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Drogas e álcool na gestação e gagueira - relato de caso fonoaudiológico

RESUMO

O uso de álcool e drogas na gestação é difundido dentre os fatores de risco para as alterações fonoaudiológicas. Contudo, é observada a necessidade de estudos sobre uso dos mesmos e sua influência no processo interventivo. Foram apresentados dados da história clínica, avaliação pré e pós-intervenção de uma criança com 6 anos, com queixa de disfluências gagas e pais usuários de álcool e drogas desde o período de concepção até o momento do processo de intervenção relatado. Na avaliação foram aplicados os protocolos Stuttering Severity Instrument, Teste de Linguagem Infantil: prova de Fonologia, Vocabulário e Fluência e o Checklist de Habilidades Comunicativas Verbais. A criança foi diagnosticada com gagueira de grau leve a moderado, simplificações fonológicas e vocabulário defasado, dificuldade em manter turnos comunicativos, narrativa simplificada e queixa de dificuldade escolar. A criança foi submetida à intervenção nas áreas de Linguagem com enfoque na fluência e na fonologia, evoluindo na avaliação pós-intervenção. A alta vulnerabilidade familiar, a falta de um ambiente estimulador e o consumo de álcool e drogas durante a gestação, podem contribuir para as alterações de linguagem, fluência e, consequentemente, aprendizagem da criança exposta, devendo ser acompanhada pelo fonoaudiólogo para que se forneça apoio social à família.

Descritores:
Alcoolismo; Drogas Ilícitas; Complicações na Gravidez; Linguagem; Gagueira

ABSTRACT

Drug use during pregnancy is a well-known risk factor for the manifestation of speech-language disabilities. However, the necessity of studies directed towards drug use and its influence on interventional speech process in cases of alterations of child language and fluency is observed. In this study, clinical history data are presented as well as pre and post-assessment tests (Speech and Language) and the description of an interventional process of a six-year child. The main communication complaint about the child was stuttering. In addition to the child’s clinical history, there was also knowledge of alcohol and legal and illegal drug use by the mother from before the moment of conception until this intervention process was reported. The protocols Stuttering Severity Instrument (SSI), Child Language Test (ABFW): phonology, vocabulary, and fluency tests, along with the Checklist of Verbal Communication Skills were applied. Based on these assessments, the child was diagnosed with mild to moderate stuttering, phonological simplifications, vocabulary inferior to that expected for his age, difficulty maintaining communicative turns, simplified narrative skills, alterations in psycholinguistic processes, and complaints from the school about his learning. The child underwent speech therapy in the areas of fluency and Child Language (phonological approach), showing evolution in the post-intervention assessment. Thus, in the present case, it became clear that the concomitant use of alcohol with exposure to cigarettes and marijuana may trigger changes in the acquisition and development of language, fluency and, consequently, learning.

Keywords:
Alcoholism; Street Drugs; Pregnancy Complications; Language; Learning; Stuttering; Language Therapy

Introdução

A aquisição e o desenvolvimento da linguagem são moldados por interações sociais bem-sucedidas e iniciados, em sua maioria, mediante estímulos provenientes dos pais e do ambiente familiar. Durante a fase da aquisição e do desenvolvimento da fala e da linguagem é comum que ocorram algumas disfluências sem esforço ou tensão aparente, tais como hesitações e repetições de palavras e, até mesmo, um aumento entre o intervalo de pergunta-resposta na conversação, devido à necessidade de maior tempo de processamento da informação por parte da criança11. Hawa VV, Spanoudis G. Toddlers with delayed expressive language: An overview of the characteristics, risk factors and language outcomes. Res Dev Disabil. 2014;35(2):400-7.. Em virtude do desenvolvimento de um dos subsistemas da linguagem - o semântico-lexical, crianças por volta dos três anos de idade (36 meses) podem apresentar rupturas na fala justificadas pelo próprio desenvolvimento típico desse subsistema, que envolve a aquisição e ampliação vocabular e o aumento da complexidade das estruturas sintáticas22. Bee H. A criança em desenvolvimento. 12 ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.. Todavia, quando essas manifestações são acompanhadas de tensão ou esforço, independentemente da idade da criança, podemos encontrar características que remetam às disfluências gagas, típicas da gagueira, as quais sem uma intervenção adequada, poderão trazer sérios problemas na qualidade de vida dessas crianças33. Oliveira CMC, Nogueira PRN. Prevalence of risk factors for stuttering among boys: analytical cross-sectional study. Med J. 2014;132(3):152-7..

Dentre os fatores causais do aparecimento da gagueira do desenvolvimento, os mais comuns são os de origem genética, ou seja, aqueles em que há casos no histórico familial33. Oliveira CMC, Nogueira PRN. Prevalence of risk factors for stuttering among boys: analytical cross-sectional study. Med J. 2014;132(3):152-7.. Contudo, há gagueiras desenvolvimentais isoladas que podem estar associadas com o uso de fatores teratogênicos ambientais em grandes quantidades durante o primeiro trimestre gestacional22. Bee H. A criança em desenvolvimento. 12 ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.. Como por exemplo, o alto consumo de bebidas alcoólicas - que tem ocorrido cada vez mais precocemente com maior número de mulheres consumidoras - e tem sido associado às gestações pré e pós-termo, intercorrências pré e perinatais, déficits no desenvolvimento intelectual em geral, aprendizagem, atenção e comportamento44. Ornoy A, Ergaz Z. Alcohol abuse in pregnant women: effects on the fetus and newborn, mode of action and maternal treatment. Int J Environ Res Public Health. 2010;7(2):364-79.. Além da exposição ao álcool, o uso de maconha, assim como a exposição à sua fumaça, está relacionado ao baixo desempenho em atividades que exijam as habilidades de memória visual e sequencial, além da compreensão de linguagem22. Bee H. A criança em desenvolvimento. 12 ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.,55. Ortega JA, Martin M, Lopez MT, Fuster JL, Donat J, Lopez B et al. Transgenerational tobacco smoke exposure and childhood cancer: an observational study. J. Pediatr. Child. Health. 2010;46(6):291-5.. O fumo ou mesmo a exposição à fumaça de tabaco, por sua vez, está associado ao risco aumentado de aborto espontâneo, baixo peso ao nascer, prematuridade, morte perinatal, síndrome da morte súbita do lactente, problemas cognitivos, de crescimento e de desenvolvimento55. Ortega JA, Martin M, Lopez MT, Fuster JL, Donat J, Lopez B et al. Transgenerational tobacco smoke exposure and childhood cancer: an observational study. J. Pediatr. Child. Health. 2010;46(6):291-5.. O alto consumo de álcool e drogas é prevalente entre as pessoas jovens (idade inferior a 25 anos) com baixo nível escolar e de classe social médio-baixo22. Bee H. A criança em desenvolvimento. 12 ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.,44. Ornoy A, Ergaz Z. Alcohol abuse in pregnant women: effects on the fetus and newborn, mode of action and maternal treatment. Int J Environ Res Public Health. 2010;7(2):364-79.,66. Souza LHRF, Santos MC, Oliveira LCM. Padrão do consumo de álcool em gestantes atendidas em um hospital público universitário e fatores de risco associados. Rev Bras Ginecol Obstet. 2012;34(7):296-303.,77. Kassada DS, Marcon SS, Waidman MAP. Percepções e práticas de gestantes atendidas na atenção primária frente ao uso de drogas. Esc Anna Nery. 2014;18(3):428-34..

O uso de drogas no período gestacional é um assunto difundido dentre os diversos fatores de risco para as manifestações de alterações do desenvolvimento infantil, incluindo as alterações fonoaudiológicas, porque, não somente o aspecto orgânico, mas o ambiental em relação ao desenvolvimento da criança se altera em relação ao uso de álcool e drogas por pais de crianças em qualquer idade. Além de que, se o uso persiste após o período gestacional, a alta vulnerabilidade social destas famílias pode gerar privações nutricionais, falta de estimulação ambiental necessária ao desenvolvimento infantil, entre outros fatores, assim como o consumo passivo88. Solis JM, Shadur JM, Burns AR, Hussong AM. Understanding the Diverse Needs of Children whose Parents Abuse Substance. Curr Drug Abuse Rev. 2012;5(2):135-47..

Como é de conhecimento na literatura99. Oliveira CM, Pereira LJ. Persistent developmental stuttering: fluency assessment pre- and post-treatment. Rev. CEFAC. 2014;16(1):120-30., a intervenção fonoaudiológica em crianças com gagueira visa a suavizar a fala, propiciar a continuidade da emissão verbal e promover a manutenção da fluência, ocasionando um maior fluxo de informação e uma fala mais harmônica, rápida e natural por meio de técnicas terapêuticas, tais como, o prolongamento de fones, atividades de diminuição da velocidade de fala e por meio de trabalhos motivacionais, com identificação de emoções e comportamentos envolvidos na fluência e disfluência, redução dos sentimentos e/ou atitudes negativas e de tensão, além do apoio da família a fim de favorecer o ambiente de comunicação que a criança está inserida99. Oliveira CM, Pereira LJ. Persistent developmental stuttering: fluency assessment pre- and post-treatment. Rev. CEFAC. 2014;16(1):120-30..

A partir do momento em que a emissão verbal se aproxima do natural, as alterações fonológicas antes mascaradas pelas disfluências se tornam mais evidentes e, no caso de crianças que apresentam muitos processos fonológicos na fala, a intervenção fonoaudiológica usando o Modelo de Ciclos tem se mostrado eficaz. Este Modelo envolve a conscientização das características do som-alvo do qual se pretende adquirir através da escolha de dois sons-alvos e suas respectivas palavras-estímulo que serão utilizadas durante o Bombardeamento auditivo1010. Tyler AA, Edwards ML, Saxman JH. Clinical application of two phonologically based treatment procedures. J Speech Hear Disord. 1987;52(4):393-409..

O intuito de estudos de casos clínicos que abordem temas como a possibilidade de uso abusivo de substâncias licitas e ilícitas é alertar os fonoaudiólogos da necessidade de uma avaliação fonoaudiológica completa, que envolva as questões relacionadas à fluência e à linguagem em casos de relatos de consumo de bebidas alcoólicas e drogas nas famílias das crianças atendidas, fornecendo condições para que estas famílias recebam acompanhamento social mais amplo.

Portanto, o objetivo deste estudo foi demonstrar a importância da investigação do histórico clínico e familiar de uma criança, cujos pais eram usuários de álcool e drogas com queixa inicial de disfluências para a intervenção fonoaudiológica.

Apresentação do Caso

O estudo foi realizado no Estágio Supervisionado Clínica de Fluência, na Clínica de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru - Universidade de São Paulo (FOB-USP) e os responsáveis foram informados quanto à metodologia utilizada e concordaram com as normas desta instituição, aceitando o uso dos dados dos referidos atendimentos para fins didáticos e de pesquisa, segundo termos da autorização.

O trabalho teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da FOB - USP sob parecer nº 108/2011.

O caso em questão se refere ao de uma criança do sexo masculino com seis anos de idade, cursando o primeiro ano do Ensino Fundamental em uma escola regular da rede pública, encaminhada para a Clínica-Escola por intermédio da diretora da escola em que estava matriculado e dos pais da criança que se queixavam de disfluências gagas.

Durante a anamnese, apenas a mãe estava presente e essa negou haver histórico de gagueira na família materna e paterna, mas relatou ser fumante, ingerir bebidas alcoólicas desde a adolescência até os dias atuais e possuir cinco filhos no total, sendo a criança em estudo o mais novo. A responsável relatou ainda que, durante os primeiros meses de gestação, começou a se desentender com o cônjuge, o que resultou no aumento do consumo de cigarros, bebidas alcoólicas e de maconha. No sétimo mês gestacional e, alegando desconforto, a mãe utilizou de diversos meios para causar o aborto ou acelerar o nascimento da criança, como a ingestão de chá de arruda, chá de canela com analgésico e autoagressão, porém a criança veio a nascer de parto normal, a termo, com testes normais e sem nenhuma deficiência aparente.

Com relação ao desenvolvimento motor e linguístico, a criança começou a andar aos 12 meses de idade e a falar de modo ininteligível aos três anos. De acordo com a mãe, todos os moradores da residência nunca estimularam a criança durante a aquisição e desenvolvimento da linguagem, visto que, de acordo com a mesma, a criança não foi aceita de início pelo fato de possuir os olhos e a pele mais claros do que os demais membros. Logo, não desenvolveram afeto e não tinham como hábito estimular a linguagem com diálogos, contos ou cantigas. Pelo contrário, quando a criança não era compreendida pelo interlocutor, ela apresentava reações atípicas como bater o pé, bater na perna e respirar seguidas vezes. Tal comportamento desencadeava respostas negativas dos membros familiares, como expor a criança a chacotas, castigos e uso de palavras de baixo calão. Na época da anamnese, seu comportamento foi agitado e nervoso. Já no ambiente escolar, de acordo com relatório da diretora entregue pela mãe na anamnese, a criança não fazia contato com as demais crianças por questão de timidez, havendo também queixas quanto à aprendizagem. Após este contato inicial, a mãe foi encaminhada ao Setor de Serviço Social da Clínica-Escola.

Resultados

Avaliação Fonoaudiológica

No início dos atendimentos foram realizadas avaliações fonoaudiológicas (audiológicas, linguagem e fluência) a fim de se obter o diagnóstico e nortear o planejamento do processo interventivo.

Para analisar os aspectos referentes à Fluência da fala e obtenção de informações sobre o grau de severidade da gagueira foi utilizado o Stuttering Severity Instrument - S.S.I1111. Riley GD.A Stuttering Severity Instrument for Children and Adults. J of Speech and Hearing Dis. 1972;37:314-22. e a prova de Fluência do Teste de Linguagem Infantil - ABFW1212. Andrade CRF, Béfi DML, Fernandes FDM, Wertzner HF. ABFW: teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. Editora Pró-Fono, 2004., voltado para a identificação das rupturas e a velocidade de fala.

Quanto aos demais aspectos da Linguagem, foram utilizados o Checklist de Habilidades Comunicativas Verbais1313. Abe CM. Cheklist de Habilidades Comunicativas Verbais [dissertação]. Bauru (SP): Universidade de São Paulo - Faculdade de Fonoaudiologia; 2013. para a pragmática, as provas de Fonologia e Vocabulário do Teste de Linguagem Infantil - ABFW1212. Andrade CRF, Béfi DML, Fernandes FDM, Wertzner HF. ABFW: teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. Editora Pró-Fono, 2004. e a Porcentagem de Consoantes Corretas (PCC)1414. Wertzner HF, Amaro L, Teramoto SS. Gravidade do distúrbio fonológico: julgamento perceptivo e porcentagem de consoantes corretas. Pró-Fono R Atual. Cient. 2004;17(2):185-94., possibilitando a análise do inventário fonético, organização fonológica, vocabulário expressivo e inteligibilidade de fala para, consequentemente, facilitar o acompanhamento da evolução da intervenção, uma vez que a referida métrica é uma avaliação objetiva.

Em acréscimo, visando a levantar possíveis alterações auditivas para a pesquisa dos limiares aéreos e logoaudiometria, foram utilizados um audiômetro da marca Danplex, modelo DA65 e um imitanciômetro da marca Siemens, modelo SD50 para a realização da timpanometria e a pesquisa dos reflexos estapedianos.

Dados da Avaliação Pré-Intervenção

Nas avaliações da fluência, a criança apresentou gagueira de grau moderado para crianças em fase pré-escolar, tendo obtido score total de 23 no protocolo SSI1111. Riley GD.A Stuttering Severity Instrument for Children and Adults. J of Speech and Hearing Dis. 1972;37:314-22. e velocidade de fala aquém do esperado para crianças com seis anos de idade de acordo com o teste ABFW1212. Andrade CRF, Béfi DML, Fernandes FDM, Wertzner HF. ABFW: teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. Editora Pró-Fono, 2004..

No Checklist de Habilidades Comunicativas Verbais, observou-se dificuldade em manter turnos comunicativos e narrativa com linguagem simplificada, fazendo o uso de gestos. Além disso, na prova de Fonologia do ABFW1212. Andrade CRF, Béfi DML, Fernandes FDM, Wertzner HF. ABFW: teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. Editora Pró-Fono, 2004., a criança apresentou simplificações fonológicas, tais como, plosivação de fricativa, posteriorização para velar, frontalização de velar, frontalização de palatal e simplificação de líquida não esperadas para a idade. O mesmo desempenho foi observado na prova de Vocabulário nas categorias: vestuário, alimentos, móveis e utensílios, profissões, locais, brinquedos e instrumentos musicais. Por fim, foram descartados problemas auditivos, uma vez que se encontrou dados característicos de audição normal na avaliação audiológica realizada.

Intervenção Fonoaudiológica

A intervenção fonoaudiológica ocorria duas vezes por semana com duração de 50 minutos cada. Inicialmente, o objetivo principal foi trabalhar a fluência e, secundariamente, os aspectos pragmáticos e semânticos. O período relatado aqui compreende três semestres letivos (aproximadamente 12 meses), totalizando 48 sessões de intervenção. Durante o processo de intervenção fonoaudiológico, foi trabalhada a motivação da criança, visando propiciar ao uso da linguagem oral mesmo na presença de disfluências gagas, sendo estimulada a prolongar as sílabas em que ocorriam as disfluências.

Em todas as sessões, os pais também foram orientados a conversar mais com a criança e a adotar certa atitudes frente às dificuldades da mesma, a respeitar seus turnos comunicativos, não a interromper durante o discurso, não gritar ou caçoar, evitando o aumento da tensão e do nervosismo relatados e apresentados durante a emissão oral.

Dado que os pais surpreendentemente não faltavam nos atendimentos fonoaudiológicos e como havia relatos de excesso de faltas escolares da criança pelo relatório escolar, foi estabelecida uma orientação familiar sistemática semanalmente com colaboração da assistente social da clínica-escola, na qual os pais foram informados do desenvolvimento da criança e das estratégias utilizadas em terapia que poderiam ser feitas em residência familiar. Além disso, eles eram orientados quanto à importância da frequência escolar tanto por questões acadêmicas, quanto para questões sócio-interativas, sendo que assumiram o compromisso de trazer mensalmente uma ficha de frequência escolar. Essa estratégia se mostrou efetiva, pois houve um aumento na frequência escolar da criança, segundo relato da direção da escola.

A assistente social também conseguiu que a mãe realizasse atendimentos médicos em um hospital público, na tentativa de tratar os danos que o uso de álcool e drogas causaram em seu organismo; porém, infelizmente, o pai se recusou a tratar sua adição.

No decorrer da intervenção, a partir do momento em que as disfluências diminuíram e a criança iniciou o auto-monitoramento, foram estimuladas a elaboração de frases extensas através do relato do seu dia-a-dia e a recontagem de histórias, adequando a velocidade de fala e, consequentemente, aumentando os períodos de fluência, obtendo evolução do quadro (Tabela 1) e alcançando o score total de 06 no protocolo SSI1111. Riley GD.A Stuttering Severity Instrument for Children and Adults. J of Speech and Hearing Dis. 1972;37:314-22., ou seja, dentro dos padrões de normalidade, após 30 sessões terapêuticas. Todavia, foi observado que o mesmo apresentava muita dificuldade na compreensão das ordens dos enunciados das atividades.

Tabela 1:
Resultados da prova de fluência do teste ABFW nos momentos pré e pós intervenção

Para eliminação de alguns processos fonológicos, foi utilizado o Modelo de Ciclos Modificado1010. Tyler AA, Edwards ML, Saxman JH. Clinical application of two phonologically based treatment procedures. J Speech Hear Disord. 1987;52(4):393-409. em 18 sessões, envolvendo o uso constante de palavras foneticamente balanceadas durante atividades lúdicas e o bombardeamento auditivo ao início e ao final de cada sessão. Ressalta-se que foram feitas algumas adaptações na aplicação do referido modelo, tais como: a estimulação da Consciência Fonológica (especialmente segmentação silábica) visando a diminuir os processos fonológicos de omissão e o trabalho de estimulação dos aspectos fonéticos no início da primeira sessão de cada som-alvo (com pistas táteis sinestésicas e, principalmente, com a utilização de prompt articulatório).

Ao final de três semestres letivos (aproximadamente 12 meses), totalizando 48 sessões de intervenção, a criança foi reavaliada e, já com sete anos de idade, constatou-se melhora no quadro clínico dela com aumento do vocabulário e trocas fonológicas assistemáticas como observado nas Tabelas 2 e 3.

Tabela 2:
Inteligibilidade de fala - Percentagem de Consoantes Corretas (PCC) pré e pós intervenção

Tabela 3:
Resultado da prova de Vocabulário do teste ABFW pós intervenção e os valores esperados para a idade*

De acordo com os pais, as disfluências diminuíram, permanecendo apenas algumas simplificações fonológicas que comprometiam o discurso.

Discussão

O estudo de caso foi realizado de modo a investigar a relação entre a exposição pré-natal a fatores teratogênicos ambientais, como drogas, cigarro e o álcool com as alterações de fluência e linguagem. Logo, avaliar o histórico clínico e familial da criança e, não somente, os resultados obtidos nas avaliações fonoaudiológicas para definir uma abordagem de intervenção, foram de extremo valor profissional e um desafio para os profissionais envolvidos da área da saúde. Estudos indicam escassez de dados referentes ao uso de substâncias ilícitas durante a gravidez com a justificativa de que tais relatos acontecem tardiamente por medo de que as usuárias tenham que ser julgadas pelos profissionais de saúde em função do uso de drogas77. Kassada DS, Marcon SS, Waidman MAP. Percepções e práticas de gestantes atendidas na atenção primária frente ao uso de drogas. Esc Anna Nery. 2014;18(3):428-34., o que não foi encontrado neste caso.

Em nosso estudo, uma vez que não houve histórico familial positivo para gagueira33. Oliveira CMC, Nogueira PRN. Prevalence of risk factors for stuttering among boys: analytical cross-sectional study. Med J. 2014;132(3):152-7., a constatação de outros fatores de risco corroborou com os achados de diversos autores22. Bee H. A criança em desenvolvimento. 12 ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.,44. Ornoy A, Ergaz Z. Alcohol abuse in pregnant women: effects on the fetus and newborn, mode of action and maternal treatment. Int J Environ Res Public Health. 2010;7(2):364-79.

5. Ortega JA, Martin M, Lopez MT, Fuster JL, Donat J, Lopez B et al. Transgenerational tobacco smoke exposure and childhood cancer: an observational study. J. Pediatr. Child. Health. 2010;46(6):291-5.

6. Souza LHRF, Santos MC, Oliveira LCM. Padrão do consumo de álcool em gestantes atendidas em um hospital público universitário e fatores de risco associados. Rev Bras Ginecol Obstet. 2012;34(7):296-303.
-77. Kassada DS, Marcon SS, Waidman MAP. Percepções e práticas de gestantes atendidas na atenção primária frente ao uso de drogas. Esc Anna Nery. 2014;18(3):428-34. que encontraram mais fatores de riscos presentes nos indivíduos sem histórico familial. Tais fatores de risco encontrados no caso aqui apresentado são uso de álcool e drogas durante a gestação (de acordo com o relato dos pais) e atraso na aquisição da linguagem já que a aquisição da criança se iniciou aos três anos de idade33. Oliveira CMC, Nogueira PRN. Prevalence of risk factors for stuttering among boys: analytical cross-sectional study. Med J. 2014;132(3):152-7., o que pode ser justificado pela elevada exposição de drogas no período pré-natal e a falta de estimulação proveniente dos pais durante os primeiros anos de vida.

Quanto ao comportamento da criança, nas sessões de intervenção - quando a criança estava só com a terapeuta - percebeu-se que ela apresentava um padrão comportamental mais afetuoso, desinibido e com menor quantidade de disfluências gagas; mas, de acordo com os relatos dos responsáveis, quando a criança não conseguia produzir a palavra desejada ou, até mesmo, não era compreendida pelo interlocutor, apresentava reações atípicas como bater o pé, socar a perna e respirar seguidas vezes, desencadeando respostas negativas dos membros familiares1515. McGee CL, Bjorkquist OA, Riley EP, Mattson SN. Impaired language performance in young children with heavy prenatal alcohol exposure. Neurotoxicol Teratol. 2009;31(2):71-5.. Diante disso, os pais foram orientados sobre a importância de um comportamento diferencial perante a presença da criança e quanto às estratégias adequadas para aumentar o vocabulário, pragmática e fluência de fala99. Oliveira CM, Pereira LJ. Persistent developmental stuttering: fluency assessment pre- and post-treatment. Rev. CEFAC. 2014;16(1):120-30.. Porém, para os mesmos, o fato de serem frequentes ao atendimento fonoaudiológico já era o suficiente.

Quanto às estratégias usadas na intervenção com a fluência, o trabalho motivacional, os exercícios lúdicos de prolongamento de fones, "elástico", montagem de histórias e recontagem da rotina diária99. Oliveira CM, Pereira LJ. Persistent developmental stuttering: fluency assessment pre- and post-treatment. Rev. CEFAC. 2014;16(1):120-30., demonstrou ter bons e rápidos resultados no caso apresentado. Igualmente, a intervenção com a fonologia utilizando o Modelo de Ciclos Modificado, facilitou o desenvolvimento de novos padrões fonológicos por meio da estimulação multissensorial com a finalidade de desenvolver a consciência do som e da produção dos sons-alvo. Para isso, foi utilizado ciclos onde cada padrão fonológico é trabalhado durante três semanas por meio da escolha de dois sons alvos (e suas respectivas palavras-estímulo empregadas no bombardeamento auditivo). Ao término de cada ciclo, após a obtenção de acertos iguais ou superiores à 50% durante a sondagem, inicia-se outro processo fonológico com maior complexidade1010. Tyler AA, Edwards ML, Saxman JH. Clinical application of two phonologically based treatment procedures. J Speech Hear Disord. 1987;52(4):393-409.. Este modelo se mostrou efetivo, uma vez que após 18 sessões, os processos fonológicos se apresentavam de forma assistemática e o discurso do paciente era de mais fácil compreensão.

Além da alteração da linguagem expressiva, foi observado que a criança demonstrava muita dificuldade na compreensão das ordens e nos enunciados das atividades desenvolvidas em terapia. Segundo diversos autores22. Bee H. A criança em desenvolvimento. 12 ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.,44. Ornoy A, Ergaz Z. Alcohol abuse in pregnant women: effects on the fetus and newborn, mode of action and maternal treatment. Int J Environ Res Public Health. 2010;7(2):364-79.,55. Ortega JA, Martin M, Lopez MT, Fuster JL, Donat J, Lopez B et al. Transgenerational tobacco smoke exposure and childhood cancer: an observational study. J. Pediatr. Child. Health. 2010;46(6):291-5.,1515. McGee CL, Bjorkquist OA, Riley EP, Mattson SN. Impaired language performance in young children with heavy prenatal alcohol exposure. Neurotoxicol Teratol. 2009;31(2):71-5., estas podem ser encontradas em casos nos quais houve uso de bebidas alcoólicas e exposição ao fumo no primeiro trimestre da gestação.

Mesmo sabendo que as demais complicações tardias, como problemas cognitivos e psicossociais decorrentes do uso de drogas poderão aparecer ao longo da vida da criança44. Ornoy A, Ergaz Z. Alcohol abuse in pregnant women: effects on the fetus and newborn, mode of action and maternal treatment. Int J Environ Res Public Health. 2010;7(2):364-79.,55. Ortega JA, Martin M, Lopez MT, Fuster JL, Donat J, Lopez B et al. Transgenerational tobacco smoke exposure and childhood cancer: an observational study. J. Pediatr. Child. Health. 2010;46(6):291-5., no presente estudo não foram investigados em profundidade os aspectos neuropsicológicos e comportamentais da criança, decorrente da falta de assiduidade do responsável ao comparecer nos atendimentos. Igualmente, mesmo após inúmeras tentativas, não foi possível a atuação conjunta com a escola para orientação à coordenação e aos professores. Todavia, o acolhimento da criança e dos familiares e a postura profissional tomada diante dos relatos, proporcionou uma investigação detalhada sobre os fatores que desencadearam as alterações de fluência e linguagem da criança, de forma a compreender e obter bons resultados na intervenção fonoaudiológica.

Conclusão

Embora esse estudo tenha sido voltado a investigar a relação entre a exposição pré-natal a fatores teratogênicos ambientais, como drogas, cigarro e o álcool com as alterações de fluência e linguagem, ficou claro que - mesmo na presença desses fatores explicitamente relatados - assim como de outros fatores de risco, é importante que o fonoaudiólogo e toda a equipe envolvida recebam a família do paciente de forma empática para que eles se sintam acolhidos.

Especificamente, na área de intervenção fonoaudiológica infantil, há dados de extrema importância que - mesmo que não relatados diretamente pela família - podem e devem ser percebidos ou investigados pelo profissional, tais como a alta vulnerabilidade social, a ausência de cuidados básicos com a saúde, a falta de um ambiente estimulador por ausência de conhecimento e acesso, privações econômicas sérias e a frequência baixa na escola, entre outros.

Ficou claro que, no caso relatado, o consumo intenso e concomitante de bebidas alcóolicas, cigarros e maconha durante o período gestacional, assim como o ambiente pouco estimulador, afetaram o desenvolvimento da criança em sua infância até o momento da intervenção fonoaudiológica e contribuíram para as alterações de linguagem, fluência e, consequentemente, aprendizagem da criança. A intervenção fonoaudiológica foi um ponto de apoio que essa família encontrou e com o qual passou a ter acesso a atendimentos, conhecimento e informação sobre serviços que pudessem auxiliar em seu entorno social e na saúde de seus membros, consolidando a atuação conjunta da Fonoaudiologia com o equipamento social da comunidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2017
  • Aceito
    18 Ago 2017
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