Isquemia mesentérica aguda e COVID-19: uma revisão integrativa da literatura

RESUMO

A doença do novo coronavírus 2019 (COVID-19) disseminou-se rapidamente pelo mundo após os primeiros casos serem relatados em dezembro de 2019 na China. Apesar da prevalência dos sintomas respiratórios, manifestações extrapulmonares foram sendo identificadas. Particularmente, houve um aumento de casos de Isquemia Mesentérica Aguda (IMA), elevando sua incidência para 1,9%-3,8% em pacientes infectados. O objetivo deste estudo foi investigar a existência de uma associação entre IMA e a COVID-19 através da literatura. Realizou-se uma Revisão Integrativa da Literatura. A pergunta de pesquisa foi “isquemia mesentérica em pacientes com COVID-19: coincidência ou associação?”. Após a busca na base de dados e aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, elegeu-se 44 estudos para análise. A COVID-19 foi confirmada por RT-PCR e exames de imagem, foram identificadas manifestações gastrointestinais, alterações laboratoriais e achados de imagem primordialmente tomográfica. A maioria dos pacientes foi submetida à laparotomia. As explicações incluem lesão endotelial direta pela ligação do vírus ao receptor ECA-2, correlação entre hiperinflamação e hipercoagulabilidade, desregulação do sistema renina-angiotensina-aldosterona e fatores associados à gravidade do quadro. A IMA é uma emergência de alta morbimortalidade associada, nesses casos pode ser consequência principalmente do mecanismo tromboinflamatório associado ao SARS-CoV-2. Um alto nível de suspeita clínica, diagnóstico e tratamento precoces são cruciais diante dessa complicação; um regime de anticoagulação deve ser considerado conforme as evidências e diretrizes vigentes..

Palavras-chave:
Isquemia Mesentérica; COVID-19; SARS-CoV-2

ABSTRACT

The novel coronavirus disease 2019 (COVID-19) has spread rapidly around the world after the first cases were reported in December 2019 in China. Despite the prevention of the symptoms presented, extrapulmonary manifestations were identified. In particular, there was an increase in cases of Acute Mesenteric Ischemia (AMI), raising its incidence to 1.9%-3.8% in infected patients. The aim of this study was to investigate the existence of an association between IMA and COVID-19 through the literature. An Integrative Literature Review was carried out. The research question was “mesenteric ischemia in patients with COVID-19: coincidence or association?”. After searching the database and applying the inclusion and exclusion criteria, 44 were selected for analysis. COVID-19 was confirmed by RT-PCR and imaging tests, gastrointestinal manifestations, alterations and primarily tomographic imaging findings were identified. Most patients were accelerated to laparotomy. As explanations include direct endothelial and injury by the binding of the ACE-2 virus, between hyperinflammation and hypercoagulability, dysregulation of the renin-angiotensin-aldosterone system and factors associated with the severity of the virus. IMA is an emergency with high associated morbidity and mortality, these cases may be a consequence mainly of the thromboinflammatory mechanism associated with SARS-CoV-2. An early diagnosis, diagnosis and diagnoses are crucial to clinical treatment; an assessment regime should be considered in accordance with current evidence and guidelines.

Keywords:
Mesenteric Ischemia; COVID-19; SARS-CoV-2

INTRODUÇÃO

Os primeiros casos de uma pneumonia de etiologia desconhecida foram identificados em dezembro de 2019, na província de Hubei, cidade de Wuhan na China¹. Tratava-se de um surto de SARS-CoV-2, um novo tipo de coronavírus pertencente ao mesmo subgênero que o Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV) e o Coronavírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV), ambos responsáveis por epidemias nos anos de 2002 e 2012, respectivamente². Em janeiro de 2020, a OMS considerou tal surto como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional³ e, devido à rápida disseminação, em março do mesmo ano a doença COVID-19 foi declarada como pandemia⁴.

As manifestações clínicas mais comuns da COVID-19 já descritas são: febre, tosse, mialgia, fadiga e dispneia^5,6. Entretanto, apesar de o trato respiratório ser o alvo primário do agente etiológico SARS-CoV-2 e a complicação mais prevalente seja a evolução para uma Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA), manifestações extrapulmonares estão sendo cada vez mais frequentes². Manifestações abdominais, por sua vez, apresentam-se em uma faixa de 3%-39%⁷. Se na população geral a incidência da isquemia mesentérica é 0,09%-0,2%, nos pacientes acometidos da COVID-19 ela eleva-se a 1,9%-3,8%, com altas taxas de morbimortalidade associada^8,9.

Apesar de ser uma causa incomum de dor abdominal, a IMA é uma emergência cirúrgica que consiste em uma interrupção abrupta do fluxo sanguíneo intestinal. É subdividida em isquemia mesentérica de causa não oclusiva e oclusiva (embolia arterial mesentérica, trombose arterial mesentérica e trombose venosa mesentérica), cuja mortalidade geral varia de 50-80%, exigindo diagnóstico e intervenção imediatos em decorrência da rápida deterioração clínica dos doentes^10-12.

Respostas exatas sobre um certo mecanismo tromboinflamatório desencadeado pelo SARS-CoV-2^13-15, que possivelmente leva à IMA, ainda são escassas. Postula-se que a patogênese da isquemia mesentérica secundária à COVID-19 seja multifatorial: 1) Disfunção endotelial decorrente da expressão do receptor da Enzima Conversora de Angiotensina-2 (ECA-2), via de entrada celular do SARS-CoV-2, não apenas em células alveolares, mas também no endotélio vascular e em células intestinais^13,16,17. 2) Estado de hipercoagulabilidade diretamente relacionado à resposta inflamatória, com ativação e expressão exacerbada de fatores pró-trombóticos que levam à formação do coágulo de fibrina^15,16,18-20. 3) Fatores relacionados a quadros graves de COVID-19 - estase sanguínea e distúrbios hemodinâmicos - como estímulo à trombose e isquemia^9,12.

Neste contexto, considerando o impacto epidemiológico trazido pelo SARS-CoV-2 e o alto índice de complicações e mortalidade, por si só, da isquemia mesentérica, este estudo objetivou investigar a existência de uma provável associação entre Isquemia Mesentérica Aguda e a COVID-19 por meio de uma análise da literatura atualmente disponível.

MÉTODOS

Realizou-se uma Revisão Integrativa da Literatura fundamentada nas seguintes etapas: identificação do problema com elaboração de uma pergunta de pesquisa, busca na literatura, avaliação e análise de dados e apresentação da revisão com seus resultados sintetizados e limitações elencadas^21,22. A pergunta norteadora do estudo foi: isquemia mesentérica em pacientes com COVID-19: coincidência ou associação?

A pesquisa bibliográfica foi realizada na base de dados PubMed e os descritores utilizados foram “Isquemia Mesentérica” (Mesenteric Ischemia) e “COVID-19”, ambos previamente identificados no MeSH e DeCS. O operador booleano “AND” foi adicionado entre os dois termos, resultando na seguinte combinação: “Mesenteric Ischemia” AND COVID-19; nenhuma restrição de idioma foi aplicada.

Critérios de elegibilidade

Foram incluídos estudos originais, relatos ou séries de casos, publicados entre janeiro de 2020 a julho de 2022, de qualquer idioma, que apresentassem casos de isquemia mesentérica aguda com a doença COVID-19 previamente ou concomitantemente diagnosticada. Artigos com casos duplicados, resumos de reuniões, estudos sem texto completo disponível ou pré-publicações foram excluídos.

Um total de 94 estudos foram identificados na busca inicial. Após a leitura dos títulos e resumos, 46 deles foram excluídos e os 48 restante foram pré-selecionados para análise do texto na íntegra. Assim, após a leitura completa, 4 deles foram excluídos e a amostra final foi composta por 44 estudos (Figura 1).

Figura 1

Para coleta e organização dos dados, foi utilizado um instrumento adaptado e a análise crítica dos estudos incluídos foi realizada por meio dos critérios de: redução, exibição e comparação de dados²¹. Por fim, os resultados foram sintetizados e condensados em uma tabela (Tabela 1).

Tabela 1
Casos relatados de pacientes submetidos a operação revisional por desnutrição.

1º Autor	País	n	Idade	Manifestações gastrointestinais	Achados de imagem	Conduta	Desfecho
Azouz et al.50	França	1	56	Dor abdominal, vômitos	Trombose no arco aórtico e AMS; dilatação e sinais de isquemia do intestino delgado	Trombectomia e laparotomia com ressecção do intestino isquêmico	NR
Norsa et al.23	Itália	1	62	Dor abdominal, vômitos	Trombose na veia cava inferior e VMS; dilatação, pneumatose e sinais de isquemia no intestino delgado	Laparotomia com ressecção do intestino isquêmico	Óbito
Singh et al.57	EUA	1	82	Distensão e sensibilidade abdominal	Dilatação e pneumatose no cólon ascendente e ceco (sem visualização de vasos pela ausência de contraste no exame)	Laparotomia com ressecção do intestino necrótico e ileostomia	Alta
Sehhat et al.24	Irã	1	77	Dor e sensibilidade abdominal	Dilatação de alças e espessamento da parede do intestino delgado (sem visualização de vasos pela ausência de contraste no exame)	Laparotomia, observou-se mais de 80cm de intestino isquêmico a ser ressecado	Óbito
Rodriguez-Nakamura et al.51	México	2	45	Dor abdominal, náuseas	Trombose na AMS, sinais de isquemia no íleo distal e ceco	Laparotomia com ressecção do intestino necrótico	Alta
			42	Dor e distensão abdominal	Trombose das veias porta e mesentérica; gás mesentérico	Laparotomia com ressecção de alças necróticas, omentectomia e lavagem da cavidade devido perfuração jejunal	Óbito
1º Autor	País	n	Idade	Manifestações gastrointestinais	Achados de imagem	Conduta	Desfecho
Ucpinar et al.58	Turquia	1	82	Dor e distensão abdominal; sinais de peritonite	Trombose da AMS; dilatação e pneumatose intestinal; gás venoso portal e mesentérico	Faleceu durante o pré-operatório	Óbito
Dinoto et al.59	Itália	1	84	Dor e distensão abdominal; sinais de abdômen agudo; peristalse ausente	Trombose da AMS; ausência de realce mural	Trombectomia endovascular	Óbito
Karna et al.20	Índia	1	61	Dor e distensão abdominal; vômito fecaloide	Trombose da AMS com oclusão do ramo ileocólico distal; dilatação intestinal	Laparotomia com ressecção do intestino necrótico e ileostomia	Óbito
Amaravathi et al.25	Índia	1	45	Dor abdominal	Trombose simultânea de AMS e VMS	Laparotomia de emergência e trombectomia da AMS; relaparotomia após 48h com ressecção de intestino necrótico e jejunostomia	NR
Fan et al.26	Cingapura	1	30	Dor abdominal, vômitos	Trombose da VMS; dilatação e obstrução intestinal	Laparotomia com ressecção do intestino necrótico	Alta
Nasseh et al.27	Tunísia	1	68	Dor abdominal, diarreia	Parede intestinal espessada; obstrução terminal da artéria ileocólica	Tratamento com Heparina Não Fracionada e laparoscopia após 3 dias	Alta
Mahruqi et al.28	Omã	2	51	NR	Isquemia Mesentérica Não Oclusiva; sinais de hipoperfusão intestinal; vasos mesentéricos pérvios	Laparotomia foi planejada, mas houve piora clínica e familiares recusaram intervenção cirúrgica	Óbito
			51	Dor abdominal; sinais de peritonite	Trombose da AMS; ausência de realce mural	Laparotomia de emergência com ressecção de intestino necrótico e trombectomia da AMS e 2 relaparotomias em intervalos de 24h com anastomose jejuno-cólica final	Alta
Chiu et al.60	EUA	1	49	Dor abdominal; hematêmese e melena	Jejuno proximal distendido com espessamento mural	Laparotomia com ressecção do intestino isquêmico	NR
1º Autor	País	n	Idade	Manifestações gastrointestinais	Achados de imagem	Conduta	Desfecho
Krothapalli et al.10	EUA	1	76	Diarreia e náuseas; dor e distensão abdominal	Trombose da AMS e celíaca; dilatação e pneumatose intestinal; ausência de realce mural	Não candidato à intervenção cirúrgica devido às condições clínicas e mau prognóstico	Óbito
Estevez- Cerda et al.29	México	México	México	México	Trombose da AMS	Laparotomia com ressecção do intestino necrosado e jejunostomia	Óbito
Macedo et al.30	Brasil	1	53	Dor abdominal, vômitos, eructação	Alças intestinais dilatadas e de paredes espessadas pelo edema; vasos mesentéricos pérvios	Laparotomia com ressecção do intestino isquêmico, edemaciado e com zonas de estenose	Alta
Bannazadeh et al.31	EUA	1	55	Dor abdominal	Trombose da AMS	Laparotomia com ressecção do intestino necrótico e trombectomia da AMS	Alta
Mir et al.32	Irã	2	59	Dor abdominal	Sinais de isquemia e necrose intestinais; perfuração, parede intestinal espessada com pneumoperitônio e líquido livre; infarto esplênico	Laparotomia revelou intestino necrótico, perfuração e peritonite generalizada	Óbito
			60	Dor abdominal	Sinais de isquemia e perfuração intestinais; nível hidroaéreo e pneumatose intestinal; infarto renal e esplênico	Laparotomia revelou perfuração, necrose do ceco e cólon ascendente	Alta
Aktokmakyan et al.54	Turquia	5	61 Média	NR	NR	Todos submetidos à cirurgia de emergência com diagnóstico de isquemia mesentérica	4/5 Alta 1/5 Óbito
Roquetaillade et al.55	França, Itália	1	62 Mediana	NR	NR	NR	Óbito
Moheb et al.56	EUA	4	60,5 Mediana	NR	NR	Três dos 4 pacientes foram submetidos à cirurgia	NR
English et al.33	Inglaterra	1	40	Distensão abdominal	Hipoperfusão do intestino delgado; pneumatose intestinal	Laparotomia de emergência com ressecção do intestino isquêmico; fechamento da parede abdominal após 48h	NR
1º Autor	País	n	Idade	Manifestações gastrointestinais	Achados de imagem	Conduta	Desfecho
Pang et al.34	Cingapura	1	30	Dor abdominal, vômitos	Trombose da VMS, espessamento de parede intestinal	Manejo conservador na 1ª admissão com HBPM; laparotomia na 2ª admissão	Alta
Ammar et al.35	Paquistão	1	55	Dor e sensibilidade abdominal, ausência de RHA	Múltiplos níveis hidroaéreos	Laparotomia com ressecção do intestino gangrenoso	Alta
Bianco et al.36	Itália	1	59	Dor abdominal, náuseas	Níveis hidroaéreos, edema mesentérico, ascite	Laparotomia com ressecção do intestino isquêmico	Óbito
Romero et al.7	México	1	73	Dor abdominal, náuseas e vômitos, sinais de peritonite	Edema e distensão de alças intestinais, pneumatose intestinal,	Laparotomia com ressecção do intestino isquêmico	Óbito
Sevella et al.37	Índia	1	44	Dor e distensão abdominal, vômitos, constipação, ausência de RHA	Espessamento peritoneal, sinais de isquemia intestinal, peristalse ausente, ascite moderada	Laparotomia com ressecção do intestino gangrenoso	Óbito
Bagheripour38	Irã	1	78	Dor, sensibilidade e distensão abdominal, náuseas e vômitos, constipação, ausência de RHA	Dilatação de alças intestinais, níveis hidroaéreos, ascite	Laparotomia diagnóstica, nenhuma intervenção realizada devido extensão gangrenosa	Óbito
Chandrakar et al.8	Índia	2	72	Dor abdominal, vômitos, constipação	Pneumatose intestinal, gás venoso portal	Laparotomia com ressecção de intestino gangrenoso	Alta
			70	Dor abdominal, vômitos, constipação	Dilatação de alças intestinais, ascite	Laparotomia com ressecção de intestino gangrenoso	Óbito
Sukegawa et al.39	Japão	1	70	Dor abdominal	Trombose da AMS, sinais de isquemia intestinal, infarto renal direito	Laparotomia com ressecção do intestino necrótico	Alta
Marsafi et al.40	Marrocos	1	33	Dor e sensibilidade abdominal, ausência de RHA	Trombose mesentérica, portal e esplênica, espessamento de parede intestinal, edema submucoso, ascite, pneumatose e sinais de isquemia intestinal	Anticoagulação terapêutica e laparotomia com ressecção do intestino isquêmico	Óbito
Costa et al.9	Portugal	1	75	Dor abdominal, vômitos, diarreia	Trombose da AMS, dilatação de alças intestinais	Após 2 laparotomias exploradoras, optou-se por manter tratamento conservador e seguiu para cuidados paliativos	NR
1º Autor	País	n	Idade	Manifestações gastrointestinais	Achados de imagem	Conduta	Desfecho
Sarkardeh et al.53	Irã	24	61,5 Mediana	Dor abdominal	Pneumatose e espessamento de parede intestinal, perfuração, ascite, pneumoperitônio	Ressecção e anastomose término-terminal de intestino delgado foi a intervenção cirúrgica mais comum (46%). Realizou-se ileostomia terminal em 3 pacientes, colostomia de Hartmann em outros 3, ileostomia de duplo barril em 2 pacientes. Enterorrafia primária foi realizada em 2. Embolectomia foi realizada em 1 paciente com trombose da AMS. Um paciente não recebeu nenhum reparo cirúrgico devido à extensão necrótica. Um outro paciente foi tratado clinicamente.	62,5% de mortalidade
Hanif et al.61	Paquistão	1	20	Dor, sensibilidade e distensão abdominal	Vários níveis de fluidos	Laparotomia com ressecção de intestino gangrenoso	Alta
Asghari et al.41	Irã	1	51	Dor, sensibilidade e distensão abdominal, náuseas	Dilatação de alças intestinais	Laparotomia de emergência na 1ª admissão, 2 relaparotomias na 2ª admissão com ressecção de intestino necrótico	Óbito
Gupta et al.62	Índia	1	55	Dor abdominal, vômitos	Trombose da AMS	Laparotomia com ressecção do intestino gangrenoso	Óbito
Hussein et al.43	Arábia Saudita	1	20	Dor abdominal, hematoquezia	Trombose da AMS	Laparotomia com ressecção do intestino gangrenoso	Óbito
Alemán et al.44	Equador	1	44	Dor e sensibilidade abdominal	Trombose da VMS, veia porta e esplênica	Anticoagulação com HBPM e controle da dor. Prosseguiu com anticoagulação oral por 6 meses.	Alta
1º Autor	País	n	Idade	Manifestações gastrointestinais	Achados de imagem	Conduta	Desfecho
Cheung et al.45	EUA	1	55	Dor e sensibilidade abdominal, náuseas e vômitos, diarreia, diminuição de RHA	Trombose da AMS	Anticoagulação terapêutica, trombectomia da AMS e laparotomia com ressecção de intestino necrótico	NR
Nada et al.46	EUA	1	49	Dor abdominal, sinais de peritonite	Trombose da AMS, sinais de isquemia e pneumatose intestinal, pneumoperitônio, infarto renal	Tratamento conservador com HBPM devido necrose intestinal avançada	Óbito
Alali et al.47	Arábia Saudita	1	35	Dor e sensibilidade abdominal, vômitos	Trombose da AMS	Anticoagulação terapêutica, posteriormente laparotomia	Alta
Khaleghi et al.48	Irã	1	54	Dor, sensibilidade e distensão abdominal, náuseas e vômitos	Trombose da AMS, dilatação de alças intestinais	Laparotomia com ressecção do intestino necrótico, relaparotomia para avaliar anormalidades	NR
Posada-Arango et al.49	Peru	3	62	Dor abdominal, vômitos	Níveis hidroaéreos	A princípio anticoagulação com HNF, posteriormente laparotomia sem possibilidade de ressecção intestinal devido extensão necrótica	NR
			22	Dor abdominal	Trombose da VMS	Anticoagulação, analgesia e antibioticoterapia	NR
			65	Dor e sensibilidade abdominal, hiporexia	Trombose da artéria jejunal esquerda, dilatação e sinais de isquemia intestinal, infarto esplênico	Laparotomia com ressecção do intestino necrótico	NR
Fransvea et al.52	Itália	2	72±7,1 Média	Dor e distensão abdominal, náuseas e vômitos	Trombose da AMS, sinais de isquemia intestinal	Laparotomia com ressecção do intestino isquêmico, relaparotomia após 48 horas para anastomose e fechamento de parede abdominal	Alta
					Trombose da AMS, sinais de isquemia intestinal, infarto esplênico e hepático	Laparotomia exploradora sem possibilidade de ressecção intestinal devido isquemia avançada	Óbito

• n: número de pacientes; NR: não relatado; AMS: artéria mesentérica superior; VMS: veia mesentérica superior; IMA: isquemia mesentérica aguda; RHA: ruídos hidroaéreos.

RESULTADOS

Dentre os 44 estudos selecionados, foram identificados 37 relatos/séries de casos, 2 cartas e 1 revisão com descrição de casos e mais 4 outros estudos retrospectivos. A idade média dos 45 pacientes dos relatos, séries e cartas foi de 54,9 anos, sendo 66,630 do sexo masculino^7,8,23-49 e 3 não tiveram o sexo relatado^50-52. Em uma série de casos iraniana com 24 pacientes, a idade mediana foi 61,5 anos e 67% deles eram do sexo masculino⁵³.

Aktokmakyan et al. apresentou dados de pacientes que necessitaram de cirurgia de emergência atrelada ao diagnóstico positivo para COVID-19; a média de idade foi 61 anos e todos eram do sexo masculino⁵⁴. Por sua vez, Roquetaillade et al. realizou um estudo multicêntrico em 3 departamentos de cuidados intensivos analisando prontuários de 20 pacientes positivados para a doença do SARS-CoV-2 com eventos tromboembólicos arteriais ocorridos paralelamente; a idade mediana foi de 62 anos (58-70) sendo a maioria (15/20) do sexo masculino⁵⁵.

Já um coorte por Moheb et al. comparou a incidência de complicações gastrointestinais em dois grupos de pacientes com SDRA (com e sem COVID-19) submetidos aos mesmos protocolos de atendimento em terapia intensiva; a mediana da idade dos pacientes com COVID-19 foi 60,5 anos (48-71) e 66,5% eram do sexo masculino⁵⁶.

A Tabela 1 exibe de cada estudo o país, número de pacientes e respectivas idades, sinais e sintomas gastrointestinais, principais achados de imagem abdominopélvica por tomografia computadorizada, conduta e desfecho (alta hospitalar ou óbito).

Nestes pacientes, o diagnóstico de infecção por SARS-CoV-2 foi confirmado pela técnica de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR) e/ou exames de imagem, como Tomografia Computadorizada e Raio-X.

Consolidações e opacidades em vidro fosco periféricas e bilaterais foram os achados pulmonares mais comuns^{8,9,20,25,26,28,31,32,34-41,43-49,53,59,61}. Apenas 4 relatos não citaram o método diagnóstico^28,52,57,62 e houve detecção de RNA viral na mucosa intestinal de um paciente por meio da técnica de Hibridização In Situ, realizada devido à alta suspeita clínica associada a um PCR previamente negativo e ausência de padrões inflamatórios característicos de COVID-19 na sua TC de tórax²³. Febre, tosse e dispneia foram os sintomas mais relatados entre os sintomáticos^{7 10,20,24,27,28,30-33,37-39,41,47,48,51,53,54,57-61}.

Naqueles estudos que citaram as manifestações clínicas gastrointestinais de seus pacientes, a mais frequente foi a dor abdominal associada ou não às demais queixas (Tabela 1). Sendo caracterizada como: intensa^{7,8,20,24,25,30,31,38,39,41,43,44,51,62}, de início súbito^{8,31,35,36,38-40,47,58,59}, em cólica e sem fator desencadeante claro^34,49,51; de localização difusa^{8,9,20,28,38,40,41,45,60}, epigástrica e/ou mesogástrica^25-27,49,51.

Dez pacientes admitidos inicialmente com sintomas de COVID-19 foram diagnosticados com um quadro de isquemia mesentérica após um intervalo de 2-27 dias de internamento^{7,10,20,24,28,33,36,57-59}. Outros 19 pacientes já haviam sido previamente diagnosticados com COVID-19, mas retornaram ao serviço de emergência ou necessitaram de transferência intra/inter-hospitalar com queixas gastrointestinais^{8,9,26,28,30,31,37,39,43-45,47-49,51,60-62}. Na série com 24 casos de Sarkardeh et al. um dos critérios de inclusão foram sinais e sintomas respiratórios e diagnóstico de COVID-19 precedendo manifestações gastrointestinais ou diagnóstico concomitante de COVID-19 e isquemia ou perfuração intestinal; os sintomas e sinais da isquemia apareceram na média de sete dias (intervalo de 2-21) após os sintomas respiratórios iniciais⁵³.

Os pacientes positivos para a COVID-19 do estudo de Aktokmakyan et al. que chegaram ao pronto socorro recebendo diagnóstico preliminar de abdômen agudo foram posteriormente operados devido à isquemia mesentérica⁵⁴. Além desses, outro grupo recorreu à emergência por sintomas gastrointestinais, com a presença ou não de sintomas respiratórios associados; nesses casos, a pneumonia foi confirmada após a admissão^{23,25,27,32,34,35,38,40,41,46,51}. Um paciente deu entrada por AVC isquêmico devido oclusão da artéria cerebral média direita, a COVID-19 foi confirmada por PCR após achados sugestivos nos exames de imagem e 2 dias após a admissão ele evoluiu com dor abdominal e vômitos⁵⁰. Os demais estudos não trouxeram informações dessa natureza.

Hipertensão Arterial^{7-10,20,23,24,31,32,39,43,45,49,53,57-60} e Diabetes Mellitus^{7-10,20,23,32,39,57,59,60} foram as comorbidades mais prevalentes nesses pacientes. Quatro deles com fibrilação atrial já diagnosticada^9,10,39,58: o primeiro possuía inúmeras comorbidades e alta carga aterosclerótica, mas, conforme relatado, vivenciou múltiplos eventos trombóticos em um curto intervalo de tempo concomitantemente à COVID-19¹⁰; nenhum achado passível de embolia foi identificado por ecocardiograma no segundo⁵⁸; o terceiro estava em uso de dabigatrana e aspirina³⁹ e o quarto apixabana⁹.

Os demais eram sem antecedentes significativos e/ou demonstraram normalidade na realização de exames (eletrocardiograma, ecocardiograma, TC) em busca de arritmias, fontes cardioembólicas ou aterosclerose prévia^{24,25,27,28,30,31,34-37,40,41,44,47-50,54,55,59-62}.

Na série de casos proposta por Sarkardeh et al. 54% dos pacientes não possuíam comorbidades prévias e a taxa de mortalidade pela isquemia intestinal foi de 62,5%⁵³.

Nove estudos afirmaram que seus pacientes estavam em anticoagulação profilática com heparina não fracionada (HNF) ou de baixo peso molecular (HBPM)^{28,29,31,33,47,53,55,57,58}.

As anormalidades laboratoriais percebidas foram: leucocitose^{7-9,20,23,24,27,28,32,36-38,40,41,43-45,48,49,51,53,57-59,61}, níveis elevados ou próximos aos valores máximos de referência de proteína C reativa (PCR)^{9, 10,20,23,24,27,38,41,43,44,46,48,51,53,54,57-59,61}, procalcitonina^7,9,10,57, lactato desidrogenase (LDH)^{24,32,37,41,49,53,57,59,61}, ferritina^{10,25,28,33,44,49,51}, fibrinogênio^{26,28,33,34,54,55,57,60} e D-dímero^{7,10,23,25-28,31,33,34,36-38,40,46,49,51,53-55,57-61}, sendo este último a alteração de maior destaque entre os pacientes, encontrado em valores de até 75 vezes acima do limite máximo normal²³. O coagulograma revelou alterações do tempo de protrombina (TP) razão normalizada internacional (RNI) e/ou tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa)^{20,33,37,51,53,54,57,61}. Alguns pacientes também apresentaram anticoagulante lúpico positivo^26,34 e acidose metabólica^8,20,24,28 com valores aumentados de lactato^{8-10,20,28,31,43,58}. Todos os 5 pacientes do estudo de Aktokmakyan et al.⁵⁴ tiveram o tempo de coagulação prejudicado.

A maioria dos pacientes logo foram conduzidos à laparotomia de emergência. Um manejo clínico foi optado para 16 pacientes: 10 deles posteriormente necessitaram de cirurgia^{9,20,25-27,31,34,45,49,51}, sendo 1 por via laparoscópica²⁷ e 4 só não a realizaram dada a instabilidade clínica e mau prognóstico^10,28,46,53. Relaparotomias programadas (second-look) também foram feitas em intervalos de 24 a 48 horas^{9,25,28,29,33,41,48,52}, além de procedimentos de revascularização^{28,31,43,45,47,50,53,59}. Um desses pacientes ainda foi submetido à laparotomia exploradora inicial e uma relaparotomia, mas manteve-se manejo conservador devido achados intraoperatórios graves e declínio clínico⁹.

Os exames histopatológicos de segmentos intestinais ressecados encontraram evidências de áreas de necrose e isquemia de parede^{7,23,24,26,29,30,32,34,41,53,56,57}, trombose em vasos mesentéricos^{23,24,26,29,31,32,34,41,53,56,57,60} bem como presença de infiltrado inflamatório e focos hemorrágicos^{23,24,26,30,53,57}. Os demais achados incluíram inflamação grave no endotélio vascular²³ e alterações sugestivas de inclusão viral no citoplasma da célula epitelial glandular intestinal⁶⁰. Apenas 14 estudos trouxeram tais dados.

A coorte realizada por Moheb et al. observou que pacientes com COVID-19 eram mais propensos a desenvolverem complicações gastrointestinais comparados com aqueles sem COVID-19 [74% vs 37%; p<0,001; RR 2,33 (IC 95% 1,52-3,63)]⁵⁶.

DISCUSSÃO

Os resultados desta revisão são sugestivos para uma associação entre infecção por Sars-CoV-2 e isquemia mesentérica e estão em conformidade ao que as evidências recentes denominaram de Coagulopatia Associada à COVID-19 (CAC)^13-15. Em respostas à pergunta de pesquisa inicial, elencamos alguns mecanismos considerados como os principais responsáveis pela patogênese deste quadro de abdômen agudo: a) Lesão endotelial vascular e lesão intestinal direta b) Tromboinflamação c) Desregulação do Sistema Renina Angiotensina Aldosterona (SRAA) d) Fatores relacionados à gravidade da doença.

Outrossim, apesar dos desafios ao analisar e sintetizar fontes primárias distintas²¹, também achamos pertinente abrirmos espaço ao que a literatura aborda sobre a IMA, uma vez que sua alta taxa de morbimortalidade ainda é fruto da dificuldade para detecção precoce e, consequentemente, tratamento tardio¹².

1) Patogênese

1.1 Lesão endotelial vascular e lesão intestinal direta

Assim como os achados histopatológicos já descritos anteriormente nos resultados^{7,23,24,26,29,30,32,34,41,53,56,57}, outros autores também registraram uma endotelite mediada pelo SARS-CoV-2. O estudo de Varga et al. encontrou em seus pacientes evidências de infecção viral direta em células endoteliais, presença de infiltrado inflamatório e de corpos apoptóticos em sítios vasculares de diversos órgãos, inclusive intestino delgado⁶³.

A endotelite induzida por COVID-19 ocorre tanto em virtude do envolvimento viral direto, dada a existência de um tropismo do SARS-CoV-2 ao endotélio humano, quanto da resposta do hospedeiro à infecção^13,15-18,63. Essa associação estimula um estado pró-coagulante e hiperinflamatório capaz de desencadear uma produção excessiva de trombina e inibir a fibrinólise, corroborando com uma desregulação vascular e consequente isquemia de órgãos^16,63.

Descobriu-se, então, que o SARS-CoV-2 adentra na célula hospedeira por meio da interação entre sua proteína spike com o receptor de entrada ECA-2 e que a coexpressão de proteases, como a transmembranar serina 2 (TMPRSS2), é essencial para esse processo de invasão^13,16,17. As células endoteliais vasculares expressam um grande número de ECA-2, que também foram encontrados em tecidos como do pulmão, fígado, estômago, intestinos e rim^13,17. Esse achado traz um alerta para as complicações sistêmicas de um vírus que não possui apenas uma rota pulmonar no organismo e justifica as evidências histopatológicas de dano tecidual encontradas nas análises de segmentos intestinais ressecados.

1.2 Tromboinflamação

De fato, hiperinflamação e hipercoagulabilidade estão intimamente relacionadas durante infecção por SARS-CoV-2: uma resposta inflamatória sistêmica, exacerbada e persistente dentre pacientes infectados, intitulada “tempestade de citocinas^15,16,19 é capaz de provocar um desequilíbrio sistêmico nas vias anticoagulantes fisiológicas, impulsionando a formação anormal de coágulos, redução da fibrinólise, ainda mais lesão endotelial com recrutamento de células inflamatórias e hiperativação plaquetária^15,18.

As principais citocinas descritas são interleucina-6 (IL-6) e fator de necrose tumoral-α (TNFα) e vêm sendo observadas em níveis elevados nos pacientes com COVID-19, sobretudo naqueles mais críticos^16,19. As vias do complemento, por sua vez, também contribuem no mecanismo tromboinflamatório^13,15,18.

1.3 Desregulação do Sistema Renina Angiotensina Aldosterona

Observou-se que o desequilíbrio do SRAA durante a COVID-19 constitui outro mecanismo fisiopatológico que induz à trombose, em virtude da regulação negativa do receptor ECA-2^18,19. Fisiologicamente, ele converte a Angiotensina II (ANG-2) em Angiotensina^1-7, importante vasodilatador envolvido no equilíbrio hidroeletrolítico e permeabilidade vascular, com propriedades antitrombóticas e antiproliferativas¹⁶. Sabendo que o Sars-CoV-2 liga-se ao ECA-2 para adentrar nas células-alvo^13,16,17, sua disfunção leva à redução da clivagem da ANG-2 em Angiotensina^1-7 e consequente aumento de sua expressão no organismo^16,18,19. A ANG-2 atua como um potente vasoconstritor e contribui para o estado de hipercoagulabilidade. Níveis elevados de ANG-2 foram vistos em pacientes com COVID-19¹⁹.

1.4 Fatores relacionados à gravidade da COVID-19

A estase sanguínea às custas da imobilização prolongada dos pacientes hospitalizados, pincipalmente em UTI¹⁴, também é cofator de trombose por causa da hipóxia localizada^13,64 e quando somada à lesão endotelial e hipercoagulabilidade compõe a conhecida Tríade de Virchow, diretamente relacionada com a CAC¹⁴. A hipóxia nesses doentes estimula a trombogênese não só pelo aumento da viscosidade sanguínea, mas por diretamente ativar vias de sinalização que regulam a coagulação (fatores de transcrição induzíveis por hipóxia) e indiretamente através da indução de mediadores pró-inflamatórios^64,65. Por fim, quadros de instabilidade hemodinâmica, como hipovolemia ou sepse, podem levar à Isquemia Mesentérica Não Oclusiva (IMNO) devido à vasoconstrição esplâncnica reflexa^66-68.

2) A Isquemia Mesentérica Aguda

O intestino pode suportar uma redução de cerca de 75% em seu suprimento sanguíneo por até 12 horas, devido à ampla rede de colaterais mesentéricas existentes^11,12. Além do suportável, uma isquemia inicialmente reversível pode progredir para necrose, perfuração, peritonite e, inevitavelmente, óbito¹².

2.1 Embolia arterial mesentérica

Em geral, a embolia arterial é a etiologia mais comum de IMA^11,12. A maioria dos êmbolos é de origem cardíaca por fibrilação atrial (quase 50% dos casos), pós-infarto, endocardite, cardiomiopatias e valvopatias ou ainda podem ser provenientes de placas ateroscleróticas aórticas^11,12,66,67.

2.2 Trombose arterial mesentérica

A trombose arterial ocorre em aproximadamente 25% dos casos de IMA^11,12. O principal fator de risco é a presença de doença aterosclerótica crônica prévia e os demais são correlacionados a ela, como dislipidemia, hipertensão e diabetes^11,12,66.

Contudo, no decorrer dos resultados já demonstramos que, durante a pesquisa por fontes cardioembólicas ou aterosclerose pré-existente via exames de imagem, nenhum achado justificou a IMA desses pacientes, nem mesmo daquele com diagnóstico prévio de fibrilação atrial⁵⁸ que, vale salientar, estava em regime de anticoagulação. Assim, por mais que eventos embólicos venham a ocorrer, dada a diversidade clínica e antecedentes dos pacientes, os relatos (Tabela 1) fortalecem as evidências de que o SARS-CoV-2 está associado ao desenvolvimento agudo de trombose e não de embolia⁵⁸.

2.3 Isquemia mesentérica não oclusiva

A IMNO é vista em 20% dos pacientes com IMA e carrega consigo uma alta taxa de mortalidade já que, primordialmente, acomete os pacientes mais graves^11,67. Sua patogênese ainda é pouco compreendida, geralmente é consequência de uma vasoconstrição esplâncnica em resposta à redução de fluxo sanguíneo mesentérico como forma de garantir a perfusão de outros órgãos vitais, levando assim à hipóxia e lesão isquêmica intestinal^11,12,66-68. Alguns fatores predisponentes são: hipovolemia, hipotensão, sepse e uso de fármacos vasoativos^11,12,67.

2.4 Trombose venosa mesentérica

A trombose venosa mesentérica é responsável por menos de 10% dos casos de IMA^11,12. No entanto, durante esta revisão, ela e a trombose arterial foram as causas mais prevalentes de isquemia concomitante à COVID-19 e, curiosamente, foi relatado o caso de um paciente que apresentou simultaneamente trombose da AMS e VMS²⁵. A obstrução venosa pelo trombo resulta em edema de parede intestinal, aumento da resistência vascular e consequente isquemia mesentérica pela redução do suprimento sanguíneo arterial^11,12. Os já discutidos componentes da Tríade de Virchow elucidam o desenvolvimento do trombo venoso. Outras causas de hipercoagulabilidade, como determinadas doenças hereditárias¹², não foram mencionadas durante o histórico dos pacientes.

3) Apresentação clínica

O cenário inicial da IMA é de um abdômen agudo inespecífico^11,12. Os pacientes classicamente apresentam dor abdominal intensa desproporcional aos achados do exame físico; náuseas, vômitos e diarreia são comuns; deve-se ter atenção para distensão abdominal e sangramentos gastrointestinais sem causa aparente e a presença tardia de sinais de peritonite é um forte indício de necrose e perfuração intestinal^11,12,67,68. Entretanto, como sintomas gastrointestinais vêm sendo frequentes nos pacientes COVID-19 em geral¹⁶ podendo até mesmo preceder os respiratórios⁶⁹, eles tornam-se ainda mais inespecíficos para IMA. Além do mais, todas essas manifestações clínicas podem estar mascaradas naqueles pacientes sedados em UTI, por isso, a chave para o diagnóstico precoce é um alto nível de suspeita clínica¹¹.

4) Fatores de risco

Os fatores associados a um maior risco de complicações trombóticas durante a COVID-19 são: idade avançada, sexo masculino, obesidade, doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes^13,16,19. Contudo, como já visto, pacientes jovens e sem comorbidades significativas não deixam de estar sujeitos a complicações e risco elevado de óbito⁷⁰.

5) Exames complementares

5.1 Exames laboratoriais

Os dados laboratoriais, apesar de inespecíficos, podem ser de grande valia para elevar a suspeita de IMA durante o curso da tromboinflamação mediada pelo SARS-Cov-2^11,68,71. Acidose metabólica com um nível de lactato elevado é uma das anormalidades mais comuns^11,67,71, mas não é específica⁷¹. Hipercalemia e hiperfosfatemia geralmente são sinais tardios do infarto intestinal⁶⁷. A leucocitose também é frequente^11,67,69,71 e vem sendo descrita como marcador de mau prognóstico na COVID-19^16,18,19,69.

O D-dímero, produto da degradação da fibrina, também compõe a investigação da IMA^68,71. Apesar de muito sensível e pouco específico, seus valores significativamente elevados durante a COVID-19 denotam um alto risco trombótico e relacionam-se à gravidade da doença^{13,15,18,19,72}. Lodigiani et al. demonstraram que os níveis de D-dímero aumentaram substancialmente durante a hospitalização de pacientes não sobreviventes em um grande hospital italiano⁷³. Além dele, a CAC é manifesta pelas alterações na contagem de plaquetas, TP e/ou TTPa prolongados e aumento de fibrinogênio, fator VIII e FvW^13,16,18,70. O estudo de Tang et al. observou que anormalidades nesses parâmetros de coagulação durante a COVID-19 estão associadas a um pior prognóstico⁷⁴.

Por fim, uma atenção deve ser dada à elevação dos marcadores inflamatórios séricos causada pelo dano isquêmico e estado hiperinflamatório da infecção por SARS-CoV-2^16,18,71. Altos níveis de PCR, VHS, LDH, ferritina, procalcitonina e IL-6 são detectados^{16,18,19,67,71}. Anticoagulante lúpico positivo também pode ser verificado em uma parcela de pacientes com COVID-19³⁴.

5.2 Exames de imagem

Os exames de imagem contribuem de forma crucial para o diagnóstico da isquemia mesentérica^12,68. A angiotomografia computadorizada é a modalidade diagnóstica de primeira linha e deve ser realizada o mais rápido possível assim que levantar-se a suspeita clínica^11,12,66,75. Além de rápida, acessível e não invasiva^12,66,75 apresenta elevada sensibilidade (89,4%) e especificidade (99,5%)⁷⁵. Os achados característicos descritos na literatura e consistentes com aqueles identificados durante a revisão são: 1) defeitos de preenchimento no lúmen de vasos mesentéricos indicando existência de trombos ou êmbolos¹²; 2) redução ou ausência de realce mural^11,12,66; 3) espessamento da parede intestinal - indicador mais sensível de isquemia, porém inespecífico^11,12,66,68; 4) aparência de “halo” ou “alvo” da parede intestinal pelo edema na camada submucosa intercalando-se entre a mucosa e muscular^11,12,66; 5) dilatação luminal e uma parede “fina como papel”^12,66; 6) pneumatose intestinal, gás venoso portomesentérico e gás livre intraperitoneal são indícios de isquemia irreversível^11,12,66,68; 7) esplenomegalia, ascite e encalhe de gordura mesentérica também podem estar presentes^11,12,66; 8) Na IMNO esses sinais intestinais são vistos e geralmente ocorrem de forma descontínua e segmentar, mas os vasos mesentéricos não possuem oclusões tromboembólicas^11,66 como relatado por 2 dos estudos incluídos^28,30.

A angiografia permite uma abordagem diagnóstica e terapêutica simultaneamente, entretanto, atualmente é considerada de segunda linha por seu caráter invasivo e de baixa disponibilidade nos centros de saúde, ficando destinada ao manejo endovascular e casos de IMNO^12,66. Radiografias simples e Ultrassonografias são limitadas perante um quadro de IMA e carecem de sensibilidade e especificidade, por isso, são pouco utilizadas^11,66-68.

6) Tratamento

O manejo da IMA envolve a restauração do fluxo sanguíneo mesentérico com ressecção do intestino necrótico¹². A abordagem inicial requer ressuscitação com fluidos agressiva correção de anormalidades eletrolíticas e do desequilíbrio ácido-básico^11,66,67. Anticoagulação com heparina deve ser iniciada, na ausência de contraindicações^11,66 e antibióticos de amplo espectro precisam ser administrados devido à translocação bacteriana e risco elevado de sepse^11,12,66,67.

Indica-se a laparotomia de emergência nos pacientes com sinais de peritonite, infarto ou perfuração intestinal^11,66. Ela permite a visualização direta da viabilidade intestinal, ressecção de alças inviáveis e o reestabelecimento precoce do fluxo sanguíneo mesentérico^11,66. No entanto, durante essa primeira abordagem cirúrgica podem restar dúvidas a respeito do comprometimento isquêmico de alguns segmentos, assim, recomenda-se a relaparotomia planejada/second-look como parte do manejo da IMA^11,66,67. Geralmente é realizada em um intervalo de 24 a 48 horas da primeira e, além de permitir a ressecção de alças necrosadas não reconhecidas inicialmente também evita a ressecção precipitada de alças saudáveis pela primeira abordagem, reduzindo assim as chances da “síndrome do intestino curto”^11,67.

A abordagem endovascular pode ser considerada individualmente quando não houver evidências claras de isquemia intestinal irreversível ou em associação à cirurgia aberta convencional. Os métodos de revascularização variam conforme a etiopatogenia da IMA^11,12,66,67.

O manejo da IMNO é baseado na correção da causa subjacente de vasoconstrição esplâncnica e ressecção do intestino necrótico quando identificado, para melhoria da perfusão mesentérica podem ser administrados agentes vasodilatadores^11,12,66,67.

7) Profilaxia medicamentosa para a CAC

As evidências atuais apoiam a anticoagulação profilática parenteral nos pacientes com COVID-19, na ausência de contraindicações absolutas e sobretudo naqueles mais críticos^{13,15,16,18,19,70}. Foi constatado que o prognóstico de pacientes usuários de heparina é melhor que o de não usuários⁶⁵. Além do papel anticoagulante, identificou-se que um certo potencial anti-inflamatório associado à heparina pode ser capaz de atenuar a tempestade de citocinas e a lesão endotelial durante a COVID-19¹⁹. A tromboprofilaxia estendida também está sendo defendida no pós-alta da COVID-19 em certos casos, mas ainda não existe consenso^13,16,70.

8) Aplicabilidade

Sabendo então da gravidade da IMA e o aumento de sua incidência no contexto da COVID-19, este estudo pode servir de alerta às equipes multidisciplinares que lidam com estes pacientes. Um conhecimento geral sobre a apresentação clínica, alterações laboratoriais e achados de imagem será capaz de elevar o índice de suspeição, permitindo um diagnóstico e tratamento o mais precoce possível, a fim de reduzir a significativa morbimortalidade associada.

9) Limitações do estudo

Este estudo possui algumas limitações importantes a serem elencadas. Os resultados são provenientes primordialmente de relatos, séries de casos e pequenos estudos retrospectivos, o que indubitavelmente eleva o risco de viés de publicação. Além disso, apesar da preocupação ao selecionar estudos com uniformidade em relação à descrição de dados, houve diferenças em relação a eles: nem todos forneceram os mesmos parâmetros laboratoriais, informações claras sobre anticoagulação e tempo de acompanhamento pós-alta dos pacientes, consequentemente, não se sabe a real taxa de mortalidade associada.

Ademais, a doença COVID-19 ainda permanece sob investigação e as evidências acerca dela ainda são escassas, carente de grandes estudos, o que dificulta estabelecer uma relação confiável e bem compreendida entre ela e os quadros de isquemia mesentérica. Obviamente, estaria além da capacidade deste estudo abranger todo o potencial trombótico atrelado ao novo coronavírus. Por isso, respostas acerca da prevalência geral das complicações tromboembólicas decorrentes da COVID-19, fisiopatologia, fatores de risco, emprego seguro da anticoagulação e melhores estratégias para diagnóstico e manejo da IMA nestes casos devem ficar a cargo das próximas investigações por grandes estudos prospectivos, multicêntricos e multinacionais.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, constatamos que um processo de tromboinflamação e disfunção endotelial pertencente ao SARS-CoV-2, junto aos fatores de gravidade, são os responsáveis pelo desenvolvimento de casos de IMA, bem como de outros quadros trombóticos durante esta pandemia. O alto índice de suspeita clínica seguida de diagnóstico precoce e tratamento imediato são primordiais para a redução da mortalidade associada a essa emergência cirúrgica.

As equipes multidisciplinares devem estar atentas aos sinais e sintomas gastrointestinais durante a hospitalização de pacientes infectados, com atenção aqueles graves internados em UTI, e orientá-los após a alta à procura do pronto socorro no surgimento de manifestações clínicas suspeitas. A contagem de células, ionograma e principalmente os parâmetros de coagulação e marcadores inflamatórios precisam ser acompanhados e, na suspeita de IMA, deve-se proceder preferivelmente com angiotomografia o mais rápido possível. O objetivo do tratamento é reestabelecer o fluxo sanguíneo mesentérico e ressecar o intestino necrótico. Por fim, a menos que haja contraindicação, recomenda-se que os pacientes com COVID-19 recebam anticoagulação profilática conforme as diretrizes vigentes até um consenso por meio de ensaios clínicos randomizados.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  10 Mar 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  23 Mar 2022
• Aceito
  24 Out 2022