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A linguística aplicada alinhada ao materialismo histórico e dialético: Uma reflexão (inflexão?) sobre as bases epistemológicas assumidas pelo campo

Applied Linguistics Aligned to Historical and Dialectial Materialism: A Reflection (Inflection?) on the Epistemological Bases Assumed by the Field

RESUMO:

Este artigo busca, a partir de uma breve retomada histórica do processo de constituição da Linguística Aplicada (LA) como campo autônomo, promover uma reflexão sobre as bases epistemológicas assumidas pela LA, compreendendo que tanto a constituição do campo quanto a definição de seu objeto prioritário de pesquisa se dão em um movimento de negação e aproximação a determinadas vertentes epistemológicas e que tal movimento, por seu caráter histórico, não ocorre livre de contradições. Nessa direção, a partir de uma discussão crítica dessa constituição histórica, buscamos problematizar que todo compromisso com o conhecimento da realidade – natural ou social – é movido por “visões sociais de mundo” (LÖWY, 1987), que podem ser pró-manutenção ou pró-transformação do status quo e, portanto, uma posição ética. Nosso convite é para a assunção de uma postura científica fundada na análise objetiva da prática social e, por isso, transformadora.

PALAVRAS-CHAVE:
Linguística Aplicada; Epistemologias; Materialismo Histórico e Dialético

ABSTRACT:

In this article, based on a brief historical review of the constitution of Applied Linguistics (AL) as an autonomous field, we aim at promoting a reflection on the epistemological bases assumed by AL, understanding that both the constitution of the field and the definition of its priority research object occur in a movement of negation and approximation to certain epistemological strands and that this movement, due to its historical character, does not occur free of contradictions. In this direction, from a critical discussion of this historical constitution, we bring the problematization that every commitment to knowledge of reality – natural or social – is driven by “social worldviews” (LÖWY, 1987) that can be pro-maintenance or pro- transformation of the status quo and, thus, can be an ethical position. Our invitation is for the assumption of a scientific stance grounded in the objective analysis of social practice and, therefore, transformative.

KEYWORDS:
Applied Linguistics; Epistemology; Transformation

1

Introdução

A Linguística Aplicada (LA) se constituiu como campo na tensão entre negação e positividade. Tal tensão tem como quadro referencial a Linguística Formal (LF) e sua posição epistemológica prevalentemente positivista. É nessa marcação que a LA como campo é fundada, ainda que, num momento muito inicial, sua existência estivesse condicionada à aplicação de teorias linguísticas produzidas pela LF ( MOITA LOPES, 2013MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.).

A mencionada marcação, cabe a ênfase, não se dá sob a lógica da incorporação, mas sim sob a lógica de ruptura da LA com a outra Linguística. Se não for por outras razões, a “[...] Linguística Aplicada (LA) é mais uma subárea do conhecimento, originalmente circunscrita e periférica, que ‘explodiu’ ao longo dos anos 90”, explosão que “[...] enfatiza a [imagem] da passagem de um estado de coisas para o outro, ou de uma certa ordem para outra, sempre sujeita a novas configurações” ( SIGNORINI; CAVALCANTI, 1998, p. 7SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. Introdução. In: . Linguística aplicada e transdisciplinaridade: questões e perspectivas, 1998. p. 7-18.). Essa passagem pode ser compreendida como a conversão da LA em “[...] uma área autônoma de investigação na medida em que se livrar [livrou] da hegemonia linguística [...]” ( WIDDOWSON, 1979, p. 235WIDDOWSON, H. G. The Partiality and Relevance of Linguistic Description. Studies in Second Language Acquisition, Cambridge, v. 1, p. 9-24, 1979.), o que significou, na história do campo, a suspensão da crença nas vantagens das teorias e descrições linguísticas para o ensino de línguas ( MOITA LOPES, 2013MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.).

Há que se ter claro, contudo, que a Linguística Aplicada se estabelece como campo autônomo num movimento contínuo de definição de seu objeto e, paralelamente, de seu estatuto inter/trans/multi/indisciplinar, o que para a natureza da configuração do campo é fundamental, especialmente porque a LF tendeu a produzir sua contribuição científica em aproximação direta a um determinado paradigma teórico, a exemplo do saussureano e do chomskiano ( RAJAGOPALAN, 2013RAJAGOPALAN, K. Sobre a dimensão ética das teorias linguísticas. In: Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2013. p. 49-56.), modo de operar confrontado centralmente pelo campo aplicado.

Isso posto, vale ter presente o percurso histórico depreensível da constituição da LA, fazendo-o em marcos, posicionados cronologicamente, mas que, mais do que um continuum de avanço no campo, evidenciam as contradições inerentes à configuração dele próprio, aos movimentos epistemológicos por ele assumidos e a uma certa posição do campo neste momento histórico. Refazemos de forma esquemática, então, tal percurso, organizando a retomada em quatro marcos ou viradas, como quer Moita Lopes (2013), a saber: (i) origem – ou a LA como aplicação da Linguística –; (ii) primeira virada – ou a aplicação da Linguística à LA –; (iii) segunda virada – ou a LA em contextos institucionais diferentes dos escolares –; e (iv) convite para o campo – ou a LA indisciplinar.

No que compete ao momento original, sintetizado por Moita Lopes ( 2013MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.) como a LA ainda submetida à aplicação da Linguística, trata-se do ponto em que, nessa relação de submissão ou de “braço”, subárea da LF, a LA inicia suas contribuições a partir das elaborações teóricas produzidas pela LF ou da Linguística como ciência ( MOITA LOPES, 2013MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.), assumindo a tarefa de aplicação dessas elaborações majoritariamente em duas frentes: (i) ensino e aprendizagem de línguas e (ii) tradução. A LF, nesse momento, subsumia-se ao compromisso com o estruturalismo, sobremaneira na “[...] publicação póstuma da obra de Saussure na década de 1910 [...]” ( RAJAGOPALAN, 2013, p. 39RAJAGOPALAN, K. Sobre a dimensão ética das teorias linguísticas. In: Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2013. p. 49-56.), tomando-a como ferramenta tanto para a descrição linguística quanto para o ensino de língua, ambos numa dimensão unidirecional ( MOITA LOPES, 2013MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.).

Em relação à primeira virada, o marco se estabelece pelo primeiro movimento decisivo da LA, no sentido de ruptura com a agenda aplicacionista e de constituição de sua especificidade: pedagogia do ensino de línguas ( MOITA LOPES, 2013MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.). Tal ruptura, assim, teve como característica o comprometimento radical com o que hoje reconhecemos como Educação Linguística ou Educação em Linguagem. À época, contudo, esse comprometimento significou uma restrição a contextos educacionais e apresentou uma tarefa imperativa, a qual se mantém, em maior ou menor medida, nos debates do campo até hoje e que pode ser resumida na necessidade de produção de teorias linguísticas próprias. É nesse momento que o campo passa a buscar uma definição mais precisa de seu objeto de investigação, o que é tomado sobretudo pela abertura mais significativa para outras disciplinas, marcando-se como interdisciplinar.

O terceiro marco na constituição da LA teve como aspecto principal a abertura do campo para outros contextos que não os educacionais tipicamente institucionais, escolares e acadêmicos, mas ainda com prevalência dos contextos institucionais e sem descurar do compromisso com o ensino e a aprendizagem de línguas – com destaque para a língua materna –, envolvendo com mais fôlego discussões de currículo para a Educação Linguística e estudos sobre os usos sociais da escrita. Acompanhando essa (re)definição, a LA elege um conjunto de teorias prioritárias para o campo, as quais têm como estofo comum o caráter sociocultural nas discussões sobre língua. Ganham destaque nessa eleição, portanto, os Estudos do Letramento, vinculados aos Estudos Culturais e originários da Antropologia; as proposições teóricas de Bakhtin e seu Círculo, especialmente a teoria de Gêneros do Discurso, proveniente da Filosofia Linguística; e as Teorias Histórico-Cultural e da Atividade, ambas decorrentes das discussões sobre desenvolvimento humano, produzidas pela Psicologia Social. Essa eleição, convém enfatizar, contribui, em boa medida, para a concretização da natureza interdisciplinar que caracteriza o campo. É importante destacar, ainda, a importância desse momento na confirmação de um objeto mais definido para o campo, o que tem relação com a compreensão comum a essas teorias, ainda que não apenas a elas, de que a língua é constitutiva da vida dos indivíduos, da atividade humana. É em torno destas tentativas de definição que o contorno a esse objeto pode ser apreendido: “[...] a preocupação com problemas de uso da linguagem situados na práxis humana” ( MOITA LOPES, 1996, p. 03MOITA LOPES, L. P. da. Contextos institucionais em Linguística Aplicada: novos rumos. Intercâmbio, São Paulo, v. 5, p. 3-14, 1996.) e “[...] área centrada na resolução de problemas da prática de uso da linguagem dentro e fora da sala de aula [...]” ( MOITA LOPES, 2013, p. 18MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.).

O quarto e último marco, por sua vez, expressa um convite à migração do campo ao que Moita Lopes ( 2013MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.) denomina de LA “indisciplinar” ou LA “da desaprendizagem”. Tal migração, apresentada como convite, é aceita pelo campo em boa medida, como discutiremos nas seções à frente, significando uma inclinação dele à pós-modernidade1 e, com isso, a assunção de um paradigma discursivo, com a secundarização (quiçá abandono) das metanarrativas e, com isso, também, da busca pela verdade e da possibilidade de conhecer a totalidade do real. Ao assumir-se como “nômade”, “movediça”, “mestiça”, termos que parecem consensuados no campo para a definição da LA, a própria agenda assumida quando da definição de seu objeto é revista: do caráter “solucionista”, implicado no termo “resolução de problemas” (apresentado no parágrafo imediatamente anterior), o campo passaria a ocupar-se com alcançar “[...] um modo de criar inteligibilidades sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel central” ( MOITA LOPES, 2006, p. 14MOITA LOPES, L. P. da. Uma Linguística Aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: . Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 13-44.). Tal ocupação permitiria a sublimação das disciplinas em correlação e, com isso, a assunção da LA como um espaço aberto, multicentral. No limite, essa marcação facultaria certo abandono ao apreço por coerência teórico- epistemológica e situaria a demarcação da especificidade do campo pela definição do objeto, que supõe o compartilhamento com uma abordagem epistemológica e que permitiria a recorrência a outros campos de conhecimento, mantendo-se, assim, uma coerência teórico-epistemológica mínima.

Trata-se esse último marco, ao que nos parece, de um movimento feito pelo campo, o que não invalida problematizações e inflexões ou recuos. Isso porque a cisão promovida pela LA com a LF não é ponto de chegada; é, antes, ponto de partida, na medida em que se inaugura aí um movimento histórico de constituição do campo, que em muito se relaciona com superação/ruptura de/com paradigmas epistemológicos, o que não se dá sem contradições. Identificá-las e reconhecer as implicações para o campo é, pois, o objetivo, em caráter de primeiras aproximações, deste trabalho. Para isso, este artigo é organizado em três seções, além das considerações finais.

Na primeira delas, a partir da categorização epistemológica clássica no campo da Filosofia, especialmente da Filosofia da Educação, realizada por Löwy ( 1985LÖWY, M. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. 20. ed. São Paulo: Cortez, 1985., 1987LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o barão de Müchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1987.) e Tonet ( 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.), discute-se a relação entre problema do conhecimento e definição do objeto assumido pelo campo da LA, para refletir sobre sua própria definição como campo e sobre o reposicionamento epistemológico que caracteriza tal momento.

Na segunda das seções, tomando a dialética entre trabalho e linguagem, a partir das teorizações em Marx ( 2007MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.) e Engels (1975ENGELS, F. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: ANTUNES, R. (org.). A Dialética do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004. p. 11-28.), além das elaborações da psicologia do desenvolvimento de Leontiev ( 2004LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004.), inventa-se uma elaboração comprometida com a questão “a linguagem é prática social ou as práticas sociais é que demandam a linguagem?”.

Já na última seção, retoma-se e aprofunda-se o marco histórico que caracteriza o surgimento da LA, com ênfase na relação do campo com disciplinas e escopos teóricos. Nesse empreendimento, busca-se depreender elementos que permitam posicionar a LA contemporaneamente, o que implica o reconhecimento de um processo que vai da eleição de teorias prioritárias provenientes de outras disciplinas à in(ter)disciplinaridade.

Por fim, em seção produzida à guisa de considerações finais, apresenta-se uma problematização sobre a inalienável dimensão política envolvida em todo processo histórico que correlacione ciência a qualquer objeto de investigação, no caso da LA, os “problemas linguísticos socialmente relevantes” ( MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. da. Uma Linguística Aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: . Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 13-44.). Isso porque todo compromisso com o conhecimento da realidade, seja ela natural ou social, é sempre movido por “visões sociais de mundo” ( LÖWY, 1987LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o barão de Müchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1987.). Nesse sentido, a eleição ou não de uma base epistemológica em determinado campo seria sempre uma decisão pró-manutenção ou pró-transformação do estado de coisas e, por consequência, uma posição ética.

2

Problema do conhecimento e delimitação do objeto: a definição da LA como campo e o reposicionamento epistemológico

A retomada histórica revela o percurso de constituição do campo, incluindo a definição de seu objeto e de sua natureza interdisciplinar, mas também, e talvez especialmente, mostra um movimento de negação e de aproximação a determinadas correntes epistemológicas. Como já destacado neste artigo, trata-se de um processo que marca decisivamente a história da LA e que não é promovido sem contradições, as quais são próprias dos processos históricos em si mesmos.

Nesse sentido, vale destacar que um dos pontos em que se pode afirmar haver consenso na LA é a negação da episteme positivista, a partir, dentre outras questões, da compreensão de suas fragilidades para dar conta do objeto que vai sendo (re)definido para o campo. Tal negação se dá, sobremaneira, pela centralidade que a ruptura com a LF – e seu alinhamento majoritário à corrente epistemológica do positivismo – representa para o campo, tanto quanto pela identificação da fragilidade dessa episteme no tratamento de qualquer objeto que se proponha a tomar nas relações sociais, na práxis humana. Isso porque a defesa da necessidade de considerar o objeto do conhecimento como asséptico das múltiplas determinações sociais e das contradições históricas, própria do positivismo, é, na origem, pelo menos numa mirada inicial, incompatível com o objeto da LA, os já mencionados “problemas linguísticos socialmente relevantes” ( MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. da. Uma Linguística Aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: . Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 13-44.). Em tese, assim, a LA se contraporia a uma concepção de ciência a-histórica ou, no limite, anti-histórica como a positivista.

Essa marcação apresenta para o campo aplicado a necessidade de alinhar-se a posições epistemológicas alternativas à positivista, que foi, em alguma medida, uma necessidade inaugural para os estudos linguísticos. Tal alinhamento tem como princípio elementar a tentativa de superação das “fragilidades” identificadas naquela base epistemológica, abrindo-se para matrizes “estranhas” até então para o tratamento de objetos afetos à língua(gem). Nesse processo, que supostamente estaria comprometido com a identificação de formas pelas “[...] quais o real se torna visível ao homem no mundo capitalista [...]” ( LÖWY, 2015LÖWY, M. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. 20. ed. São Paulo: Cortez, 1985., p. 13), como se defende acerca da função social da ciência, destacam-se como epistemes com maior aderência pelo campo a corrente historicista, especialmente nas manifestações fenomênicas e pragmatistas, e a abordagem pós-moderna, concebida de certa forma como uma exacerbação das categorias nodais do historicismo ( TONET, 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.).

Apresenta-se ainda como possibilidade, se considerado esse movimento de superação da corrente positivista como agenda para o campo, a abordagem, ou o padrão – como defende Tonet ( 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.) à luz da distinção radical dessa episteme em relação às demais –, materialista, histórico e dialético – marxista, portanto. O marxismo, ainda que possa ser tomado como “alternativo” à concepção positivista de ciência, como padrão epistemológico, figura, em linhas gerais, de modo bastante periférico não somente no campo aplicado em foco, mas na academia de forma geral.

Uma tentativa de explicação para isso aparece de forma contundente nos textos introdutórios de uma importante tradução do Livro I d’ O capital: crítica da economia política ( 2017ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.), especificamente no texto de autoria de Louis Althusser, intitulado “Advertência aos leitores do livro I d’O capital”. Antes de apresentarmos a síntese das ideias desse autor, vale a ressalva de que nossa aproximação a ele está limitada à argumentação inventada no texto em causa. Nossa concordância com esse autor em relação a tal argumentação não nos exime de registrar nosso dissenso no que compete ao arcabouço teórico desenvolvido pelo intelectual em tela, o qual apresenta, em nossa análise, uma versão do que Mascaro e Morfino ( 2020MASCARO, A. L.; MORFINO, V. Althusser e o Materialismo Aleatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.) denominam de materialismo aleatório. Nossa discordância mais significativa, contudo, está localizada no tratamento destinado pelo autor e seu grupo às questões afetas à Educação em contextos formais.

Muito brevemente, parece-nos fundamental, em razão da ênfase aposta às ações em favor da Educação Linguística depreensíveis no âmbito deste artigo, mencionar nesse sentido o conceito althusseriano de Aparelho Ideológico do Estado, conceito que, em razão de sua posição crítico-reprodutivista ( SAVIANI, 2012SAVIANI, D. Escola e democracia. 42. ed. Campinas: Autores Associados, 2012.), acaba por fortalecer uma visão de que as instituições formais de ensino, como as escolares e as universitárias, estariam limitadas, já na origem, a referendar as bases da ideologia dominante, incidindo na constituição dos indivíduos apenas no limite da formação da força de trabalho e da inculcação da visão social de mundo conservadora, a burguesa, portanto. Cabe um esclarecimento: não discordamos de que as instituições, porque submetidas ao sistema capitalista, podem, ao assumir o estado de coisas como naturalístico, limitar-se a ações na direção de sua manutenção. É, entretanto, necessário e possível compreender que, para qualquer movimento histórico em direção da transformação desse mesmo sistema, a formação humana é elemento fundamental, ou mesmo conditio sine qua non, para a constituição do sujeito coletivo ( TONET, 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.), para o que escolas e universidades podem ser importantes instituições, ainda que os motivos que levem os indivíduos a esses espaços possam ser estranhos a essa agenda.

Retomando as ideias de Althusser ( 2017, p. 39-40ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.) no mencionado texto, e com as quais concordamos, destacamos a defesa do autor de que “[...] os especialistas que trabalham no campo das ‘ciências humanas’ e (no campo menor) das ciências sociais [...]” – conjunto no qual ele posiciona economistas, historiadores, sociólogos, psicossociólogos, psicólogos, historiadores da arte e da literatura, da religião, além de linguistas e psicanalistas –

[...] devem saber que não podem produzir conhecimentos verdadeiramente científicos em suas especialidades sem reconhecer que a teoria fundada por Marx [que tomamos mais amplamente no âmbito deste artigo como padrão científico, em acordo com Tonet ( 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.)] lhes é indispensável. ( ALTHUSSER, 2017, p. 39-40ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.)

Nesses termos, ele assim assevera:

Essa é a teoria que, a princípio, ‘abre’ ao conhecimento científico o ‘continente’ em que eles trabalham, em que até agora produziram apenas uns poucos conhecimentos iniciais (a linguística, a psicanálise), uns poucos elementos ou rudimentos de conhecimento (a história, a sociologia e eventualmente a economia) ou ilusões puras e simples que são abusivamente chamadas de conhecimentos. ( ALTHUSSER, 2017, p. 40ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.)

Segundo a defesa desse mesmo autor, seria um

[...] paradoxo que especialistas intelectuais altamente ‘cultos’ não tenham compreendido um livro que contém uma teoria de que necessitam suas ‘disciplinas’ e que, por outro lado, esse mesmo livro tenha sido compreendido, apesar de suas grandes dificuldades, pelos militantes do movimento operário. ( ALTHUSSER, 2017, p. 40ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.)

O que poderia ser explicado – eis a explicação presente nos textos iniciais dessa tradução e mencionada anteriormente – pela submissão (ou identificação) desses grupos – movimento operário e movimento “de intelectuais” – à posição explorada dos proletários ou à ideologia dominante – a exploradora, a da classe dominante. Nesses termos, importa um destaque: ainda que, conforme aposta o autor, os intelectuais se subsumam ou se identifiquem à ideologia da classe dominante, eles não são parte dessa classe e, como tal, tomando a divisão da sociedade em classes como ponto indiscutível do modo de sociabilidade capitalista, são explorados, vivem em condição análoga às do trabalhador manual, o operário, portanto.

Se tomarmos a aposta de Althusser ( 2017, p. 41ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.) como possível explicação para o tratamento periférico que o padrão científico marxista ganha na academia e, por extensão, no campo da LA, é preciso confrontarmo-nos com dois desdobramentos dela: (i) “[...] uma dificuldade ideológica – logo, em última instância, política” e (ii) uma “[...] dificuldade, que não tem nada a ver com a primeira [...], dificuldade teórica”. Ainda que de forma bastante introdutória e complementar ao conteúdo antecipado no parágrafo anterior, exploraremos, respeitados os limites de um trabalho como este, esses desdobramentos, com ênfase no primeiro deles, que aponta para a dificuldade ideológica/política que enfrentariam os intelectuais.

Iniciando pelo que o autor categoriza como dificuldade teórica, é apresentada uma divisão entre os grupos de leitores d’ O Capital: os que têm o hábito do pensamento teórico, “os verdadeiros eruditos” ( ALTHUSSER, 2017ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.), que, supostamente, não teriam dificuldade para ler a obra, e aqueles que não estão habituados com a leitura de obras teóricas, “[...] os trabalhadores e muitos intelectuais que, mesmo que tenham ‘cultura’, não têm cultura teórica [...]” ( ALTHUSSER, 2017, p. 41ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.), os quais deveriam enfrentar sobejas dificuldades na leitura desse livro, “de teoria pura” ( ALTHUSSER, 2017ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.). Afora essa categorização apresentada, o autor destaca determinado desvio ao lançar luz sobre o fato de que, ao que parece, “[...] mesmo indivíduos sem prática com textos teóricos (como os operários) experimentaram menos dificuldades diante d’ O capital do que indivíduos habituados à prática da teoria pura (como os eruditos e pseudoeruditos muito ‘cultos’)” ( ALTHUSSER, 2017, p. 41ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.), o que leva à outra dificuldade pontuada pelo autor, a dificuldade ideológica/política.

Nesse sentido, cabe dar relevo a um ponto, a saber: assumir a episteme marxista, ao contrário da posição assumida pelas demais correntes/abordagens epistemológicas, demanda assumir a transformação do estado de coisas como possibilidade e, por consequência, que as atividades principais desenvolvidas por pesquisadores, assim como a de professores, se relacionam diretamente com esse ideal de transformação. Ou por outra, considerar o modo de organização social vigente, premido pelo capital, como não natural – como resultado da ação humana –, significa assumir que esse mesmo modo organizativo pode ser transformado também pela práxis humana.

Isso, por sua vez, implica conceber que as atividades humanas, pelo seu potencial formativo ( LÉNINE, 1975LÉNINE, V. I. Karl Marx e o desenvolvimento histórico do marxismo: cinco escritos fundamentais de V. I. Lénine acerca de Marx e do Marxismo. Lisboa: Edições Avante!, 1975.), têm papel fundamental na produção de coletivos que, ao se identificarem no interior das contradições sociais, as quais são invisíveis no mais das vezes na superfície fenomênica/dialógica estrita, mas depreensíveis do/no movimento histórico, poderão converter-se em “agentes da transformação social” – como defende um conhecido mantra pedagógico. Isso posto, significa dizer que a atividade de pesquisadores tem relação direta com a produção de conhecimentos – ou de rudimentos deles, como defende Althusser – que serviriam sempre a objetivos ideológicos, e portanto políticos, bem claros, porque movidos por “visões sociais de mundo” radicalmente opostas ( LÖWY, 1985LÖWY, M. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. 20. ed. São Paulo: Cortez, 1985., 1987LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o barão de Müchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1987.; TONET, 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.), quais sejam: (i) conservação do estado de coisas, quando submetido à ou escamoteando a ideologia dominante, por não superar o limite de constatação a-histórica, anti-histórica ou historicizada no sentido estrito2, impossibilitando com isso que o conhecimento produzido contribua para ou converta-se em elemento para a problematização da realidade vigente; ou (ii) transformação do estado de coisas, na medida em que os conhecimentos traduzidos teoricamente carregariam em si potência de problematização e de reflexões/inflexões críticas sobre a sociabilidade capitalista.

Eis a questão axial: a Ciência, assim como a Educação, são fenômenos humanos que transcendem as instituições formais, academia e escola, mas, no sistema capitalista, essas atividades próprias da condição humana são absorvidas por instâncias sociais que tendem, seguindo a máxima marxiana de que o capitalismo a tudo corrompe, a ser reduzidas a ações conservadoras desse mesmo sistema. É necessário um compromisso ético muito claro e um movimento intenso e monitorado de superação da dimensão explicativa e compreensiva da ciência num sentido estrito e pretensamente neutro para que haja alguma possibilidade de contribuição da agenda transformadora que destacamos.

Nesse sentido, retomando a posição contundente de Althusser ( 2017, p. 40ALTHUSSER, L. Advertência aos leitores do Livro I d’O Capital. In: MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 39-58.), a submissão de intelectuais do campo das Ciências Humanas, dentre os quais, os estudiosos da linguagem, incluindo os linguistas aplicados, à ideologia dominante, num movimento conservador, tal qual discutido até aqui, se limitaria a intervir diretamente “[...] em sua prática ‘científica’ para falsear seu objeto, sua teoria e seus métodos”. Essa posição converge com a defesa de Rajagopalan ( 2013, p. 55RAJAGOPALAN, K. Sobre a dimensão ética das teorias linguísticas. In: Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2013. p. 49-56.), reconhecido linguista indiano, radicado brasileiro, que, ao retomar as três correntes epistemológicas prevalecentes nos estudos da linguagem – racionalismo, pragmatismo e marxismo –, defende que o marxismo seria a “[...] única entre as três correntes que nos permite pensar a questão do compromisso ético de uma teoria linguística qualquer”.

Cabe nesse ponto a retomada de uma ideia já defendida neste trabalho, a partir principalmente de Löwy ( 1985LÖWY, M. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. 20. ed. São Paulo: Cortez, 1985., 1987LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o barão de Müchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1987.) e Tonet ( 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.), a de que a posição conservadora seria também uma posição ética, com o que, no seguimento de sua argumentação, Rajagopalan ( 2013, p. 56RAJAGOPALAN, K. Sobre a dimensão ética das teorias linguísticas. In: Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2013. p. 49-56., grifo do autor) expressa concordância ao afirmar que:

Nossa hipótese prevê que todas as teorias sobre a linguagem necessariamente contêm marcas de determinado posicionamento ideológico ou outro por parte de quem as constrói e, por conseguinte, terão necessariamente implicações éticas. [...] a escolha não estaria, em momento algum, entre uma teoria eticamente dimensionada e outra eticamente neutra e descompromissada; estaria sempre entre teorias, todas elas com claras implicações éticas. Em outras palavras, em nenhum momento estaríamos pensando a linguagem em termos ético-ideologicamente neutros.

Tomar essa ideia como legítima, o que no campo da filosofia parece fora de contestação, impõe um desafio para os estudos voltados à língua(gem) de forma geral, como evidencia Rajagopalan ( 2013RAJAGOPALAN, K. Sobre a dimensão ética das teorias linguísticas. In: Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2013. p. 49-56.), mas principalmente para o campo da LA. Isso porque a história desse campo é comprometida com a superação das fragilidades identificadas na episteme positivista e na assunção de um objeto de investigação que já é concebido em seu enraizamento à práxis humana. Trata- se, assim, de um problema importante que merece, a nosso ver, ser retomado e submetido à reflexão crítica, inflexão e, talvez, atualização, sob pena de estarmos e nos mantermos transitando sobre o mesmo eixo que buscamos superar, numa posição conservadora de ciência que, por consequência, contribui para a manutenção da ordem social vigente.

Para isso, quer parecer-nos crucial a retomada de dois elementos fundamentais na constituição da LA como campo autônomo: a (re)definição de seu objeto prioritário de investigação e os alinhamentos epistemológicos que realiza. O primeiro desses elementos será apresentado e problematizado na seção seguinte, enquanto o segundo deles será abordado na quarta seção deste artigo.

3

A relação entre trabalho e linguagem: a linguagem é prática social ou as práticas sociais é que demandam a linguagem?

Já vimos, no percurso levado a termo neste artigo, que a história da constituição da Linguística Aplicada enquanto campo autônomo é também, em larga medida, a história da definição e, por que não, da redefinição contínua de seu objeto. Nesse sentido, culmina, após a compreensão e o imbricamento a teorias que entendem “[...] a linguagem como instrumento da construção do conhecimento e da vida social” ( MOITA LOPES, 2013, p. 18MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.), em um campo que se assume como um “[...] modo de criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem papel central” ( MOITA LOPES, 2013, p. 19MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.). Como tal, assume como seu objeto de investigação prioritário os “problemas linguísticos socialmente relevantes” ( MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. da. Uma Linguística Aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: . Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 13-44.).

A eleição de tal objeto como prioritário para o campo tem implicações de ordem epistemológica bastante significativas, uma vez que, como sabemos, tal escolha não se dá de modo descompromissado com fundamentos teóricos e filosóficos, justamente porque, ao apostar em um “hibridismo teórico metodológico” ( FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, B. F. Linguística Aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 45-65.), a fim de explicar os fenômenos com o auxílio de saberes de outros domínios que não os da linguagem propriamente ditos, a Linguística Aplicada, como campo autônomo, assume não “[...] adotar ou construir teorias sem considerar as vozes dos que vivem as práticas sociais” ( CELANI, 2016, p. 546CELANI, M. A. A. Um desafio na Linguística Aplicada contemporânea: a construção de saberes locais. D.E.L.T.A, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 543-555, 2016.). Essa marcação da posição dos sujeitos como aqueles que vivem as práticas sociais assinala, no limite das filiações epistemológicas adotadas pela LA assumida como campo inter/trans/muldisciplinar ( MOITA LOPES, 2013MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.), tais práticas como situadas e, em contornos mais alinhados ao paradigma pós-moderno, ultrassituadas.

Essa natureza situada das interações, admitida de modo bastante consensual no campo da Linguística Aplicada, refere-se não só ao caráter histórico das relações sociais, mas sobretudo ao assentamento no pragmatismo dos indivíduos em uma sociedade que – cindida em classes – tem como sua faceta mais aguda a desigualdade no acesso tanto ao conhecimento quanto, em boa medida, às condições objetivas de sobrevivência biológica, como moradia e alimentação, por exemplo. Tomar, então, os “problemas linguísticos socialmente relevantes” como objeto prioritário da LA ao que parece pode contribuir para escamotear, dadas as contradições impostas ao/pelo campo, as mazelas gestadas e mantidas pela sociabilidade vigente, a capitalista, se não por outros motivos, mas porque a própria prática social consensuada no campo da LA está em aproximação à inscrição pragmática dos sujeitos, o que pode significar, ao se assumir uma prática social restrita aos sujeitos empíricos ( SAVIANI, 2012SAVIANI, D. Escola e democracia. 42. ed. Campinas: Autores Associados, 2012.), circunscrever tais indivíduos a essa realidade que, como já mencionado, é a realidade do modo de produção capitalista, por isso desigual e excludente.

Como abordaremos mais profundamente na quarta seção deste artigo, a prática social tomada a partir de alinhamentos a uma epistemologia historicista de base fenomenológica ou, mais recentemente, em uma exacerbação das categorias do historicismo, na vertente pós-moderna, é parcial e limitada, pois o ponto de vista da subjetividade – visto como caminho único e natural4 – não admite a realidade social como uma totalidade, visto que a razão fenomênica não apreende o mundo como uma síntese de essência e aparência ( TONET, 2005TONET, I. Modernidade, pós, modernidade e razão. Revista Temporalis, Brasília, ano V, jul./ dez. 2005.). Isso elimina, assim, a possibilidade de existência de um conhecimento universalmente verdadeiro, o que resulta na “afirmação da impossibilidade de transformar integralmente o mundo” ( TONET, 2013, p. 106TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.). Admitimos, pois, que os objetos do conhecimento são necessariamente parte indissociável da prática social e esta é entendida, a partir de uma perspectiva materialista, histórica e dialética, como critério de verdade para o conhecimento5 e como a responsável pelo desenvolvimento psicológico do ser humano, resultando na formação da imagem mental da realidade. Marx ( 1982MARX, K. Teses sobre Feuerbach. Lisboa: Edições Progresso, 1982. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm. Acesso em: 02.03.2021. Não paginado.
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) afirma, na oitava das Teses sobre Feuerbach, que “A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis”. Nesse sentido, a prática social deve ser entendida como um processo histórico e não como uma prática vinculada ao imediato do cotidiano de sujeitos situados em uma sociedade dividida em classes opostas.

Assim, no limite das contradições impostas pelo capital, “[...] a chamada pós- modernidade rejeita a existência de uma lógica própria da realidade social fundada em qualquer categoria, mas especialmente na categoria do trabalho” ( TONET, 2013, p. 106TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.). No entanto, entendemos que esta é uma categoria fundamental no que diz respeito não somente à discussão pretendida neste artigo, mas à própria realidade social, porque, como afirma Engels ( 2004, p. 11ENGELS, F. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: ANTUNES, R. (org.). A Dialética do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004. p. 11-28.), “o trabalho criou o próprio homem” e, desse modo, o trabalho “criou a própria consciência do homem” ( LEONTIEV, 2004, p. 76LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004.). É, pois, o trabalho uma atividade especificamente humana, uma vez que a hominização dos antepassados animais do homem se deve ao surgimento do trabalho. Nesse sentido, corroboramos Engels ( 2004, p. 16ENGELS, F. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: ANTUNES, R. (org.). A Dialética do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004. p. 11-28.): “[...] primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano”.

É pelo trabalho – atividade vital humana – que o homem produz as condições de existência que asseguram a sua sobrevivência e a de seus descendentes. Marx ( 2011, p. 211MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.) define o trabalho como

[...] um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza.

O trabalho dos seres humanos, assim, difere-se radicalmente do trabalho realizado pelos animais, já que para estes ele se dá como garantia de sobrevivência física da espécie, enquanto para aqueles é o que os reproduz como ser genérico, que possui uma atividade vital livre e consciente, dado que “[...] o animal é imediatamente como sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente” ( MARX, 2004, p. 84MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.).

Como destacam Marx e Engels ( 2007, p. 87MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.), “[...] pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida” – mais adiante, os autores assim complementam: “[...] ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material”. O trabalho humano tem, nesse sentido, dois elementos fundamentais, a saber: (i) a fabricação de instrumentos – os animais apenas utilizam elementos da natureza como instrumentos, não os produzem –, e (ii) a atividade coletiva mediada, portanto, social. Desse modo, a atividade de trabalho, mediada pela criação e pelo uso de instrumentos, promove a transformação tanto do mundo circundante quanto dos próprios seres humanos. É o trabalho e a linguagem, portanto, que possibilitam o salto ontológico, que é a passagem do psiquismo animal ao psiquismo humano.

Leontiev ( 2004, p. 76LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004.), sobre isso, afirma que “[...] a passagem à consciência é o início de uma etapa superior do desenvolvimento psíquico”, e tal passagem só é possível pela atividade prática humana, ou seja, pelo trabalho. O conhecimento do real só tem início quando o ser humano passa a estabelecer uma relação de outra qualidade com a natureza, pois só com a atividade do trabalho é que “[...] o conteúdo daquilo para que se orienta uma ação humana se desloca de sua fusão com as relações biológicas”; desse modo, “[...] a consciência do fim de uma ação de trabalho supõe o reflexo de objetos para os quais ela se orienta” ( LEONTIEV, 2004, p. 87LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004.). As condições deste reflexo se dão também pelo trabalho, pois este não apenas modifica a estrutura geral da atividade humana, mas o conteúdo dessa atividade se transforma, e essa transformação se dá com o desenvolvimento dos instrumentos, que são os meios do trabalho. É o instrumento – objeto socialmente elaborado – o “[...] portador da primeira verdadeira abstração consciente e racional da primeira generalização consciente e racional” ( LEONTIEV, 2004, p. 88LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004.). Pela atividade mediada, nesse sentido, o homem transforma a natureza e ao transformá- la também se transforma.

O conhecimento humano, fundado, então, na atividade instrumental do trabalho, passa de atividade intelectual instintiva a pensamento autêntico – processo consciente da realidade. É pela linguagem – consciência prática ( MARX, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.) – que se opera com a realidade circundante, razão pela qual invariavelmente consciência e linguagem são inseparáveis nos homens. Constituindo-se, pois, como instrumento psicológico de mediação simbólica ( VYGOTSKI, 2013VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas I: el significado histórico de la crisis de la psicología. Madrid: Machado Nuevo Aprendizaje, 2013.),

A linguagem não desempenha apenas o papel de meio de comunicação entre os homens, ela é também um meio, uma forma de consciência e de pensamento humano, não destacado ainda da produção material. Torna-se a forma e o suporte da generalização consciente da realidade. (LEONTIEV, 2004, p. 93-94)

Dessa forma, o trabalho como atividade vital humana é a gênese do psiquismo complexo, uma vez que foi “[...] a necessidade de melhor captar e dominar a realidade que determinou a estruturação do psiquismo como amálgama dos processos requeridos à formação da imagem subjetiva da realidade objetiva” ( MARTINS, 2013, p. 287MARTINS, L. M. Contribuições da psicologia histórico-cultural para a pedagogia histórico-crítica. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, v. 13, n. 52, p. 286-300, 2013. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640243. Acesso em: 17 fev. 2021.
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). Nesse sentido, são os signos – representantes semióticos da cultura humana – que, convertidos em instrumentos psíquicos, medeiam as operações e são condicionantes da humanização do psiquismo. Assim, o real significado do signo na conduta humana é explicado pela função instrumental que ele assume. Por isso, conforme Martins ( 2013, p. 290-291MARTINS, L. M. Contribuições da psicologia histórico-cultural para a pedagogia histórico-crítica. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, v. 13, n. 52, p. 286-300, 2013. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640243. Acesso em: 17 fev. 2021.
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), “[...] do processo ontogenético pelo qual o homem se diferencia essencialmente dos demais animais decorre uma conquista ímpar: a conversão das imagens psíquicas em signos e a construção do sistema de signos denominado linguagem”; a autora ainda registra:

Graças ao desenvolvimento da linguagem e à atividade mediada pelos signos, superamos os limites da representação sensorial imediata da realidade, própria também aos animais, passando a representá-la por meio de palavras. Essa superação aponta na direção da construção de ideias, que são, a rigor, os conteúdos do pensamento. As ações mediadas por signos despontam, assim, como propulsoras de novos arranjos interfuncionais, requalificando a totalidade do funcionamento psíquico.

A consciência, nesse sentido, nasce “[...] do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens” ( MARX, 2007, p. 35MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.), sendo, portanto, desde o início, produto social, cujo caráter se mantém enquanto existir o conjunto dos homens. Desse modo, cumpre assinalar que a origem da consciência é a atividade prática humana, o que ratifica que a prática social será sempre a base e o “critério de exatidão do pensamento” ( MARTINS, 2013, p. 291MARTINS, L. M. Contribuições da psicologia histórico-cultural para a pedagogia histórico-crítica. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, v. 13, n. 52, p. 286-300, 2013. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640243. Acesso em: 17 fev. 2021.
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).

A dialética entre trabalho e linguagem – elaborada neste artigo dentro dos limites impostos pelo gênero em questão – é posta em razão de que, historicamente, o embate epistemológico do campo da LA tem se dado pela tensão, como já afirmamos, entre negação e positividade, no que se refere à sua oposição à Linguística Formal, filiada à perspectiva positivista de ciência e, do mesmo modo, pela sua inscrição – quando da (re)definição do objeto e da hibridização do campo – à fundamentação pós-moderna. Dado que prática social é o saber acumulado pelo conjunto dos homens através da história, sendo, de um lado, ação e, de outro, conceito dessa prática que se realizou no mundo material e foi elaborada pela consciência por sua capacidade de refletir a realidade material, quando a referenciamos, não basta a inscrição situada dos sujeitos que vivem a prática social, pois ela não é uma atividade individual, mas a totalidade do processo social. Radica, nesta elaboração, a importância de se estabelecer que a sociabilidade vigente, capitalista, pelo caráter de naturalidade impresso às relações sociais ( TONET, 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.), mascara as contradições típicas do capital, em um processo de coisificação dessas relações, e que, por isso, a submissão da atividade prática a contextos situados não permite a sua superação por meio da transformação radical da referida sociabilidade. Dessa forma, as contradições postas no campo da LA em relação aos seus alinhamentos epistemológicos que, no limite, não contribuem com/para a mencionada superação serão tratadas na seção que segue.

4

Da eleição de teorias prioritárias provenientes de outras disciplinas à in(ter)disciplinaridade: migração para a pós-modernidade e implicações do movimento

O percurso empreendido até aqui neste artigo permite, entre outras reflexões, o reconhecimento de que a Linguística Aplicada se constitui como uma área independente, a partir da qual teorizações são produzidas acerca da linguagem na relação com as diversas formas de interação humana. Tendo elegido “os problemas linguísticos socialmente relevantes” como seu objeto, grande parte dos linguistas aplicados tem assumido o que Celani (1998) chama de transdisciplinaridade ou, como Moita Lopes ( 2006MOITA LOPES, L. P. da. Uma Linguística Aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: . Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 13-44.), uma interdisciplinaridade “indisciplinada” ou “mestiça”, ou, ainda, como postula Pennycook ( 2006MOITA LOPES, L. P. da. Uma Linguística Aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: . Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 13-44.), uma LA “transgressiva”. O que fundamentalmente sustenta esse posicionamento, segundo Celani (1998, p. 116CELANI, M. A. A. Transdisciplinaridade na Linguística Aplicada no Brasil. In: SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. Linguística aplicada e transdisciplinaridade: questões e perspectivas. Campinas: Mercado de Letras, 1998. p. 115-126.), é a necessidade de, nas pesquisas em LA, se “[...] buscar explicações para os fenômenos [...] em outros domínios do saber que não os da linguagem stricto sensu”, entendendo-se, entretanto, que qualquer área do conhecimento, sobretudo quando vinculada às ciências sociais, não deveria prescindir de investigações pautadas na análise da realidade, já que os objetos de estudo são parte indissociável da prática social, conforme se apontou na seção anterior. Assim, torna-se imperativo que conhecimentos de diferentes campos estejam em relação quando se trata do fazer científico; sob essa lógica, a interdisciplinaridade está na própria origem do conhecimento, não sendo característica de uma outra área. A tradição positivista, entretanto, ao considerar os objetos de modo asséptico à vida humana, fragmentou os campos do conhecimento, e fazemos coro à crítica voltada a essa perspectiva especulativa, que separa as ideias das relações de produção da sociedade ( MARX; ENGELS, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.).

Há outra razão, entretanto, como também já indicamos, para a sublinha feita por linguistas aplicados amplamente reconhecidos acerca do caráter multi/ pluri/interdisciplinar ( CELANI, 1998CELANI, M. A. A. Transdisciplinaridade na Linguística Aplicada no Brasil. In: SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. Linguística aplicada e transdisciplinaridade: questões e perspectivas. Campinas: Mercado de Letras, 1998. p. 115-126.) da LA: a adesão às compreensões pós-modernas acerca da sociedade, da linguagem e dos sujeitos. Nesse sentido, conforme já discutido neste artigo, tanto conhecimentos filosóficos quanto científicos produzidos ao longo da história humana são postos em xeque, sobretudo em nome das críticas ao pensamento moderno positivista. As grandes generalizações, assim, são negadas em favor de investigações sobre o particular e o situado ( MOITA LOPES, 2013MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.), em um “[...] ‘giro’, ou virada, epistemológico, para a periferia e a partir da periferia [...]” (KLEIMAN, 2013KLEIMAN, A. Agenda de pesquisa e ação em Linguística Aplicada: problematizações. In: MOITA LOPES, L. P (org.). Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola, 2013., p. 43), para os mencionados contextos ultrassituados.

Os deslocamentos propostos pelas teorizações pós-modernas vislumbram o questionamento não só da lógica formal, mas também da lógica dialética, buscando, além disso, “[...] a rediscussão de outras noções herdadas da tradição marxista [...]” ( SIGNORINI, 1998, p. 94SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. Introdução. In: . Linguística aplicada e transdisciplinaridade: questões e perspectivas, 1998. p. 7-18.). Na tentativa, desse modo, de desenvolver uma “epistemologia do Sul”, conforme propõe Kleiman (2013KLEIMAN, A. Agenda de pesquisa e ação em Linguística Aplicada: problematizações. In: MOITA LOPES, L. P (org.). Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola, 2013., p. 40), a LA brasileira se revela “[...] cada vez mais distante da Linguística, e mais próxima dos Estudos Culturais e das Ciências Sociais [...]”.

Torna-se possível afirmar, assim, ao analisar o modo como a LA vem se constituindo em nosso país, que a virada linguística impacta diretamente o campo, assim como o que caracteriza a guinada pós-moderna de maneira mais ampla, a exemplo do relativismo epistemológico e cultural e da negação das grandes narrativas, incluindo-se aí aquela que projeta um outro horizonte, que não o da sociabilidade capitalista. Um dos movimentos propostos a partir dessa “hibridização”, desse apagamento das fronteiras entre as disciplinas, é o deslocamento de pensadores do Círculo de Bakhtin, sobretudo por meio dos escritos de Mikhail Bakhtin, em direção das teorizações pós-modernas. O ponto de contato, certamente, é a centralidade do discurso naquilo que se refere às relações econômicas, políticas e históricas, aproximando-se esse pensador, em muitas proposições teóricas do campo, de Michel Foucault; no entanto, ao colocar sob escrutínio esse movimento, Amorim ( 2009AMORIM, M. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.) afirma ser problemático tomar as teorias bakhtinianas sob essa ótica, de modo a centralizar o discurso em si, já que tais teorias estariam apontando para a interação humana como objeto central, com a linguagem desempenhando papel fundamental para isso, o que é distinto de tomar o discurso como aquele que delineia a realidade.

Não haveria, assim, brecha para o estreitamento da base bakhtiniana com as fundamentações pós-modernas, pois ela tem como questão fundante, ainda de acordo com Amorim ( 2009AMORIM, M. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.), a proposição de uma filosofia moral; a autora evidencia que essa não é uma busca dos fundamentos pós-modernos, pelo contrário: a moral não seria um tema em questão sob essa ótica, já que instaura, na origem, a relação com o “outro”, o que na perspectiva pós-moderna tende a ser apagado, em vista da centralidade que se dá à subjetividade em si mesma – ou da hipercentralidade dela, conforme propõe Tonet ( 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.). A autora registra, nesse sentido, que “A cultura contemporânea é pós-moderna e rejeita inteiramente toda e qualquer filosofia moral. [...] Ora, Bakhtin nos diz: ‘Uma filosofia da vida somente pode ser uma filosofia moral’” ( AMORIM, 2009, p. 30AMORIM, M. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.). Elencando, então, os motivos pelos quais há, na sua compreensão, a impossibilidade de colocar as teorizações de Mikhail Bakhtin vinculadas aos pressupostos pós-modernos, escreve que esse filósofo, além de criticar explícita e repetidamente o relativismo, não diminui a importância de uma verdade teórica e universal, ainda que defenda a ideia de singularidade. Amorim (2006AMORIM, M. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009., p. 17), além disso, explicita que “[...] ao lado da dimensão dialógica explícita na qual Bakhtin dialoga com outros pensadores, [...] apresenta [...] proposições categóricas e universalizantes”.

Ainda que não seja o foco deste artigo aprofundar as filiações filosóficas bakhtinianas, importa fazer referência ao que discorre Sobral (2014) no seu exercício teórico de localização das bases de Bakhtin a partir do mencionado diálogo do filósofo com outros pensadores: há, segundo Sobral (2014, p. 124), a presença de diálogos “maiores”, “menores” e “indiretos” – enquanto os “menores” são múltiplos, os diálogos “maiores” são aqueles que o Círculo trava com Kant, e o diálogo “indireto” mais relevante “[...] é o que o Círculo trava com racionalistas e empiristas via Kant”. O tratamento bakhtiniano sobre a ética estaria associado à razão prática kantiana e, no que se refere à estética em Bakhtin, poderia ser associada ao juízo kantiano (SOBRAL, 2014).

Como é amplamente reconhecido, as proposições de Kant têm um papel fundamental no pensamento moderno, dado que, ao compreender que nem o empirismo e nem o racionalismo tinham respondido satisfatoriamente ao problema do conhecimento e seus fundamentos, esse filósofo, na articulação entre essas duas perspectivas, teria realizado a “revolução copernicana” ao propor que o “[...] conhecimento verdadeiro deve ter uma validade universal e ser, ao mesmo tempo, empiricamente fundado” ( TONET, 2013, p. 39TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.).

Reconhecendo, conforme propõe Tonet ( 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.), que o pensamento moderno tem um ponto de vista gnosiológico – aborda qualquer objeto a ser conhecido tendo como eixo o sujeito –, vão se encontrando as brechas para a aproximação entre Bakhtin e teóricos filiados às concepções pós-modernas, já que estas, assim como na modernidade, localizam o sujeito como polo regente do processo de conhecimento. Dessa forma, no campo das pesquisas em Linguística Aplicada, esse movimento de imbricamento entre as proposições bakhtinianas e os fundamentos vinculados à virada linguística parece se colocar como fartamente delineado – as teorizações do Círculo de Bakhtin se tornam subsidiárias no que se convencionou como análise do discurso, campo que tem sido – em muitos contextos, por meio da articulação com os Estudos Culturais – amplamente desenvolvido nas pesquisas acadêmicas em LA.

Os Estudos Culturais e suas bases interpretativistas, nesse sentido, têm ocupado um espaço de altíssima relevância para as abordagens linguísticas ( SIGNORINI, 1998SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. Introdução. In: . Linguística aplicada e transdisciplinaridade: questões e perspectivas, 1998. p. 7-18.). Tendo presentes os fundamentos que subsidiam as produções teóricas próprias dos Estudos Culturais, vão se evidenciando os contornos de uma LA que visa trazer para o centro o que está à margem, bem como focalizar o local, o singular, em detrimento do que é universal, visto que a própria universalidade é posta em xeque – e isso se coloca por meio da assunção de que não é possível pensar nem capturar o mundo objetivamente, já que a realidade não é um dado, mas “[...] um efeito, uma operação de práticas discursivas ‘ordenadoras’ do mundo social [...]” ( FABRÍCIO, 2006 p. 55FABRÍCIO, B. F. Linguística Aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 45-65.); sob essa ótica, “[...] nem a língua, nem os falantes e escritores preexistem ao fazer linguístico [...]” ( MOITA LOPES, 2013, p. 37MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.).

Estabelecendo-se um compromisso com o que é da ordem do fenômeno, as problematizações empreendidas em produções teóricas curvadas à subjetividade de pesquisadores e participantes de pesquisa parecem levar pouco em conta aquilo que compreendemos preponderante para qualquer pesquisa em ciências socias: o reconhecimento das determinações mais essenciais da reprodução humana e, portanto, da constituição da realidade social. Fazemos alusão a Britto (2012, p. 88), por meio de um excerto que traz considerações pertinentes (ainda que óbvias) para o desenvolvimento de nossa discussão, já que vincula uma problemática linguística central – o acesso à língua escrita – com o modo de organização econômica da sociedade:

A posse da escrita, na sociedade de classes, está desigualmente distribuída. Quem mais a domina e faz mais uso dela são os grupos de detêm o poder econômico e político. Em toda a sua história, a escrita e os bens culturais que veicula foram controlados pelos grupos dominantes, ainda que sempre tenha havido disputas e rupturas. A expansão de certos usos da escrita relaciona-se às transformações no modo de produção, e não a uma hipotética caminhada em direção à igualdade social.

Se tais colocações são aceitas, entendemos como imprescindível o movimento de análise e explicação acerca do que sejam estas (entre outras) categorias – “classe social”, “poder econômico”, “dominantes e dominados”, “modo de produção” – e de como, antes de se tornarem categorias do pensamento, são determinações da própria realidade social, como expusemos na seção anterior deste artigo. Essas determinações são produzidas pela própria história humana, ressalta-se. Isso significa, assim, que não há um determinismo posto, já que tal realidade “[...] não é uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, [...] e isso precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações [...]” ( MARX; ENGELS, 2007, p. 43MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.). Lidar deterministicamente com/sobre a realidade, postura sobre a qual endossamos a crítica, torna-se exercício idealista e/ou mecanicista, considerando-se que a concretude do real permite chegar à compreensão de que a história, feita por seres humanos, não está dada de antemão, não podendo, assim, ser adivinhada, antevista, ainda que possa, é claro, ser planejada, previamente ideada a partir das condições reais do presente. Em uma citação bastante difundida, Marx e Engels ( 2007, p. 94MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007., grifo nosso) explicitam, sobre isso: os seres humanos, “[...] ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”.

Em se tratando dessa compreensão, Fabrício ( 2006FABRÍCIO, B. F. Linguística Aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 45-65.), colocando sob escrutínio o que denomina de uma “vontade de verdade”, afirma que a tradição marxista acena a um suposto “privilégio” de uma visão transparente acerca dos fenômenos sociais, e ainda que compreendamos que tal apontamento crítico parte de uma fundamentação filosófico-teórica bastante conflitante com o materialismo histórico e dialético, já que tem como princípio a negação da verdade objetiva (que, para nós, é possível, ainda que não exista verdade absoluta, porque é sempre histórica), importa desmistificar a ideia que subjaz a sua crítica. Partindo de uma análise ontológica da produção e da reprodução da vida humana, tem-se, na sociabilidade capitalista, um arranjo em que, por meio da divisão social do trabalho, os sujeitos são reificados – vendem sua força de trabalho como outra mercadoria qualquer, sendo submetidos, dessa forma, ao movimento próprio desse modo de produção, a valorização do capital. Assim, a exploração acaba por ganhar um caráter de naturalidade, embora seja necessariamente social – “A posição que cada um ocupa na sociedade, o tipo de trabalho que exerce, o acesso que tem à riqueza [incluída a linguagem como riqueza não material] já não aparecem como resultado da própria atividade humana [...]”, resultando, pois, que isso seja percebido “[...] como fruto de forças misteriosas e poderosas que nos oprimem” (LESSA; TONET, 2011, p. 90).

O objetivo, em nossa compreensão, de todos aqueles que se assumem como parte da classe trabalhadora, é, ao mesmo tempo, teórico e político, voltando-se, pois, a produção de conhecimento sobre a realidade para um objetivo comum, o qual exige planejamento e projeto de futuro, a transformação radical da sociedade capitalista, o que demanda, necessariamente, o fim do trabalho alienado. Para tanto, há que se desenvolver e assumir a consciência de classe – movimento ao mesmo tempo teórico e prático –, já que os sujeitos isolados não possuem nenhum controle sobre o conjunto das condições de existência da sociedade ( MARX; ENGELS, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.). É por meio desse percurso, entendemos, que se dá o comprometimento ético implicado na adesão à fundamentação marxiana. Não haveria, assim, um intuito de privilégio (ainda que muitos marxistas se coloquem lamentavelmente sobre um pedestal), mas de desvelamento, por se compreender que a essência dos fenômenos não é dada diretamente na/pela realidade, e o trabalho intelectual tem importante contribuição nesse sentido.

Wood ( 1996, p. 126WOOD, E. M. Em defesa da História: o marxismo e a agenda pós-moderna. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v. 1, n. 3, p. 118-127, 1996.), posicionando-se em torno dos impactos da adesão aos princípios pós-modernos pelos intelectuais posicionados à esquerda no espectro político, assim se enuncia:

Os intelectuais de esquerda, se não abraçam efetivamente o capitalismo como o melhor dos mundos possíveis, têm pouca esperança em algo mais que um pequeno espaço nos interstícios do capitalismo; e anteveem, na melhor das hipóteses, apenas resistências locais e particulares. E há outro efeito curioso de tudo isso. O capitalismo está se tornando tão universal, tão garantido, que passa a ser invisível.

Filiando-se a tais fundamentos pós-modernos, essa LA com a qual dialogamos criticamente neste artigo vai se concretizando como uma área para a qual, findadas as grandes utopias – posto um “colapso de crenças e valores” ( FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, B. F. Linguística Aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 45-65.) –, o processo revolucionário de transformação social desde a raiz não é tomado como foco. As pequenas lutas, locais e pontuais, como sugere Wood ( 1996WOOD, E. M. Em defesa da História: o marxismo e a agenda pós-moderna. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v. 1, n. 3, p. 118-127, 1996.), parecem ser o fim último de um campo que se quer politicamente engajado, e para isso traz para o centro os sujeitos marginalizados, sem que a abordagem acerca da origem dos contornos dessa marginalidade seja realizada de forma a chegar às suas determinações mais simples. A própria assunção de que o modo de produção capitalista está fundado em uma sociedade cindida em classes sociais é secundarizada – focaliza-se, portanto, o fenômeno, e as teorizações em torno dele buscam amenizar os efeitos do processo de desumanização que é próprio dessa organização social cindida, em que uma classe necessariamente explora e coisifica a outra, tornando-a mercadoria (a mercantilização, esta sim, núcleo a partir do qual se pode compreender o modo de produção capitalista).

Moita Lopes ( 2013, p. 18MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.) explica que “[...] há mudanças suficientes do ponto de vista econômico, político, social e cultural no mundo atual (a modernidade recente) para caracterizá-lo diferentemente de outros momentos da história [...]”, mas o próprio autor reconhece que isso “[...] não quer dizer, por outro lado, que o capitalismo não continue se expandindo”. O foco de autores como o mencionado recai, portanto, nas referidas mudanças e nos seus fenômenos, desviando-se do que são os estruturantes do capitalismo que conduzem a essas alterações sociais, impulsionadas pelas necessidades de valorização do capital. Ainda que Moita Lopes ( 2013, p. 52MOITA LOPES, L. P. da. Da aplicação da Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C. M.; ROCA, M. del P. (org.). Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-24.) assuma um notório engajamento político quanto à necessidade de “[...] abrir espaços para a criação de outros futuros sociais alternativos, mais justos e mais éticos”, aquilo que se conforma como a LA hoje parece ignorar que esses espaços já estão dados pela própria realidade – é pela análise dela que são reconhecidos, e é para isso que, em nosso entendimento, deve estar voltada a produção científica. Ao se engajar, assumindo eticamente a perspectiva da classe trabalhadora, em uma produção científica desveladora da realidade e potencializadora de uma ação revolucionária, assume-se necessariamente que essa realidade existe independentemente do sujeito e da linguagem. E tal desvelamento torna-se necessário, pois, em razão da maneira como a prática social se constitui:

Na sociabilidade do capital, o conhecimento assume características distintas a que poderia resultar na emancipação humana e política, pois se encontra vinculado diretamente com o desenvolvimento do processo produtivo; mas, um dos objetivos do conhecimento nessa sociabilidade é tornar o capital em funcionamento e reproduzindo-se. Nesse objetivo, o acesso ao conhecimento para a classe trabalhadora limita-se, a maioria das vezes, a contribuir com os avanços tecnológicos do processo produtivo que permite a intensificação da exploração de sua própria força de trabalho. ( MARTINS; TORRIGLIA, 2016, p. 144MARTINS, J. A. C.; TORRIGLIA, P. L. O comprometimento social e político do pesquisador diante da reprodução social. Germinal, Salvador, v. 8, n. 1, p. 136-146, jun. 2016.)

O pesquisador, dessa forma, postulam Martins e Torriglia ( 2016MARTINS, J. A. C.; TORRIGLIA, P. L. O comprometimento social e político do pesquisador diante da reprodução social. Germinal, Salvador, v. 8, n. 1, p. 136-146, jun. 2016.), realiza escolhas teóricas, baseado em referenciais distintos, e estão contidas, nessas escolhas, as alternativas (ou os limites) para que o desenvolvimento de suas produções se coloque em favor da regulação social do capital ou da sua transformação radical, tendo em vista outro tipo de sociabilidade.

Diferentemente, portanto, de uma LA que busca “Detectar os acasos que, emergindo na fluidez e maleabilidade da experiência cotidiana, driblam padrões de normatividade [...]” (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2019, p. 719), a Linguística Aplicada instaurada sob a vertente materialista, histórica e dialética localiza os “acasos” como fenômenos intrinsecamente vinculados às determinações postas pela forma com que os seres humanos produzem e reproduzem a sua vida. No caso da sociabilidade capitalista, há determinantes, que, se negados ou secundarizados, impedem de compreender a totalidade da prática social: a propriedade privada, a mercadoria e a existência de classes sociais dicotômicas são elementos estruturantes do capitalismo, sem os quais a investigação dos “acasos” pode ser intelectualmente relevante, é claro, porém permanece destituída do vislumbre da superação desse modo de produção.

5

Considerações finais

Tendo assumido, ao longo deste artigo, a constituição histórica da Linguística Aplicada a partir da tensão entre positividade e negatividade, entendemos que o seu desenvolvimento permanente não pode prescindir de contribuições críticas para o adensamento da área – em sendo a sua autonomia em relação à Linguística Formal uma discussão já ultrapassada, torna-se relevante localizá-la, conforme defendemos, como ponto de partida e não como ponto de chegada. Desse modo, esta produção buscou não só elucidar os encontros próprios da LA, mas, sobretudo, marcar um posicionamento filosófico e teórico distinto daquele que hoje tem amplo espaço no campo, distanciando-se, portanto, de um viés culturalista ou discursivo.

Ao se propor, por meio das reflexões apresentadas, a vinculação estrita entre linguagem e prática social, sendo a primeira um instrumento fulcral para a compreensão e a ação diante da segunda, expusemos a necessidade que entendemos haver na profunda análise e explicação da realidade concreta – altamente complexa, porque altamente desenvolvida. Assumindo que tal explicação não é um “lugar de privilégio” de uma outra vertente teórica, mas um processo contínuo de aproximação à verdade por meio de análises históricas, defendemos que essa poderia (ou deveria) ser a tarefa e a postura científicas de todos os intelectuais identificados com a classe trabalhadora, coletivamente, de maneira que estejam engajados, também, na socialização desses conhecimentos e da sua produção, entendendo-os como “arma”, já que “[...] a teoria também se torna força material quando se apodera das massas” ( MARX, 2013, p. 157MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. In: . Crítica da filosofia do direito de Hegel. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 151-163.).

Assumindo-se a enorme responsabilidade que têm os pesquisadores e professores vinculados a instituições universitárias, identificamos a ciência como uma das esferas da sociedade capitalista que, ainda que seja conformada como força produtiva direta, é lócus das contradições dessa formação social: “[...] a ciência produz ideias que escapam ao quadro de submissão ao capital [...], e as ciências humanas, dada a especificidade do seu objeto de estudo, encontram-se em privilegiada posição no que se refere à produção dessas ideias” ( ANDERY et al., 2014, p. 433 ANDERY, M. A. et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. Rio de Janeiro: Garamond, 2014.).

Objetivamos, nesse sentido, ao longo deste artigo, em uma discussão crítica acerca da constituição do campo da Linguística Aplicada, fazer uma análise comprometida com a explicitação de limites e potências, convocando, assim, pesquisadores e professores do campo a um posicionamento, político e científico, diante das duas possibilidades existentes na realidade posta, mencionadas por Martins e Torriglia ( 2016MARTINS, J. A. C.; TORRIGLIA, P. L. O comprometimento social e político do pesquisador diante da reprodução social. Germinal, Salvador, v. 8, n. 1, p. 136-146, jun. 2016.). Colocando-nos explicitamente a partir de uma dimensão de classe, a dos trabalhadores, entendendo-a como aquela que exige um conhecimento mais profundo da realidade ( TONET, 2013TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.), assumimos uma postura científica calcada na análise objetiva da prática social, distanciando-nos, pois, de uma perspectiva de “melhoramento” aparente das interações humanas. A partir da análise das determinações do capitalismo – e entendendo a linguagem como instrumento central para a reprodução da vida humana –, realizamo-nos em um fazer científico que, por meio da relação entre teoria e prática, alia-se ao projeto de criação de um modo inteiramente novo de se reproduzir a realidade social, no qual o conjunto dos indivíduos passa a ter os meios de desenvolver suas potencialidades em todos os sentidos ( MARX; ENGELS, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.).

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  • 1
    Reconhecemos que outras nomenclaturas são utilizadas para denominar o que estamos chamando de “pós-modernidade”. Em razão dos limites de um artigo, adotaremos essa expressão como aquela que representa o grande arcabouço de teorias questionadoras dos ideais da modernidade, principalmente aqueles referentes à definição de sujeito social e às formas de produção de conhecimento (MOITA LOPES, 2006).
  • 2
    Como parece ser o caso de estudos que conferem um tratamento ultrassituado de determinados objetos a alguns contextos, ou de sujeitos em microespaços comunitários, ou de usos da língua em práticas específicas que seriam explicados quando tomados no enraizamento deles a determinados microcontextos.
  • 3
    Corroboramos a compreensão de Tonet (2013) acerca da construção da ciência moderna de que no pensamento pós-moderno vigora não apenas uma centralidade, mas uma hipercentralidade da subjetividade. Seriam ultrassituadas, então, dada a fragmentação da realidade admitida pelo pensamento pós-moderno e a hipercentralidade do sujeito.
  • 4
    Cf. Tonet (2013).
  • 5
    Por verdadeiro, compreende-se não a busca pela verdade livre de ideologias proposta pela epistemologia positivista, mas a verdade possível, segundo os interesses de classe. Assim, refere-se à “[...] possibilidade de compreender todos os fenômenos sociais de uma forma que permita a sua apreensão em um nível maior de profundidade” (TONET, 2013, p. 54).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2021
  • Aceito
    19 Jun 2022
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