores foram na escola em um dia de reunião dos pais e os convidaram para preencher os dados que ainda faltavam.

Para as análises estatísticas os dados foram analisados no software JASP versão 0.13.12020. JASP Team. JASP (Version 0.14.1) [Computer software] 2020 [Internet]. Available at: https://jasp-stats.org/
https://jasp-stats.org/...
onde foi utilizado o teste não-paramétrico de Kruskal-Wallis com comparação entre os grupos etários e nível socioeconômico para pontuação nos testes (CMMS, ABFW, TVIP, CONFIAS, NAR) além de correções para comparações múltiplas de Bonferroni post hoc para verificar as diferenças significantes. Foi utilizada a correlação de Sperman para realizar uma avaliação das relações entre as variáveis de resultados nos testes, escolaridade e idade da mãe e do pai, faixa salarial e classe social segundo os critérios da ABEP, tempo e quantidade de leitura, quantidade de jogos, brinquedos e outras atividades que a criança faz diariamente.

Resultados

As habilidades cognitivas foram comparadas entre os grupos com teste não-paramétrico Kruskal-Wallis que indicou resultados significantes em seguintes provas, todos com p <0.001: Columbia (H [2,105]= 25,69); PPVT (H [2,105]= 22,79); ABFW (H [2,105]= 20,67); um subteste do CONFIAS (H [2,104]= 24,7); e total de testes feitos de NAR (H [2,105]= 21,05). As correções de Bonferroni post hoc demonstraram pontuações maiores na maior parte dos testes para a segunda série da pré-escola particular quando comparada com a primeira e segunda série da pré-escola publica, com p <0,01.

Foram realizadas Correlações de Spearman com cada grupo separadamente, onde na primeira série da pré-escola pública tiveram correlações entre TVIP e ABFW (rho = 0,622); TVIP e NAR (rho = 0,603). Na segunda série da pré-escola pública TVIP e ABFW (rho = 0,492); ABFW e um subteste do CONFIAS (rho = 0,563). Enquanto na segunda série da pré-escola particular teve correlações entre CMMS e TVIP (rho = 0,757); CMMS e ABFW (rho = 0,0662); TVIP e ABFW (rho = 0,801) e TVIP e NAR (rho = 0,602); ABFW e NAR (rho = 0,604), sendo todas as correlações supracitadas com p<0,001.

As informações do questionário socioeconômico foram correlacionados com o desempenho nas tarefas cognitivas, por meio de correlação de Spearman para segundas séries da pré-escola pública e particular. As correlações identificadas são apresentadas na Tabela 2.

Tabela 2:
Correlações entre fatores socioeconômicos e desempenho cognitivo em todas as crianças das segundas séries das pré-escolas pública e particular

Discussão

O estudo se propôs a avaliar o vocabulário expressivo e receptivo e a sua relação com fatores socioeconômicos de crianças pré-escolares. Os resultados encontrados ressaltam estreita relação entre fatores como faixa salarial, escolaridade da mãe e do pai e desempenho nos testes de vocabulário receptivo, expressivo e maturidade mental. Esse resultado é coerente com outros estudos brasileiros e aponta na mesma direção como estudo de Araújo, Marteleto e Schoen-Ferreira99. Araújo MVM, Marteleto MRF, Schoen-Ferreira TH. Avaliação do vocabulário receptivo de crianças pré-escolares. Estudos de Psicologia. 2010;27(2):169-76.que avaliaram o vocabulário receptivo e concluíram que crianças advindas de meios socioculturais mais baixos podem apresentar um risco maior de problemas de desenvolvimento da linguagem.

Os resultados do presente estudo ainda mostraram uma correlação entre o desempenho no vocabulário receptivo e disponibilidade de livros infantis em casa, o que mostra que ausência de material a ser lido representa a ausência do hábito de leitura no ambiente e redução na aquisição do vocabulário dessas crianças. Araújo, Marteleto e Schoen-Ferreira99. Araújo MVM, Marteleto MRF, Schoen-Ferreira TH. Avaliação do vocabulário receptivo de crianças pré-escolares. Estudos de Psicologia. 2010;27(2):169-76. sugerem que crianças com nível socioeconómico baixo se beneficiariam com intervenções na escola que busquem o desenvolvimento integral durante a educação infantil para diminuir as diferenças que existem entre meios menos e mais privilegiados. Moretti, Kuroishi e Mandrá1010. Moretti TC da F, Kuroishi RCS, Mandrá PP. Vocabulary of preschool children with typical language development and socioeducational variables. CoDAS. 2017;29(1):1-4. também utilizaram o TVIP e verificaram a associação entre o vocabulário receptivo e Classe Social e nesse mesmo estudo, avaliaram o vocabulário expressivo por meio do ABFW. Dessa forma é possível entender que os fatores socioeconômicos podem influenciar no vocabulário receptivo e expressivo quando resultam em ambiente com variabilidade linguística pouco estimulante para o seu desenvolvimento.

Para entender o porquê a classe socioeconômica influencia na aquisição e no desenvolvimento do vocabulário, pode-se olhar o que as autoras Moretti, Kuroishi e Mandrá1010. Moretti TC da F, Kuroishi RCS, Mandrá PP. Vocabulary of preschool children with typical language development and socioeducational variables. CoDAS. 2017;29(1):1-4.propuseram de que a classe sempre poderá ser um indicativo de recursos físicos e materiais aos quais a criança tem acesso, como por exemplo conteúdo lúdico, cultural rico e atividades de lazer. O presente estudo mostrou que o fator Quantidade de jogos também figurou entre os fatores com alta correlação com habilidades cognitivas no teste de maturidade mental Colúmbia, mas não nos testes de vocabulário. Nessa linha, as autoras supracitadas sugerem uma análise mais precisa sobre os fatores de risco, como as características ambientais, as interações comunicativas vivenciadas e o estilo comunicativo que os pais utilizam para que se possa entender as deficiências ambientais e quais intervenções poderiam ser mais eficientes.

Quando se compara o TVIP com outros testes de linguagem, vê-se que o constructo do teste é bem estabelecido e que esse é viável para ser aplicado nesse contexto, pois visualiza-se que os estudos que o correlacionam com outros testes de vocabulário, apresentam resultados de moderado a forte. Observa-se que o TVIP em relação ao vocabulário expressivo em testes como o Expressive Vocabulary Test (EVT) ou Expressive One-Word Picture Vocabulary Test (EOWPVT) em crianças pré-escolares com o desenvolvimento normal, aponta para r=0,75 e r=0,84 respectivamente2121. Strauss E, Sherman EM, Spreen O. A compendium of neuropsychological tests: Administration, norms, and commentary. New York: Oxford University Press; 2006.. No contexto brasileiro, pode-se utilizar o teste ABFW e estudos de revisão como o de Carbonieri e Lúcio2222. Carbonieri J, Lúcio PS. Vocabulary assessment in Brazilian children: a systematic review with three instruments. CoDAS. 2020;32(3):1-11. demonstram que nisso há um foco em investigações com delineamento transversal e com populações que apresentam transtornos ou problemas de desenvolvimento, não havendo pesquisas com crianças em idade escolar com desenvolvimento típico, como realizado aqui nesse estudo, onde visualiza-se que o vocabulário expressivo avaliado pelo ABFW se correlaciona com o vocabulário receptivo examinado pelo TVIP em todos os grupos analisados.

Santos e Befi-Lopes2323. Santos MTM dos, Befi-Lopes DM. Vocabulário, consciência fonológica e nomeação rápida: contribuições para a ortografia e elaboração escrita. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(3):269-75.utilizaram o ABFW para entender quais a contribuições do vocabulário expressivo em relação a consciência fonológica e nomeação automática rápida. As autoras chegaram à conclusão de que as habilidades linguísticas supracitadas são preditivas para o desempenho ortográfico de alunos do 4º ano ensino fundamental, onde o desempenho em vocabulário se mostra preditivo da capacidade de elaboração da narrativa escrita e as habilidades de nomeação rápida e consciência fonológica poderiam antever o desempenho sintático e gramatical. Com isso, pode-se ligar essas informações com as correlações do estudo aqui apresentado, pois o ABFW se correlacionou com os resultados de um subteste no CONFIAS e com o NAR.

Os resultados dos testes de linguagem podem se relacionar com o desempenho acadêmico, pois como aponta Dias e Oliveira44. Dias NM, Oliveira DG. A linguagem escrita para além do reconhecimento das palavras: considerações sobre o processo de compreensão de escrita. In: Seabra AG, Dias NM, Capovilla FC, editors. Avaliação neuropsicológica cognitiva: leitura, escrita e aritmética. São Paulo: Memnon. 2013. p.10-8., para que a criança tenha um bom desempenho acadêmico nos primeiros anos do ensino fundamental, é essencial que esta tenha um bom vocabulário expressivo e receptivo, familiaridade com as palavras, para quando, no processo de alfabetização, se exposta a forma escrita e falada dessas palavras, consiga um acesso mais rápido ao léxico, ou seja, uma internalização da palavra, seu significado, sua forma escrita e falada durante o processo de leitura.

Além disso, Strauss, Sherman e Spreen2121. Strauss E, Sherman EM, Spreen O. A compendium of neuropsychological tests: Administration, norms, and commentary. New York: Oxford University Press; 2006.apontam que a maioria dos testes de vocabulário, como o TVIP, se correlacionam altamente com o quociente de inteligência (QI), pois se verificar o manual do teste WISC-III (Escala de Inteligência Wechsler para crianças) há uma correlação entre os resultados do TVIP e o QI total (r=0,9), QI Verbal (r=0,91) e QI de Execução (r=0,82), sendo que nas pontuações a maior correlação foi com o Índice de Compressão Verbal (r=0,88) e a menor com o Índice de Velocidade de Processamento (r=0,56), ainda sendo considerada uma correlação substancial. Porém, o WISC é um teste de inteligência que depende do fator linguagem para ser respondido, podendo enviesar a correlação, então utilizar um teste como o CMMS se faz necessário para avaliar a inteligência sem a influência da linguagem e nisso vê-se que as crianças da série 2 da pré-escola particular tiveram um desempenho melhor no CMMS e quando se compara com a série 2 da pré-escola pública, visualiza-se uma correlação entre os resultados dos testes CMMS e o TVIP. Assim pode-se verificar a ideia de que mesmo quando usado o teste de raciocínio lógico a correlação é encontrada com alguns aspectos de linguagem, tais como vocabulário receptivo e nomeação.

O Estudo de Malloy-Diniz e Schlottfeldt2424. Malloy-Diniz LF, Schlottfeldt CG. Escala de Maturidade Mental Columbia (CMMS 3). São Paulo (SP): Editora Pearson Clinical Brasil; 2018. aponta nos resultados obtidos que o CMMS avalia a maturidade conceitual, sendo mais sensível aos aspectos relacionados a cognição geral. Sendo um teste que avalia a aptidão geral de crianças, o CMMS foi usado por Capovilla et al.2525. Capovilla AGS, Ferracini F, Dias NM, Trevisan BT, Montiel JM. Teste de Nomeação de Figuras: evidências de precisão e validade em crianças pré-escolares. Psicol. pesq. 2007;1(2):23-31. para controlar o efeito de inteligência em crianças pré-escolares avaliadas pelo teste de nomeação de figuras e que contribuiu para mostrar efeitos da idade no desenvolvimento do vocabulário receptivo. Tendo em vista, que no presente estudo o desempenho na maturidade conceitual avaliada pelo teste Colúmbia mostrou diferença entre os grupos e correlação com maioria dos fatores socioeconômicos pode se inferir que assim como o vocabulário é sensível a estimulação ambiental e deve fazer parte dos estudos de desenvolvimento.

Conclusão

Pode-se dizer que nesse estudo foram expostas evidências que mostram a relação dos fatores socioeconômicos com o desenvolvimento da linguagem na criança, para a partir dessa avaliação se propor intervenções nas escolas e creches, que se façam necessárias para diminuir as diferenças geradas pela desigualdade social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2021
  • Aceito
    08 Nov 2021
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