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Alterações clínico-epidemiológicas em pacientes com abdome agudo não traumático durante a pandemia da COVID-19: um estudo retrospectivo

RESUMO

Objetivo:

pretendemos demonstrar as alterações clínicas e a evolução pós-operatória em pacientes com abdome agudo não traumático em tratamento conservador ou cirúrgico durante a pandemia em comparação a período semelhante no ano anterior.

Método:

estudo retrospectivo unicêntrico, incluindo pacientes que receberam tratamento clínico-cirúrgico no Hospital do Trabalhador com diagnóstico de abdome agudo entre março e agosto de 2020 e período semelhante em 2019. As variáveis estudadas variaram de dados demográficos a índices de isolamento social.

Resultados:

foram incluídos 515 pacientes, 291 receberam tratamento no período pré-pandemia e 224 na pandemia. Não houve diferença estatística em relação às comorbidades (p=0,0685), tempo para diagnóstico e procura de ajuda médica. Não foram observadas diferenças estatísticas quanto aos dias de internação (p=0,4738) e necessidade de UTI (p=0,2320). Em relação aos óbitos intra-hospitalares, observou-se relevância estatística na idade acima de 60 anos (p=0,002) e ocorreram mais óbitos no período da pandemia (p=0,032). Porém, quando analisamos os fatores associados ao número de dias até o diagnóstico por um médico, não houve diferença estatística.

Conclusão:

os dados analisados mostraram que o período de pandemia e a idade acima de 60 anos foram as variáveis que aumentaram a razão de chances para o desfecho óbito hospitalar. No entanto, o tempo de internação, dias na unidade de terapia intensiva e complicações cirúrgicas pós-operatórias, não apresentaram diferença significativa.

Palavras-chave:
Abdome Agudo; COVID-19; Procedimentos Cirúrgicos do Sistema Digestório; Emergências

ABSTRACT

Objective:

we intend to demonstrate the clinical alterations and the postoperative evolution in patients with acute abdomen non-traumatic in conservative or surgical treatment during the pandemic compared to a similar period in the last year.

Method:

a single-center retrospective study, including patients who received clinical-surgical treatment at Hospital do Trabalhador diagnosed with acute abdomen between March and August 2020 and a similar period in 2019.Variables studied ranged from demographic data to indices of social isolation.

Results:

515 patients were included, 291 received treatment in a pre-pandemic period and 224 during. There was not statistical difference in relation to comorbidities (p=0.0685), time to diagnosis and seeking medical help. No statistical differences were observed in terms of days of hospitalization (p = 0.4738) and ICU need (p=0.2320). Regarding in-hospital deaths, there was statistical relevance in the age above 60 years (p=0.002) and there were more deaths during the pandemic period (p=0.032). However, when we analyze the factors associated with the number of days until diagnosis by a physician, there was no statistical difference.

Conclusion:

the analyzed data showed that the pandemic period and age over 60 years were the variables that increased the odds ratio for the in-hospital death outcome. However, the length of stay, days in intensive care unit and postoperative surgical complications showed no significant difference.

Keywords:
Acute abdomen; COVID-19; Surgical Procedures of the Digestive System; Emergencies

INTRODUÇÃO

No final de 2019, um novo coronavírus (SARS-CoV-2) foi identificado como causa de pneumonia e síndrome respiratória aguda grave. Após rápida disseminação, em 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a situação como uma pandemia global11 WHO Director-General's opening remarks at the media briefing on COVID-19 - 11 March 2020. Available from: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-themedia-briefing-on-covid-19---11-march-2020.
https://www.who.int/dg/speeches/detail/w...
. Desde o primeiro caso de COVID-19 todos os sistemas de saúde se adaptaram a essa nova dinâmica, novas recomendações e protocolos foram desenvolvidos22 Gok AFK, Eryilmaz M, Ozmen MM, Alimoglu O, Ertekin C, Kurtoglu MH. Recommendations for Trauma and Emergency General Surgery Practice During COVID-19 Pandemic. COVID-19 Pandemisi Sirasinda Travma ve Acil Cerrahi Uygulamalari Için Öneriler. Ulus Travma Acil Cerrahi Derg. 2020;26(3):335-42. doi:10.14744/tjtes.2020.79954.
https://doi.org/10.14744/tjtes.2020.7995...
,33 De Simone B, Chouillard E, Di Saverio S, et al. Emergency surgery during the COVID-19 pandemic: what you need to know for practice. Ann R Coll Surg Engl. 2020;102(5):323-32. doi:10.1308/rcsann.2020.0097.
https://doi.org/10.1308/rcsann.2020.0097...
. Departamentos cirúrgicos foram afetados, leitos de recuperação foram transformados em leitos de UTI (unidade de terapia intensiva) , procedimentos eletivos foram adiados e membros das equipes cirúrgicas foram alocados para reforço de UTI44 Cano-Valderrama O, Morales X, Ferrigni CJ, et al. Acute Care Surgery during the COVID-19 pandemic in Spain: Changes in volume, causes and complications. A multicentre retrospective cohort study. Int J Surg. 2020;80:157-61. doi:10.1016/j.ijsu.2020.07.002.
https://doi.org/10.1016/j.ijsu.2020.07.0...
, certamente contribuindo para a diminuição do número de cirurgias.

Nesse cenário, continuaram a aparecer casos abdominais agudos, doenças com potencial de complicações e óbito em curto espaço de tempo55 Parreira JG, et al. Management of non traumatic surgical emergencies during the COVID-19 pandemic. Rev Col Bras Cir. 2020;47(1):e20202614. doi: 10.1590/0100-6991e-20202614.
https://doi.org/10.1590/0100-6991e-20202...
. As complicações podem apresentar taxas entre 8,2 e 31,4%, e a mortalidade é bastante variável, estando diretamente relacionada à causa do abdome agudo66 Bhangu A, Søreide K, Di Saverio S, Assarsson JH, Drake FT. Acute appendicitis: modern understanding of pathogenesis, diagnosis, and management. Lancet. 2015;386(10000):1278-87. doi: 10.1016/S0140-6736(15)00275-5. Erratum in: Lancet. 2017;390(10104):1736.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)00...
,77 Sartelli M, Baiocchi GL, Di Saverio S, et al. Prospective Observational Study on Acute Appendicitis Worldwide (POSAW). World J Emerg Surg. 2018;13:19. doi:10.1186/s13017-018-0179-0.
https://doi.org/10.1186/s13017-018-0179-...
. A sobrecarga do sistema de saúde causada pela pandemia COVID-19 resulta em dificuldade de acesso e atraso no diagnóstico e tratamento dos casos de abdome agudo, o que pode contribuir para o aumento da morbimortalidade de doenças que requerem tratamento cirúrgico de urgência.

Portanto, este estudo tem como objetivo avaliar possíveis alterações na evolução clínica e desfechos pós-operatórios de pacientes com abdome agudo não traumático, submetidos a tratamento cirúrgico ou conservador durante a pandemia de COVID-19, quando comparados a um período semelhante anterior à pandemia.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo retrospectivo unicêntrico desenvolvido sob aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos do Hospital do Trabalhador (CEPSH-SESA/HT), CAAE 33750120.7.0000.5225. Os critério de inclusão foram pacientes adultos (>18 anos) que receberam tratamento médico no Hospital do Trabalhador em Curitiba, Brasil, para quadro clínico-cirúrgico de abdome agudo. Os pacientes foram identificados por meio de pesquisa de prontuários eletrônicos CID-10 compatível com diagnósticos de abdome agudo, outra dor abdominal, apendicite aguda, colecistite aguda, pancreatite aguda, doença péptica perfurada, diverticulite aguda e hérnia (femoral, inguinal e umbilical) com obstrução intestinal, respectivamente, sob os CID’s R100, R104, K350, K551, K359, K810, K811, K818, K819, K850, K851, K852, K853, K858, K859, K271, K403, K404 e K420. Foram inseridos os pacientes que atenderam aos critérios de inclusão e que foram atendidos entre março a agosto de 2019 e março a agosto de 2020.

Os critérios de exclusão utilizados neste trabalho foram pacientes vítimas de trauma, pacientes pediátricos, pacientes submetidos a cirurgia de emergência relacionada a cirurgias eletivas anteriores e aqueles com dor abdominal crônica (sem complicações agudas concomitantes), além de pacientes que foram atendidos fora do período pré-estabelecido.

Dois grupos de estudos foram estabelecidos de acordo com a data do atendimento médico. Os pacientes atendidos entre março de 2020 e agosto de 2020 constituíram o grupo de pacientes atendidos durante a pandemia de COVID-19. Outro grupo comparativo foi formado pelos pacientes atendidos em período semelhante, entre março de 2019 e agosto de 2019, grupo pré-pandemia de COVID-19. Só foram testados para identificação do novo coronavírus os pacientes que apresentaram sintomas respiratórios ou compatíveis com COVID-19.

As variáveis observadas e registradas incluíram dados demográficos do paciente, diagnóstico clínico-cirúrgico, tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico, comorbidades (cálculo do Índice de Comorbidade de Charlson, ICC), tempo de internação, complicações hospitalares (pontuação de Clavien Dindo) e tratamento cirúrgico. O ICC é um dos índice de comorbidades mais utilizado para prever mortalidade, identificando as comorbidades presentes e aplicando pesos para essas doenças, ou seja, leve (1-2); moderada (3-4) e grave (≥5)88 Charlson ME, Pompei P, Ales KL, et al. A new method of classifying prognostic comorbidity in longitudinal studies: development and validation. J Chronic Dis. 1987;40(5):373-83. doi: 10.1016/0021-9681(87)90171-8.
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. A pontuação de Clavien Dindo foi uma classificação padronizada proposta em 1992 e revisada em 2004 com níveis de gravidade baseado na intervenção terapêutica aplicada ao manejo das complicações cirúrgicas99 Dindo D, Demartines N, Clavier PA. Classification of surgical complications: a new proposal with evaluation in a cohort of 6336 patients and results of a survey. Ann Surg. 2004;240(2):205-13. doi: 10.1097/01.sla.0000133083.54934.ae.
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.

Também foram coletados índices de isolamento social no estado onde está localizado o hospital em questão (estado do Paraná), disponíveis na plataforma pública de dados “inloco”1010 InLoco: https://mapabrasileirodacovid.inloco.com.br/pt/
https://mapabrasileirodacovid.inloco.com...
. Esses dados foram obtidos para os meses de março a agosto de 2020 (durante a pandemia COVID-19), com índices médios calculados para cada mês de estudo.

Os dados coletados foram então analisados por meio do software estatístico STATA v14.21111 Stata Statistical Software: Release 14. College Station, TX: StataCorp LP. StataCorp. 2013.. Para análise descritiva, as medidas de tendência central e dispersão foram expressas em média e desvio padrão (média + DP) para variáveis contínuas com distribuição normal e como medianas, valores mínimo e máximo (mediana, mínimo - máximo) para aquelas com distribuição não normal. Variáveis categóricas foram expressas como frequências absolutas e relativas. Para a análise estatística inferencial, os grupos foram comparados usando o teste t de Student não pareado para variáveis dependentes contínuas e qui quadrado para variáveis dependentes binárias ou categóricas. Por fim, para a análise não pareada das variáveis categóricas independentes, foi utilizado o teste de Kruskall-Wallis. A regressão logística multivariada e a regressão linear foram utilizadas para identificar os fatores relacionados ao óbito hospitalar (variável dependente categórica) e aos dias entre o início dos sintomas e a procura por atendimento médico (variável dependente contínua), respectivamente. Os modelos de regressão e seus parâmetros foram desenvolvidos com base em um modelo com plausibilidade biológica e epidemiológica, bem como utilizando o Critério de Informação de Akaike (AIC)1212 H. Akaike. A new look at the statistical model identification. IEEE Transactions on Automatic Control. 1974;19(6):716-23. doi: 10.1109/TAC.1974.1100705.
https://doi.org/10.1109/TAC.1974.1100705...
. Foi considerado para este estudo um nível de significância de 5%.

RESULTADOS

Um total de 515 pacientes foi incluído, com 291 recebendo atendimento no período pré-pandêmico e 224 no período pandêmico COVID-19. O número de pacientes do sexo masculino foi maior em ambos os grupos (Tabela 1). A distribuição de idade foi estatisticamente diferente entre os grupos (p=0,036), porém ambos apresentaram preponderância de adultos não idosos (<60 anos).

Tabela 1
Distribuição de 515 pacientes com abdome agudo quanto a características clínicas, divididos em dois grupos, pré e durante pandemia.

Não houve diferença significativa entre os grupos em relação às comorbidades prévias, mensuradas pelo ICC (p=0,0685), bem como à presença de cirurgia abdominal prévia (p=0,2700). Também não houve diferença no tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico ao comparar os grupos pré-pandemia (3,89 ± 6,11 dias) e pandêmico (3,80 ± 12,56 dias) (p=0,9108).

A frequência de cada diagnóstico de abdome agudo entre os pacientes incluídos neste estudo também foi semelhante entre os grupos (p=0,2200). Apendicite aguda e colecistite aguda foram os dois diagnósticos mais prevalentes em ambos os grupos.

Em relação ao curso hospitalar (Tabela 2), o número médio de dias de internação foi semelhante entre os grupos, 4,16 ± 5,30 dias pré-pandemia e 4,50 ± 5,49 dias durante a pandemia. Também não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos quanto ao uso de antibioticoterapia, necessidade de abordagem cirúrgica ou prevalência de diferentes técnicas cirúrgicas (aberta versus laparoscópica).

Tabela 2
Análise dos dados pré e pós-pandemia em relação às complicações e curso hospitalar.

Quanto à necessidade de terapia intensiva, o percentual de pacientes que necessitaram de UTI foi um pouco menor durante a pandemia, enquanto o tempo médio de permanência na UTI em dias foi um pouco maior. No entanto, essas diferenças não foram estatisticamente significativas.

Por fim, também não houve diferença entre os grupos quanto às complicações durante a internação, segundo a classificação de Clavien-Dindo (p=0,6960). Em ambos os grupos, o grau III B foi o mais prevalente, caracterizando intervenção cirúrgica, endoscópica ou radiológica sob anestesia geral. Seis pacientes morreram no hospital no período pré-pandemia e nove durante a pandemia, sem diferença estatística entre esses valores.

Um modelo de regressão logística foi selecionado usando as variáveis independentes sexo, idade, ICC e grupo (pré-pandemia vs. pandemia de COVID-19). A variável dependente para esse modelo foi óbito hospitalar (Tabela 3). Na análise univariada, os fatores idade ≥60 anos (Odds Ratio 26,33; IC 95%: 5,85 - 118,57) e ICC (Odds Ratio 1,54; IC 95%: 1,30 - 1,81) estiveram associados ao óbito hospitalar (ambos p<0,001 ). Após o ajuste para essas covariáveis na análise multivariada, idade ≥60 (Odds Ratio 13,96; IC 95%: 2,57 - 75,91; p=0,002) e ICC continuaram estatisticamente associados com óbito hospitalar (Odds Ratio 1, 30; 95% IC: 1,03 - 1,63; p=0,029). Além disso, após ajuste das covariáveis, ser atendido durante a pandemia se mostrou um fator associado a óbito intra-hospitalar (Odds Ratio 3,54; IC 95%: 1,11 - 12,27; p=0,032).

Tabela 3
Regressão logística, fatores associados a óbito intrahospitalar.

Em seguida, foi construído um modelo de regressão linear utilizando as variáveis independentes sexo, idade, ICC e índice de isolamento social por mês (durante o período pré-pandemia). A variável dependente desse modelo foi o número de dias entre o início dos sintomas e o diagnóstico (Tabela 4). Nenhuma das variáveis foi associada a demora até o diagnóstico, tanto na análise univariada quanto após ajuste para covariáveis.

Tabela 4
Regressão linear, fatores associados a número de dias até o diagnóstico.

DISCUSSÃO

Com a evolução da pandemia COVID-19, diversos aspectos do atendimento às afecções abdominais agudas foram adaptados com o objetivo de otimizar os recursos disponíveis. Sociedades cirúrgicas internacionais publicaram novos protocolos com diretrizes sobre o tratamento cirúrgico versus tratamento conservador em casos de abdome agudo durante a pandemia1313 Correia MITD, Ramos RF, Bahten LCV. The surgeons and the COVID-19 pandemic. Rev Col Bras Cir. 2020;47(1):e20202536. doi:10.1590/0100-6991e-20202536.
https://doi.org/10.1590/0100-6991e-20202...

14 Coimbra R, Edwards S, Kurihara H, et al. European Society of Trauma and Emergency Surgery (ESTES) recommendations for trauma and emergency surgery preparation during times of COVID-19 infection. Eur J Trauma Emerg Surg. 2020;46(3):505-510. doi:10.1007/s00068-020-01364-7.
https://doi.org/10.1007/s00068-020-01364...
-1515 COVID 19: guidance for triage of non-emergent surgical procedures. American College of Surgeons. Avaliable at https://www.facs.org/covid-19/clinical-guidance/triage. March 17, 2020. Accessed: March 29, 2021
https://www.facs.org/covid-19/clinical-g...
.

A pandemia trouxe desafios sem precedentes aos sistemas de saúde1616 Rasslan R, Dos Santos JP, Menegozzo CAM, et al. Outcomes after emergency abdominal surgery in COVID-19 patients at a referral center in Brazil. Updates Surg. 2021;73(2):763-8. doi:10.1007/s13304-021-01007-5.
https://doi.org/10.1007/s13304-021-01007...
, mas mesmo após mais de 24 meses, ainda são poucos os relatos de seu efeito no atendimento aos casos de abdome agudo. Alguns autores relataram atrasos no atendimento médico à população pediátrica1717 Masroor S. Collateral damage of COVID-19 pandemic: Delayed medical care. J Card Surg. 2020;35(6):1345-7. doi:10.1111/jocs.14638.
https://doi.org/10.1111/jocs.14638...
,1818 Garcia S, Albaghdadi MS, Meraj PM, et al. Reduction in ST-Segment Elevation Cardiac Catheterization Laboratory Activations in the United States During COVID-19 Pandemic. J Am Coll Cardiol. 2020;75(22):2871-2. doi:10.1016/j.jacc.2020.04.011.
https://doi.org/10.1016/j.jacc.2020.04.0...
, o que pode estar relacionado ao medo dos pais de submeterem seus filhos a um ambiente hospitalar durante a pandemia1919 Place R, Lee J, Howell J. Rate of Pediatric Appendiceal Perforation at a Children's Hospital During the COVID-19 Pandemic Compared With the Previous Year. JAMA Netw Open. 2020;3(12):e2027948. doi:10.1001/jamanetworkopen.2020.27948.
https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen....
. Além disso, o perfil dos pacientes internados em ambiente hospitalar mudou2020 Moustakis J, Piperidis AA, Ogunrombi AB. The effect of COVID-19 on essential surgical admissions in South Africa: A retrospective observational analysis of admissions before and during lockdown at a tertiary healthcare complex. S Afr Med J. 2020;110(9):910-5. doi:10.7196/SAMJ.2020.v110i9.15025.
https://doi.org/10.7196/SAMJ.2020.v110i9...
, reduzindo o número de pacientes cirúrgicos em diversos hospitais55 Parreira JG, et al. Management of non traumatic surgical emergencies during the COVID-19 pandemic. Rev Col Bras Cir. 2020;47(1):e20202614. doi: 10.1590/0100-6991e-20202614.
https://doi.org/10.1590/0100-6991e-20202...
. Talvez devido a medidas mais restritivas, houve uma diminuição no número de pacientes internados por causas não traumáticas na África do Sul2020 Moustakis J, Piperidis AA, Ogunrombi AB. The effect of COVID-19 on essential surgical admissions in South Africa: A retrospective observational analysis of admissions before and during lockdown at a tertiary healthcare complex. S Afr Med J. 2020;110(9):910-5. doi:10.7196/SAMJ.2020.v110i9.15025.
https://doi.org/10.7196/SAMJ.2020.v110i9...
. Outros estudos internacionais demonstram redução nas admissões de emergência, como um estudo italiano2121 De Filippo O, D'Ascenzo F, Angelini F, et al. Reduced Rate of Hospital Admissions for ACS during Covid-19 Outbreak in Northern Italy. N Engl J Med. 2020;383(1):88-9. doi:10.1056/NEJMc2009166.
https://doi.org/10.1056/NEJMc2009166...
e outro norte-americano2222 Christey G, Amey J, Campbell A, Smith A. Variation in volumes and characteristics of trauma patients admitted to a level one trauma centre during national level 4 lockdown for COVID-19 in New Zealand. N Z Med J. 2020;133(1513):81-8.. Um estudo da Nova Zelândia, por exemplo, encontrou uma redução de 26%2323 McGuinness MJ, Hsee L. Impact of the COVID-19 national lockdown on emergency general surgery: Auckland City Hospital's experience. ANZ J Surg. 2020;90(11):2254-8. doi:10.1111/ans.16336.
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. Em nosso estudo, apesar da diminuição do número absoluto de pacientes, essa diferença não foi estatisticamente relevante.

Durante a pandemia, predominaram pacientes com menos de 60 anos sem cirurgia abdominal prévia e com média de 3,80 dias do início dos sintomas até o diagnóstico. Esses dados são estatisticamente semelhantes aos do período pré-pandemia. Comparando a prevalência dos diagnósticos, apendicite e colecistite aguda predominaram nos dois períodos estudados. Assim, observamos que os pacientes continuaram a buscar ajuda médica, apesar das restrições impostas pelo isolamento social. Os motivos podem estar relacionados à manutenção do acesso aos pronto-socorros mesmo com o aumento da ocupação hospitalar, também podem estar relacionados às restrições de isolamento mais brandas aplicadas na cidade e no estado de funcionamento do hospital ou mesmo à comunicação realizada pela mídia em geral e pelos canais médicos, orientando a população.

Ao avaliar os dados relativos ao tempo de internação, dias na unidade de terapia intensiva e número de óbitos, não encontramos diferença significativa entre os grupos. Tais achados são semelhantes aos dados de mortalidade e tempo de internação hospitalar encontrados na literatura, em que também não houve diferença estatística durante o período pandêmico2323 McGuinness MJ, Hsee L. Impact of the COVID-19 national lockdown on emergency general surgery: Auckland City Hospital's experience. ANZ J Surg. 2020;90(11):2254-8. doi:10.1111/ans.16336.
https://doi.org/10.1111/ans.16336...
.

Em nosso estudo, utilizamos a classificação de complicações cirúrgicas de Clavien-Dindo para verificar a presença e a gravidade das complicações pós-operatórias. Também nestes dados não obtivemos diferença estatística entre os grupos, em ambos a classificação III B foi a mais prevalente, o que caracteriza a necessidade de intervenção cirúrgica, endoscópica ou radiológica sob anestesia geral.

Quando recorremos à literatura para fazer uma comparação entre o período antes e durante a pandemia, os estudos britânicos encontraram semelhanças e bons resultados em cirurgias de apendicite aguda2424 Pringle HCM, Donigiewicz U, Bennett MR, et al. Appendicitis during the COVID-19 pandemic: lessons learnt from a district general hospital. BMC Surg. 2021;21(1):242. doi:10.1186/s12893-021-01231-1.
https://doi.org/10.1186/s12893-021-01231...
,2525 Javanmard-Emamghissi H, Boyd-Carson H, Hollyman M, et al. The management of adult appendicitis during the COVID-19 pandemic: an interim analysis of a UK cohort study. Tech Coloproctol. 2021;25(4):401-11. doi:10.1007/s10151-020-02297-4.
https://doi.org/10.1007/s10151-020-02297...
, embora alguns ensaios tenham mostrado maior mortalidade em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos durante a pandemia2626 COVIDSurg Collaborative. Mortality and pulmonary complications in patients undergoing surgery with perioperative SARS-CoV-2 infection: an international cohort study. Lancet. 2020;396(10243):27-38. doi: 10.1016/S0140-6736(20)31182-X.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31...
.

Porém, ao utilizar modelos de regressão logística, conforme demonstrado nas Tabelas 3 e 4, obtivemos achados interessantes. A Tabela 3 especifica o desfecho do óbito, tanto na análise univariada quanto na multivariada, encontramos dados com significância estatística. Na análise multivariada, por exemplo, observamos que ser do sexo masculino ou feminino não interfere no óbito, mas ter mais de 60 anos tem razão de chance de 13,96 vezes mais óbito intra-hospitalar, e ser tratado durante a pandemia teve uma razão de chances 3,54 vezes maior do que pacientes atendidos no período pré-pandemia. Este último achado traz uma reflexão importante, se não houve diferença estatística entre o tempo até o diagnóstico e não houve diferenças nas complicações pós-operatórias, conforme visto nos dados das Tabelas 1 e 2, tal diferença poderia estar relacionada a dificuldades intra-hospitalares devido à superlotação e escassez de recursos. A exceção dos dois primeiros meses da pandemia observou-se que a equipe trabalhou sempre com lotação limite, devido tanto a demanda da COVID, quanto do trauma e do abdome agudo não-traumático, porém não encontramos dados mensais detalhados sobre escassez de recursos e dificuldades intra-hospitalares.

Na Tabela 4, avaliamos as variáveis idade, sexo e índice de isolamento social com o número de dias desde o início dos sintomas até o atendimento hospitalar e não encontramos associação entre as variáveis e o desfecho. Pudemos inferir que o isolamento social não atrasou a procura por atendimento hospitalar, assim como os idosos continuaram a procurar o pronto-socorro durante a pandemia.

Nosso estudo apresenta algumas limitações inerentes ao modelo de estudo, por se tratar de um estudo não randomizado em apenas uma instituição e com número limitado de pacientes. No entanto, é válido como um retrato dos possíveis efeitos da pandemia no atendimento às afecções abdominais agudas no Brasil e como suporte para trabalhos futuros a serem realizados com amostras maiores e com mais instituições participantes.

CONCLUSÕES

Podemos concluir que, nos períodos analisados, durante a pandemia, pacientes com mais de 60 anos tiveram risco maior de complicações e morte do que no período pré-pandemia. No entanto, não constatamos alterações quanto ao tempo de história clínica e do diagnóstico, assim como não houve alterações quanto ao tempo de internação, dias em unidade de terapia intensiva e complicações cirúrgicas pós operatórias, quando comparados os dois períodos estudados.

REFERENCES

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  • 2
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  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2022
  • Aceito
    05 Jun 2022
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