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Protagonismo na/da linguagem: Introdução

Este número se propõe a apresentar a função do protagonismo da linguagem com a sua força agenciadora numa perspectiva social bastante cara à área da Linguística Aplicada uma vez que contribui para a compreensão da relação entre subjetividades e práticas de linguagem. O tema, que movimentou as discussões do Grupo de Trabalho (GT) “Práticas Identitárias em Linguística Aplicada” da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL) no biênio 2014-2016, abre este volume com 12 artigos aceitos por avaliação cega, conforme as normas da RBLA, trazendo sete trabalhos de pesquisas e discussões teóricas debatidas nas reuniões do GT e cinco outros de submissões que vêm se somar à alta qualidade das produções do grupo.

Nas palavras do estudioso Kanavilil Rajagopalan, que transita entre a Linguística e a Linguística Aplicada com seu trabalho intenso no campo das políticas linguísticas, a Linguística Aplicada “nada mais é do que pensar a linguagem no âmbito da vida cotidiana que nós estamos levando.” (SILVA, SANTOS e JUSTINA, 2011SILVA, K. A; SANTOS, L. I. S.; JUSTINA, O. D. Entrevista com Kanavilil Rajagopalan: ponderações sobre linguística aplicada, política linguística e ensino/aprendizagem. Revista de Letras Norte@mentos, Estudos Linguísticos, Sinop, v. 4, n. 8, p. 75-81, 2011., p. 76). Para esse pesquisador, “tudo dentro do mundo é mediado pela linguagem, então a linguagem é tudo.” Partindo dessa concepção de mediação da linguagem no que envolve o ser falante, considero importante apresentar a visão na qual a linguagem é concebida como constituidora da subjetividade e, por consequência, da identidade. Essa noção de identidade não é nada mais do que uma ilusão de unicidade e totalidade que fazem com que os sujeitos de linguagem se esqueçam da contradição constitutiva de ser/estar entre as inúmeras vozes estranhas e familiares que os constituem na(s)/entre língua(s)-cultura(s) (CORACINI, 2007CORACINI, M. J. R. F. A celebração do outro. Campinas: Editora da Unicamp; Chapecó: Argos Editora Universitária, 2007.).

O conceito de agência une a linguagem à sua função social como demonstram os diversos textos que compõem este número. A antropóloga linguista Laura Ahearn (2000AHEARN, L. M. Agency. Journal of Linguistic Anthropology, South Carolina, v. 9, n. 1-2, p. 12-15, 2000.) marca que o termo ganhou destaque a partir da década de 1970, quando as ações dos indivíduos, incitados por ativistas, passam a desafiar as estruturas de poder existentes. Como ação social, a linguagem permite não só estabelecer modelos, mas também transcendê-los e desafiá-los. O antropólogo Alessandro Duranti (2004DURANTI, A. Agency in language. In: DURANTI, A. (Ed.). A companion to linguistic anthropology. Massachusetts: Blackwell, 2004. p. 451-473.) ressalta o aspecto performativo da linguagem e entende que qualquer ato de fala necessariamente envolve algum modo de agência, já que ao falar o sujeito cria uma realidade que potencialmente pode afetar a quem esteja ouvindo. E Rajagopalan (2013RAJAGOPALAN, K. Política linguística: do que é que se trata, afinal? In: NICOLAIDES, C. et al. (Orgs.). Política e políticas linguísticas. Campinas: Pontes, 2013. p. 19-42.) discute que o agente é o sujeito da linguagem que desafia as estruturas de poder vigentes, com maior ou menor grau de sucesso, mas ousando furar o circuito que embaraça seu desejo, sua autonomia e seu direito de agir.

A apresentação dos textos foi decidida pensando-se que as propostas teóricas poderiam preceder os textos que privilegiam as análises. Assim, trazemos, primeiramente, os estudos que pretendem avançar o debate sobre os conceitos de agência, agenciamento e protagonismo na área de Linguística Aplicada com sua característica transdisciplinar. Em seguida, são apresentados os trabalhos sob a perspectiva aplicada.

O texto que abre o volume se intitula Protagonismo da linguagem: textos como agentes, de Izabel Magalhães. A autora oferece um debate quanto à concepção social da linguagem como “força agenciadora, energética, atuando por meio de agentes sociais falantes e escreventes” (MAGALHÃES, neste volume). Na perspectiva da Análise do Discurso Crítica (ADC), a autora examina a força agenciadora da linguagem no mundo contemporâneo e debate, nos exemplos que traz, o protagonismo da linguagem dos diversos agentes sociais frente aos atos de abuso de poder das instituições governamentais. A autora expõe que o protagonismo da linguagem se dá nos textos por via de quatro características: pelo “poder de produzir significados e evocar lembranças; na portabilidade no tempo, no espaço e no contexto; na durabilidade; e nos efeitos causais”. Nos exemplos que discute, a autora baliza que esse protagonismo depende de atos de agenciação fundamentados por ideologias linguísticas em oposição. Ao mesmo tempo em que há discursos hegemônicos e repressores, pode haver o contraponto através de discursos de resistência das forças sociais que buscam a celebração de relações de igualdade e de promoção de direitos.

No ensaio Linguística aplicada e visão de linguagem: por uma INdisciplinaridade radical, Branca Fallabela Fabrício propõe uma reflexão sobre os desafios que a perspectiva da INdisciplina enseja ao problematizar as fronteiras que ainda separam os campos do conhecimento. Inicialmente, a autora propõe um diálogo entre o historiador Nelson Job (2013) com o seu manifesto “Transaberes” e sua proposta da transdisciplinaridade radical e o engenheiro Luiz Sergio Sampaio com seu modelo síntese do pensamento lógico ocidental para avançar além das fronteiras no campo de produção de conhecimentos. Na proposta de estranhamento das fronteiras, a autora cita autores e obras que refletem sobre a formação de fronteiras entre línguas, territórios, sujeitos e corpos. Fabrício aposta, então, que para deslocar-se para além das fronteiras em Linguística Aplicada, dever-se-ia investigar os modos de agenciamento que se movimentam sub-repticiamente dentro da fixidez das normas reinventando os procedimentos metodológicos, a conexão entre sujeito e objeto de pesquisa, e a própria relação com o processo de produção de conhecimento.

Dina Martins Ferreira, em Do semelhante ao mesmo, do diferente ao semelhante: sujeito, ator, agente e protagonismo na linguagem, enfatiza a diluição das fronteiras da conceituação do que seja sujeito, protagonismo, agente e ator, procurando abalar nomenclaturas hegemônicas oferecidas por alguns autores dos campos das ciências sociais e da linguagem. Uma vez que para esta autora não há neutralidade teórica, mas escolhas que refletem a subjetividade do estudioso ou cientista, ela esmiúça conceitos oferecidos por Touraine, Bourdieu e Crozier na perspectiva sociológica, e Austin, Fairclough, Pêcheux na perspectiva linguístico-discursiva. Ao final, Martins Ferreira oferece ao leitor o exemplo analítico da cantora, compositora e poeta, Karina Buhr, que considera um “sujeito feminino particular - protagonista, agente, atora” do movimento feminista brasileiro, assim pleiteando que ao invés de verdades epistemológicas, se ressalte a criatividade e o diálogo de saberes.

Em seguida, Djane Antonucci Correia problematiza, em seu texto, o protagonismo na e da linguagem escrita, retomando seus próprios estudos sobre o tema. A autora explora os conceitos de língua, agência, agenciamento e protagonismo, para enfim cogitar quais seriam os protagonistas da/na linguagem escrita. Como exemplos, ela discute uma carta ao Papai Noel escrita por uma criança de 10 anos em torno das festas de final de ano e uma matéria veiculada em um servidor da internet, que traz relatos de pessoas consideradas analfabetas ou analfabetas funcionais. Essa matéria apresenta, também, dados estatísticos de pesquisas sobre o assunto no Brasil. Correia problematiza, então, os saberes considerados desqualificados pelo processo de colonização e, citando os estudos do linguista Walter Mignolo (2003), sugere a possibilidade de adoção do pensamento liminar como forma de repensar o protagonismo, não só na, mas da linguagem escrita.

No texto a seguir, a pesquisadora Julia Isabelle da Silva apresenta O debate sobre direitos linguísticos e o lugar do linguista na luta dos sujeitos falantes de línguas minorizadas: quem são os protagonistas? Com esse título desafiador, a autora problematiza o lugar de fala dos teóricos acadêmicos, ocupantes de espaços institucionais hegemônicos. Silva considera que, ao buscar “mediar e protagonizar o debate sobre direitos linguísticos sem reconhecer a maneira como os sujeitos falantes vivenciam suas práticas linguísticas, o linguista silencia a voz do subalterno e produz uma forma de violência epistêmica” (SILVA, neste volume). Para desenvolver seu argumento, a autora apresenta discussões de autores que defendem os direitos linguísticos dos falantes das línguas minoritárias e, em seguida, expõe os autores que fazem críticas a esse paradigma para concluir, então, que para o subalterno falar, o teórico da linguagem não pode fazê-lo por ele. O debate sobre direitos linguísticos merece ser revisto, destacando-se as possibilidades de pesquisas etnográficas colocarem em evidência as vivências e práticas linguísticas nas vozes desses indivíduos e propiciarem que grupos e políticas linguísticas sejam feitas de baixo para cima.

O trabalho de Maria del Pilar T. Acosta e Viviane Resende Melo, Discurso e protagonismo: população em situação de rua na produção discursiva de O Trecheiro, discute o protagonismo na linguagem de vozes em situação de vulnerabilidade. As autoras trazem análises de entrevistas com o editor-chefe do jornal O Trecheiro, um jornal que se destina ao público em vulnerabilidade social, e de um texto publicado em uma de suas seções. Na primeira parte do artigo, as autoras contextualizam o surgimento do jornal demonstrando, nas palavras do entrevistado, o pioneirismo dessa publicação como espaço simbólico e político de dar voz às pessoas em situação de rua. A segunda parte se debruça sobre os pilares conceituais da ADC para dar conta da análise proposta na terceira parte do texto ao situar os discursos de ordem hegemônica e os de ordem contra-hegemônica, que promovem resistência. Na análise, portanto, as autoras demonstram como a posição objetiva de autor é subjetivamente protagonizada num veículo de mídia alternativa.

Em Representações de território: entre o discurso oficial e o discurso Kinikinau, Daniele Lucena Santos problematiza o processo identitário dos índios Kinikinau e examina, sob as lentes da Análise de Discurso de origem francesa e dos Estudos Culturais, as representações de território no discurso das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica (2012) e no discurso dos próprios Kinikinau, da região de Porto Murtinho (MS). A autora procura, assim, “elaborar e (re)significar conhecimentos que atendam às necessidades de um lugar subalterno por excelência.” Santos conclui que os documentos legais assumem uma representação de território que reafirma a identidade marginalizada do índio ao sugerir que a terra é produto passível de ser disposto como valor econômico enquanto que para os Kinikinau, mesmo sendo destituídos de seu espaço territorial e convivendo entre outras línguas-culturas de tribos indígenas distintas, a terra representa a própria vida, constituindo-se como espaço de resistência.

O texto que se segue abre uma série de três trabalhos que discutem agenciamento e protagonismo no discurso na conexão linguagem e direito. Paulo Cortes Gago e Priscila Fernandes Sant’Anna trazem O protagonismo na linguagem na mediação familiar judicial, no qual apresentam a análise de uma das fases, dentre as cinco categorias identificadas como mais recorrentes, da entrevista de mediação de conflitos. Denominada “Historiando o conflito”, esta fase é destacada por oferecer condições de refletir sobre a agentividade e o protagonismo dos participantes em uma situação real de fala-em-interação na qual o mediador e as partes em desacordo negociam os espaços para que o conflito possa ser trabalhado e transformado na tentativa de solução das questões familiares levadas para serem resolvidas na Justiça. Os autores propõem, através da extensa análise apresentada, que o exame da competência interacional dos participantes possibilite a ressignificação da atual função da mediação no sistema judiciário brasileiro para atuar na transformação da comunicação entre os sujeitos, tornando-os protagonistas de suas decisões ao invés de continuar simplesmente voltada para a agilização de acordos nos processos judiciários.

No segundo texto da série, Maria do Carmo Leite de Oliveira e Rony Caminiti Ron-Rén Junior fazem análise de uma narrativa sobre uma situação de desacato à autoridade policial. Utilizando-se do método de Análise da Conversa e do discurso meta-agentivo da fala do entrevistado, o texto Agência e discricionariedade na prática policial, aborda a tomada de posição discricionária de um policial pertencente a uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da cidade do Rio de Janeiro frente aos gestos agressivos contra ele de um vendedor ambulante. Em uma situação na qual a lei deve ser aplicada não importando as condições em que ocorra a infração, a gama de escolhas oferecidas pelo princípio da discricionariedade pode possibilitar uma agentividade crítica, reflexiva e singular por parte do policial configurando-se como uma postura mais humanizada de respeito ao cidadão que infringe a lei.

No terceiro texto desta série, intitulado A responsabilidade enunciativa no texto jurídico: uma análise dos conectores no gênero discursivo sentença judicial condenatória, Alexandro Teixeira Gomes e Lucélio Dantas de Aquino apresentam análises de conectores em sentenças judiciais condenatórias. Os autores apontam a relevância de estudar a função dos conectores como marca de (não) Responsabilidade Enunciativa (RE), ou seja, a RE é o grau de engajamento que o locutor-narrador tem com seu ato de enunciação. A marca de RE (ou não RE) é dada pelo uso que o produtor do texto faz dos conectores, levando-os a “ser de assunção ou de não assunção da RE,” bem como indicam “se determinado conteúdo proposicional é assumido ou não pelo locutor, bem como os efeitos de sentido produzidos por essa (não) assunção da RE” (Gomes e Aquino, neste volume). Mostrando como esse tipo de sentença judicial contém uma multiplicidade de discursos em seu interior, os autores propõem o gênero discursivo de sentença judicial como “caracterizado por ser um ato jurisdicional e performativo e sustentado institucionalmente como um discurso de poder com caráter decisório” (Gomes e Aquino, 2014, citado nesse artigo).

O trabalho que se segue afasta-se da temática da linguagem e direito para dar voz ao corpo da/na língua de sinais. A autora, Alessandra Gomes Silva, no texto intitulado Corpo-texto, texto-corpo: apontamentos sobre literatura e performance na contação de história em língua de sinais, explora o conceito de performance ligado à leitura literária de alunos surdos adultos em uma turma de Educação Básica. Utilizando a metodologia da pesquisa-ação, a autora apresenta um relato de experiência de contação de histórias em língua de sinais de uma crônica do autor português Lobo Antunes chamada “Não foi com certeza assim, mas faz de conta” (ANTUNES, 2002, citado nesse artigo). Silva, então argumenta, que a literatura pode ser pensada como ‘um evento’ (aspas da autora), especialmente no que se refere à contação de histórias em Libras.

No último estudo da coletânea, Rafael Petermann e Neiva Maria Jung privilegiam a sala de aula de um colégio privado do Paraná para analisar o protagonismo e a agentividade no fazer da aprendizagem. Em Participação, protagonismo e aprendizagem na fala-em-interação de sala de aula em uma equipe de trabalho no ensino médio, sob a perspectiva da Análise da Conversa Etnometodológica, os autores demonstram, em minuciosa análise, a fala em interação de um grupo de alunos no evento aula. E demonstram que modelos de organização da interação não-canônicos de construção do conhecimento, onde o professor não mantém o controle e nem reproduz conhecimentos já dados, propiciam agentividade, participação e protagonismo dos estudantes. Desse modo “a ação social é orientada para objetos de aprendizagem que se tornam relevantes na emergência e contingência do aqui-e-agora da interação” (PETERMANN e JUNG, neste volume).

Referências

  • AHEARN, L. M. Agency. Journal of Linguistic Anthropology, South Carolina, v. 9, n. 1-2, p. 12-15, 2000.
  • CORACINI, M. J. R. F. A celebração do outro. Campinas: Editora da Unicamp; Chapecó: Argos Editora Universitária, 2007.
  • DURANTI, A. Agency in language. In: DURANTI, A. (Ed.). A companion to linguistic anthropology. Massachusetts: Blackwell, 2004. p. 451-473.
  • RAJAGOPALAN, K. Política linguística: do que é que se trata, afinal? In: NICOLAIDES, C. et al. (Orgs.). Política e políticas linguísticas. Campinas: Pontes, 2013. p. 19-42.
  • RAJAGOPALAN, K. Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2003.
  • SILVA, K. A; SANTOS, L. I. S.; JUSTINA, O. D. Entrevista com Kanavilil Rajagopalan: ponderações sobre linguística aplicada, política linguística e ensino/aprendizagem. Revista de Letras Norte@mentos, Estudos Linguísticos, Sinop, v. 4, n. 8, p. 75-81, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017
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