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Literaturas do Depois: o extremo contemporâneo como representificação de omissões do passado

After Literatures: The Contemporary Extreme as a Representation of Past

Resumo

O artigo pretende apresentar contribuição para a reflexão sobre as relações entre Literatura Comparada e a assim chamada “pós-teoria”, trazendo ao debate o pensamento do teórico Johan Faerber e sua recente publicação: Après la littérature: écrire le contemporain (2018). Para contornar o desgastado prefixo “pós” (pós-colonialismo, pós-modernismo, etc.), o autor chama as literaturas do extremo contemporâneo de “littératures de l´Après” (literaturas do Depois), refletindo sobre o que poderia caracterizar tais literaturas, e concluindo, com base em estudos de Dominique Viart, que independentemente do período em que foram escritas, as literaturas do Depois são as que ressurgem quando se pensa que a literatura está morta (Todorov, Compagnon, entre outros). Essa ressurgência acontece com a criação dos romances “desconcertantes” que são os que recusam a doxa e “escapam às significações pré-concebidas do prêt-à penser-culturel” (VIART, 2006, p. 13). O artigo focaliza, no contexto da literatura brasileira, uma série de romances escritos por mulheres como Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Eliane Brum, Aline Bei, Carola Saavedra e Martha Batalha, cujas obras se caracterizam por serem desconcertantes e transculturais, insurgindo-se contra a invisibilidade e a inaudibilidade das gerações que as precederam, inventariando ausências, representificando o que até então fora omitido e questionando os limites da representabilidade na literatura.

Palavras-chave:
Extremo contemporâneo; Littératures de l´Après; Poética da ausência; Representificação; Limites da representabilidade

Abstract

The article aims to contribute to the reflection on the relationship between Comparative Literature and the so-called “post-theory”, bringing to the debate the contribution of the theoretician Johann Faerber and his recent publication: Après la littérature: écrire le contemporain (2018). To get around the worn prefix “post” (post-colonialism, post-modernism, etc.), the author calls the literatures of the contemporary extreme “littératures de l´après” (later literatures), reflecting on what could characterize such literatures, and concluding, based on studies by Dominique Viart, that regardless of the period in which they were written, the later literatures are those that resurface when it is thought that literature is dead (Todorov, Compagnon, among others). This resurgence occurs with the creation of “disconcerting” novels that are those that refuse doxa and “escape the pre-conceived meanings of the ready-to-think-cultural” (VIART, 2006, p. 13). The article focuses, in the context of Brazilian literature, on a series of novels written by women such as Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Eliane Brum, Aline Bei, Carola Saavedra and Martha Batalha, whose works are characterized by being disconcerting and transcultural, insurgent against the invisibility and inaudibility of the generations that preceded, inventing absences, representing what had hitherto been omitted and questioning the limits of representability in literature.

Keywords:
Contemporary extreme; Littératures de l´Après; Poetics of Absence; Representification; Limits of representability

…écrire à l´orée des années 1980, c´est arriver après la Littérature : ce n´est plus uniquement commencer quand tout est fini mais recommencer depuis la Fin. (Johan Faerber, 2018FAERBER, Johan. Après la littérature; écrire le contemporain. Paris: PUF, 2018.. p. 38)1 1 ...escrever na virada dos anos 1980, é chegar depois da Literatura: não é mais unicamente começar quando tudo terminou, mas recomeçar do Fim.

Introdução teórica

Johan Faerber é um crítico mordaz, iconoclasta, que malha duramente teóricos como Antoine Compagnon e Tzvetan Todorov que, entre outros, anunciaram a morte da Literatura. Segundo ele, a cada afirmação sobre a morte da literatura corresponde uma volta, um recomeço: escrever hoje é restaurar a escritura, é preencher uma falta fundadora que contribuiu para o apagamento de muitas culturas e etnias. Depois de declarada a morte do texto literário, os arautos do apocalipse da literatura são destronados por Faerber que vê, ao contrário, a marca do contemporâneo justamente na capacidade de ressurgimento da literatura, como uma escritura do sensível e do simbólico. Quais são os textos literários que apresentam essa capacidade de ressurgir? Certamente não são aqueles que Dominique Viart chama de consentants, ou escritas de consentimento, aquelas que não contestam a sociedade e que se constituem como “a arte da aprovação”, na qual os escritores escrevem para o grande público, tornando-se, muitas vezes best sellers; nem tampouco os concertants ou conciliatórias que reconduzem a doxa e instauram a harmonia com as opiniões gerais. Para o autor, as literaturas do Depois e que podem ser chamadas de literaturas do extremo contemporâneo, seriam as desconcertantes (déconcertantes), as que deslocam as expectativas da maioria dos leitores, deixando de reproduzir as velhas receitas literárias, desviando-se de significações pré-concebidas (VIART, 2008VIART, Dominique. La littérature française au présent. 2a. ed. Paris: Bordas, 2008., p. 10-11). Faerber parece coincidir com Viart, ao considerar que são as literaturas que provocam o dissenso e não o consenso que inauguram a revivescência da Literatura, quando muitos anunciam seu desaparecimento.

Sair da zona de conforto da obviedade, das crenças ingênuas e da transparência, pode ser o gesto que inaugura o contemporâneo, independentemente da época em que vive o escritor, pois, como sabemos, o contemporâneo não se confunde com a época atual. O contemporâneo consiste em colocar todos os séculos juntos, como escreveu Michel Chaillou (apudVIART, 2008VIART, Dominique. La littérature française au présent. 2a. ed. Paris: Bordas, 2008., p. 20). Para Faerber, Marcel Proust é um escritor contemporâneo, por quebrar todos os paradigmas escriturais de sua época e continuar desafiando a imaginação de seus leitores até os dias de hoje.

Revisitar o presente com um olhar novo ou escrever sobre um presente de cuja construção não participaram, como os escritores afro-brasileiros e afro-americanos, corresponde à reinvenção do contemporâneo. Ou, como afirma Annie Ernaux: escrever como uma faca, Écrire comme un couteau (2003ERNAUX, Annie. L´écriture comme un couteau. Paris: Gallimard, 2003. ), correspondendo a sentir e experimentar a escritura como uma arma, como uma lâmina afiada, para combater o lugar comum, a frase feita, as narrativas que tentam harmonizar o contraditório e que negam ausências e invisibilidades de determinadas etnias e ou gêneros.

Se tudo já foi escrito, se estamos diante de páginas pretas e não da famosa página em branco tão temidas pelos escritores, aparentemente não há mais sobre o que escrever, tudo já tendo sido dito. Contudo, para Johan Faerber, é justamente diante da “page noire” que pode ressurgir a literatura, correspondendo ao desejo de “recommencer, de surseoir aux défaites et de revenir au monde” (2018FAERBER, Johan. Après la littérature; écrire le contemporain. Paris: PUF, 2018., p. 37).2 2 recomeçar, de ultrapassar as derrotas e de voltar ao mundo Nesse sentido, Faerber associa essa literatura do “Après” ao sentido hegeliano de Afhebung, que remete a “superar, aniquilar e conservar”3 3 JUNGUES, M.; COSTA, Andrioli. Superar, aniquilar e conservar - A filosofia da história de Hegel. Revista do Instituto Humanitas, Unisinos, edição 430, outubro de 2013. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/5229-jose-pinheiro-pertille-1>. . Assim a Literatura teria essa capacidade de recomeçar desde seu FIM, transcendendo a própria morte anunciada por tantos teóricos e críticos da pós-modernidade. Nesse sentido, para Faerber, não basta somente começar quando tudo acaba, mas “recommencer depuis la Fin” (2018FAERBER, Johan. Après la littérature; écrire le contemporain. Paris: PUF, 2018., p.50).4 4 Recomeçar do Fim.

Contornando o “pós”

Vale notar que Johan Faerber, assim como Pierre Ouellet já havia feito, critica a fadiga do “pós” (pós-moderno, pós-graduação, pós-pandemia, etc...). Em publicação de 2008, Pierre Ouellet advoga o esgotamento do “pós” como em outras épocas usamos e abusamos do “neo” (neobarroco, neocolonial, etc). Segundo o teórico quebequense, “le temps d´après serait un arrière-temps, comme on parle d´arrière-plan et renverrai au `dessous` où la temporalité ne cesse de glisser, de chuter, de tomber” (2008OUELLET, Pierre. Hors-temps; poétique de la post-histoire. Montréal: VLB éditeur, 2008. , p. 35)5 5 O tempo do depois, seria um tempo de fundo, como se fala de plano de fundo e remeteria ao que está abaixo, à temporalidade que não cessa de deslizar, de cair.

O autor menciona um tempo depois do tempo ou tempo suplementar que se tornou o tempo de toda enunciação. Nessa medida tanto Faerber quanto Ouellet coincidem em sua concepção do contemporâneo que para eles não é a do tempo presente ou em sincronia com ele. Uma obra literária pode ser considerada contemporânea mesmo quando evoca temáticas muito antigas desde que essas temáticas sejam ressignificadas no presente. Esse é aliás o papel da memória que não coincide com resgate de elementos perdidos na noite dos tempos, mas, como na definição benjaminiana, a rememoração passa pela ressignificação no presente do elemento que ficara esquecido no passado.

Para Ouellet, o termo adequado seria o “après-tout” que significa depois de tudo, podendo ser sinônimo de “em definitivo”, “depois de tudo considerado”, “finalmente”, correspondendo a ver as coisas de modo diferente. Esse “après-tout” não desemboca nem em uma pergunta, nem em uma afirmação, mas “sur une insoluble énigme dont la clé est à jamais perdue” (2008OUELLET, Pierre. Hors-temps; poétique de la post-histoire. Montréal: VLB éditeur, 2008. , p. 346)6 6 Sobre um enigma insolúvel cuja chave foi perdida para sempre. .

Tanto Ouellet quanto Faerber falam do contemporâneo não somente como algo que vem “após” (como em pós-moderno), e que logo volta a ser ultrapassado, mas como um tempo fora da linearidade de Cronos (tempo linear, medido pelo relógio, tempo devorador), algo que se encena assumindo novas formas de temporalidade (como Kairos e Aion) que marcam a relação complexa entre instante e eternidade. Algo que assuma a perspectiva relacional e performativa do transcultural.

Na perspectiva transcultural, que é a advogada por Faerber, busca-se não a síntese que caracteriza a perspectiva intercultural, mas a ultrapassagem: do contato de duas ou mais culturas não interessa saber o quanto uma “influenciou” a outra, se houve aculturação ou desculturação, mas o surgimento dos novos produtos culturais que se originaram desse contato inicial. No plano do transcultural, visa-se o dissenso e não o consenso.

O Contemporâneo nas Américas

Se aceitarmos os pressupostos estabelecidos por Johan Faerber que o contemporâneo corresponde a essa capacidade da literatura de ressurgir das próprias cinzas, de recriar a si mesma, então podemos dizer que as literaturas, que se engendram em novos espaços em função das migrações, são literaturas da contemporaneidade. São literaturas que se constituem muitas vezes no entrelugar entre o país de origem e o país de acolhida, hibridizando elementos de uma e outra cultura para criar algo novo.

E a esse movimento de criação de algo novo a partir de elementos culturais oriundos de culturas diversas, damos o nome de transculturação. Compreendemos que é o transcultural “que leva a uma releitura e a uma recontextualização das perspectivas [...] abrindo-se ao futuro ao propor um presente que possa associar relações práticas que fazem com que pessoas diferentes tenham uma influência eficaz e positiva umas sobre as outras” (IMBERT, 2015IMBERT, Patrick. Comparando o Canadá e o Brasil: da exclusão ao transcultural. In: BERND, Zilá; IMBERT, Patrick (orgs.). Encontros transculturais Brasil-Canadá. Porto Alegre: Tomo editorial, 2015, p. 21-40. , p. 34). Assim, nos processos transculturais, deixa-se de visar à síntese, para apostar na inovação, na mistura, no trânsito entre culturas, no ir além.

Maximilien Laroche (1937-2017), haitiano de nascimento, radicado no Quebec, onde lecionou durante muitos anos na Université Laval, deixou um legado muito importante em termos das consequências dos deslocamentos de imigrantes, oriundos de diferentes partes do planeta, para o Novo Mundo e para o Quebec, em particular, referindo-se sobretudo à invisibilidade dessas comunidades no novo cenário da imigração e seu esforço em desfazer o apagamento de suas culturas de origem no novo contexto do Canadá.

Un homme venu d’outre-mer et qui a dû rompre avec sa civilisation originelle. Un homme qui a dû recommencer son histoire donc et qui dans ses oeuvres d’imagination, ses oeuvres littéraires notamment, s’efforce de découvrir le sens de recommencement. (Le miracle et la métamorphose,1970LAROCHE, Maximilien. Le miracle et la métamorphose. Montréal: Éditions du Jour, 1970. , p. 231)7 7 Um homem vindo de além mar e que teve que romper com sua civilização original. Um homem que teve, pois, que recomeçar sua história e que em suas obras de imaginação, suas obras literárias sobretudo, se esforça em descobrir o sentido do recomeço.

Reencontramos aqui a noção de “recomeçar” que Faerber associa à criação do contemporâneo. Assim como as mitologias estão ligadas à história de um começo, de uma origem das civilizações, também na percepção de Laroche as narrativas migrantes podem ser associadas ao recomeço e a tentativas de “interpretação de seu novo sentido” (LAROCHE, 1970LAROCHE, Maximilien. Le miracle et la métamorphose. Montréal: Éditions du Jour, 1970. , p. 231). Desse modo, o processo de emergência de novas literaturas como as afro-americanas e a quebequense, por exemplo, constituindo-se em prolongamentos, transformações e renovações no contexto das Américas, torna-se um desafio à Literatura Comparada como disciplina, criada tradicionalmente para estudar “as fontes e as influências” das “grandes” literaturas europeias, na comparação com as literaturas periféricas, também chamadas de emergentes, da África e das Américas.

A partir de tal princípio, seria possível, no âmbito da Literatura Comparada “tradicional”, comparar literaturas emergentes entre si, como temos feito mais recentemente?

Para responder a essa questão teórica - talvez uma questão para a pós-crítica? -, invocaremos a reflexão de Wlad Godzich, que foi professor do Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Montreal, nos anos 1990, sendo atualmente professor na Universidade da Califórnia, Santa Cruz.

Em 1991, Michel PetersonPETERSON, Michel; BERND, Zilá (orgs.). Confluences littéraires: Brésil-Québec les bases d´une comparaison . Montréal: Balzac , 1992. e eu procuramos o professor Godzich para fazer a introdução de um livro que estávamos organizando e que intitulamos: Confluences littéraires Brésil-Québec: les bases d´une comparaison, publicado em Montreal, em 1992. Ao analisar nossa proposta que reunia textos de professores brasileiros e canadenses, Godzich surpreendeu-se na medida em que a literatura quebequense era muito recente e tinha até então relação estreita com a literatura francesa, enquanto a literatura brasileira já vinha sendo objeto de numerosos estudos comparatistas. Comparar duas literaturas periféricas sem passar pelo “centro” pareceu ao professor um desafio, já que aproximar as duas literaturas exigiria, de alguma forma, uma reconceituação da Literatura Comparada enquanto disciplina, na medida em que implicaria abandonar o eurocentrismo que a caracterizava.

Considerando o crescente processo de globalização e sua tendência a homogeneizar as expressões culturais, Godzich observa que as literaturas ditas emergentes apresentam uma tendência de resistência, opondo-se a certos aspectos da globalização: algumas opõem-se, sem, contudo, questionar o processo em si, enquanto outras manifestam oposição frontal a esse fenômeno. Nesse sentido, verifica o pesquisador que algumas literaturas emergentes tiram partido da globalização, como foi o caso do boom das literaturas latino-americanas que ganharam renome transnacional, enquanto outras se agrupam em uma espécie de “comunidades de consciência” (1991, p. 53), compartilhando determinadas bandeiras como a valorização da mulher, a luta contra os integrismos e as exclusões de determinados grupos como, negros, indígenas, homossexuais, entre outros.

Godzich conclui que é em relação a esse processo complexo que o comparatismo literário pode se desenvolver e se ressignificar:

Tout comparatiste a toujours su que la comparaison exigeait toujours un tertium comparationis. Trop souvent ce tiers terme est resté implicite, ce qui a permis de valoriser l´un de deux termes de la comparaison et de faire ainsi pencher la balance en faveur des modèles hégémoniques. En rendant explicite le troisième terme de la comparaison on échappe à ce parti pris. En adoptant le développement de la Littérature et des littératures par rapport à la globalisation, on assure non seulement de faire œuvre de comparaison mais, comme je le soulignait plus tôt, œuvre de résistance aussi, car les liens que l´on tisse ainsi exigent que l´on laisse filer certaines des mailles de cette globalisation et qu´on lui oppose une autre vision de l´ordre mondiale. (GODZICH, 1992GODZICH, Wlad. À la recherche du tertium comparationis. In: PETERSON, Michel; BERND, Zilá (orgs.). Confluences littéraires: Brésil-Québec les bases d´une comparaison. Montréal: Balzac, 1992, p. 41-56. , 53-54)8 8 É em relação a esse processo complexo e diferenciado que os estudos comparados podem desenvolver-se. Todo comparatista sempre soube que a comparação exigia sempre um tertium comparationis. Frequentemente esse terceiro termo ficava implícito, o que permitiu valorizar um dos dois termos da comparação, fazendo assim pesar a balança em favor dos modelos hegemônicos. Tornando explícito o terceiro termo da comparação, escapa-se desse preconceito. Adotando o desenvolvimento da Literatura e das literaturas na sua relação com a globalização, nos asseguramos não somente do trabalho comparatista mas, como destaquei anteriormente, de exercer o trabalho de resistência também, pois os laços que tecemos exigem que deixemos escapar alguns fios dessa malha que é a globalização, opondo a ela uma outra visão da ordem mundial.

É interessante notar que um comparatista reconhecido internacionalmente à época e membro de um departamento de literatura comparada de grande renome, o da Universidade de Montreal, que abrigava nomes como Walter Moser e Antonio Gomes Moriana, valorizou nossa tentativa de romper com a Literatura Comparada de tradição europeia e hegemônica, apontando-nos o caminho para a busca do tertium comparationis fora do âmbito do comparatismo tradicional. 9 9 Esse livro, publicado em 1992, inaugurou um fértil caminho de mão dupla que nos últimos 30 anos vem intensificando um comparatismo literário inter e transamericano, tendo dado origem a um GT da ANPOLL, intitulado Relações literárias interamericanas.

Vale assinalar que esse foi o início do trilhar de um caminho que vimos percorrendo nos últimos trinta anos no sentido de explorar as literaturas das Américas através de um viés comparatista que, se hoje, parece óbvio, começou com um ato de insubordinação frente aos modelos do comparatismo tradicional. Foi possível assim aproximar da produção literária brasileira, obras da literatura caribenha, canadense, quebequense e hispano-americanas que restavam desconhecidas dos leitores de língua portuguesa.

Escritoras brasileiras engendrando o extremo contemporâneo

Distanciando-se drasticamente de uma tradição do romance escrito por mulheres no estilo roman à l´eau de rose10 10 Romance água com açúcar. , uma série de escritoras brasileiras renova a escrita de mulheres, escrevendo - como evocou Annie Ernaux - com facas pontiagudas que atingem em cheio o leitor. Instaurando o insólito e o inaudito, um importante número de romances recentes cria (ou reinventa) o contemporâneo, tirando da invisibilidade aspectos escabrosos da vida de mulheres de diferentes épocas. Elas desvelam a memória ferida por traumatismos diversos, incluindo o trauma da escravidão, podendo-se inclusive observar, em alguns casos, o impasse diante da impossibilidade de representação e/ou a busca de novas concepções de representação que permitam a inclusão dos fatos traumáticos.

Temas tabu são abordados com extrema crueza, como o estupro em O peso do pássaro morto (2017BEI, Aline. O peso do pássaro morto. São Paulo: Editora Nós, 2017. ), escancarando o que era ocultado no seio das famílias como vergonha: ter uma filha estuprada, mãe-solteira. Um dos temas que se pode cadastrar na lista de uma poética da ausência, no dia em que tal lista for elaborada, é o estupro que faz da vítima, a culpada, ou aquela que deve sentir vergonha e carregar para sempre a memória ferida e envergonhada de um crime que não cometeu, mas do qual foi vítima. A prática das famílias era esconder, mascarar, não ir em busca de culpados, ou seja, tornar o caso invisível. O fato de a autora, Aline Bei, representificar11 11 Para o conceito de representificação, ver CATROGA, Fernando. Memória, História e historiografia. 2a. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2018. uma ausência que se perpetuou por décadas, senão séculos na cultura brasileira, enunciando o estupro como dolo não apenas no momento em que o crime é perpetrado, mas como algo incapacitante para o resto da vida da personagem, torna-se o diferencial do romance. A autora apresenta para além da cena do crime no plano físico, as marcas duradouras que deixou na personagem que não conseguiu amar o filho, nem se desenvolver como ser humano, como mulher ou como profissional. Crime hediondo, mascarado e silenciado pelos próprios pais da vítima, vidas ocultadas. Enunciar o delito, tirando da invisibilidade fatos deste tipo, irá inscrever esse livro no que Faerber considera como literatura que vem Depois da Literatura, que emerge do fim das ausências, trazendo à tona o que parecia ter se tornado tácito: estupro não é matéria poética.

A impossibilidade da narradora vitimada pelo estupro de relacionar-se com o filho, deve-se à falta de apoio de seus pais que, para evitar o escândalo e a vergonha diante da vizinhança, deixam de denunciar o culpado, ocultando o crime, culpabilizando de algum modo a vítima.

Eliane Brum, em uma duas (2018BRUM, Eliane. Uma duas. 2a. ed. Porto Alegre: Arquipélago, 2018. ), desconcerta seus leitores, transformando em matéria poética dois temas impactantes: a automutilação e a impossibilidade da relação mãe-filha. Esse último tema já havia sido abordado em Meus desacontecimentos, de 2014, no qual a narradora revela o desamor de sua mãe que nunca chegou a fazer o trabalho do luto pela perda da primeira filha. Esse túmulo de sua irmã, “que ninguém da família conseguia fechar” (2018, p. 21), criou um vácuo na vida da filha o qual foi preenchido pelo amor à leitura e à escrita, herança legada pelo pai.

Em uma duas - estranho título escrito em minúsculas - a autora aprofunda essa clivagem nas relações mãe e filha, clivagem essa que é feita de um misto de amor e ódio. Ódio por não sentir-se suficientemente amada ou considerada pela mãe, levando a filha a abandonar a mãe. Deixando de prestar a assistência devida, a velha senhora para de comer: uma cena dantesca é apresentada de chofre ao leitor, no início da narrativa, mostrando a mãe agonizando em um apartamento onde todos os alimentos foram consumidos, chegando ao ponto de o gato devorar o pé da mãe da narradora. Cena de extrema crueldade para quem escreve e para quem lê, e que provoca efeitos desconcertantes nos leitores. A contrapartida é o fosso criado na relação mãe e filha que tem como consequência o surgimento do hábito da narradora de automutilar-se: “A risada do braço. O sangue saindo pela boca do braço. Quantas vezes eu já me cortei?” (2018, p. 9).

Diana Corso, na contracapa de uma duas, escreve:

Mesmo navegando na fantasia, Eliane, a jornalista, não podia deixar de ouvir os dois lados. O pesadelo simbiótico tem duas versões, a mãe e a filha escrevem o que sentem sem ler uma à outra, cabe a nós a acareação da verdade inexistente. Elas se odeiam e amam com paixão e nos conduzem por sua dolorosa separação. É uma reportagem nos abismos. (CORSO, 2018, contracapa)

Talvez a autora antecipe nas páginas finais do livro uma das características desta literatura do Depois que é a de deixar de corresponder às expectativas dos leitores e manifestar uma certa descrença na capacidade da literatura de representar o real e de poder contribuir para salvar o mundo:

Descubro que escrevi sobre a impossibilidade da literatura. O fracasso previamente assumido ao tentar transformar vida em palavra. O que mais importa é o que não pode ser escrito, o que grita sem voz e sem corpo entre as linhas. O para sempre indizível. É melhor assim, que seja assim. (BRUM, 2018BRUM, Eliane. Uma duas. 2a. ed. Porto Alegre: Arquipélago, 2018. , p. 189)

Se nas duas autoras, que brevemente evocamos acima, aparecem os marcadores do contemporâneo tais como tornar visíveis as ausências e a recusa de corresponder às expectativas do leitor médio, observa-se igualmente a presença da narrativa de filiação, onde a autoficção - narrativa da interioridade - dá lugar à narrativa da anterioridade, ou seja, aquela na qual se evoca a memória intergeracional, correspondendo a um desvio necessário: evocar as histórias dos ancestrais como estratégia das narradoras para narrar a si mesmas. Em uma duas, o relato da mãe corre paralelo ao relato da filha: paralelas que não se encontram pelo fato de uma não chegar a ler o relato da outra. Esse romance de filiação sobre o qual escreve Dominique Viart (2008VIART, Dominique. La littérature française au présent. 2a. ed. Paris: Bordas, 2008., p. 103) corresponde a “tentativas de restituição” do que não pôde ser dito ou vivido entre o narrador e seu ancestral, tentando suprir transmissões imperfeitas ou memórias vergonhosas dos pais.

O desfecho, que leva à morte da mãe, entra na lista do indizível e do irrepresentável pela tragédia anunciada: o desaparecimento de uma impede a outra de seguir vivendo, de onde o (quase) indecifrável e desconcertante título: uma duas.

Martha Batalha publicou recentemente A vida invisível de Eurídice Gusmão (2016BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. ), romance em que procura desvendar a invisibilidade da protagonista - Eurídice Gusmão - a quem nomeia no título para convocá-la à existência, apontando suas tentativas de se emancipar, todas elas frustradas pelo marido. O livro transforma-se em um verdadeiro inventário de ausências na vida de Eurídice Gusmão, típica dona de casa do Rio de Janeiro, dos anos 1940, onde a mulher da classe média que trabalhasse fora do lar representava o fracasso do marido em sustentar a família.

Inventário das coisas ausentes é o título de um livro de Carola Saavedra (2014SAAVEDRA, Carola. Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras , 2018. ), remetendo igualmente às ausências, às faltas na vida das mulheres no Brasil e à necessidade de inventariá-las, uma vez que só após o inventário se reparte a herança e que só depois de recebido o legado é possível transmiti-lo. As memórias só se constituem plenamente pela transmissão.

São dois romances em que os semas “ausência” e “invisibilidade” aparecem no título no claro intuito das autoras de reverter o processo de ocultação de vidas de mulheres, procurando representificá-las, tirando-as da condição de olvido para - através da transmissão pela escritura - convocá-las à existência, gerando sentido e restaurando memórias feridas. O trabalho da representação ou da representificação pode ocorrer na dimensão de deixar emergir, tornando presente ou materializando, o que “não existe mais”, mas também na dimensão criativa da representação que desemboca na emergência de novas entidades, novos horizontes. Dessa forma, é o esquecimento e não a morte que transforma as pessoas e os acontecimentos em definitivos nada. Lembrar é, portanto, manter um diálogo com os signos da ausência; é a representificação do passado que garante não só a preservação da memória dos ausentes, como assegura nosso próprio futuro.

No que diz respeito à invisibilização do negro na Literatura Brasileira e em especial da mulher negra, duas autoras se sobressaem com produção de romances: Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo. Se a emergência de vozes negras no feminino pode ser constada desde as primeiras antologias intituladas Cadernos Negros, do Grupo Quilombhoje, a produção de contos e romances só vem ocorrendo mais recentemente 12 12 Ver a respeito BERND, Zilá (Org.). Antologia de poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2011. .

Ana Maria Gonçalves instaura o novo no campo dos estudos literários afro-brasileiros por ser a autora da primeira saga retrançando a história dos africanos chegados no Brasil na condição de escravos, narrando desde a travessia nos navios negreiros em 1810 até o regresso a Daomé da personagem narradora em 1877. Um defeito de cor (2006GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 6a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010 [2006 ].) constitui-se na primeira tentativa de retraçar a história de uma escrava desde sua vida na África, antes da travessia, passando pelas peripécias de sua vida de escrava, na Bahia, até seu retorno a Daomé como escrava liberta, a partir do ponto de vista de uma mulher negra e escrava, Kehinde.

Registre-se o imenso trabalho de pesquisa, a habilidade da narradora e a inovação maior que foi a de ceder o lugar de fala a uma mulher escrava. Será, portanto, a partir do ponto de vista de uma mulher negra que iremos acompanhar, pela primeira vez na Literatura Brasileira, a história de luta, sofrimento e desapego, mas também de alegrias e vitórias, dessa mulher tornada escrava no Brasil onde receberá o nome cristão de Luísa.

O título bastante enigmático - Um defeito de cor - remete a uma frase de um texto atribuído ao poeta Luís Gama que seria o filho perdido de Kehinde-Luísa, transformando o romance em uma incansável busca dos rastros deixados pelo filho desaparecido, já que fora vendido como escravo pelo próprio pai. O aludido texto de Luís Gama que inspira a autora Ana Maria Gonçalves, encontra-se em passagem do site do grupo Literafro da UFMG:

Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que esta cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões onde arde o fogo sagrado da liberdade. (Luís Gama, transcrito no Portal Literafro, 2008. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/literafro/autores/655-luiz-gama>.)

A viagem à procura da sabedoria ancestral leva a personagem, cuja narrativa constitui-se em uma longa carta escrita ao filho desaparecido, à Casa das Minas onde encontra a noche Naê, sacerdotisa do vodum, mãe ancestral, que fortalece sua compreensão da religiosidade de sua avó, morta durante a travessia. Essas passagens transculturais - da cultura ancestral africana à cultura dos brancos a quem serviu como escrava por longos anos, fazem com que revalorize sua origem, embora reconheça que ela já não pertence à cultura africana nem à cultura dos brancos. Os processos transculturais deram origem a algo novo: à formação de uma cultura negra nas Américas que se completa com a criação poética do filho, Luís Gama, o primeiro poeta afro-brasileiro, que será o primeiro a assumir o eu-enunciador que se quer negro no âmbito da literatura brasileira e o primeiro a rir do branco em Trovas burlescas:

Se negro sou ou sou bode Pouco importa o que isto pode? Bodes há de toda casta, Pois que a espécie é muito vasta (1904, p. 112)

Com a leitura da obra Becos da memória (2018)EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 3a. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2018., de Conceição Evaristo, finalizaremos essa breve rememoração de narrativas brasileiras da contemporaneidade.

Becos da memória teve sua primeira edição (Mazza editores) em 2006 e a segunda em 2013 (editora Mulheres). Em 2016, a autora já havia se tornado bem conhecida como poeta e contista e então Becos da memória é traduzido ao francês, sendo editado pela Anacanona. Em 2018, surge a terceira edição em português pela Pallas. O livro, contudo, é bem mais antigo: havia sido previsto para ser lançado em 1988, na passagem do centenário da Abolição da Escravatura, pela Fundação Palmares, mas terminou não saindo por falta de verbas. Menciono esse périplo para evidenciar os apagamentos e as dificuldades de penetração da literatura afro-brasileira.

A obra, mesmo tendo sido escrita há mais de vinte anos, guarda sua atualidade: circunscrevendo o espaço de uma favela às vésperas de seus moradores serem desalojados para dar lugar a um grande projeto imobiliário. A memória da autora irá percorrer os becos da favela, mas sua imaginação irá levá-la muito além para chegar às origens de sua família nos tempos da escravidão. O livro é uma sucessão de rememorações que deixam de seguir uma cronologia. Trata-se de retratos de diferentes épocas, enfatizando um caminho de sofrimentos, privações e dores pelos quais passaram e continuam passando os negros no Brasil, como se a escravidão tivesse criado raízes e o sistema de exclusões permanecesse. O vai e vem entre a vida na favela e a vida na escravidão tem a finalidade mostrar que as injustiças continuam as mesmas.

Muitos dos personagens do tempo da escravidão e os habitantes atuais da favela são contadores de histórias. Essas histórias orais entram em circulação no espaço da favela, e a narradora agencia esses fios para tecer sua narrativa destacando personagens como Vó Rita, Tio Totó e Maria-Nova, a que gostava de ouvir histórias. Trata-se de uma seleção memorial guiada pelos afetos e o medo da perda iminente de seus barracos pela proximidade das retroescavadeiras.

Sendo os becos, ruas estreitas, curtas e às vezes sem saída, vozes de diferentes gerações são convocadas pelo trabalho da memória; essas vozes contribuem para iluminar a escuridão dos becos com suas lembranças doloridas, mas cheias de afeto e exemplos de solidariedade. Os relatos - assim como os becos - são breves, tortuosos e sem saída. Senzala e favela coincidindo: os que habitavam as senzalas e os que habitam as favelas têm praticamente as mesmas condições subalternas de vida. Tal paralelismo constitui-se na grande proposta do livro que evidencia situações análogas de desigualdade e de violência. O desmonte da favela, contudo, não implica o apagamento da voz de Maria-Nova que pretende voltar à escola em outro lugar, já que seu amor pelas palavras e pelas histórias irá impulsioná-la à escrita, assim como impulsionou a escritora Conceição Evaristo.

Conclusões

Je ne suis pas revenu pour revenir Je suis arrivé à ce qui commence.13 13 Não voltei por voltar/ Cheguei ao que está começando (Gaston Miron, 1994MIRON, Gaston. L´homme rapaillé. In: ____. L´homme rapaillé. Montréal: l´Hexagone, 1994, p. 15., p. 15)

Esses versos foram escritos pelo poeta quebequense Gaston Miron, em 1970, no período da Revolução Tranquila que deu início no Quebec a uma tomada de consciência identitária e o consequente surgimento da Literatura Quebequense que até então se denominava “Literatura de expressão francesa do Quebec”, denominação colonialista que via a produção literária do Quebec como “conexa e marginal” à Literatura Francesa. Podemos então afirmar que os versos de Gaston Miron inauguram o contemporâneo no Quebec com a percepção dos escritores de que estavam dando início a uma literatura em língua francesa que se queria independente da Literatura Francesa.

Na mesma medida, os modernistas brasileiros de 1922 estavam também chegando “ao que está começando”, isto é, a uma nova visão da poesia e da literatura dissociada das marcas do parnasianismo e do simbolismo que os precederam, passando a assumir a contribuição das diferentes culturas em presença no Brasil.

Podemos dizer também que a literatura brasileira no feminino, a partir da breve amostragem que estabelecemos acima, está chegando “à ce qui commence”, está descobrindo “o sentido do recomeço”, como escreveu Maximilien Laroche, antes citado, ou recomeçando desde o Fim, como quer Johan Faeber.

Vamos resumir, nas linhas que seguem, os marcadores desse “novo”, desse “recomeço” que caracteriza as “littératures de l´Après”, marcadores esses que podem ser observados na escritura do extremo contemporâneo:

- Renovação das antigas fórmulas, respeitosas de falsos moralismos; quebrando paradigmas e ultrapassando limites impostos às mulheres: passa-se da estabilidade que caracterizou o século XIX e princípios do século XX, para o dinâmico e o realcional;

- Produção de narrativas desconcertantes em relação às expectativas dos leitores, sem hesitar em criar desconforto nos leitores. A literatura do extremo contemporâneo perturba o leitor, seguindo de certa forma a proposta de Elena Ferrante: “Escrever é girar a faca na ferida, algo que pode causar muita dor”14 14 FERRANTE, Elena. Entrevista concedida ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 12/13 de Setembro de 2020, Caderno Doc, p. 15. . Escapam, assim, de significações pré-concebidas, criando formulações inéditas e inesperadas.

- Acerto de contas com os ancestrais, romances de filiação, retraçando a memória intergeracional. Todas as autoras analisadas estabelecem de um modo ou de outro um acerto de contas com a mãe ou outro ancestral, pois que escrevem a partir de uma falta, como pais ausentes, transmissões imperfeitas, mal entendidos intergeracionais. A escrita corresponderá ao preenchimento desses vazios, podendo tender a estabelecer um continuum familiar, enaltecendo a herança que lhes foi transmitida, como nos romances de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, ou ao contrário, tornar-se lugar de enfrentamento com os antepassados, podendo resultar em rememoração de memórias feridas e em rupturas, como nas obras de Aline Bei, Eliane Brum, Martha BatalhaBATALHA, Martha. Inventário das coisas ausentes. São Paulo: Companhia das Letras , 2014. e Carola Saavedra.

- Lugar de fala cedido aos ausentes para o inventário das invisibilidades. Representificação das ausências é o denominador comum em todas as narrativas, já que o grande móvel dos romances é o de dar vida ao que foi por longo tempo omitido e silenciado. As autoras sabem que só relembrando ou representificando no presente as omissões do passado em relação às mulheres, poderá estabelecer-se o que Fernando Catroga chama de “diálogo com os signos da ausência” que corresponde a uma “representificação, mediante a qual, ao darem futuros ao passado, os vivos estão a afiançar um futuro para si próprios” (CATROGA, 2009CATROGA, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo. Lisboa: Almedina 2009. , p. 7).

- Perspectiva transcultural é de novo um marcador preponderante em todas as narrativas mencionadas, pois todas partem da implosão de binarismos (civilização/barbárie, masculino/feminino, presença/ausência) para chegar não somente à construção do novo, como à aceitação do diverso e da relação. No plano da transculturalidade, passamos a encarar o entrelaçamento das identidades culturais “que se definem e se transformam em ressonância umas com as outras”, ou seja, a concepção de cultura na perspectiva transcultural é “fundamentalmente relacional e transformativa” (BENESSAIEH, 2012BENESSAIEH, Afef. Après Bouchard-Taylor: multiculturalisme, interculturalisme et transculturalisme au Québec. In: FONTILLE, B.; IMBERT, P (dir.). Trasns multi, interculturalité/trans, multi, interdisciplinarité. Québec: Presses de l´Université Laval, 2012, p. 81-91. , p. 85). A perspectiva transcultural não toma a síntese como horizonte; “é do dissentimento que se faz a invenção e podem ser geradas as novas ideias (GONDAR, 2005GONDAR, Jô. Quatro proposições sobre memória social. In: GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera (orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, p. 11-26., p.14).

- Representabilidade e seus limites. É a própria escritora Eliane Brum quem levanta a questão já discutida por muitos autores sobre a impossibilidade da representação na “era das catástrofes”. Na passagem, já citada acima, Eliane Brum se vê diante do inenarrável, da impossibilidade de a literatura dar conta da brutalidade de certos acontecimentos como o assassinato da própria mãe:

Descubro que escrevi sobre a impossibilidade da literatura. O fracasso previamente assumido ao tentar transformar vida em palavra. O que mais importa é o que não pode ser escrito, o que grita sem voz e sem corpo entre as linhas. O para sempre indizível. É melhor assim, que seja assim. (BRUM, 2018BRUM, Eliane. Uma duas. 2a. ed. Porto Alegre: Arquipélago, 2018. , p. 189)

A autora salienta o drama para o escritor de dizer o indizível, de narrar o que não pode ser narrado. Essa questão aqui colocada com tanta ênfase a respeito do fracasso da representabilidade na literatura, é também levantada por Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva em Catástrofe e representação (2000NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. ), em que tratam da dificuldade da representação da Shoah a qual se faz cada vez mais aguda “face a um acontecido que não se deixa capturar pelo pensamento, nem pela palavra, nem pela fala” (2000, p. 186).

A psicanalista Jô Gondar, professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), também argumenta sobre os limites da representação ao escrever sobre memória social que é analisada como um processo

do qual as representações são apenas uma parte: aquela que se cristalizou e se legitimou em uma coletividade. A memória, contudo, é bem mais do que um conjunto de representações: ela se exerce também em uma esfera irrepresentável: modos de sentir, modos de querer, pequenos gestos, práticas de si, ações políticas inovadoras (GONDAR, 2005GONDAR, Jô. Quatro proposições sobre memória social. In: GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera (orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, p. 11-26., p. 24).

Nessa medida, embora tenhamos destacado nesse texto a importância da literatura do extremo contemporâneo de estabelecer o inventário das ausências ocorridas ao longo dos séculos na vivência de mulheres de diferentes etnias, de diferentes classes sociais, de mulheres vítimas de atrocidades como o estupro e submetidas à escravidão, podemos conceber esses processos de representação como sendo os que trazem à tona apenas uma ponta do iceberg...

Referências

  • BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  • BATALHA, Martha. Inventário das coisas ausentes São Paulo: Companhia das Letras , 2014.
  • BEI, Aline. O peso do pássaro morto São Paulo: Editora Nós, 2017.
  • BENESSAIEH, Afef (dir.). Transcultural Americas; Amériques transculturelles Ottawa: Presses de l´Université d´Ottawa, 2010.
  • BENESSAIEH, Afef. Après Bouchard-Taylor: multiculturalisme, interculturalisme et transculturalisme au Québec. In: FONTILLE, B.; IMBERT, P (dir.). Trasns multi, interculturalité/trans, multi, interdisciplinarité Québec: Presses de l´Université Laval, 2012, p. 81-91.
  • BERND, Zilá. A Persistência da memória; romances da anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. Porto Alegre: Besouro Box, 2018.
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  • ERNAUX, Annie. L´écriture comme un couteau Paris: Gallimard, 2003.
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  • GONDAR, Jô. Quatro proposições sobre memória social. In: GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera (orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, p. 11-26.
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  • LAROCHE, Maximilien. Le miracle et la métamorphose Montréal: Éditions du Jour, 1970.
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  • PETERSON, Michel; BERND, Zilá (orgs.). Confluences littéraires: Brésil-Québec les bases d´une comparaison . Montréal: Balzac , 1992.
  • SAAVEDRA, Carola. Com armas sonolentas São Paulo: Companhia das Letras , 2018.
  • VIART, Dominique. La littérature française au présent 2a. ed. Paris: Bordas, 2008.
  • 1
    ...escrever na virada dos anos 1980, é chegar depois da Literatura: não é mais unicamente começar quando tudo terminou, mas recomeçar do Fim.
  • 2
    recomeçar, de ultrapassar as derrotas e de voltar ao mundo
  • 3
    JUNGUES, M.; COSTA, Andrioli. Superar, aniquilar e conservar - A filosofia da história de Hegel. Revista do Instituto Humanitas, Unisinos, edição 430, outubro de 2013. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/5229-jose-pinheiro-pertille-1>.
  • 4
    Recomeçar do Fim.
  • 5
    O tempo do depois, seria um tempo de fundo, como se fala de plano de fundo e remeteria ao que está abaixo, à temporalidade que não cessa de deslizar, de cair.
  • 6
    Sobre um enigma insolúvel cuja chave foi perdida para sempre.
  • 7
    Um homem vindo de além mar e que teve que romper com sua civilização original. Um homem que teve, pois, que recomeçar sua história e que em suas obras de imaginação, suas obras literárias sobretudo, se esforça em descobrir o sentido do recomeço.
  • 8
    É em relação a esse processo complexo e diferenciado que os estudos comparados podem desenvolver-se. Todo comparatista sempre soube que a comparação exigia sempre um tertium comparationis. Frequentemente esse terceiro termo ficava implícito, o que permitiu valorizar um dos dois termos da comparação, fazendo assim pesar a balança em favor dos modelos hegemônicos. Tornando explícito o terceiro termo da comparação, escapa-se desse preconceito. Adotando o desenvolvimento da Literatura e das literaturas na sua relação com a globalização, nos asseguramos não somente do trabalho comparatista mas, como destaquei anteriormente, de exercer o trabalho de resistência também, pois os laços que tecemos exigem que deixemos escapar alguns fios dessa malha que é a globalização, opondo a ela uma outra visão da ordem mundial.
  • 9
    Esse livro, publicado em 1992, inaugurou um fértil caminho de mão dupla que nos últimos 30 anos vem intensificando um comparatismo literário inter e transamericano, tendo dado origem a um GT da ANPOLL, intitulado Relações literárias interamericanas.
  • 10
    Romance água com açúcar.
  • 11
    Para o conceito de representificação, ver CATROGA, Fernando. Memória, História e historiografia. 2a. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2018CATROGA, Fernando . Memória, História e historiografia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2018..
  • 12
    Ver a respeito BERNDBERND, Zilá. O extremo contemporâneo na Literatura Brasileira. Alea; estudos neolatinos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 253-257, 2019. , Zilá (Org.). Antologia de poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2011.
  • 13
    Não voltei por voltar/ Cheguei ao que está começando
  • 14
    FERRANTE, Elena. Entrevista concedida ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 12/13 de Setembro de 2020, Caderno Doc, p. 15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2020
  • Aceito
    21 Out 2020
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