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Programa de Gestão e Desempenho: ponte para uberização no serviço público federal brasileiro

Resumo

Objetivo:

analisar a introdução do Programa de Gestão e Desempenho (PGD) na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Métodos:

o PGD começou a ser implementado na UFF a partir de maio de 2022, este ensaio apresenta as mudanças estabelecidas e discute suas relações com o processo de uberização.

Resultados:

as diretrizes estabelecidas pelo PGD, bem como a experiência inicial de sua implementação na UFF, apontam uma forte influência do ideário que orienta o fenômeno da uberização do trabalho. Ao produzir mudanças profundas na forma de organização e controle das atividades laborais, o PGD traz também potenciais impactos na saúde do trabalhador, destacadamente a maior dificuldade no mapeamento e controle dos riscos nos ambientes de trabalho, que se tornam mais pulverizados; e os efeitos nocivos à saúde mental, provocados por um modelo de gestão baseado no controle rigoroso de processos e cumprimento de metas.

Conclusões:

o programa instituído na UFF guarda muitas relações com o modelo de gestão do trabalho uberizado, que vem se impondo como tendência do capitalismo contemporâneo, impactando, de forma desigual, os trabalhadores. A mudança no modelo de gestão das atividades laborais, imposta pelo programa, aponta para potenciais efeitos sobre a saúde física e mental do trabalhador.

Palavras-chave:
organização e administração; tecnologia da informação; setor público; saúde do trabalhador

Abstract

Objective:

to analyze the introduction of the Performance and Management Program (PMP) at the Federal Fluminense University (UFF).

Methods:

the PMP began to be implemented at the UFF in May 2022. This essay presents the established changes and discusses their relationship with the process of “uberization”.

Results:

the guidelines established by the PMP, as well as the initial experience of its implementation at UFF, indicate a strong influence of the ideas guiding the phenomenon of “uberization” of work. By bringing about profound changes in the organization and control of work activities, the PMP also has the potential to impact the workers’ health, notably increasing the difficulty in mapping and controlling risks in work environments, which become more decentralized. It can also have detrimental effects on mental health, caused by a management model based on strict process control and goal fulfillment.

Conclusions:

the program instituted at UFF shares many similarities with the model of “uberized” work management, which has been emerging as a trend in contemporary capitalism, affecting workers unevenly. The change in the management model of work activities imposed by the program suggests potential effects on the workers’ physical and mental health..

Keywords:
organization and administration; information technology; public sector; occupational health

Introdução

As últimas décadas foram marcadas por importantes transformações nas relações de trabalho, a partir da generalização do chamado trabalho uberizado, que se caracteriza pela precariedade dos vínculos trabalhistas e pelo rígido controle/gerenciamento realizado por plataformas digitais. Na esteira dessas transformações, em julho de 2020, foi publicada a Instrução Normativa nº 65 do Ministério da Economia (IN 65/2020)11. Brasil. Ministério da Economia. Instrução Normativa no 65 de 30 de julho de 2020. Diário Oficial da União [Internet]. 31 jul. 2020 [citado em 9 ago 2022];1:146. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-65-de-30-de-julho-de-2020-269669395
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regulamentando a implementação do Programa de Gestão e Desempenho (PGD) para os órgãos da administração pública federal. Esse programa traz mudanças profundas na forma de gerenciamento e controle do trabalho no serviço público federal. Na Universidade Federal Fluminense (UFF), a Instrução Normativa nº 28, de 12 de maio de 2022 (IN 28/2022) (22. Universidade Federal Fluminense. Instrução Normativa no 28, de 12 de maio de 2022. Dispõe sobre a regulamentação da adoção do Programa de Gestão na Universidade Federal Fluminense [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2022 [citado em 9 ago 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.uff.br/sites/default/files/news/arquivos/in_ret_28_de_12_de_maio_de_2022_1.pdf
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regulamenta a implementação do PGD na Instituição . Este estudo pretende apresentar as principais diretrizes do programa, tendo como principal foco de observação a sua implementação, ainda em estágio inicial, na UFF, bem como discutir as relações desse programa com o fenômeno da uberização e seus impactos potenciais na saúde do trabalhador.

Uberização como desenvolvimento do processo de flexibilização do trabalho

Grandes e importantes transformações na forma de exploração da força de trabalho têm ocorrido. Embora não tenha sido alterada a essência da relação que caracteriza o capitalismo - uma classe detentora dos meios de produção extraindo o produto do trabalho de outra classe, que vende sua força de trabalho em troca de um salário - a forma predominante como se dá tal exploração vem sofrendo alterações sensíveis nas últimas quatro décadas.

Desde a década de 1980, há um processo contínuo e crescente de flexibilização das relações de trabalho associado ao aumento da jornada real, segmentação ou fragmentação dos processos de trabalho, desresponsabilização do empregador quanto aos custos da realização do trabalho e cumprimento de legislação protetiva ao trabalhador.

Esse processo de flexibilização foi marcado no final do século passado pela chamada reestruturação produtiva, caracterizada pela reconfiguração das plantas industriais física e administrativa para adaptar a produção ao novo modelo flexível de exploração. A descentralização dos postos de trabalho e a terceirização foram características marcantes desse momento.

As primeiras décadas do século XXI trazem uma nova etapa desse processo de flexibilização das relações de trabalho, que tem como característica a generalização do trabalho controlado e gerenciado por meio de plataformas digitais ou aplicativos. Essa nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho tem sido chamada na literatura de ‘uberização’33. Antunes R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo; 2018.), (44. Fontes V. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx Marxismo - Rev NIEP-Marx. 2017;5(8):45-67.. Algumas de suas características centrais são:

  1. A desresponsabilização do empregador quanto aos meios para a realização do trabalho e, consequentemente, a transferência dos custos e dos riscos do processo de trabalho para o trabalhador;

  2. O estabelecimento de vínculos precários de trabalho, caracterizados, por um lado, pela negação do vínculo de trabalho direto (trabalhadores muitas vezes são tratados por “colaboradores” ou “parceiros”, termos usados para disfarçar a relação de assalariamento), e, pelo outro, por uma rígida exigência de produtividade, entrega de resultados e padronização do produto/serviço oferecido;

  3. Remuneração variável, diretamente vinculada ao cumprimento de metas, quantidade de produtos/serviços entregues e avaliação, seja do consumidor ou do próprio empregador.

Assim, nessa “nova morfologia do trabalho” (55. Antunes R. Desenhando a nova morfologia do trabalho no Brasil. Estud Av. 2014;28(81):39-53., parte do seu próprio gerenciamento é transferida para o trabalhador. Ao contrário do discurso predominantemente utilizado por essas plataformas, o uso dessas ferramentas no contexto da economia capitalista não tem servido para dar mais autonomia e flexibilidade ao trabalhador, mas sim para reduzir os custos e riscos do empregador e ampliar de forma exponencial a exploração e o controle do trabalho66. Abílio LC. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estud Av. 2020;34(98):111-26.), (77. Filgueiras V, Antunes R. Plataformas Digitais, Uberização do Trabalho e Regulação no Capitalismo Contemporâneo. Contracampo. 2020;39(1):27-43.. Tal condição foi definida como “escravidão digital” (33. Antunes R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo; 2018..

A uberização é compreendida como uma tendência em curso, que pode ser generalizável pelas relações de trabalho, abarcando diferentes setores da economia, tipos de ocupação, níveis de qualificação e rendimento, condições de trabalho, em âmbito global, não se restringindo à própria empresa Uber e serviços similares66. Abílio LC. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estud Av. 2020;34(98):111-26.. São diversas as atividades desenvolvidas presencialmente (entregas, transporte, limpeza etc.) ou eletronicamente (como serviços de engenharia, tradução etc.), que passam a ser desenvolvidas dentro desse modelo, utilizando ferramentas digitais e da internet para gerir a produção e o trabalho77. Filgueiras V, Antunes R. Plataformas Digitais, Uberização do Trabalho e Regulação no Capitalismo Contemporâneo. Contracampo. 2020;39(1):27-43..

Embora o termo ‘trabalho uberizado’ seja usado, em geral, na literatura para descrever a condição dos trabalhadores diretamente controlados/gerenciados através das tecnologias de informação e comunicação (TICs) , é importante perceber o fenômeno como um processo global, que afeta, de forma desigual, todos os trabalhadores, das mais diferentes esferas. Atualmente, é difícil encontrar qualquer modalidade de trabalho que não tenha alguma forma de interação e dependência de celulares, computadores, smartphones e assemelhados, e a expansão do trabalho digital vem demolindo a separação entre o tempo de vida no trabalho e o tempo de vida fora dele77. Filgueiras V, Antunes R. Plataformas Digitais, Uberização do Trabalho e Regulação no Capitalismo Contemporâneo. Contracampo. 2020;39(1):27-43.. Nesse sentido, é um engano pensar que os trabalhadores formais, “não-uberizados”, ou seja, que possuem vínculo empregatício direto, seja no setor privado ou público, não estão inseridos ou sofrem os efeitos do fenômeno da uberização do trabalho.

À luz deste debate, a próxima seção discutirá a implementação do PDG no serviço público federal brasileiro, instituído através da IN 65/202011. Brasil. Ministério da Economia. Instrução Normativa no 65 de 30 de julho de 2020. Diário Oficial da União [Internet]. 31 jul. 2020 [citado em 9 ago 2022];1:146. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-65-de-30-de-julho-de-2020-269669395
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, bem como as impressões iniciais de sua implementação na UFF. Deseja-se discutir as mudanças estabelecidas por esse programa e suas relações com o processo de uberização do trabalho.

PGD na administração pública federal e a experiência inicial de sua aplicação na UFF

Em 30 de julho de 2020, foi publicada a IN 65/202011. Brasil. Ministério da Economia. Instrução Normativa no 65 de 30 de julho de 2020. Diário Oficial da União [Internet]. 31 jul. 2020 [citado em 9 ago 2022];1:146. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-65-de-30-de-julho-de-2020-269669395
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do Ministério da Economia, que regulamenta a implementação do PGD para órgãos e entidades integrantes do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (SIPEC). O PGD traz uma mudança profunda na forma como são concebidos o controle e gerenciamento do trabalho no âmbito do serviço público federal, estabelecendo, entre outras condições: 1. a possibilidade de realização do teletrabalho parcial ou total; 2. o controle permanente e diário das atividades desenvolvidas; 3. aferição de notas para cada tarefa realizada; e 4. a possibilidade de exclusão do trabalhador que não atingir resultados esperados do programa.

A partir de março de 2022, com o arrefecimento da pandemia de Covid-19, boa parte da administração pública, que esteve em trabalho remoto desde março de 2020 como medida excepcional para proteção à saúde pessoal e coletiva, retornou às atividades presenciais. O retorno, por sua vez, provocou os gestores dos órgãos a tomarem medidas para ampliar a adesão ao PGD.

Na UFF, a IN 28/202222. Universidade Federal Fluminense. Instrução Normativa no 28, de 12 de maio de 2022. Dispõe sobre a regulamentação da adoção do Programa de Gestão na Universidade Federal Fluminense [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2022 [citado em 9 ago 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.uff.br/sites/default/files/news/arquivos/in_ret_28_de_12_de_maio_de_2022_1.pdf
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regulamentou o PGD no âmbito da instituição . A partir dessa data, as diferentes unidades acadêmicas e administrativas começam a, paulatinamente, aderir ao programa. Em menos de quatro meses, cerca de 62% dos servidores técnicos-administrativos da Universidade já haviam aderido a uma das modalidades previstas (teletrabalho total, parcial ou presencial) do Programa de Gestão88. Universidade Federal Fluminense. Não se esqueça de inserir suas atividades no Teleport [Internet]. Niterói; 2022 [citado em 11 out 2022]. Disponível em: https://www.uff.br/?q=nao-se-esqueca-de-inserir-suas-atividades-no-teleport&page=1
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. Assim, já é possível fazer uma reflexão crítica circunstanciada, mesmo que de caráter preliminar, dos impactos potenciais desse modelo de gestão sobre a saúde integral do trabalhador.

No PGD, o servidor deve listar as atividades que planeja desempenhar em uma plataforma digital. Cada tarefa corresponde a um número máximo de horas, estabelecido de acordo com sua complexidade, que, por sua vez, é definida por um conjunto de critérios pré-definidos pelas próprias Instruções Normativas supracitadas.

Art. 32. Para cada atividade, deverão ser definidos o nível de complexidade e o tempo para execução. O nível de complexidade considerará os parâmetros elencados a seguir e, de acordo com o quantitativo destes, será identificada a faixa de complexidade da atividade.

I - Parâmetros indicados para definição da faixa de complexidade:

a) Depende de colaboradores do mesmo setor;

b) Depende de informações/ações de outros setores;

c) Necessita de pesquisa (legislação, novos conhecimentos);

d) Envolve elevada quantidade de tarefas;

e) Exige elevado grau de concentração;

f) Tem prazo determinado para conclusão (imposição legal ou prioridade institucional);

g) Não é atividade de rotina;

h) É atividade que necessita de criatividade e inovação;

i) Necessita de habilidade interpessoal para interação em equipe;

j) Demanda habilidade de redação; e

k) Demanda habilidade de análise e produção de cálculos.

Art. 33. Cada nível de complexidade corresponde a uma faixa de tempo de execução da atividade a ser incluída no PTI, conforme descrito a seguir. A quantidade de parâmetros necessários ao cumprimento de uma atividade, dentre aqueles listados no artigo 32, determina o nível de complexidade desta:

I - Nível 1 (muito baixa) - 1 a 2 parâmetros;

II - Nível 2 (baixa) - 3 a 4 parâmetros;

III - Nível 3 (média) - 5 a 7 parâmetros;

IV - Nível 4 (alta) - 8 a 9 parâmetros; e

V - Nível 5 (Muito alta) - 10 a 11 parâmetros.

Art. 34. Após a definição do nível de complexidade, deve ser definido, dentre as faixas de duração indicadas para cada nível, o tempo de execução correspondente à atividade a ser inserida no PTI:

I - Nível 1 (muito baixa) - de 15 minutos a 6 horas;

II - Nível 2 (baixa) - de 6 horas e 15 minutos a 12 horas;

III - Nível 3 (média) - de 12 e 15 minutos a 18 horas;

IV - Nível 4 (alta) - de 18 horas e 15 minutos a 24 horas; e

V - Nível 5 (muito alta) - de 24 horas e 15 minutos a 40 horas22. Universidade Federal Fluminense. Instrução Normativa no 28, de 12 de maio de 2022. Dispõe sobre a regulamentação da adoção do Programa de Gestão na Universidade Federal Fluminense [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2022 [citado em 9 ago 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.uff.br/sites/default/files/news/arquivos/in_ret_28_de_12_de_maio_de_2022_1.pdf
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A lista das tarefas a serem disponibilizadas no sistema para cada “perfil” também é definida previamente em edital. Ou seja, o servidor que adere ao Programa só poderá lançar tarefas de acordo com o que está prescrito no plano de trabalho cadastrado para aquele perfil, embora haja espaço para descrição das tarefas e subtarefas de livre redação. A Figura 1 apresenta um exemplo de um Plano de Trabalho Individual (PTI), na forma como se apresenta no sistema Teleport.

Figura 1
Exemplo de plano de trabalho individual para um perfil no sistema Teleport

Cada tarefa lançada no sistema deve ser aprovada pela chefia e, após sua finalização, avaliada com notas de 0 a 10. Curiosamente, no sistema ‘Teleport’ utilizado pela UFF, a visualização da avaliação ocorre por meio de estrelas, de forma muito similar ao sistema de avaliação de empresas como Uber, Ifood, entre outras tipicamente identificadas com o fenômeno da uberização do trabalho. A Figura 2 apresenta a ferramenta de avaliação de tarefas no Teleport, disponível somente para os gestores.

Figura 2
Avaliação de tarefas no Teleport

O Programa de Gestão contempla duas modalidades: presencial e teletrabalho, este podendo ser parcial ou integral. Ao aderir a qualquer uma das modalidades, o servidor é dispensado do controle de frequência, ficando o cumprimento da jornada de trabalho vinculado ao das tarefas descritas no Teleport. Na modalidade teletrabalho, seja integral ou parcial, a responsabilidade por garantir os meios para realização do trabalho, tais como internet, telefone, energia elétrica, mobiliário e material de consumo, bem como seus custos são transferidos para o servidor.

Art. 47. Quando estiver em teletrabalho, caberá ao participante providenciar as estruturas física e tecnológica necessárias, mediante a utilização de equipamentos e mobiliários adequados e ergonômicos, assumindo, inclusive, os custos referentes à conexão à internet, à energia elétrica e ao telefone, entre outras despesas decorrentes do exercício de suas atribuições22. Universidade Federal Fluminense. Instrução Normativa no 28, de 12 de maio de 2022. Dispõe sobre a regulamentação da adoção do Programa de Gestão na Universidade Federal Fluminense [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2022 [citado em 9 ago 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.uff.br/sites/default/files/news/arquivos/in_ret_28_de_12_de_maio_de_2022_1.pdf
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Ou seja, o PGD que vem sendo aplicado no serviço público federal está alicerçado em um modelo de gestão muito influenciado pelo ideário da uberização. A prescrição detalhada e pré-estabelecida das tarefas e a transferência para o trabalhador dos custos do processo de trabalho são características que estão postas sem disfarces. A remuneração variável ou pagamento por peça/entrega, por enquanto, ainda não está colocado, mas a ferramenta para sua implementação está desenhada na forma dos sistemas eletrônicos de controle e avaliação das tarefas.

A remuneração variável de acordo com o cumprimento de metas já é uma realidade em empresas estatais. Um exemplo emblemático é o dos bancos, como Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, nos quais uma parte significativa da remuneração total dos bancários é variável, vinculada a programas de metas. Em um artigo em seu site, o Sindicato dos Bancários Conquista e Região destaca o risco que esse tipo de vinculação remuneratória acarreta para os trabalhadores da categoria.

As remunerações variáveis, independente das funções alvo, se apresentam como um risco para a categoria bancária por acirrar a concorrência entre os colegas, privilegiando o individualismo e desmobilizando a luta coletiva. Estes programas também promovem um campo fértil para o surgimento de metas cada vez mais abusivas, para a redução da remuneração final e para o agravamento dos casos de adoecimento bancário1111. Ascom. Remuneração variável: uma pegadinha de mau gosto [Internet]. Porto Seguro: Sindicato dos Bancários; 2018 [citado em 8 out 2022]. Disponível em: https://bancarios.com.br/s/remuneracao-variavel-uma-pegadinha-de-mau-gosto/
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Existe um mito de que a adesão dos trabalhadores a esse tipo de programa se dá em função de sua alienação ou falta de consciência sobre o significado ou os riscos trabalhistas a ele associados, sendo, então, produto do atraso na consciência da categoria. Na curta experiência desenvolvida na UFF, a impressão, mesmo que ainda parcial por estarmos no início da implementação, é de que não é esse o fator determinante para a adesão. A categoria sofreu importantes derrotas do ponto de vista das condições de trabalho nos últimos anos, como o aumento da carga horária de 30h para 40h semanais em 2017 e a implementação do ponto eletrônico em 2019. Esses eventos, combinados com um clima institucional nada saudável, precariedade das condições físicas dos ambientes de trabalho, dificuldades de mobilidade urbana e carestia, fazem com que, mesmo percebendo os riscos dos programas de gestão de desempenho, os servidores enxerguem neles uma alternativa desejável, devido à possibilidade real de flexibilização de suas jornadas de trabalho e realização de teletrabalho. Isso nada tem a ver com uma suposta falta de consciência em relação ao significado desse tipo de regime de gestão e controle, mas com uma necessidade perante um processo duro e objetivo de retrocessos no terreno das condições de vida e de trabalho, de se agarrar a uma possibilidade de diminuir a quantidade total de horas presenciais na instituição ou no translado.

Implicações potenciais à saúde e segurança do trabalhador

Conforme demonstrado até aqui, compreende-se a uberização como uma forma de organização do trabalho, logo, terá implicações diretas na saúde do trabalhador. Quando a organização do trabalho se altera, a relação saúde-doença no trabalho é também alterada. Deste modo, mesmo se tratando de um fenômeno relativamente recente, alguns estudos apontam os impactos desse modelo de organização e controle do trabalho na saúde do trabalhador1212. Uchôa-de-Oliveira FM. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia. Rev Bras Saude Ocup. 2020;45.. Na discussão sobre saúde do trabalhador no contexto da uberização, dois aspectos ganham destaque: 1. os efeitos desse tipo de relação de trabalho sobre a saúde mental dos trabalhadores; e 2. a mudança no paradigma dos “riscos ambientais”, tão caros aos profissionais da área de segurança do trabalho.

Autores de diferentes abordagens indicam que uma gestão centrada no controle rigoroso de processos e cumprimento de metas, especialmente se estiverem vinculadas à remuneração, tem efeitos negativos sobre a saúde mental dos trabalhadores, pois estabelece um clima permanente de tensão, stress e insegurança1212. Uchôa-de-Oliveira FM. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia. Rev Bras Saude Ocup. 2020;45.. Ressalta-se, também, que a “uberização estabelece uma dinâmica profissional marcada pela sujeição, dominação, desgaste, competitividade, desconfiança e reforço do individualismo, sequestro do tempo e dos processos de subjetivação” (1313. Rodrigues NLPR, Moreira AS, Lucca SR de. O presente e o futuro do trabalho precarizado dos trabalhadores por aplicativo. Cad Saude Publica. 2021;37(11):e00246620.) (p. 9).

No contexto do Programa de Gestão implementado na UFF, começam a aparecer relatos de trabalhadores a respeito de comparações internas feitas por chefias ou colegas de trabalho, no tocante a quantidades de atividades realizadas por cada um e o tempo gasto para realização de cada tarefa. A busca pela padronização dos serviços/atendimentos e a valorização da produtividade favorecem as condições de individualismo, competitividade e desconfiança1313. Rodrigues NLPR, Moreira AS, Lucca SR de. O presente e o futuro do trabalho precarizado dos trabalhadores por aplicativo. Cad Saude Publica. 2021;37(11):e00246620.. Há que se verificar, em médio prazo, quais serão os impactos dessa nova lógica de gestão e controle do trabalho sobre saúde mental dos servidores, afastamentos, busca pelos serviços de atenção à saúde etc.

Outro aspecto diz respeito à possibilidade de mapeamento, mitigação e controle dos riscos no ambiente de trabalho. Nesse novo contexto, os agentes de risco não podem mais ser circunscritos ao ambiente da empresa, mas encontram-se pulverizados em um espaço físico muitas vezes impossível de se delimitar - uma vez que os próprios ambientes de trabalho não existem mais da forma como se concebia - e vinculam-se às ferramentas que o trabalhador uberizado possui, adquire ou aluga1111. Ascom. Remuneração variável: uma pegadinha de mau gosto [Internet]. Porto Seguro: Sindicato dos Bancários; 2018 [citado em 8 out 2022]. Disponível em: https://bancarios.com.br/s/remuneracao-variavel-uma-pegadinha-de-mau-gosto/
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No âmbito da UFF, pode-se problematizar, por exemplo, a não possibilidade de qualquer ingerência institucional sobre a adequação ergonômica dos postos de trabalho dos servidores em teletrabalho. Quais podem ser os efeitos disso daqui a alguns anos sobre a incidência de doenças osteoarticulares relacionadas ao trabalho? E o quão difícil será relacionar essas moléstias à atividade laboral para fins pecuniários, nos casos em que o trabalho é realizado em grande parte fora da instituição? Esses questionamentos podem ser extrapolados para quase qualquer aspecto vinculado à saúde do trabalhador e trazem reflexões que devem ser levadas em consideração para se pensar o PGD e seus desdobramentos.

Considerações finais

A uberização, como fase mais atual do processo de flexibilização do trabalho, generaliza um tipo de gestão do trabalho baseado em um rígido controle de metas e processos, aplicado através de plataformas digitais; e um tipo de vínculo de trabalho precário, fluido e informal, baseado na remuneração variável, por peça ou serviço. Apresenta-se como uma tendência global, que ultrapassa em muito os trabalhadores das empresas como a Uber e similares, afetando, de forma desigual, todos os trabalhadores seja do setor público ou privado.

A IN 65/202011. Brasil. Ministério da Economia. Instrução Normativa no 65 de 30 de julho de 2020. Diário Oficial da União [Internet]. 31 jul. 2020 [citado em 9 ago 2022];1:146. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-65-de-30-de-julho-de-2020-269669395
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regulamentou o PGD para o serviço público federal brasileiro. Este programa guarda, em suas diretrizes, muitas relações com o modelo de gestão do chamado trabalho uberizado. Na UFF, sua aplicação tem início a partir da publicação da IN 28/202222. Universidade Federal Fluminense. Instrução Normativa no 28, de 12 de maio de 2022. Dispõe sobre a regulamentação da adoção do Programa de Gestão na Universidade Federal Fluminense [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2022 [citado em 9 ago 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.uff.br/sites/default/files/news/arquivos/in_ret_28_de_12_de_maio_de_2022_1.pdf
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. Ainda em fase inicial de aplicação, o PGD já conta com grande adesão dos servidores da Universidade. Deste modo, a partir desta experiência inicial e à luz das discussões sobre a uberização do trabalho, foi possível construir uma discussão crítica sobre este programa, a partir da qual aponta-se: potenciais efeitos sobre a saúde física e mental do trabalhador advindos de um modelo de gestão baseado no controle rigoroso de processos e metas; maior dificuldade para o mapeamento e controle dos fatores de risco em função da pulverização dos ambientes de trabalho; e a desresponsabilização do empregador quanto à garantia dos meios de sua realização.

Referências

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  • 2
    O autor informa que o estudo não foi apresentado em evento científico.

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  • 3
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Editor-chefe responsável: José Marçal Jackson Filho

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2022
  • Revisado
    08 Dez 2022
  • Aceito
    01 Fev 2023
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