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Professores em formação no âmbito do Pibid-Capes: uma abordagem do planejamento e realização de aulas por meio da clínica da atividade

Student teachers in the scope of Pibid-Capes: an approach to class planning and teaching practice through the clinic of activity

RESUMO

Este trabalho apresenta uma pesquisa realizada com uma dupla de professores em formação inicial no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), objetivando analisar seus processos de planejamento e prática docente. Para a realização do estudo foram utilizados a metodologia da Clínica da Atividade, o método da Autoconfrontação Simples e Cruzada e o aporte teórico da análise do discurso na perspectiva bakhtiniana. Os resultados apontam as controvérsias entre o ideal do fazer docente, no nível da teoria, e o real da prática, uma vez que a prescrição não equivale à realização de uma atividade de maneira a coincidirem. O estudo possibilitou o desenvolvimento do coletivo de trabalho do PIBID-Inglês por propiciar o reconhecimento de etapas da formação docente, um olhar clínico dos docentes para si e sua atividade, bem como a busca por estratégias para mediar de forma mais eficaz a aproximação do mundo da prescrição ao mundo da realização do trabalho docente.

PALAVRAS-CHAVE:
Professor de Inglês em Formação; PIBID-CAPES; Autoconfrontação Simples e Cruzada; Clínica da Atividade; Análise do Discurso

ABSTRACT

This paper presents a survey carried out with a pair of English teachers in Initial Teaching Education under the Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), aiming to analyze the planning processes and teaching practice of these teachers. To the development of the study we applied the methodology of the Clinic of Activity, the method of Simple and Crossed Self-Confrontation, and the theory of discourse analysis in Bakhtin’s perspective. The results point to the controversies between the ideal teaching, at the level of theoretical education, and the real practice, since the prescription does not amount to the performance of an activity so as to coincide with it. The study allowed the development of the PIBID-English group work by favoring the identification of stages of teacher education, providing teachers with a clinical view of themselves and their activity, as well as the search for strategies to more effectively mediate the approximation of the world of prescription to the world of teaching practices.

KEYWORDS:
English Teaching Initiation; PIBID-CAPES; simple and crossed Self-confrontation; Clinic of Activity; Discourse Analysis

1 Introdução

Este trabalho busca apresentar uma pesquisa de intervenção realizada no âmbito do subprojeto PIBID-Capes (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência da Coordenação de Aprimoramento de Pessoal de Nível Superior) de inglês, do Instituto Federal do Paraná (IFPR), Campus Palmas, em uma escola pública da região, onde o projeto atua desde 2015. OPIBID promove a inserção dos alunos de licenciaturas no seu futuro ambiente de trabalho para que eles possam desenvolver atividades didático-pedagógicas na escola desde o início de sua formação, sob a orientação e supervisão de um docente da licenciatura e de um professor da escola, que atua em parceria com a Instituição de Ensino Superior (IES). Para o desenvolvimento dessas atividades são concedidas bolsas aos integrantes dos projetos.

Os principais objetivos que o programa apresenta são:1 1 Disponível em: <http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid/pibid>. Acesso em: 12/jun/2018. incentivar a formação de docentes em nível superior para a educação básica; contribuir para a valorização do magistério; elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de licenciatura, promovendo a integração entre educação superior e educação básica; inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação e participação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e interdisciplinar, visando à superação de problemas identificados no processo de ensino-aprendizagem; incentivar escolas públicas de educação básica, mobilizando seus professores como coformadores dos futuros docentes e tornando-as protagonistas nos processos de formação inicial para o magistério; e contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à formação dos docentes, elevando a qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura.

A pesquisa foi proposta como meio de promover o estudo sobre os processos de formação inicial dos discentes do curso de licenciatura em Letras Português/Inglês do IFPR-Palmas, que estão inseridos no PIBID. O objetivo consistiu em entender, por meio das construções discursivas dos futuros professores, a relação estabelecida entre a teoria e a prática pedagógica no que concerne ao trabalho docente prescrito e realizado desses professores.

2 Metodologia da pesquisa

Para o desenvolvimento deste estudo foi adotada a metodologia da Clínica da Atividade (CLOT, 1999/2006CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Trad. Adail Sobral. Petrópolis: Vozes, 2006., 2010), que visa não apenas identificar problemas referentes às atividades humanas de trabalho, mas principalmente entender as implicações desses problemas para a saúde do trabalhador. A metodologia visa, ainda, promover ações de intervenção para o reconhecimento de possíveis dificuldades que limitem a realização do trabalho e o poder de agir do trabalhador, bem como buscar, junto com o coletivo de trabalho, soluções que possam minimizar essas dificuldades e limitações.

Para a realização da pesquisa, foi utilizado o método da Autoconfrontação Simples e Cruzada (CLOT; FAÏTA, 2000CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genre et styles en analyse du travail: Concepts ET méthodes. Travailler, França, v. 4, p. 7-43, 2000.). O método consiste na filmagem de profissionais em situação de trabalho para oportunizar ao trabalhador que observe o desenvolvimento de sua atividade, descreva e explique suas decisões e posturas, e reflita e dialogue sobre o que se evidenciou durante a realização da sua atividade de trabalho (LIMA; ALTHAUS, 2016LIMA, A. P.; ALTHAUS, D. Formação docente continuada, desenvolvimento de práticas pedagógicas em sala de aula e promoção da saúde do professor: relações necessárias. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 97, n. 245, p. 97-116, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2HwLJom >. Acesso em: 30 abr. 2018.
https://bit.ly/2HwLJom...
).

À realização da pesquisa, a partir da abordagem da Clínica da Atividade e da utilização do método da Autoconfrontação Simples e Cruzada, precederam etapas obrigatórias da metodologia de pesquisa, conforme descrito a seguir.

Inicialmente houve a composição a da dupla de professores em formação inicial, integrantes do subprojeto PIBID de inglês, que autorizaram a filmagem de suas aulas. Na sequência, foram coletadas as assinaturas dos parceiros da pesquisa nas declarações de autorização de veiculação da imagem, a saber, professores formadores, professores em formação, alunos da escola e todos os participantes voluntários e colaboradores do projeto. Em um terceiro momento, houve observação e relato por escrito de uma aula da dupla de professores em formação com o objetivo de identificar uma problematização para ser analisada nas sessões dialogadas posteriores. Em seguida, fez-se o registro audiovisual de outra aula da dupla de professores para que a problematização identificada fosse ampliada e gerasse o corpus transcrito da pesquisa para a análise de dados.

As sessões dialogadas e filmadas aconteceram primeiramente com cada professor da dupla (Autoconfrontação Simples), na presença da pesquisadora, proponente da pesquisa, e de outra pesquisadora assistente, para análise e problematização de um trecho de cinco minutos da aula que cada professor em formação selecionou para a sessão. Já as sessões de Autoconfrontação Cruzada aconteceram com a dupla de professores, também na presença das duas pesquisadoras, para que cada um pudesse se manifestar sobre a atuação do outro, quando ministravam a aula.

Após essas etapas de sessões de Autoconfrontação, produziram-se vídeodocumentários contendo trechos da aula filmada e trechos das sessões de Autoconfrontação Simples e Cruzada. Houve, ainda, sessões filmadas da devolutiva dos vídeodocumentários conduzidas pelo próprio coletivo do subprojeto PIBID de Inglês e demais participantes da pesquisa, mediadas pela pesquisadora/coordenadora de área do projeto.

O trabalho de análise do discurso dos professores em formação sobre sua atividade se deu no corpus transcrito das sessões de Autoconfrontação Simples e Cruzada. A transcrição das sessões foi feita com base na metodologia de transcrições de textos orais, de Dino Pretti (2001PRETI, D. (Org.). Análise de textos orais. 5. ed. São Paulo: Humanitas, 2001.), com as seguintes marcações: ( ) incompreensão de palavras ou segmentos; / truncamento; MAIÚSCULA entonação enfática; prolongamento de vogal e consoante; - silabação; ? interrogação; ... qualquer pausa; (( )) comentários descritivos do transcritor; [ sobreposição ou simultaneidade de vozes.

3 Fundamentação Teórica

Para fundamentar as análises dos discursos dos professores em formação, lançamos mão de três perspectivas teóricas: os estudos da atividade humana (CLOT, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Trad. Guilherme Teixeira e Marlene Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.); do desenvolvimento humano (VIGOTSKI, 2008VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.); e do dialogismo (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.).

No que tange ao estudo sobre a atividade humana, desenvolvido por Yves Clot (2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Trad. Guilherme Teixeira e Marlene Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.), psicólogo do trabalho que atua na Clínica da Atividade, na França, destacamos a relação entre prescrição e realização da atividade de trabalho, conforme citação abaixo:

Toda profissão possui quatro dimensões indissoluvelmente ligadas, a saber: a impessoal, a pessoal, a interpessoal e a transpessoal. A dimensão “impessoal” corresponde à atividade prescrita, seja de maneira oficial, seja de maneira oficiosa. A dimensão “pessoal” corresponde a uma apropriação da dimensão impessoal pelo sujeito em atividade na relação com os outros, o que vem a constituir a dimensão “interpessoal” da atividade: a atividade humana não existe sem destinatários. Finalmente, a dimensão “transpessoal” corresponde às maneiras comuns de se fazer algo em um coletivo, partilhadas pelos sujeitos em dado meio, isto é, corresponde aos gêneros de atividade, que - por sua vez -, paradoxalmente, englobam e são englobados pelos gêneros de discurso, em um amálgama indissolúvel (LIMA, 2014LIMA, A. P. Dinâmica das dimensões impessoais, pessoais, interpessoais e transpessoais no processo de iniciação à docência. Querubim, Niterói, v. 2, n. 24, p. 12-15, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2JEGuI7 >. Acesso em: 30 abr. 2018.
https://bit.ly/2JEGuI7...
, p. 11).

Partindo dessas concepções, buscamos evidenciar as etapas da formação docente em que se encontram os futuros professores, bem como identificar o processo de desenvolvimento das dimensões das profissões a partir da relação deles com o trabalho docente prescrito e o trabalho realizado. Uma vez que não é possível dissociar a prática docente de uma prescrição do trabalho educacional, buscamos entender, ainda, como esses professores em formação inicial, no âmbito do PIBID, respondem “ao que dizem e ao que não dizem as prescrições.” (LIMA, 2010LIMA, A. P. Visitas técnicas: interação escola-empresa. Curitiba: Editora CRV, 2010., p. 86-87).

O professor, como trabalhador, tem sempre um duplo papel no mundo do trabalho, o de organizador e administrador da produção e o de peça de sua própria máquina (VIGOTSKI, 2004VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 63-65; LIMA, 2010LIMA, A. P. Visitas técnicas: interação escola-empresa. Curitiba: Editora CRV, 2010., p. 86). Sendo assim, ao professor cabe a tarefa de planejar a aula a partir de uma prescrição, prevendo as condições espaciais, temporais, didáticas e pedagógicas, entre outras, propícias ao aprendizado dos alunos; saber gerenciar e mediar essas condições de realização; e reconhecer quando deve intervir nelas. Cabe, ainda, ao professor, ser membro integrante da interação com o destinatário de seu trabalho, pois agirá diretamente com ele e não somente para ele, sendo, portanto, sujeito partícipe na interação da realização do trabalho docente, o que também exigirá dele “o conhecimento das formas de organização de um ambiente de trabalho que mobilize o grupo de alunos de modo que uma tarefa seja realizada coletivamente” (LIMA, 2010, p. 88), para que os objetivos da aula sejam alcançados.

Nessa perspectiva, entendemos que aos professores em formação inicial no âmbito do PIBID cabe ainda uma tarefa mais complexa: conciliar seus conhecimentos e procedimentos didáticos e pedagógicos com as orientações do supervisor, professor da escola, e do coordenador do projeto, professor da IES. Por conseguinte, para a realização de seu trabalho em sala de aula, esses profissionais terão que levar em conta muito mais fatores na relação transpessoal com o trabalho prescrito, o que impactará na relação com a atividade docente, que possui sua estabilidade, mas também sua relatividade, como será possível verificarmos nas análises do corpus desta pesquisa.

Para essa relação com o trabalho, o futuro professor, na sua formação inicial, passará por etapas importantes do seu desenvolvimento profissional. Para tanto, o pensamento de Vigotski (2008VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.) sobre o processo de desenvolvimento de qualquer atividade torna-se imprescindível para este estudo, uma vez que concordamos com a importância e eficácia de analisarmos a história do desenvolvimento dessas etapas, reconstituindo cada estágio do processo do desenvolvimento, provocando o retorno do processo a sua gênese.

Segundo Bakhtin (2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), toda construção do discurso passa por um processo de resposta a enunciados anteriores e posteriores aos produzidos pelo falante. Essa constatação nos possibilita avaliar como se dá tal relação entre os discursos por meio da responsividade, que não acontece de maneira passiva, mas dialógica, já que todo discurso produzido vem em resposta a um outro, tentando se adequar a ele, contrapô-lo ou redimensioná-lo. Fundamentados nessa perspectiva bakhtiniana do discurso, o objetivo foi analisar o processo de responsividade dos professores em formação, buscando identificar os enunciados respondidos e antecipados durante as sessões dialógicas propiciadas nas Autoconfrontações.

4 Produção dos dados

Durante a pesquisa, o coletivo de trabalho decidiu investigar a relação entre planejamento e realização das aulas, uma vez que se percebiam nos relatórios e reflexões produzidos muito mais adequações a serem realizadas nos planejamentos do que a sua realização integral. Sendo assim, o foco do estudo voltou-se para entender quais elementos causavam o distanciamento entre o planejado e o realizado em sala de aula com os alunos de uma turma de 6º Ano, com os quais o projeto estava sendo desenvolvido; e para verificar como os docentes lidavam com esses elementos.

Para a realização das sessões de Autoconfrontação, a dupla de professores em formação inicial, que disponibilizou suas aulas para a pesquisa, elaborou um planejamento de aula sobre o tópico “Favorite Activities”. Nessa aula seriam apresentadas e contextualizadas algumas atividades em inglês como: jogar futebol, soltar pipa, andar de skate, jogar videogame, brincar de boneca, entre outras. Para a apresentação, os professores em formação prepararam slides com imagens e vocabulário em inglês. Como a abordagem utilizada no projeto previa o uso da língua-alvo, as imagens auxiliariam na apresentação do vocabulário sem o recurso da tradução, ao que os alunos já estavam habituados, pois era uma abordagem recorrente no projeto. Além do uso do recurso do Datashow, foi previsto um exercício impresso, cujo objetivo era que os alunos relacionassem figuras ao conteúdo aprendido, para que ao final da atividade, pudessem identificar e expressar suas preferências sobre o tema da aula.

5 Análise dos dados gerados pela pesquisa

Para a análise dos dados, os participantes receberam nomes fictícios, sendo utilizados Geraldo, para o professor em formação 1, e Daniela, para a professora em formação 2; P1, para a pesquisadora principal, elaboradora e coordenadora do projeto de pesquisa, e P2, para a pesquisadora assistente. Vale ainda informar sobre os participantes: Geraldo é graduado em Pedagogia, mas nunca havia atuado na área. No processo da pesquisa, cursava o 3º período do curso de Letras Português/Inglês e exercia a profissão de militar do exército, na graduação de cabo. Daniela é também graduada em Pedagogia, exercendo a profissão há alguns anos na rede pública, e cursava o 7º período do curso de Letras. Geraldo participava do projeto PIBID havia dois semestres, e Daniela integrava o grupo desde o início da sua graduação.

Os procedimentos de análise se iniciam pelas sessões de Autoconfrontação Simples e, na sequência, são apresentadas as análises das Autoconfrontações Cruzadas. Na sessão de Autoconfrontação Simples foi mostrado para Geraldo o trecho de aula que ele havia escolhido, sendo convidado, nesse momento, a comentar a realização da sua atividade docente.

Segue um dos trechos da conversa com Geraldo, sobre a qual serão apresentadas nossas análises posteriores. Nas transcrições são utilizadas as abreviações G e D para os professores em formação.

5.1 Autoconfrontação Simples

P1: éh:: fala um pouquinho sobre essa sua: atitude, assim, você levantou de repente e começou a falar, usar os slides e você fez tudo o que a D já tinha feito anteriormente... você recomeçou a apresentação dos slides, tudo o que ela já tinha feito, você refez.

G: mas é que o plano de aula previa isso professora, pra assimilar melhor o conteúdo com os alunos... a D passaria primeiro... mais introduzindo o conteúdo mesmo, depois eu viria na repetição.

[

P1: uhn

G: repetição efetiva com eles

[

P1: uhn

[

da: da daquele conteúdo

P1: sim

G: e também por eu estar ali passando (os slides) foi o combinado “você quer que eu passe pra você?” não “eu quero que você passe pra mim os slides”

P1: uhn

[

G: “enquanto eu dou aula, você vai passando”

P1: foi tudo planejado?

G: foi planejado.

[

P1: previsto no planejamento.

[

G: tá

[

P1: de vocês essa troca... “você apresenta e eu faço um reforço”

[

G: e eu faço

um reforço, então ... foi assim “quem vai fazer o/eu faço primeiro ou você faz

primeiro...? não, você primeiro, depois eu faço”

[

P1: uhn

G: você tem mais experiência em sala de aula, depois eu faço.

P1: uhn

G: foi isso, estava previsto.

No trecho, Geraldo reproduz o diálogo com sua colega a respeito do planejamento da aula. Ele informa que Daniela perguntou: ‘“você quer que eu passe pra você?”’ Geraldo informa que dispensa o auxílio da colega de passar os slides para ele quando for repetir a apresentação do conteúdo, enquanto ela informa: ‘“eu quero que você passe pra mim os slides, enquanto eu dou aula você vai passando”’. Assim, ambos acordaram sobre a atividade de cada um durante a apresentação do conteúdo, delegando tarefas. Daniela pergunta: “‘quem vai fazer o/eu faço primeiro ou você faz primeiro...’”, e Geraldo responde: “‘não, você primeiro, depois eu faço’”. É possível identificarmos, portanto, o passo a passo acordado entre ambos: 1) Daniela faz a introdução do conteúdo, enquanto Geraldo passa os slides para ela; 2) Geraldo faz a “repetição efetiva”, “o reforço” da apresentação do conteúdo da aula, e opera simultaneamente o aparelho multimídia.

Esses procedimentos revelam a dimensão de trabalho em que se coloca Geraldo, isto é, na dimensão pessoal, conforme destaca Clot (2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Trad. Guilherme Teixeira e Marlene Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.), no nível ainda do cumprimento da prescrição de trabalho. Sua fala reforça esse posicionamento: “foi combinado”, “foi isso, estava previsto”. Identificamos, também, nesse posicionamento, a imagem que Geraldo faz de si em relação a sua colega enquanto professor em formação: “você tem mais experiência em sala de aula, depois eu faço”, confiando a ela a tarefa de iniciar a aula e preparar o terreno para a realização da sua parte do prescrito.

Há, todavia, na fala inicial de Geraldo, ao ser solicitado para comentar seus procedimentos didáticos e pedagógicos, o uso da adversativa “mas” - “mas é que o plano de aula previa isso professora”. Segundo Bakhtin, todo enunciado responde e antecipa outro, uma vez que “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (2003, p. 272). Nesse sentido, iniciamos nossa análise refletindo sobre esse recurso argumentativo utilizado por Geraldo, buscando entender qual enunciado estaria sendo respondido, e qual estaria sendo antecipado por ele ao fazer suas considerações acerca do seu trecho de aula.

Como a solicitação feita por P1 se refere à repetição que Geraldo faz dos procedimentos de sua colega de trabalho, é possível que ele tenha interpretado a pergunta de P1 como uma reprovação, ou ter antecipado que a repetição havia sido considerada desnecessária, ou ainda que estava inadequada à situação. Dessa forma, podemos entender que a adversativa “mas” entra no discurso de Geraldo como uma resposta ao entendimento de um possível questionamento de P1 sobre a sua ação, por entender que poderia ter agido mal em repetir os procedimentos de Daniela.

A explicação de Geraldo sobre a repetição como procedimento combinado pela dupla para reforço da apresentação do conteúdo e, principalmente, a afirmação de que era item do planejamento, marca um enunciado que antecipa a acolhida da justificativa por parte de P1. Ao utilizar-se desse enunciado, Geraldo procura indicar que tomou a decisão mais acertada, o que também antecipa a sua suposição de que P1 ficaria satisfeita com essa justificativa e convencida da necessidade de seus procedimentos, bem como concordaria com ele sobre a importância de cumprir o prescrito. Assim, “mas”, no início da fala de Geraldo, responde à necessidade de repetir os procedimentos de sua colega, explicando que a repetição não foi, portanto, apenas um gesto mecânico, mas um procedimento didático calculado, planejado, realizado em função do prescrito, justificativa que parece plausível, uma vez que a conjunção utilizada denota que não caberia alternativa para a situação a não ser cumprir o combinado, tarefa que foi devidamente realizada por ele nos conformes da prescrição.

Em outros trechos da sessão de Autoconfrontação Simples, Geraldo evidencia algumas situações que, segundo ele, comprometeram o bom andamento da aula. São elas: a entrada súbita da coordenadora pedagógica durante a aula, o formato da sala de aula em um U mal distribuído, a falta de parte do material didático (o exercício impresso) e a alteração feita no plano de aula pouco tempo antes do início da aula. Para cada situação Geraldo atribui uma implicação para o êxito pleno da aula.

Destacamos a seguir o trecho em que Geraldo dialoga sobre a falta do material didático.

P1: e a questão do material que faltou no início da aula, vocês tiveram que improvisar.

G: sim improvisamos... improvisamos sim, tanto é que a atividade nossa também estava, eu tinha passado o arquivo, o arquivo de impressão, então nós projetamos ela no quadro e pedimos pra ele copiar, pra eles copiarem aqui, até fizemos um teste na outra aula que nós fizemos a mesma atividade e imprimimos e levamos para eles pra ver a assimilação e ficamos pensando “será que eles conseguiriam fazer?” éh::

Ao relatar os problemas referentes a essa falta do material didático impresso, o que levou a dupla de professores em formação a improvisar, projetando a atividade e pedindo que os alunos copiassem o que estava projetado, Geraldo confirma a necessidade de sair do prescrito. Todavia, reporta-se a outro encontro com os alunos, ou seja, uma aula posterior, quando, segundo sua explicação, o conteúdo da aula foi retomado e avaliado, revelando uma preocupação com o improviso ocorrido: ‘“será que eles conseguiriam fazer?”’. Nesse trecho, Geraldo evidencia a reflexão da dupla sobre a alteração no planejamento, isto é, a preocupação com o descumprimento do prescrito e suas possíveis consequências para o aprendizado dos alunos.

No trecho da Autoconfrontação Simples a seguir, Geraldo já cogita alterações no planejamento, mas ainda insiste em afirmar que o prescrito e realizado estão coerentes.

P1: você acha que estava de acordo então o planejamento e a realização desse planejamento foi ok?

[

G: não estava bem de acordo, porque fomos interrompidos uma

hora ali também, que ela ((a pedagoga)) chamou o supervisor

[

P1: uhn

[

G: foi conversar com

ele, nós fomos interrompidos, mas no mais sim.

G: eu gostei de me ver dando essa aula... eu gostei de me ver dando essa aula... achei que foi uma aula bacana eu e a D conversamos antes sobre as estratégias na elaboração do plano também...seguiu como O planejado.

O modalizador “bem”, usado antes de “acordo”, revela que, embora Geraldo admita alguma discrepância entre o que planejaram e o que foi realizado na sala de aula, atribui a mudança a outras circunstâncias e não a sua decisão consciente e deliberada de alterar o plano e adequá-lo às necessidades dos seus destinatários.

Finalmente, ao ser solicitado a comentar a forma como abordou o conteúdo, de maneira estruturalmente diferente de sua colega, Geraldo mostra-se criterioso para falar do assunto e argumentar sobre a necessidade de mudança nas estratégias da aula.

G: porque aconteceu um fato extraordinário nesse plano.

P1: hum.

G: que ele havia sido planejado, eu e D tínhamos planejado ele de outra forma e de última hora nós muda..mos não, readaptamos ele para essas sentenças: “I like to play games”, então ( ) em vez de ensinarmos só a atividade, nós ensinamos a a sentença completa pra não ensinar errado... ensinamos a sentença completa... não... porque tem que ter o: complemento, né? então “I like to play video game”.

Ao referir-se inicialmente ao plano de aula na voz passiva, Geraldo parece indicar uma relação de distanciamento com a atividade planejada, como se tivessem refletido sobre a aula pouco antes de ministrá-la, mas logo na sequência assume o discurso, incluindo nele sua colega de trabalho. Além disso, é nesse trecho a primeira vez que Geraldo admite a mudança no planejamento da aula.

O termo “extraordinário”, todavia, utilizado para qualificar a alteração no plano de aula, indica a excepcionalidade da ação, confirmando que Geraldo sempre busca seguir o planejamento. Além disso, sua consideração a respeito da apresentação da estrutura das sentenças em inglês, “porque tem que ter o: complemento, né? então ‘I like to play videogame’”, evidencia uma tentativa de confirmação e concordância de seu interlocutor com a necessidade da readequação no plano de aula para não comprometer o ensino e a aprendizagem.

As análises dos trechos da Autoconfrontação Simples revelam, portanto, a dificuldade de Geraldo em lidar com as adequações entre o planejado e o realizável. Essas constatações são reforçadas por Geraldo ao responder à pergunta final de P1 sobre possíveis alterações no planejamento da aula, caso ele estivesse sozinho para ministrá-la:

P2: G, se você estivesse sozinho nesse momento, você faria alguma coisa diferente?

G: ((longa pausa)) se eu tivesse sozinho nesse momento, eu acho que eu

passaria os slides somente uma vez... frisando mais uma área, porque eu

estaria só eu, sozinho...

G: mas a senhora se refere em relação à aula, com relação à interrupção que aconteceu?

[

P2: a essa/esse início de aula

G: esse início de aula, se eu faria diferente?

P1: fala mais alto.

G: tá... se eu faria diferente esse início de aula?... ham:::... não

P2: não?

G: não, faria desta mesma forma.

[

P2: uhn

[

G: faria desta mesma forma sim

A pergunta feita por Geraldo, “mas a senhora se refere em relação à aula, com relação à interrupção que aconteceu?”, busca esclarecer se P2 reporta-se à forma como ele apresentou o conteúdo, repetindo-o e reforçando-o após sua colega, questão levantada no início da autoconfrontação. Ao certificar-se de que o assunto era esse, isto é, “esse início de aula, se eu faria diferente”, depois de longa pausa, Geraldo confirma que não alteraria os procedimentos de aula. A longa pausa parece indicar uma reflexão sobre os procedimentos da aula: “se eu tivesse sozinho nesse momento eu acho que eu passaria os slides somente uma vez...”. “Eu acho” aponta para uma incerteza sobre o caráter da alteração e da necessidade da repetição da apresentação dos slides e seus objetivos didático-pedagógicos. Caso sua resposta fosse positiva, ou seja, que faria diferente o início da aula se estivesse sozinho, isso poderia colocar em xeque a validade de repetir tudo que sua colega de trabalho havia feito e a real relevância da participação de Geraldo na aula.

O fato de que cada enunciado é “uma resposta aos enunciados precedentes”, e de que essa resposta “os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta” (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 297), muito nos revela sobre o discurso de Geraldo durante a sessão de Autoconfrontação Simples. A sua reação ao confrontar-se com a realização de sua atividade docente e dialogar sobre ela destaca a maneira como responde aos enunciados colocados sobre sua atuação e a maneira como espera que seu interlocutor avalie seus procedimentos de aula. Uma vez observando-se e podendo emitir parecer sobre si em diálogo com um outro, procura garantir o entendimento de suas intenções, deixando claro que agiu conforme as orientações recebidas, mudando o planejamento apenas quando não comprometesse o todo solicitado, considerações bastante pertinentes com o estágio de formação profissional em que se encontra.

Outra questão importante e talvez esclarecedora sobre essa postura de Geraldo nas sessões de Autoconfrontação refere-se a sua formação profissional mencionada anteriormente. Geraldo é militar das forças armadas e parece deslocar os elementos desta profissão para a profissão docente, portando-se conforme os procedimentos do Regulamento Disciplinar do Exército, que visa estabelecer normas relativas ao comportamento militar. No capítulo desse regulamento, que estabelece os princípios gerais da hierarquia e da disciplina, lemos o seguinte:

Art. 8º A disciplina militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e cada um dos componentes do organismo militar. [...]

Art. 9º As ordens devem ser prontamente cumpridas (BRASIL, 2002BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002. Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 de agosto de 2002. Brasília: Presidência da República, 2002. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2JLops >. Acesso em: 02 jun. 2018.
https://bit.ly/2JLops...
, p. 2)

Nessa perspectiva, seria razoável entender a postura de Geraldo em relação ao que lhe foi prescrito e ao seu cumprimento, conforme argumenta diversas vezes.

Vejamos, a partir de agora, um trecho da Autoconfrontação Cruzada para verificarmos como a dinâmica do processo de desenvolvimento que foi desencadeado na Autoconfrontação Simples se desdobra na relação interlocutiva da dupla de professores em formação.

5.2 Autoconfrontação Cruzada

G: se você me permite questionar.

D: permito.

G: eu não te interrompi em hora nenhuma enquanto você está apresentando a aula. Eu notei que em dois ou três momentos você me interrompeu e eu te olhava, assim, eu não gosto de ser interrompido, você vê que você me interrompia, assim, e porque você acha que me interrompeu naqueles momentos ali?

D: eu acho que justamente por isso, eu achava “eles não estão prestando atenção, éh:: não estão na aula, não estão repetindo, tem só alguns. Ele não vai pedir pra todo mundo repetir? Vou ter que pedir pra todo mundo repetir. Tem que enfatizar que é pra todos”. Aí, a gente já estava falando a mesma coisa e eu acho que as vezes que eu te olhava, agora eu tentando entender, porque eu te olhava também, quando eu estava ali. É como eu dissesse: “chama atenção da turma ( ) alguma coisa nesse sentido”

Nessa sequência de diálogo da Autoconfrontação Cruzada, em que Daniela descreve e comenta os gestos de Geraldo, notamos o questionamento a respeito da interrupção dela observada no trecho de aula ministrado e selecionado por ele para a Sessão de Autoconfrontação. Geraldo argumenta que não interromperia Daniela e, por isso, questiona o fato de sua colega o ter interrompido, mesmo que tenha sido para chamar a atenção dos alunos para a aula: “eu te olhava, assim, eu não gosto de ser interrompido”.

A justificativa de Daniela vem apoiada nos próprios procedimentos da abordagem de ensino utilizada pela dupla, a de que há a necessidade de monitorar os alunos enquanto se ministra a aula e de que, portanto, estava fazendo aquilo que considerava ser no momento procedimento indispensável: “tem só alguns e Ele não vai pedir pra todo mundo repetir? Vou ter que pedir pra todo mundo repetir. Tem que enfatizar que é pra todos”.

Há no grifo a prescrição da abordagem adotada por ambos para o ensino e, dessa forma, fundamentada nela, a decisão de Daniela de interromper seu colega. Há, ainda, na resposta reflexiva de Daniela, a reivindicação da colaboração de Geraldo durante sua apresentação do conteúdo: “eu acho que às vezes que eu te olhava, agora eu tentando entender porque eu te olhava também quando eu estava ali. É como eu dissesse: “chama atenção da turma ( ) alguma coisa nesse sentido”, expondo o fato de Geraldo não ter chamado a atenção da turma enquanto ela ministrava a aula, uma vez que considerava essa a tarefa dele.

Nesse trecho, fica também evidente a posição responsiva de ambos, diante do trabalho que desenvolveram juntos, as controvérsias e tensões que surgiram. O que havia se manifestado ao longo das sessões de Autoconfrontação, provocado pela recriação desse processo e por suas condições de realização, culmina nessa sessão por oportunizar aos professores em formação verbalizarem algumas questões, bem como o mal-estar que delas derivaram, que talvez não estivessem claras durante o tempo em que planejavam e ministravam a aula juntos. Com a possibilidade de dialogar sobre a natureza interna dessas questões, ambos podem resolver suas diferenças e fazer uma análise sobre o verdadeiro objeto de seu desenvolvimento profissional, que é a docência.

Ao finalizar seus comentários sobre a atuação de sua colega enquanto ela ministrava a aula, Geraldo consegue, com mais tranquilidade, elaborar de maneira categórica e objetiva o que antes, na Autoconfrontação Simples, teve dificuldades para admitir sobre o planejamento e a realização da aula, como percebemos no trecho a seguir:

P1: Eu queria que você falasse se você faria algo diferente do que a D fez nesse trechinho, nesse trechinho que você assistiu dela.

G: uhn: faria sim... éh:... basicamente éh dar mais atenção para os alunos,

para o que eles falavam no momento do ensinar, não apenas vencer o

conteúdo como a D fez... não separar as estruturas... trabalhar ela toda... e tentar não me manter tão nervoso.

[

((risos))

eu acho que eu agiria dessa forma.

Embora, ainda sejam afirmações sobre as possíveis mudanças que sua colega deveria fazer, Geraldo já consegue ter um ponto de vista reflexivo e flexível sobre a aula, vendo-se atuar a partir da ação do outro, admitindo que a aula que ministraram não foi efetivamente a que planejaram na sua totalidade, sendo a sugestão dada à colega passível de atender seus próprios procedimentos e repensá-los.

Nessa perspectiva responsiva de Geraldo, consideramos o que destaca a teoria bakhtiniana sobre a relação interlocutiva:

Portanto, toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma em que ela se dê). O próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc. (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 272)

Sobre a repetição e recriação de gestos profissionais, Lima e Althaus (2016LIMA, A. P.; ALTHAUS, D. Formação docente continuada, desenvolvimento de práticas pedagógicas em sala de aula e promoção da saúde do professor: relações necessárias. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 97, n. 245, p. 97-116, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2HwLJom >. Acesso em: 30 abr. 2018.
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) pontuam que:

Mesmo que haja engajamento, o sujeito trabalhador pode não perceber ou não tomar consciência da necessidade de adaptação de seus gestos profissionais a novas circunstâncias, resultando em sua repetição praticamente exata e tornando-os, da mesma forma, inadaptados e disfuncionais. (2016, p. 102)

No que tange ao desenvolvimento das etapas da formação inicial em que se encontram os professores e o desenvolvimento analisado na recriação desse processo por meio do método da Autoconfrontação, percebemos os estágios que foram se constituindo e como cada participante da sessão sai modificado da reconstituição das etapas. Dessa forma, mesmo que Geraldo ainda não admita a alteração na sua atividade docente, ao se manifestar sobre ela na Autoconfrontação Simples, quando comenta a atividade de sua colega de trabalho na sessão posterior de Autoconfrontação Cruzada, já consegue pontuar necessidade de alteração, o que talvez não conseguisse vislumbrar se não tivesse a oportunidade desse diálogo.

As relações interlocutivas de Geraldo, propiciadas por este estudo, mostraram-se significativas para o avanço nas etapas do desenvolvimento profissional dos participantes do projeto, para a tomada de consciência da existência de reformulação e adaptação que fazemos a todo momento da idealização e realização das nossas atividades humanas, - no caso deste estudo, o fazer docente.

Podemos dizer, por conseguinte, que houve um desenvolvimento de Geraldo na dimensão profissional. Em um primeiro momento de diálogo, ele revela que se encontrava em um estágio de automatização ou de fossilização da dimensão “impessoal” do trabalho, que “corresponde à atividade prescrita, seja de maneira oficial, seja de maneira oficiosa” (LIMA, 2014LIMA, A. P. Dinâmica das dimensões impessoais, pessoais, interpessoais e transpessoais no processo de iniciação à docência. Querubim, Niterói, v. 2, n. 24, p. 12-15, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2JEGuI7 >. Acesso em: 30 abr. 2018.
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, p. 11), em sua relação com o trabalho docente, revela em sua prática e em seu discurso, forte tendência a seguir o prescrito sem questioná-lo. À medida que as Autoconfrontações e sessões dialógicas vão se processando, Geraldo adentra na dimensão pessoal, que “corresponde a uma apropriação da dimensão impessoal pelo sujeito em atividade na relação com os outros” (LIMA, 2014, p. 11), considerando as decisões que foram necessárias para o desenvolvimento de sua atividade docente e admitindo que precisou improvisar e adaptar o prescrito devido aos imprevistos da atividade que realizava.

Além disso, durante a reconstituição do desenvolvimento da atividade juntamente com sua colega de trabalho, reflete sobre o verdadeiro objetivo da aula que havia ministrado: cumprir o prescrito ou atender às reais necessidades de aprendizagem dos alunos. Isso ele tenta comprovar com atividades posteriores, uma vez que não conseguiu avaliar esse aspecto no ato do desenvolvimento de seu trabalho.

Somente essa percepção já caracteriza um desenvolvimento de outra dimensão do trabalho, “o que vem a constituir a dimensão ‘interpessoal’ da atividade: a atividade humana não existe sem destinatários” (LIMA, 2014LIMA, A. P. Dinâmica das dimensões impessoais, pessoais, interpessoais e transpessoais no processo de iniciação à docência. Querubim, Niterói, v. 2, n. 24, p. 12-15, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2JEGuI7 >. Acesso em: 30 abr. 2018.
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, p. 11), e o leva a considerar a relevância de seus procedimentos para os alunos naquela aula. À medida também que o discurso inquisidor de P1 vai se alterando para um discurso mais acolhedor, e que o diálogo com Daniela o reconforta, pois percebe que suas angústias são semelhantes, Geraldo arrisca admitir que poderia ter construído outra relação com o prescrito e o realizado da atividade de trabalho, o que indica um possível desenvolvimento para outra dimensão: a “transpessoal”, que “corresponde às maneiras comuns de se fazer algo em um coletivo, partilhadas pelos sujeitos em dado meio” (LIMA, 2014, p. 11).

6 Considerações finais

Ao concluir este estudo, evidenciamos que esses professores em formação,ao se colocarem em situação de Autoconfrontação, tiveram a oportunidade de repensar seus conceitos sobre o fazer docente e de construir novas formas de sentido para a prática pedagógica do ensino de inglês, passando a entender a sala de aula como ambiente de interações, onde os sentidos vão sendo construídos à medida que se interage com os alunos e se percebe o que será necessário reformular, refazer, reorganizar, para estabelecer uma verdadeira relação dialógica.

Seguindo a linha vigotskiana de que o pensamento se realiza na linguagem (VIGOTSKI, 2008VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.), esses futuros profissionais, após as reflexões propiciadas pela implementação da abordagem da Clínica da Atividade, por meio do método da Autoconfrontação, passam a entender que a aula não é o planejamento, mas que este, ao ser projeto discursivo, será realizado durante a aplicação, estando sujeito a todas as adequações que o processo de realização exija. Assim, ao entender a dinâmica da atividade docente e do enunciado “aula”, os professores em formação sentem-se mais autônomos e confortáveis para lidar com as condicionantes do desenvolvimento de seu trabalho que se apresentarão durante sua prática. Por conseguinte, acreditamos que o estudo realizado no âmbito do PIBID-Inglês foi relevante por propiciar desenvolvimento humano e profissional, pois os sujeitos participantes, além de terem sido os protagonistas da pesquisa sobre sua atividade de trabalho, manifestaram-se mais livremente para interagir com os rumos que a aula toma, em vez de se sentirem angustiados e atados a um planejamento com o qual não podem negociar.

Destacamos, por fim, como contribuição para a área dos estudos discursivos e práticas pedagógicas, o caráter de intervenção desta pesquisa, por privilegiar o discurso dialógico e propiciar repensar o fazer docente. Entendemos que os participantes da pesquisa puderam refletir sobre reais viabilidades e limites de ação, bem como sobre possíveis entraves que fogem ao seu poder de ação na sala de aula, visando buscar soluções em um coletivo que amplie as possibilidades de realização plena de suas atividades de trabalho.

Referências

  • BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002. Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 de agosto de 2002. Brasília: Presidência da República, 2002. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2JLops >. Acesso em: 02 jun. 2018.
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  • CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Trad. Guilherme Teixeira e Marlene Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.
  • CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Trad. Adail Sobral. Petrópolis: Vozes, 2006.
  • CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genre et styles en analyse du travail: Concepts ET méthodes. Travailler, França, v. 4, p. 7-43, 2000.
  • LIMA, A. P. Visitas técnicas: interação escola-empresa. Curitiba: Editora CRV, 2010.
  • LIMA, A. P. Dinâmica das dimensões impessoais, pessoais, interpessoais e transpessoais no processo de iniciação à docência. Querubim, Niterói, v. 2, n. 24, p. 12-15, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2JEGuI7 >. Acesso em: 30 abr. 2018.
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  • LIMA, A. P.; ALTHAUS, D. Formação docente continuada, desenvolvimento de práticas pedagógicas em sala de aula e promoção da saúde do professor: relações necessárias. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 97, n. 245, p. 97-116, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2HwLJom >. Acesso em: 30 abr. 2018.
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  • PRETI, D. (Org.). Análise de textos orais. 5. ed. São Paulo: Humanitas, 2001.
  • VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  • 1
    Disponível em: <http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid/pibid>. Acesso em: 12/jun/2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2018
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2017
  • Aceito
    24 Maio 2018
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