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Um estudo etno-estilístico de narrativas míticas de candomblés Quetu baianos

An ethno-stylistic study of mythical narratives from Bahian Ketu candomblés

Resumo:

Este artigo descreve e compara cinco versões de uma narrativa – itã – iorubá que fundamenta uma cerimônia importante nos candomblés da Bahia. Partindo de teorias sobre narrativas, da linguística antropológica e de textos escritos por ícones de candomblés baianos, sobretudo sacerdotes, o estudo demonstrou que as versões da narrativa analisada têm similaridades, mas igualmente diferenças, no que tange aos elementos da narrativa – eventos, trama, personagens, contexto, descrição e, especialmente, propósito. O artigo também considerou essas narrativas míticas como artefatos culturais, visto serem fontes importantes que justificam como cerimônias tradicionais do candomblé baiano são realizadas. Ao final, o artigo destacou que, além de ser um elemento para o escrutínio científico, essas narrativas míticas são vistas pelos devotos do candomblé como os fundamentos de seus ritos e crenças.

Palavras-chave:
candomblé Quetu; narrativas míticas; linguística antropológica; cultura

Abstract:

This study aims to describe and compare five versions of one Yoruba written narrative – ìtàn – on which an important religious ceremony in Bahia’s candomblé is based. Stemming from narrative theory, linguistic anthropology, and texts from high candomblé priestess, the study has demonstrated that the narrative versions have similarities but also differences concerning core narrative elements, such as events, plot, characters, context, description and, mostly important, purposes. The study has also considered these mythical narratives as cultural artifacts due to their importance as sources that justify how traditional ceremonies in Bahia’s candomblé are conducted. In the end, the study has emphasized the fact that besides being an element for scientific scrutiny, the mythical narratives are especially seen by candomblé devotees as the basis for their rites and beliefs.

Keywords:
Ketu candomblé; mythical narratives; linguistic anthropology; culture

“O interesse na ‘língua’ é importante em uma etnoliguística aplicada que considere seriamente os vários modos como a linguagem é compreendida.”

( MAKONI; MEINHOF, 2006MAKONI, S.; MEINHOF, U. Linguística Aplicada na África: desconstruindo a noção de ‘língua’. In: MOITA LOPES, L. P. da. (org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 191-213., p. 210).
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Oralidade e tradição escrita no culto aos orixás

Hall (2003HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik. Tradução: Adelaine La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Cláudia Álvares, Francisco Rüdiger, Sayonara Amaral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.), em seu clássico livro Da diáspora, explica que a marginalidade do povo negro, antes claramente restrita a esferas de mínima significância social, conquistou, hoje, espaços fundacionais que culminaram no próprio redimensionamento do conceito de marginal. No caso do Brasil, nação expressamente miscigenada, não é mais possível situar à marginalidade as vozes de povos que sedimentaram as bases sociais, políticas e culturais de nosso país. As narrativas orais da diáspora negra, em especial, interpretadas por quem as trouxe, formam os fundamentos das nações nagô como proposto por Sodré (2017SODRÉ, M. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.), em seu livro Pensar nagô, fixadas, muitas delas, em textos escritos disponíveis ao público geral. Sodré descreve a importância magistral das comunidades religiosas afro- brasileiras para a manutenção de formas ancestrais de ver e ouvir o mundo, como narrativas que reinterpretam os modos de pensar que a diáspora negra preserva em seu cerne, a fim de garantir sua permanência. Na atualidade, essas narrativas têm cada vez mais ganhado popularidade por meio de registros escritos em livros, em sua maioria por intelectuais da e na diáspora, como uma maneira de propiciar a múltiplos leitores o contato com essas narrativas traduzidas para a tradição escrita, oriundas dos conhecimentos milenares que o grupo nagô de escravizados trouxe ao Brasil nos séculos dezoito e dezenove (Cf. VERGER, 2019VERGER, P. Notas sobre o culto aos orixás e voduns: na Bahia de Todos os Santos, no Brasil e na antiga costa dos escravos, na África. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2019.; REIS, 2008REIS, J. J. Domingos Sodré: um sacerdote africano. Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.).

Ricœur (1986RICŒUR, P. Du texte à l’action: essais d’herméneutique II. Paris: Editions du Seuil, 1986.), em seu livro Du texte à l’action: essais d’herméneutique II, aprimora o conceito de escrita ao considerá-la como fixação da fala em símbolo. Com efeito, toda escrita é posterior à fala, embora nem sempre parta desta como fundamento de seu registro. Ricœur se estende mais no tema ao afirmar que a escrita nada agrega à fala, a não ser sua fixação que permite conservá-la através dos tempos. No campo das narrativas orais, quando transpostas para a escrita, os apontamentos de Ricœur se revestem de valor, dada a fixação em texto de elementos essenciais à cultura de povos ágrafos que tinham na oralidade o eixo de suas representações históricas, políticas e sociais, como é o caso dos iorubás. No contexto da diáspora negra, essa é uma realidade intrínseca e pujante, embora seja questionável o apontamento de que, para Ricœur (1986RICŒUR, P. Du texte à l’action: essais d’herméneutique II. Paris: Editions du Seuil, 1986.), a escrita nada agregue à fala. Isso porque, conforme pretendemos mostrar neste artigo, as narrativas escritas, especificamente oriundas do corpo literário oral que compõe os itãs ( ìtàn) 1 1 O plural na língua iorubá não é marcado: itãs é grafado no singular – ìtàn –, como qualquer outro substantivo no plural. (Cf. NAPOLEÃO, 2011). , quando transplantadas no Brasil pelos iorubás, sofreram mudanças e adaptações que ressignificaram seus registros. De acordo com Santos, J. (2012SANTOS, J. E. Os nāgō e a morte. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 57):

a palavra Nàgô ìtàn designa não só qualquer tipo de conto, mas também essencialmente os ìtàn àtowódówó, histórias de tempos imemoriais, mitos, recitações, transmitidos geralmente de uma geração a outra, particularmente pelos babaláwo, sacerdotes do oráculo de Ifá 2 2 Sistema divinatório do povo iorubá, que deu origem ao jogo de búzios amplamente utilizado por pais e mães de santo dos candomblés no Brasil. . Os ìtàn-Ifá estão compreendidos nos duzentos e cinquenta e seis ‘volumes’ ou signos chamados Odù, divididos em ‘capítulos’ denominados ese.

Não é possível falar em registros fiéis a esses textos orais visto que suas produções se deram, e continuam ocorrendo, por babalaôs iorubanos, conforme sua formação no culto a Ifá, portanto revestidos de autoridade para tal (Cf. BERKENBROCK, 2018BERKENBROCK, V. J. Os itans e o porquê das coisas: a função do mito na tradição religiosa do candomblé. In: SILVEIRA, E. S. da; SAMPAIO, D. S. (org.). Narrativas míticas: análise das histórias que as religiões contam. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 163-193.). Essa autoridade confere-lhes a insígnia de fontes vivas, a quem etnólogos e sacerdotes do candomblé baiano recorreram em épocas distintas para traçar em linhas escritas parte do conteúdo desses itãs. A figura do babalaô e seu amplo conhecimento é comentado por Prandi (2020PRANDI, R. Os babalaôs e sua arte da adivinhação na tradição afro-brasileira. In: MAUPOIL, B. A adivinhação na antiga Costa dos Escravos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Edusp, 2020. p. 753-772., p. 756):

O babalaô é, na África habitada pelos povos iorubás, o sacerdote do oráculo. A palavra babalaô vem do iorubá “ babálawo”, que significa literalmente “pai do segredo”, mas que poderia ser traduzida por “senhor do conhecimento”, porque é seu dever aprender, preservar e transmitir o vasto conhecimento oral que dá a seu povo o significado e o sentido do mundo, da vida, dos deuses e dos humanos. Para definir e explicar cada coisa que os olhos veem e a mente pode imaginar, o babalaô conhece ao menos uma história dos tempos primevos dos orixás. Toda a explicação disponível para esse povo antigo, sem escrita e sem ciência nos termos atuais, está contida na metodologia que o babalaô sabe de cor, como se ele fosse uma biblioteca moderna com todos os livros da ciência de hoje.

Na pesquisa de Lisa Earl Castillo (2010CASTILLO, L. E. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2010.), registrada no livro de sua autoria Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia, a autora realizou um estudo exaustivo de como as narrativas míticas circulam nas inúmeras casas de candomblé da cidade de Salvador, na Bahia, e sua região metropolitana. Após entrevistar várias autoridades do culto, Castillo (2010CASTILLO, L. E. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2010., p. 152) observou que

além de existirem textos escritos por estudiosos que são lidos com interesse pelo povo de santo 3 3 Comunidade vinculada às casas de candomblé. , há também textos oriundos dos terreiros que são recebidos com entusiasmo por estudiosos, entre eles as obras de Mestre Didi, Mãe Stella e Mãe Beata de Yemonjá 4 4 Mestre Didi e Mãe Stella são citados neste artigo. .

Essas obras revelam, de acordo com Castillo, que os terreiros de candomblé, sobretudo os mais tradicionais, embasam sua liturgia e conhecimentos nessas narrativas, visto que são comparáveis a textos sagrados, antes passados de devoto a devoto por meio da oralidade e hoje registrados, muitos deles, em livros escritos por sacerdotes renomados.

No âmbito desta pesquisa de cunho etno-estilístico – que investiga estilos de escrita e culturas de povos em contato, cujas práticas implicam novas formas de ver e entender o mundo que os cerca –, interessa-nos realizar uma análise exploratória das formas de registro escrito de uma dessas narrativas míticas, ou itã, escrita, em cinco versões diferentes, por ícones das religiões de matriz africana no Brasil, especificamente dos candomblés Quetu – de origem iorubá – baianos, e de estudiosos e pesquisadores dessas narrativas. Por ícones entendemos membros dessas comunidades religiosas, sejam ialorixás 5 5 Mães de santo. , babalorixás 6 6 Pais de santo. , oluôs 7 7 Olhador ou sacerdote do culto a Ifá que joga búzios e outros instrumentos usados no processo divinatório de Ifá, como, por exemplo, o Opelê-Ifá, rosário que possui oito metades do coquinho de dendê, fruto sagrado para os iorubás e o povo de santo dos candomblés. , ogãs 8 8 Membros da alta hierarquia do culto aos orixás nos candomblés que não entram em transe. , dentre outros, que, além do compromisso com o registro escrito, guardam consigo essa anterioridade da escrita à qual se referiu Ricœur (1986RICŒUR, P. Du texte à l’action: essais d’herméneutique II. Paris: Editions du Seuil, 1986.); ou seja, é a tradição escrita registrando o que pode ser divulgado ao leitor leigo. Isso porque o conhecimento nessas comunidades religiosas vem carregado de axé ( àṣẹ), “força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir” ( SANTOS, J., 2012SANTOS, J. E. Os nāgō e a morte. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 40), apenas transmitido pela oralidade de um mais velho a um mais novo, na complexa hierarquia do candomblé 9 9 Axé é energia, força vital, que, segundo os sacerdotes e seus filhos e filhas de santo, circula entre os iniciados ao culto durante as práticas religiosas internas. Quanto mais tempo de iniciada a pessoa tiver, mais axé ela possui. .

No entanto, entendemos, a partir das ponderações de Lima (2004LIMA, V. da C. O candomblé da Bahia na década de 1930. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 201-221, 2004.), em seu texto “O candomblé da Bahia na década de 1930”, que essas narrativas, apesar de restritas a seu conteúdo e mensagem, de modo a não revelarem aspectos da religião que somente seus iniciados podem conhecer 10 10 O candomblé é uma religião iniciática que, por esse fato, guarda segredos que devem ser mantidos fora do alcance do público leigo, a quem é autorizado apenas frequentar as reuniões públicas dessas casas religiosas. , trazem, em seu bojo, uma parcela da vitalidade do axé, porque foram escritas por ícones da religião, portanto, detentores desse axé. Lima (2004LIMA, V. da C. O candomblé da Bahia na década de 1930. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 201-221, 2004., p. 219, grifo nosso) assim se expressa a respeito:

Fui seletivo no uso das fontes escritas e orais, sem a preocupação de ter, no apoio talvez excessivo das remissões e notas, a “legitimação” de um ensaio interpretativo de um certo período da história social da cidade da Bahia. Lembrando, no entanto, que as formas escritas para uma história do Candomblé são, afinal, as fontes orais das narrativas. Pois o que disseram os pesquisadores – de Carneiro 11 11 Edison de Souza Carneiro foi um dos maiores etnólogos baianos, especializado em cultos afro- brasileiros. a Verger 12 12 Pierre Verger foi um renomado fotógrafo e etnólogo francês, que viveu por muitos anos na Bahia. Foi profundamente ligado ao terreiro de candomblé-matriz Ilê Axé Opô Afonjá e responsável por uma vasta escrita no campo das religiões afro-brasileiras, especialmente o candomblé. Sua obra, além de clássica, é ainda hoje referência no assunto. –, foi recolhido na tradição oral das casas-de-santo; seus mitos, suas, por vezes, contraditórias genealogias, suas racionalizações sobre o tempo e o espaço. Como por exemplo, o livro que citei muitas vezes, de Deoscóredes M. Santos 13 13 História de um terreiro nagô: crônica histórica (1994). , [Mestre] Didi, fundamental sob tantos aspectos, para o conhecimento da organização e da história de “uma casa de Queto”, da “nação de Queto” – que é o terreiro fundado por sua avó Aninha, por tantos anos dirigido por sua mãe Senhora, é, também, e sobretudo a tradição oral da casa cuidadosamente escrita [...]

Lima enfatiza que a transposição para o texto escrito de narrativas orais contadas nos candomblés da nação Quetu baianos, em sua maioria em cerimônias restritas aos iniciados, é “a tradição oral da casa cuidadosamente escrita” e, arriscamos adicionar, a parcela do axé que pode ser compartilhada 14 14 Enfatizamos o verbo compartilhar para registrar que não há transmissão do axé por meio das narrativas escritas, mas apenas partilha com o leitor do que pode ser revelado ao público geral. com o leitor leigo. A esse respeito recorremos à observação de um desses ícones, Maria Stella de Azevedo Santos (2010SANTOS, M. S. de A. Meu tempo é agora. 2. ed. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2010., p. 31, grifo do autor), a Mãe Stella de Oxóssi:

A população terrestre aumentou muito, consequentemente, a do Àṣẹ também, dificultando muito a transmissão do conhecimento apenas por via oral. O que se registra, por escrito, permanece! Porém, nunca é demais lembrar, apesar da importância da escrita na comunicação, o conhecimento transmitido pela oralidade é a base da transmissão do conhecimento iniciático, pois só através dele o Àṣẹ dos mais velhos pode ser repassado aos mais novos.

É inegável a avalanche de livros sobre a religião dos orixás, escritos por etnólogos, pesquisadores, sacerdotes e outros iniciados no culto. Um conjunto significativo dessas obras tornou-se referência nos estudos sobre o candomblé, alguns deles citados neste artigo ( VERGER, 1954VERGER, P. Dieux d’Afrique. Paris: Editions Paul Hartmann, 1954.; BASCOM, 1969BASCOM, W. Ifa Divination: Communication between Gods and Men in West Africa. Bloomington: Indianapolis: Indiana University Press, 1969., 1980BASCOM, W. Sixteen Cowries: Yoruba Divination from Africa to the New World. Bloomington: Indianapolis: Indiana University Press, 1980.; BEIER, 1980BEIER, U. Yoruba Myths. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.; SANTOS, J., 2012SANTOS, J. E. Os nāgō e a morte. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.; CASTILLO, 2010CASTILLO, L. E. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2010.; BENISTE, 2019BENISTE, J. Ọrun Àiyé: o encontro de dois mundos. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.; ROCHA, 2000ROCHA, A. M. As nações kêtu: origens, ritos e crenças. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro, 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.; PRANDI, 2001PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.; SANTOS, M. S., 2010SANTOS, M. S. de A. Meu tempo é agora. 2. ed. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2010.; entre outros). Essa vasta literatura de tradição escrita tem demonstrado parâmetros textuais condizentes com o modus vivendi da comunidade religiosa dos candomblés. Como afirma Prandi (2001, p. 26), “dificilmente se lê um livro ou artigo sobre as religiões dos orixás sem que um ou mais mitos sejam citados, uma vez que os valores e ritos dessas religiões repousam num conhecimento mítico.”

Acrescentaríamos a essa ponderação de Prandi o fato de que a maioria dos livros referentes a ícones do candomblé baiano, como, por exemplo, Agenor Miranda Rocha (Professor Agenor) 15 15 Cf. SODRÉ; LIMA, 1996. , famoso oluô e filho de santo de Eugênia Anna dos Santos; Mãe Aninha, fundadora do exemplar candomblé baiano Ilê Axé Opô Afonjá, em São Gonçalo, Salvador; e Maria Stella de Azevedo Santos 16 16 Cf. CAMPOS, 2003. , penúltima ialorixá deste mesmo candomblé, falecida em dezembro de 2018, fundamenta-se textualmente em narrativas, como se a prática religiosa da tradição oral fosse reproduzida na literatura escrita que trata de ícones do culto. Em livro que homenageia Agenor Miranda Rocha, por exemplo, narrado em terceira pessoa e repleto de depoimentos de personalidades notáveis, como Jorge Amado, Carybé, Gilberto Gil, Antonio Olinto, Maria Stella de Azevedo Santos, dentre várias outras, seus autores assim o definem: “Trata-se de uma história de vida – um relato biográfico de fatos miúdos, locais, sem ressonância na História oficial, mas altamente significativos para os milhões de adeptos e simpatizantes da ‘lei de santo’ 17 17 Conjunto de regras que fundamenta a prática litúrgica das religiões de matriz africana, especialmente o candomblé. ” ( SODRÉ; LIMA, 1996SODRÉ, M.; LIMA, L. F. de. Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição nagô-kêtu brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1996., p. 9-10, grifo do autor). A narrativa, portanto, é o alicerce sobre o qual a figura ímpar de Agenor Miranda Rocha é transplantada de sua prática religiosa de oluô para a prática social da tradição escrita, revestindo-o, dessa forma, de capital simbólico ( BOURDIEU, 1991BOURDIEU, P. Language and Symbolic Power. Tradução: Gino Raymond, Matthew Adamson. Cambridge: Polity Press, 1991.) a partir de sua história no candomblé. O significado de capital simbólico remonta à ideia de que, para Bourdieu, os enunciados não são apenas signos decifráveis, mas, sobretudo, signos sobre os quais são investidos poder e autoridade. Cria-se, dessa maneira, um mercado de trocas linguísticas constituído por quem tem o direito e a competência para falar/escrever, ou seja, de quem está investido de poder. Esse é o caso de alguns ícones do candomblé baiano, dentre eles, Agenor Miranda Rocha e Maria Stella de Azevedo Santos.

Nessa mesma linha de pensamento, Maria Stella de Azevedo Santos narra, em primeira pessoa, sua trajetória como ialorixá do candomblé-matriz Ilê Axé Opô Afonjá, sem, no entanto, deixar de prestar homenagem às iás ( Ìyá 18 18 Mães de santo que antecederam Mãe Stella de Oxóssi no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. ) que a antecederam. Assim ela o faz por meio de narrativas de fatos históricos e constitutivos do terreiro:

No tempo de Mãe Aninha, o mistério estava mais presente, até na sua própria pessoa Ṣàngó Àfonjá 19 19 Afonjá é uma das qualidades ou caminhos do orixá Xangô, santo de cabeça de Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá. sempre mostrava toda a sua força através de práticas misteriosas, como, por exemplo, fazendo orogbo 20 20 Orobô é um “fruto de significado transcendental indispensável no culto de Ṣàngó [Xangô]”. ( SANTOS, M. S., 2010, p. 179) virar pedra e pedra virar pó. Este Ṣàngó emanava fogo! Tantas e tantas outras coisas ele fazia... Quem conhecia os mitos dos Oríṣa e presenciava o que Ele fazia não tinha dúvida da veracidade das práticas inexplicáveis. Também, o ‘Povo de Àṣẹ’ era uma família plena de fé e espiritualidade e por isso merecedores deste tipo de graça. Tempos em que os Àgba 21 21 Iniciado mais velho, superior, sábio. eram verdadeiros mestres. ( SANTOS, M. S., 2010SANTOS, M. S. de A. Meu tempo é agora. 2. ed. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2010., p. 19-20, grifo do autor)

O relato demonstra o saudosismo de um tempo em que as práticas religiosas se revestiam de mistério e força espiritual. O retorno a esse tempo, por meio da narrativa, embasa a trajetória textual da autora, que percebe, com muita clareza, que tanto na tradição oral como na tradição escrita as narrativas servem como representações discursivas 22 22 “Construímos narrativas como representações estruturadas de eventos numa ordem temporal específica.” ( JAWORSKI; COUPLAND, 1999, p. 30, tradução nossa, grifo nosso) da constituição da história e, sobretudo, dos fundamentos de sua casa de candomblé. Ao rememorar esses fatos, a ialorixá registra seu testemunho à posteridade, como uma exímia historiadora:

O momento do arquivo é o momento do ingresso na escrita da operação historiográfica. O testemunho é originariamente oral; ele é escutado, ouvido. O arquivo é escrita; ela é lida, consultada. [...] O arquivo apresenta-se assim como um lugar físico... [...] Mas o arquivo não é apenas um lugar físico, espacial, é também um lugar social. ( RICŒUR, 2007RICŒUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François et al. Campinas: Editora Unicamp, 2007., p. 176-177, grifo nosso)

A percepção do arquivo como um “lugar social”, conforme definiu Ricœur, lança luz sobre o objeto de nossa investigação: as narrativas míticas ou itãs, porque não somente se revestem de registro documental, mas, sobretudo, de um lugar social que a escrita fixa e disponibiliza. Ambas, fixação e disponibilização, permitem que essas narrativas surgidas em tempos imemoriais sejam reiteradamente acessadas e vividas nos ritos e cerimônias dos candomblés baianos. Como bem observou Mircea Eliade (2019ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução: Rogério Fernandes. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2019., p. 87), “a função mais importante do mito é, pois, ‘fixar’ os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas”.

Dada, pois, a importância da tradição escrita para a manutenção dos saberes ancestrais dos candomblés baianos, cujas matrizes deram origem às incontáveis casas de candomblé espalhadas pelo território brasileiro, neste artigo analisaremos as formas de registro escrito de um itã, tendo como certo que essas narrativas, como as conhecemos hoje, são um gênero textual adaptado aos aspectos culturais e litúrgicos que marcam o povo de santo baiano, cujo fundamento encontra-se nesta observação de Maria Stella de Azevedo Santos (2020SANTOS, M. S. de A. Òṣósi. 2. ed. Rio de Janeiro: Autorale, 2020., p. 14),

em nossa liturgia, os motivos mitológicos são repetidos, em nossos cânticos são exaltados, e por todos omo oriṣa 23 23 Filhos de santo. são experienciados com êxtase. É daí que advém todo o nosso esforço para preservar, com fidelidade, as nossas tradições, evitando os “modernismos” e adaptações infundadas, pois só assim podemos garantir a integridade do legado dos nossos ancestrais.

No que se segue, discutimos o papel dessas narrativas no contexto da pesquisa e suas características textuais, para, logo após, as analisarmos comparativamente. Ao final, discutimos a análise e tecemos as considerações finais que, em síntese, demonstraram um ponto importante do corpus deste artigo: não obstante algumas diferenças presentes nas versões estudadas, os aspectos fundacionais das narrativas míticas investigadas apresentam similaridade entre suas versões, fato que sugere certa homogeneidade na maneira de ver e entender o sagrado representado nos cultos dos candomblés Quetu baianos.

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Etno-estilística, narrativas e o sagrado

O caráter etno-estilístico deste estudo origina-se de discussões no campo da linguística antropológica, área do conhecimento que estuda a linguagem como um recurso das e nas culturas (Cf. DURANTI, 1997DURANTI, A. Linguistic Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.), cujo objetivo é descrever os multifacetados aspectos do uso da linguagem como um conjunto de práticas culturais; isto é, a linguística antropológica na qual nos baseamos entende a linguagem como representação simbólica das culturas e atividade mediadora entre as pessoas e o mundo. A linguagem tanto reproduz como modifica a realidade, exercendo igual papel sobre as culturas. Para Duranti (1997DURANTI, A. Linguistic Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press, 1997., p. 27, tradução nossa), “conhecer uma cultura é como conhecer sua linguagem; ambas são realidades subjetivas. Ademais, descrever uma cultura seria como descrever sua linguagem. Portanto, o objetivo de descrições etnográficas é a escrita de ‘gramáticas culturais.’” Dessa perspectiva advém o conceito de etno-estilística que adotamos neste artigo, porque descreve estilos de escrita cujos textos tenham fundamentos em culturas e povos em contato e com intervenções mútuas que conduzem a novas formas de ver e entender o mundo, no caso deste estudo, o sagrado. Dessa perspectiva advém, ainda, nossa preocupação em fornecer um conjunto de informações, presentes, em sua maioria, nas notas de rodapé, sobre os rituais litúrgicos e suas funções oriundo de obras de sacerdotes e iniciados renomados, de modo a também ilustrar nossas observações pela visão desses ọmọ òrìṣà.

A relação da escrita de “gramáticas culturais” com as narrativas míticas, ou itãs, está nos processos de assimilação de rituais entre as antigas tribos africanas, quando uma conquistava outras e, com isso, incorporava seus deuses ao panteão já existente nas tribos dominadas. Esse é o caso, por exemplo, dos orixás caçadores – Odé – Oxóssi, Erinlé e Ibualama, cujos cultos e ritos sofreram assimilações de tribos em território iorubá, embora suas características essenciais tenham sido preservadas (Cf. SANTOS, M. S., 2020SANTOS, M. S. de A. Òṣósi. 2. ed. Rio de Janeiro: Autorale, 2020.). No Brasil, essas variações são conhecidas por “qualidades” dos orixás, como explica Prandi (2001PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 24):

Cada orixá pode ser cultuado segundo diferentes invocações, que no Brasil são chamadas qualidades e em Cuba, caminhos. Pode-se, por exemplo, cultuar uma Iemanjá jovem e guerreira, de nome Ogunté, uma outra velha e maternal, Iemanjá Sabá, entre outras. Assim, cada orixá se multiplica em vários, criando-se uma diversidade de devoções, cada qual com um repertório específico de ritos, cantos, danças, paramentos, cores, preferências alimentares, cujo sentido pode ser encontrado nos mitos.

Nessa mesma perspectiva, pautamo-nos nos estudos sobre narrativas (Cf. TOOLAN, 2001TOOLAN, Michael. Narrative: A Critical Linguistics Introduction. 2. ed. London: New York: Routledge, 2001.; ABBOTT, 2008ABBOTT, H. P. The Cambridge Introduction to Narrative. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.), entendendo-as como artefatos de uma cultura trazida pela diáspora negra, com personagens, tramas e informações que fundamentam a organicidade do sistema de crenças do povo iorubano proveniente da Nigéria. Essas narrativas míticas, originalmente nascidas em formas de verso (Cf. BASCOM, 1969BASCOM, W. Ifa Divination: Communication between Gods and Men in West Africa. Bloomington: Indianapolis: Indiana University Press, 1969.) por intermédio da oralidade, em tempos imemoriais e retratando processos de assimilação entre tribos (Cf. PRANDI, 2001PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.; BENISTE, 2016BENISTE, J. Mitos yorubás: o outro lado do conhecimento. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016.; BERKENBROCK, 2018BERKENBROCK, V. J. Os itans e o porquê das coisas: a função do mito na tradição religiosa do candomblé. In: SILVEIRA, E. S. da; SAMPAIO, D. S. (org.). Narrativas míticas: análise das histórias que as religiões contam. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 163-193.), dão significados a vários ritos constitutivos da liturgia religiosa dos candomblés, servindo, portanto, como a base sobre a qual se assentam essas práticas religiosas. Um exemplo da importância dessas narrativas revela-se nas danças que as iaôs 24 24 Iniciadas ao culto que ainda não atingiram a maioridade na hierarquia do candomblé. realizam quando manifestadas de seus orixás, cujas coreografias demonstram as características desses deuses iorubanos, de suas trajetórias e feitos excepcionais, tudo expresso nas narrativas míticas que contam suas histórias (Cf. BÀRBARA, 2002BÀRBARA, R. A dança das Aiabás: dança, corpo e cotidiano das mulheres de candomblé. 2002. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2002.).

Do ponto de vista ritualístico, a escolha pela análise da narrativa mítica que descreve a relação entre Orunmilá e Ossaim justifica-se pela importância desses dois orixás no processo divinatório do jogo de búzios, também conhecido como Ẹ́rìndilógún 25 25 Ẹ́rìndilógún significa dezesseis em português, porque o jogo de búzios lança mão de 16 búzios para a sua prática divinatória. , por serem os patronos desse sistema oracular. Enquanto o orixá Orunmilá atenta para as questões relativas ao destino e à vida das pessoas que chegam à mesa do jogo de búzios para consulta, o orixá Ossaim dedica-se às orientações de cunho medicinal, indicando ervas para a confecção de remédios específicos ao problema de saúde do consulente apresentado durante o jogo.

Ademais, o jogo de búzios é o oráculo que instrui e determina todos os ritos que acontecem nos terreiros de candomblé ao longo do ano litúrgico. De acordo com Agenor Miranda Rocha (2000ROCHA, A. M. As nações kêtu: origens, ritos e crenças. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro, 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2000., p. 83),

as obrigações do odum (ano ritual) são muito importantes para uma casa. É dali que cada pessoa e a própria casa retiram a força necessária para continuar existindo. As oferendas representam uma troca constante de “axé”. Muitos detalhes precisam ser pensados para que os preceitos sejam cumpridos à risca. Por isso, antes do início do odum é indispensável que se faça um jogo para saber exatamente como devem ser realizadas as obrigações.

É fato que para a liturgia dos candomblés Queto baianos, o jogo de búzios, cujos patronos são Orunmilá e Ossaim, advindos do sistema divinatório de Ifá na Nigéria (Cf. BASCOM, 1980BASCOM, W. Sixteen Cowries: Yoruba Divination from Africa to the New World. Bloomington: Indianapolis: Indiana University Press, 1980.), deve ser consultado, por meio do qual os orixás, sobretudo Exu 26 26 O orixá Exu é o comunicador por excelência, responsável por transmitir as falas dos demais orixás no jogo de búzios (Cf. PRANDI, 2001). , falam no jogo e determinam como deverá transcorrer o ano litúrgico, que varia em cada casa de candomblé.

Do ponto de vista temporal, a escolha pela narrativa a ser analisada justifica- se por suas formas de registro ao longo dos anos. Inicialmente publicada em 1943, recebeu diferentes releituras em 2001 e, sobretudo, 2014; essa mesma narrativa foi coletada na Nigéria com algumas poucas mudanças e publicada em 1980 27 27 É importante destacar que as versões da mesma narrativa mítica escolhida para análise foram aquelas registradas por ícones do candomblé baiano, dentre eles, pesquisadores, integrantes da religião e sacerdotes. Essa seleção resultou nas cinco narrativas apresentadas neste artigo. Outras versões, que certamente existem, são originárias das que aqui se encontram, portanto, foram descartadas. Não desconsideramos, porém, que as outras versões dessa narrativa possam ser objeto de estudo e análise; pelo contrário, investigá-las tendo como referência as cinco narrativas analisadas neste artigo pode, sem dúvida, demonstrar como esse itã tem sido absorvido e (re) interpretado por outras pessoas vinculadas ao culto. Todavia, para um estudo dessa envergadura, ser-nos-ia necessário mais espaço do que dispomos para a escrita deste artigo, que se configurou numa análise interpretativa das narrativas míticas selecionadas. Nosso foco foi, pois, apreender como os ícones do candomblé baiano se apropriaram da narrativa mítica estudada registrando-a na escrita. Para uma análise das questões complexas relativas aos itãs no seio das casas de candomblé na Bahia, ver Castillo (2010). .

É importante compará-las tendo como base o fato de que não há uma autoria ou texto-fonte dessas narrativas míticas, como discutiu Berkenbrock (2018BERKENBROCK, V. J. Os itans e o porquê das coisas: a função do mito na tradição religiosa do candomblé. In: SILVEIRA, E. S. da; SAMPAIO, D. S. (org.). Narrativas míticas: análise das histórias que as religiões contam. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 163-193.), dado o seu surgimento em tempos primevos, passando de geração a geração e, consequentemente, sofrendo mudanças. Segundo Prandi (2001PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 33),

é difícil atestar a procedência de um mito, isto é, onde teria ele sido criado, se na África ou na América, e, quando se trata de um daqueles colhidos há muito tempo na África e depois reencontrado na América, é temerário afirmar qualquer coisa sobre o modo como veio a se reproduzir aqui, o mesmo ocorrendo quando se dá o caminho inverso. Hoje em dia é quase impossível saber com que fonte aprendeu o informante, sobretudo porque, com o enfraquecimento da transmissão oral, um verdadeiro universo de fontes escritas de todas as origens, de naturezas diversas e em diferentes línguas se abre aos iniciados [...].

Nesse aspecto, a importância da narrativa mítica recai sobre quem a conta oralmente ou a registra em texto escrito; daí advém nossa observação de que a figura do narrador é garantidora de legitimidade da narrativa para o povo de santo. As diferentes versões da narrativa sob análise apresentadas a seguir são de fontes diversas: de pesquisadores renomados, nacionais e estrangeiros, de integrantes de uma casa-matriz do candomblé baiano e de uma grande ialorixá.

A narrativa escolhida para a análise exploratória a que nos propusemos demonstra muito bem a relação entre Orunmilá e Ossaim. Esta narrativa foi originalmente publicada em Bernard Maupoil (2020MAUPOIL, B. A adivinhação na antiga Costa dos Escravos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Edusp, 2020., p. 188-189) 28 28 Originalmente publicado como Bernard Maupoil, La géomancie à l’ancienne Côte des Esclaves, Paris, Institut d’Ethnologie/Musée de l’Homme, 1943. Durante sua estadia no Baixo Daomé, entre os anos 1934 e 1936, Maupoil lançou mão de dois tipos de informantes por ele denominados rústicos e letrados. Em relação aos informantes rústicos, ele esclarece que “foram escolhidos de preferência entre os melhores ou mais reputados”, e, como base de seu método, Maupoil (2020, p. 16) explica que “o princípio testis unus, testis nullus [uma testemunha, nenhuma testemunha] foi escrupulosamente aplicado”. Quanto aos informantes letrados, Maupoil (2020, p. 17) deu a seguinte explicação: “O pesquisador constata e lastima ter sido pouco ajudado pelos letrados do Baixo Daomé. Aqueles a cuja competência o aconselhou a recorrer deixaram-no muitas vezes a lembrança de uma vaidosa insuficiência. Além disso, os trabalhos produzidos por alguns deles ainda apresentam um excesso de imprecisões”. :

  [Narrativa 1]

Quando surgiu pela primeira vez na terra, Fá 29 29 Nome dado a Ifá no antigo Daomé, hoje República do Benin, onde Bernard Maupoil coletou os dados de sua pesquisa. pediu que lhe encontrassem um escravo para trabalhar em sua roça e para isso adiantou uma certa quantia. Compraram-lhe no mercado um escravo chamado Asen Acrelele 30 30 No antigo Daomé, é o correspondente ao orixá Ossaim dos iorubás. Asen é também o nome dado a “uma haste de ferro cilíndrica, retilínea, terminada em ponta para ser fincada no chão. [...] O asen acrelele é o bastão de Fá”. ( MAUPOIL, 2020, p. 187-188) e o levaram à sua presença. Fá mandou-o imediatamente para sua roça para cortar capim. Asen, no momento em que ia iniciar o seu trabalho, percebeu que iria cortar a erva que cura a febre. Exclamou: “É impossível cortar esta erva! Ela é muito útil!” A segunda erva com que ele se deparou curava a dor de cabeça. Recusou-se igualmente a destruí-la. A terceira erva suprimia cólicas... “Na verdade”, disse ele, “não posso arrancar ervas tão necessárias”.

Imediatamente comunicaram a Fá que seu escravo se recusava a cortar as ervas porque todas tinham um grande valor e contribuíam para manter o corpo saudável. Fá chamou Asen Acrelele e pediu que lhe mostrasse aquelas ervas tão preciosas. Ao ouvir as suas explanações, decidiu que Asen não iria mais trabalhar na roça, mas ficaria ao seu lado para continuar a elucidá-lo sobre as virtudes das plantas, das folhas e das ervas.

Desde então, Fá e Asen são inseparáveis. Quando Fá deixa o fagbasa 31 31 “Denomina-se fagbasa o espaço reservado às consultas e às cerimônias de Fá na residência do bokono [correspondente ao babalaô dos iorubás].” ( MAUPOIL, 2020 p. 179). , está sempre acompanhado por Asen. Quando Fá é consultado, Asen Acrelele permanece o tempo todo fincado no chão, no local da consulta.

É de notar-se que o tempo da narrativa se mostra em uma sequência de eventos irreversíveis, ou seja, que não pode ser mudada, porque se referem a algo já acontecido. O texto também remonta a tempos imemoriais, quando Orunmilá veio à terra pela primeira vez. Participaram desses tempos outros orixás, dentre eles Ossaim, a quem compete os segredos das folhas. Essa sequência de eventos pode ser assim resumida: Orunmilá veio ao mundo e comprou um escravo de nome Ossaim, a quem incumbiu de roçar seu campo. Como muitas das ervas ali presentes tinham poder curativo, negou-se a fazê-lo. Com efeito, Ossaim despertou o interesse de Orunmilá sobre seu conhecimento acerca das folhas. Desde então, Orunmilá e Ossaim se tornaram inseparáveis, especialmente quando Orunmilá faz uso do oráculo. Nessa síntese, fica explícito o núcleo da narrativa, em que se expressa sua trama. A fonte imemorial da narrativa mostra que seu tempo é indefinido e seus atores, Orunmilá e Ossaim, ocupam o mesmo destaque na trama, embora apresentem personalidades distintas: Orunmilá é senhor e Ossaim escravo. Disso parece vir a imagem de Asen (Ossaim) “fincado no chão”, simbolicamente representado como o bastão que acompanha Fá (Orunmilá) “o tempo todo [...] no local da consulta.” Os elementos básicos da narrativa – sequência de eventos, atemporalidade, trama, atores/personagens e contexto/cena – estão expressos, com ênfase em seus atores – Orunmilá e Ossaim – e o que eles dizem e realizam. Esse fato não é de se estranhar, uma vez que as narrativas míticas que embasam a liturgia dos candomblés têm como papel precípuo exaltar os orixás, seus feitos e qualidades. Portanto, a centralidade da narrativa recai sobre seus atores ou personagens.

Em seu livro Orixás, Pierre Verger (2018VERGER, P. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo. Tradução: Maria Aparecida da Nóbrega. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2018., p. 129) traz uma síntese da mesma narrativa, pouco mais detalhada do que o resumo que fizemos acima, em cujas escolhas manteve os mesmos elementos textuais do original coletado por Bernard Maupoil:

  [Narrativa 2]

Quando Orunmilá veio ao mundo, pediu um escravo para lavrar seu campo; compraram-lhe um no mercado; era Ossain 32 32 Respeitamos a grafia dos textos citados, mas adotamos a grafia em língua portuguesa constante e já consagrada de Reginaldo Prandi, em Mitologia dos orixás (2001 ). . Na hora de começar seu trabalho, Ossain percebeu que ia cortar a erva que curava a febre. E então gritou: “Impossível cortar esta erva, pois é muito útil”. A segunda curava dores de cabeça. Recusou-se também a destruí-la. A terceira suprimia as cólicas. “Na verdade”, disse ele, “não posso arrancar ervas tão necessárias.” Orunmilá, tomando conhecimento da consulta de seu escravo, demonstrou desejo de ver essas ervas, que ele se recusava a cortar e que tinham grande valor, pois contribuíam para manter o corpo em boa saúde. Decidiu, então, que Ossain ficaria perto dele para explicar-lhe as virtudes das plantas, das folhas e das ervas, mantendo-o sempre ao seu lado na hora das consultas.

Um aspecto a se considerar nessas narrativas é a presença de qualificadores aos elementos, no caso, as folhas, referidos por Ossaim (“muito útil”, “tão necessárias”, “um grande valor”, “tão preciosas”). É no conhecimento das propriedades dessas ervas que reside a importância de Ossaim na liturgia dos candomblés. Orunmilá, por sua vez, não tem suas qualidades exaltadas nessa narrativa mítica, embora seja inegável sua função na práxis dos rituais do culto. O destaque que se quis dar foi para os conhecimentos especiais que Ossaim tinha das folhas, o que fez dele, mesmo na condição de escravo, um personagem essencial ao culto a Orunmilá na Nigéria e, nos candomblés Quetu, sobretudo na Bahia, ao jogo de búzios. Bernard Maupoil e Pierre Verger deixaram registrada em forma de narrativa esse itã originalmente coletado na África, de cujos detalhes o povo de santo na Bahia extraiu os elementos fundamentais a um ritual muito importante nos candomblés denominado cantar folha 33 33 Cf. SANTOS; PEIXOTO, 2014. .

Reginaldo Prandi (2001PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 152), em seu exaustivo trabalho de organização das muitas narrativas míticas acerca dos orixás em um único volume, traz uma versão um pouco modificada dos itãs coletados por Maupoil e Verger, mas que conserva os mesmos elementos narratológicos – sequência de eventos, atemporalidade, trama, atores/personagens e contexto/cena:

  [Narrativa 3]

Ossaim recusa-se a cortar as ervas miraculosas

Ossaim era o nome de um escravo que foi vendido a Orunmilá. Um dia ele foi à floresta e lá conheceu Aroni,

que sabia tudo sobre as plantas.

Aroni, o gnomo de uma perna só, ficou amigo de Ossaim e ensinou-lhe todo o segredo das ervas.

Um dia, Orunmilá desejoso de fazer uma grande plantação, ordenou a Ossaim

que roçasse o mato de suas terras.

Diante de uma planta que curava dores, Ossaim exclamava: “Esta não pode ser cortada, é erva que cura as dores.” Diante de uma planta que curava hemorragias, dizia:

“Esta estanca o sangue, não deve ser cortada.”

Em frente de uma planta que curava a febre, dizia: “Esta também não, porque refresca o corpo.”

E assim por diante.

Orunmilá, que era um babalaô muito procurado por doentes, interessou-se então pelo poder curativo das plantas

e ordenou que Ossaim ficasse junto dele nos momentos de consulta, que o ajudasse a curar os enfermos com o uso das ervas miraculosas.

E assim Ossaim ajudava Orunmilá a receitar

e acabou sendo conhecido como o grande médico que é.

Nesta narrativa, Prandi registra, já na segunda linha, a presença de um personagem que não foi mencionado nem por Bernard Maupoil nem por Pierre Verger: Aroni. Como explica o próprio texto, Aroni era um “gnomo de uma perna só”, “que sabia tudo sobre as plantas”, com quem Ossaim aprendeu “o segredo das ervas”. Diferentemente das narrativas registradas por Maupoil e Verger, nessa versão de Prandi surge o recurso explicativo de quem eram Aroni e Ossaim, sobre cujos personagens, especialmente Ossaim, recai o foco narrativo. Assim, aos elementos narratológicos presentes nas três versões, nesta de Prandi acrescenta- se o elemento descrição, recurso que caracteriza e explica os personagens, suas ações e ideias (“Ossaim era o nome de um escravo...”; “Aroni, o gnomo de uma perna só...”; Orunmilá, que era um babalaô muito procurado por doentes...”). Os elementos, pois, são os seguintes: sequência de eventos, atemporalidade, trama, atores/personagens, descrição e contexto/cena.

Em seu livro Orixás, Pierre Verger (2018VERGER, P. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo. Tradução: Maria Aparecida da Nóbrega. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2018., p. 130) comenta outra fonte dessa mesma narrativa, coletada por William Bascom (1980BASCOM, W. Sixteen Cowries: Yoruba Divination from Africa to the New World. Bloomington: Indianapolis: Indiana University Press, 1980., p. 531) na Nigéria e constante de sua obra monumental, Sixteen Cowries. É importante destacar que Bascom teve como único informante o babalaô Salakó (Sàlàkọ́), pertencente ao culto de Orixalá na cidade de Oió (Ọyọ), na Nigéria. É dessa fonte que apresentamos o verso de Ifá de onde foi retirada a narrativa, cuja tradução, a partir da realizada por Bascom, aparece em Wagner da Silva Barreto (2013BARRETO, W. da S. Jogo de búzios tradicional nigeriano: sistema divinatório. Salvador: Editora Clube de Autores, 2013., p. 231-233):

  [Narrativa 4]

“Atankorobiti” 34 34 Uma possível interpretação para ‘Atankorobiti’ (Àtànkoròbìtì) pode se dar por meio do desmembramento desse vocábulo: Àtànko rò bìtì, que, traduzido para o português, significa ‘Atanko pensou, meditou, um pouco.’ Nem Bascom (1980) nem Barreto (2013) traduziram esse vocábulo, portanto, decidimos mantê-lo tal qual aparece nessas obras. De acordo com Napoleão (2011, p. 5-6), “até o século XIX, a língua yorubana não possuía uma forma escrita. Foi a partir desse século que alguns missionários yorubanos da igreja anglicana [...], com a ajuda de alguns de seus colegas estrangeiros, criaram a escrita yorùbá inspirada no alfabeto europeu.” No caso do informante de Bascom, Salakó, o vocábulo ‘Atankorobiti’ foi por ele pronunciado e registrado, mas mesmo os tradutores que ajudaram Bascom na transcrição e tradução das centenas de itãs ditos oralmente por Salakó preferiram manter esse vocábulo tal qual expresso pelo babalaô. Uma hipótese para essa escolha se deve talvez à forma arcaica do vocábulo, como de inúmeros outros falados nos cultos afro-brasileiros, cujas expressões caíram em desuso.

consulta Ifá para Orunmilá,

Ifá vai comprar Ossain como escravo. Ossain, ele vai até Ifá,

ele vai pedir dinheiro emprestado.

Ifá diz, “Você pode ajudar-me capinando minha fazenda”.

Ossain foi fazer aquilo.

“O lugar para onde vou pode ser bom para mim?” Eles dizem que Ossain,

eles dizem que ele deve oferecer doze mil búzios, eles dizem que ele deve oferecer uma galinha escura, ele deve oferecer um pombo escuro,

ele deve oferecer a roupa preta que ele está usando, eles dizem que ele retornará com uma bênção.

Ossain reúne os materiais, ele oferece o sacrifício 35 35 Oferecer o sacrifício significa fazer uma oferenda. . Ele desfaz a trama.

Quando Ossain chega no campo, quando ele vê uma erva,

ele diz, “Ah! Esta erva cura doenças, esta aqui é a erva da riqueza,

esta aqui é a erva para esposas, Ossain não corta nenhuma delas.

No sexto dia quando Ifá chega (ele diz). “O que aconteceu?”.

Ele diz que ele não tinha encontrado uma única erva daninha para capinar.

Ifá diz, “Você não encontrou nada para capinar?” “Ah!”. Ele diz,

“Atankorobiti,

o que eu devo capinar? Esta é a erva da riqueza. Atankorobiti,

o que eu devo capinar? Esta é a erva de esposas.

Atankorobiti,

o que eu devo capinar? Esta é a erva de filhos. Atankorobiti,

o que você quer que eu faça com elas?” Ossain vem falar para Ifá,

Ossain vem dizer para Ifá,

“Esta aqui, se alguém tem dores de estômago, esta é que nós devemos usar para curá-lo.

Se alguém tem dores de cabeça.

esta é que nós devemos usar para curá-lo. Se alguém quer engravidar,

esta é que nós daremos para ela comer. Se alguém quer ter filho,

esta é que nós daremos para ela comer. Se alguém está doente,

esta é que nós daremos para ela comer. “Ah!” (Ifá) diz, “Vá embora”.

Ele diz, “Que você não apanhe nada da minha fazenda”. Então Ossain não precisa pagar o dinheiro (que ele deve) Com seu trabalho nunca mais.

Orixá diz que quando nós lançamos esta figura 36 36 “Lançar esta figura” significa o momento em que os búzios são lançados pelo babalaô sobre a peneira e, a depender da forma como caem – se com a parte aberta para cima ou para baixo –, formam uma figura, ou odu (ver nota de rodapé seguinte), que deverá ser interpretada pelo babalaô. Não se trata aqui de figura como desenho, mas da quantidade de búzios que caem abertos (com a parte aberta para cima) e a quantidade que caem fechados (com a parte aberta para baixo). Vale a contagem dos búzios que caem abertos. , orixá diz que bênção é o que ele prediz.

Orixá diz que pequenos negócios é o que esta pessoa pode fazer para se tornar rico,

que esta pessoa deve se dedicar ao trabalho que ele está fazendo.

Ossain dança, ele alegra-se,

ele elogia os babalaôs,

e os babalaôs louvam orixá.

Diferentemente dos outros registros, essa narrativa apresenta-se na forma tradicional de versos de Ifá, portanto um itã, tal qual é pronunciada pelo babalaô no momento do jogo 37 37 “Os odus [signos de Ifá ou destino] expressam-se através de itãs ( ìtàn), relatos míticos em forma de parábola ou enigmas, introduzidos por provérbios alusivos. Com essas parábolas são prescritas as providências, potencializadoras ou desmobilizadoras, de acordo com a situação que se apresenta. E isto para que se obtenham os benefícios desejados, removendo barreiras acaso existentes, ou se interrompa o curso de infortúnios anunciados, iminentes ou futuros.” ( LOPES, 2020, p. 43). . Os elementos constitutivos desse registro diferem-se um pouco das narrativas anteriores: a sequência dos eventos muda, porque Ossaim, no início do itã, consulta Ifá por meio do jogo e, ao mesmo tempo, vai trabalhar para ele. Na sequência, Ossaim faz o sacrifício indicado no jogo e, com isso, consegue o desejado. A temporalidade do itã é imemorial, portanto, atemporal, como nas outras narrativas, mas a trama e os personagens sofreram mudanças. Enquanto nas narrativas anteriores Ossaim é identificado como escravo apenas, nesse itã ele é um escravo que consulta Ifá para saber se será bem-sucedido se trabalhar para Orunmilá. Quanto aos personagens, os principais são Orunmilá e Ossaim, não obstante haver uma certa confusão com Ifá e Orunmilá nos primeiros versos, que parecem ser distintos: “consulta Ifá para Orunmilá, Ifá vai comprar Ossain como escravo.” Ao longo do itã, a trama também revela diferenças: após recusar-se a roçar o campo de Orunmilá, Ossaim não permanece e vai embora sem precisar trabalhar para ele. O itã também traz informações concernentes à caída dos búzios sobre a peneira e dos benefícios advindos disso: “Orixá diz que quando nós lançamos esta figura, orixá diz que bênção é o que ele prediz. Orixá diz que pequenos negócios é o que esta pessoa pode fazer para se tornar rico, que esta pessoa deve se dedicar ao trabalho que ele está fazendo.” Ao final, Ossaim alegra-se com os resultados da oferenda e louva os babalaôs.

A última versão da narrativa a ser analisada é a registrada por Maria Stella de Azevedo Santos e publicada no livro O que as folhas cantam ( SANTOS; PEIXOTO, 2014SANTOS, M. S. de A.; PEIXOTO, G. D. O que as folhas cantam: para quem canta folha. Brasília: Editora UnB, 2014., p. 8-9):

  [Narrativa 5]

Quando Ọr̀ únmìlà, Senhor da Divinação, saiu do Ọr̀ un [Céu] e veio para o Àiyé [Terra], Ele foi morar em uma fazenda de mata nativa. Como pensou em fazer plantações no local, Ọ̀rúnmìlà procurou adquirir um servo para realizar a árdua tarefa. Acontece que o servo era um grande conhecedor dos poderes das plantas e não conseguiu arrancar nenhuma delas. A princípio, Ọ̀rúnmìlà ficou furioso com a desobediência, mas quando consultou Seu oráculo descobriu que o Servo era nada mais nada menos que Ọ̀sányìn – oríṣa que é louvado porque faz melhorar a saúde física e espiritual, através do conhecimento que possui sobre o poder de cada planta. Ọ̀rúnmìlà desistiu de fazer plantações e começou a usar os conhecimentos de Ọ̀sányìn no atendimento das pessoas que recorriam a Ele em busca de orientação. Ọr̀ únmìlà dava conselhos; Ọsányìn quando o assunto era a cura e por isto Lhe ofereciam sacrifícios em troca de preparados como chás, banhos, infusões etc. Os oríṣa ficaram com muita inveja dos poderes da dupla e almejaram possuir o conhecimento da magia das plantas. Eles foram pedir ajuda a Ṣàngó: o oríṣa da Justiça. Ṣàngó resolveu que todas as divindades deveriam conhecer os segredos do reino vegetal e mandou que Ọ̀sányìn repartisse o poder das plantas com cada um dos oríṣa, o que Lhe foi terminantemente negado. Ṣàngó, então, mandou que Ọya, Divindade dos Ventos, agitasse sua saia para provocar um vendaval. O vento foi tão forte que fez Ọ̀sányìn perder o equilíbrio, deixando cair a cabaça onde guardava Suas ervas mágicas. O vento espalhou a coleção de folhas. Quando Ọ̀sányìn viu o acontecimento, gritou: “Ewé wá asà!” (“Folhas, venham para quem lhes [sic] defende!”). As folhas retornaram, mas os oríṣa conseguiram pegar algumas: Oṣàlá agarrou as folhas brancas como o akẹṣẹ ( algodoeiro); Ògún pegou ewé-idà-oríṣa (folha com formato de espada, tipo espada-de-ogum); Ṣàngó e Ọya se apoderaram das plantas vermelhas como o fogo; Ọ̀ṣun se esforçou e pegou as folhas perfumadas e Iyemonjá segurou ewé ìyá ( capeba). Entretanto, o esforço dos oríṣa de nada adiantou, pois nas mãos deles as folhas perderam a capacidade de curar, perderam o àṣẹ. Ṣàngó, por fim, entendeu que o poder que Ọ̀sányìn tinha sobre as plantas Lhe foi dado por Olódúmaré e ninguém poderia roubar Dele. Por não querer ser mais invejado, Ọ̀sányìn resolveu dar aos oríṣa algumas folhas, de acordo com a especificidade de cada um. As folhas, entretanto, teriam que ser encantadas antes de serem usadas, para que o poder delas fosse acordado. Assim foi criado o Ritual das Folhas chamado Āsá Ọ̀sányìn Sàsànyìn – Cerimônia para homenagear Ọ̀sányìn, o médico que dá remédios para que a saúde melhore. Ọsányìn só não contou a ninguém, naqueles tempos, os segredos da planta igbó. Ọ̀sányìn ensinou a cada oríṣa alguns segredos correspondentes a suas folhas, mas guardou para si o maior de todos eles: tudo que cura também pode matar, é só uma questão de dosagem. Esse segredo cada oríṣa descobriria por revelação, caso tivesse dedicação, disciplina e, consequentemente, merecimento.

Essa narrativa apresenta uma maior complexidade nos eventos, trama e personagens, se comparada às anteriores. Em termos de personagem principal, Ossaim, sem dúvida, ocupa lugar de destaque não somente sobre Orunmilá, mas igualmente sobre todos os demais orixás. Inicialmente, a narrativa destaca, como as outras, o desejo de Orunmilá de adquirir um servo/escravo para roçar seu campo, a cuja determinação Ossaim não atendeu, dada a importância de todas as ervas que ali estavam plantadas. Diferentemente da narrativa 4, na qual Ossaim consulta o oráculo, nesta é Orunmilá quem o faz, de modo a compreender por que seu servo não queria arrancar as plantas. É por meio do oráculo, ou jogo divinatório de Ifá, que Orunmila toma conhecimento da grandeza de seu escravo. Essa sequência narrativa diferencia-se pelo fato de a narradora, Maria Stella de Azevedo Santos, ter dado contornos especiais a Ossaim, patrono da cerimônia Cantar folha, ritual muito importante no Ilê Axé Opô Afonjá, candomblé matriz no qual ela foi ialorixá por quarenta e dois anos. Por ser o orixá detentor dos poderes sobre as folhas e seus fundamentos curativos, a narradora exaltou sua importância no culto e, nesse caso específico, superioridade perante os outros orixás, ao contrário das narrativas anteriores que situam Ossaim apenas na condição de escravo e de conhecedor dos poderes mágicos das plantas.

Ainda no que tange à sequência dos eventos nessa narrativa, outros orixás são citados, tendo como base a justiça da partilha dos segredos das plantas com todos eles. Xangô, divindade da justiça, comandou a contenda com a ajuda de Oiá, deusa dos ventos. No entanto, a tentativa de apossar-se das plantas de Ossaim resultou inútil, porque “o esforço dos oríṣa de nada adiantou, pois nas mãos deles as folhas perderam a capacidade de curar, perderam o àṣẹ”. De modo a evitar futuras invejas, Ossaim repartiu com todos os orixás algumas de suas folhas, porém guardou consigo o maior de seus segredos: “tudo que cura também pode matar.” A dosagem certa, eficaz, seria revelada a cada orixá caso tivessem “dedicação, disciplina e, consequentemente, merecimento”.

Em termos da trama, essa narrativa é bem mais elaborada, uma vez que destaca algumas das características dos orixás, sem que se sobreponham à relevância de Ossaim. De modo a minimizar as rivalidades, a narradora, Maria Stella de Azevedo Santos, conta que, embora tenha havido uma disputa dos orixás por suas folhas, Ossaim evita contendas e compartilha seu saber. Esse aspecto aponta para uma característica comum aos elementos constitutivos de uma fábula: a mensagem moral. Assim, aos elementos que constituíam as outras narrativas míticas, a saber, sequência de eventos, atemporalidade, trama, atores/personagens, descrição e contexto/cena, soma-se a mensagem moral, como o desfecho ideal a um problema revestido de instrução ou orientação, típico do papel sagrado de uma respeitável sacerdotisa do culto aos orixás, como é o caso da narradora. Ou seja, não se trata tão somente de narrar a história, mas, sobretudo, de situá-la (cena) à realidade da comunidade religiosa e de suas liturgias, fazendo da atemporalidade da narrativa uma constante atualidade.

3

As narrativas míticas e sua atualidade: considerações finais

Em seu monumental livro Magic, Science and Religion and Other Essays, Bronislaw Malinowski (1948MALINOWSKI, B. Magic, Science and Religion and Other Essays. Glencoe: Illinois: The Free Press, 1948.) retoma o papel dos mitos nas comunidades por ele observadas. Segundo o pai da etnografia, os mitos não se revestem apenas de histórias, mas, sobretudo, de realidades vividas e revividas reiteradamente, não se tratando, pois, de ficção, e sim de verdades ressuscitadas por narrativas de deuses e situações que datam de tempos primevos. Nessa mesma linha de raciocínio, Mircea Eliade (2016ELIADE, M. Mito e realidade. Tradução: Pola Civelli. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016., p. 7), em seu clássico livro Mito e realidade, afirma que “o mito designa [...] uma ‘história verdadeira’ e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado”, traduzindo ao mundo formas de irrupção de espiritualidade, por meio das quais as religiões, especialmente o candomblé, constituem os fundamentos de suas cerimônias. A fixação dessas narrativas em textos escritos cria, de acordo com Volney J. Berkenbrock (2018BERKENBROCK, V. J. Os itans e o porquê das coisas: a função do mito na tradição religiosa do candomblé. In: SILVEIRA, E. S. da; SAMPAIO, D. S. (org.). Narrativas míticas: análise das histórias que as religiões contam. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 163-193.), um ponto de referência no qual se basear; no entanto, de modo a ser uma referência legitimada, o narrador ocupa papel fundante: uma narrativa mítica passa a ter validade muito mais porque seu narrador está imbuído de autoridade, ou capital simbólico, para narrar. Esse é o caso das narrativas que analisamos, pois foram narradas por ícones da religião dos orixás, dentre pesquisadores, membros, iniciados e sacerdotes. Ou seja, na fixação da escrita, a narrativa mítica ou itã legitima-se por seu narrador, como acontecem com os versos de Ifá recitados pelos babalaôs nigerianos.

Das narrativas analisadas, a que mais se destacou, em termos de detalhamento pertinente aos candomblés, foi a narrativa 5. Enquanto a narrativa 4 relatou a saga de Ossaim em versos de Ifá, a 5 criou um contexto sagrado no qual o orixá patrono das folhas e plantas pôde mostrar toda a sua significância. Da narrativa 1 à 4, houve a preocupação de se registrar a relação de Ossaim com Orunmilá; já na narrativa 5, além dessa relação, a narradora, Maria Stella de Azevedo Santos, constituiu a mesma cena de eventos das outras narrativas associando a ela, porém, outros elementos, como, por exemplo: Orunmilá, o “Senhor da Divinação”; sua origem (Ọ̀run); Ossaim como orixá “que é louvado porque faz melhorar a saúde física e espiritual, através do conhecimento que possui sobre o poder de cada planta”; a relação de Ossaim com as plantas e a ineficácia de seus poderes nas mãos dos outros orixás etc. A descrição desses atributos ou características, também presentes na narrativa 3, são mais explorados na narrativa 5, talvez porque Maria Stella de Azevedo Santos – Mãe Stella de Oxóssi – teve, além de seu papel de narradora, a incumbência sagrada de ensinar, instruir, orientar e esclarecer os aspectos da religião dos orixás às suas filhas e filhos de santo. Esse papel orientador não está dissociado do de narradora, daí a fixação escrita de uma narrativa que, além de contar a saga de Ossaim e sua importância, abre outras perspectivas de reflexão a seus leitores: “tudo o que cura também pode matar, é só uma questão de dosagem. Esse segredo cada oríṣa descobriria por revelação, caso tivesse dedicação, disciplina e, consequentemente, merecimento.” É exatamente nesse ponto que, ao dar fundamento à cerimônia de Cantar folhas do Ilê Axé Opô Afonjá, a narrativa também se reveste de atualidade, porque enfatiza valores éticos e morais, sugerindo que para tudo deve haver uma justa e certa medida.

No conjunto de versos de Ifá, Baba Ifa Karade (2020KARADE, B. I. The Handbook of Yoruba Religious Concepts. Newburyport: Weiser Books, 2020.) destaca que uma das maneiras de se atingir o destino reservado a qualquer pessoa é ligar-se à ética e à moral, de modo a se evitar opressões de toda sorte. Antes de servir ao escrutínio científico, as narrativas míticas analisadas constituem os fundamentos de uma religião cujas origens remontam a tempos imemoriais, originárias de culturas ágrafas que ajudaram a sedimentar outras culturas por meio de processos de assimilação e troca, como é o caso dos candomblés baianos. Neste artigo, portanto, além de descrever as formas de registro escrito de um itã essencial à religião dos orixás na Bahia, tentamos salientar, igualmente, como essas narrativas simbolizam a cultura de um povo ao qual a história do Brasil tanto deve e do qual tanto incorporou às suas práticas sociais.

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  • VERGER, P. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo. Tradução: Maria Aparecida da Nóbrega. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2018.
  • 1
    O plural na língua iorubá não é marcado: itãs é grafado no singular – ìtàn –, como qualquer outro substantivo no plural. (Cf. NAPOLEÃO, 2011NAPOLEÃO, E. Yorùbá: para entender a linguagem dos orixás. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.).
  • 2
    Sistema divinatório do povo iorubá, que deu origem ao jogo de búzios amplamente utilizado por pais e mães de santo dos candomblés no Brasil.
  • 3
    Comunidade vinculada às casas de candomblé.
  • 4
    Mestre Didi e Mãe Stella são citados neste artigo.
  • 5
    Mães de santo.
  • 6
    Pais de santo.
  • 7
    Olhador ou sacerdote do culto a Ifá que joga búzios e outros instrumentos usados no processo divinatório de Ifá, como, por exemplo, o Opelê-Ifá, rosário que possui oito metades do coquinho de dendê, fruto sagrado para os iorubás e o povo de santo dos candomblés.
  • 8
    Membros da alta hierarquia do culto aos orixás nos candomblés que não entram em transe.
  • 9
    Axé é energia, força vital, que, segundo os sacerdotes e seus filhos e filhas de santo, circula entre os iniciados ao culto durante as práticas religiosas internas. Quanto mais tempo de iniciada a pessoa tiver, mais axé ela possui.
  • 10
    O candomblé é uma religião iniciática que, por esse fato, guarda segredos que devem ser mantidos fora do alcance do público leigo, a quem é autorizado apenas frequentar as reuniões públicas dessas casas religiosas.
  • 11
    Edison de Souza Carneiro foi um dos maiores etnólogos baianos, especializado em cultos afro- brasileiros.
  • 12
    Pierre Verger foi um renomado fotógrafo e etnólogo francês, que viveu por muitos anos na Bahia. Foi profundamente ligado ao terreiro de candomblé-matriz Ilê Axé Opô Afonjá e responsável por uma vasta escrita no campo das religiões afro-brasileiras, especialmente o candomblé. Sua obra, além de clássica, é ainda hoje referência no assunto.
  • 13
    História de um terreiro nagô: crônica histórica (1994SANTOS, D. M. História de um terreiro nagô: crônica histórica. São Paulo: Carthago & Forte, 1994.).
  • 14
    Enfatizamos o verbo compartilhar para registrar que não há transmissão do axé por meio das narrativas escritas, mas apenas partilha com o leitor do que pode ser revelado ao público geral.
  • 15
    Cf. SODRÉ; LIMA, 1996SODRÉ, M.; LIMA, L. F. de. Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição nagô-kêtu brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1996..
  • 16
    Cf. CAMPOS, 2003CAMPOS, V. F. de A. Mãe Stella de Oxóssi: perfil de uma liderança religiosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003..
  • 17
    Conjunto de regras que fundamenta a prática litúrgica das religiões de matriz africana, especialmente o candomblé.
  • 18
    Mães de santo que antecederam Mãe Stella de Oxóssi no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá.
  • 19
    Afonjá é uma das qualidades ou caminhos do orixá Xangô, santo de cabeça de Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá.
  • 20
    Orobô é um “fruto de significado transcendental indispensável no culto de Ṣàngó [Xangô]”. ( SANTOS, M. S., 2010SANTOS, M. S. de A. Meu tempo é agora. 2. ed. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2010., p. 179)
  • 21
    Iniciado mais velho, superior, sábio.
  • 22
    “Construímos narrativas como representações estruturadas de eventos numa ordem temporal específica.” ( JAWORSKI; COUPLAND, 1999JAWORSKI, A.; COUPLAND, N. Introduction: Perspectives on Discourse Analysis. In: . The Discourse Reader. London: New York: Routledge, 1999. p. 1-44., p. 30, tradução nossa, grifo nosso)
  • 23
    Filhos de santo.
  • 24
    Iniciadas ao culto que ainda não atingiram a maioridade na hierarquia do candomblé.
  • 25
    Ẹ́rìndilógún significa dezesseis em português, porque o jogo de búzios lança mão de 16 búzios para a sua prática divinatória.
  • 26
    O orixá Exu é o comunicador por excelência, responsável por transmitir as falas dos demais orixás no jogo de búzios (Cf. PRANDI, 2001PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.).
  • 27
    É importante destacar que as versões da mesma narrativa mítica escolhida para análise foram aquelas registradas por ícones do candomblé baiano, dentre eles, pesquisadores, integrantes da religião e sacerdotes. Essa seleção resultou nas cinco narrativas apresentadas neste artigo. Outras versões, que certamente existem, são originárias das que aqui se encontram, portanto, foram descartadas. Não desconsideramos, porém, que as outras versões dessa narrativa possam ser objeto de estudo e análise; pelo contrário, investigá-las tendo como referência as cinco narrativas analisadas neste artigo pode, sem dúvida, demonstrar como esse itã tem sido absorvido e (re) interpretado por outras pessoas vinculadas ao culto. Todavia, para um estudo dessa envergadura, ser-nos-ia necessário mais espaço do que dispomos para a escrita deste artigo, que se configurou numa análise interpretativa das narrativas míticas selecionadas. Nosso foco foi, pois, apreender como os ícones do candomblé baiano se apropriaram da narrativa mítica estudada registrando-a na escrita. Para uma análise das questões complexas relativas aos itãs no seio das casas de candomblé na Bahia, ver Castillo (2010CASTILLO, L. E. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2010.).
  • 28
    Originalmente publicado como Bernard Maupoil, La géomancie à l’ancienne Côte des Esclaves, Paris, Institut d’Ethnologie/Musée de l’Homme, 1943. Durante sua estadia no Baixo Daomé, entre os anos 1934 e 1936, Maupoil lançou mão de dois tipos de informantes por ele denominados rústicos e letrados. Em relação aos informantes rústicos, ele esclarece que “foram escolhidos de preferência entre os melhores ou mais reputados”, e, como base de seu método, Maupoil (2020MAUPOIL, B. A adivinhação na antiga Costa dos Escravos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Edusp, 2020., p. 16) explica que “o princípio testis unus, testis nullus [uma testemunha, nenhuma testemunha] foi escrupulosamente aplicado”. Quanto aos informantes letrados, Maupoil (2020MAUPOIL, B. A adivinhação na antiga Costa dos Escravos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Edusp, 2020., p. 17) deu a seguinte explicação: “O pesquisador constata e lastima ter sido pouco ajudado pelos letrados do Baixo Daomé. Aqueles a cuja competência o aconselhou a recorrer deixaram-no muitas vezes a lembrança de uma vaidosa insuficiência. Além disso, os trabalhos produzidos por alguns deles ainda apresentam um excesso de imprecisões”.
  • 29
    Nome dado a Ifá no antigo Daomé, hoje República do Benin, onde Bernard Maupoil coletou os dados de sua pesquisa.
  • 30
    No antigo Daomé, é o correspondente ao orixá Ossaim dos iorubás. Asen é também o nome dado a “uma haste de ferro cilíndrica, retilínea, terminada em ponta para ser fincada no chão. [...] O asen acrelele é o bastão de Fá”. ( MAUPOIL, 2020MAUPOIL, B. A adivinhação na antiga Costa dos Escravos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Edusp, 2020., p. 187-188)
  • 31
    “Denomina-se fagbasa o espaço reservado às consultas e às cerimônias de Fá na residência do bokono [correspondente ao babalaô dos iorubás].” ( MAUPOIL, 2020MAUPOIL, B. A adivinhação na antiga Costa dos Escravos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Edusp, 2020. p. 179).
  • 32
    Respeitamos a grafia dos textos citados, mas adotamos a grafia em língua portuguesa constante e já consagrada de Reginaldo Prandi, em Mitologia dos orixás (2001 PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.).
  • 33
    Cf. SANTOS; PEIXOTO, 2014SANTOS, M. S. de A.; PEIXOTO, G. D. O que as folhas cantam: para quem canta folha. Brasília: Editora UnB, 2014..
  • 34
    Uma possível interpretação para ‘Atankorobiti’ (Àtànkoròbìtì) pode se dar por meio do desmembramento desse vocábulo: Àtànko rò bìtì, que, traduzido para o português, significa ‘Atanko pensou, meditou, um pouco.’ Nem Bascom (1980BASCOM, W. Sixteen Cowries: Yoruba Divination from Africa to the New World. Bloomington: Indianapolis: Indiana University Press, 1980.) nem Barreto (2013BARRETO, W. da S. Jogo de búzios tradicional nigeriano: sistema divinatório. Salvador: Editora Clube de Autores, 2013.) traduziram esse vocábulo, portanto, decidimos mantê-lo tal qual aparece nessas obras. De acordo com Napoleão (2011NAPOLEÃO, E. Yorùbá: para entender a linguagem dos orixás. Rio de Janeiro: Pallas, 2011., p. 5-6), “até o século XIX, a língua yorubana não possuía uma forma escrita. Foi a partir desse século que alguns missionários yorubanos da igreja anglicana [...], com a ajuda de alguns de seus colegas estrangeiros, criaram a escrita yorùbá inspirada no alfabeto europeu.” No caso do informante de Bascom, Salakó, o vocábulo ‘Atankorobiti’ foi por ele pronunciado e registrado, mas mesmo os tradutores que ajudaram Bascom na transcrição e tradução das centenas de itãs ditos oralmente por Salakó preferiram manter esse vocábulo tal qual expresso pelo babalaô. Uma hipótese para essa escolha se deve talvez à forma arcaica do vocábulo, como de inúmeros outros falados nos cultos afro-brasileiros, cujas expressões caíram em desuso.
  • 35
    Oferecer o sacrifício significa fazer uma oferenda.
  • 36
    “Lançar esta figura” significa o momento em que os búzios são lançados pelo babalaô sobre a peneira e, a depender da forma como caem – se com a parte aberta para cima ou para baixo –, formam uma figura, ou odu (ver nota de rodapé seguinte), que deverá ser interpretada pelo babalaô. Não se trata aqui de figura como desenho, mas da quantidade de búzios que caem abertos (com a parte aberta para cima) e a quantidade que caem fechados (com a parte aberta para baixo). Vale a contagem dos búzios que caem abertos.
  • 37
    “Os odus [signos de Ifá ou destino] expressam-se através de itãs ( ìtàn), relatos míticos em forma de parábola ou enigmas, introduzidos por provérbios alusivos. Com essas parábolas são prescritas as providências, potencializadoras ou desmobilizadoras, de acordo com a situação que se apresenta. E isto para que se obtenham os benefícios desejados, removendo barreiras acaso existentes, ou se interrompa o curso de infortúnios anunciados, iminentes ou futuros.” ( LOPES, 2020LOPES, N. Ifá Lucumí: o resgate da tradição. Rio de Janeiro: Pallas, 2020., p. 43).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2021
  • Aceito
    08 Jun 2022
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