Acessibilidade / Reportar erro

Ernani

Os homens medem-se menos pelos elevados cargos ocupados ou pelos galardões honoríficos outorgados do que pela retidão seu caráter, o grau de sua sensibilidade e a ternura de saber dar-se. Dar-se na medida de não querer apenas para si, dar-se sem nada pedir de volta, dar-se pela pura satisfação de prover, satisfazer e distribuir.

Ernani foi tudo isso em vida.

Recebeu as mais distintas honrarias, exerceu os mais altos encargos na profissão que abraçou por vocação e amor ao próximo: o sanitarismo. Antes de tudo foi um dedicado homem de saúde pública comprometido com o bem-estar da coletividade.

Dedicou-se à sua profissão com toda a firmeza e a humildade de sua personalidade, com a alegria dos que estão bem consigo e a certeza de quem distribuiu as benesses de seu trabalho. Abdicou das falaciosas honrarias e ganhos fáceis da vida profissional privada.

Conheci-o jovem, recém-chegado a Recife como médico do Serviço Federal de Saúde. Conquistava a todos com sua irradiante simpatia. Com ele estabeleci, ainda estudante de medicina, ligações afetivas que perduraram até o seu desenlace. Não tenho dúvida de que descobri a Saúde Pública através desses contatos iniciais com Ernani.

Sua trajetória na vida foi acompanhada por mim ao longe, na província, até onde repercutiam os sucessos por ele alcançados. Eles os acolhia com a simplicidade e a humildade de quem recebia apenas mais algumas tarefas a cumprir. E sempre as cumpria com aquela sua muito particular maneira de moderno cavalheiro vitoriano, com paixão mas sem orgulho e puritanismo.

Foi, de fato, um "gentleman" de novos tempos, capaz de conviver, como o fez, com as contradições do mundo atual.

Caminhou na vida como um herói, sereno mas imbatível, carregando consigo o mais puro dos sentimentos humanos - o amor - que ele distribuiu prodigamente com todos e, muito particularmente, com sua família. Lucy é o outro nome de Ernani, com quem ele dividiu o seu mundo e partilhou a sua vida. Sem ela jamais ele poderia ter-se dado tanto enfrentando a vida com tanta serenidade e alegria. Amou a vida e a humanidade. Amor este que lhe deu a inabalável crença nos valores humanos que cultivou como ninguém.

Conciliador, sem jamais tentar conciliar o irreconciliável, Ernani antes convencia com aquele enorme poder de persuasão característico dos que sabem querer sem se impor, dos que respeitam o pensamento alheio, dos que acreditam em algo mais do que nas vãs querelas da vida cotidiana.

Nunca o ouvi dizer uma vulgaridade, participar de uma discussão estéril, aceitar desafios banais.

Queixou-se de mim uma única vez, sem mágoas evidentemente: por que me candidatara à Organização Mundial de Saúde sem ter falado com ele? Por que não ter feito o meu "application" para a Divisão de Recursos Humanos da qual ele era Diretor? Resgatei essa dívida com ele muito recentemente ao aceitar convite que me vinha fazendo, há algum tempo, para concorrer à função que desempenho hoje na Escola Nacional de Saúde Pública. Foi tarde, muito tarde, nosso convívio foi muito curto.

Não o sabia doente. Terminou serena mente como viveu, deixando em tudo aquilo que tocou o rastro luminoso de sua inteligência e de sua bondade.

Naquela sexta-feira, porque era sexta­feira, uma sexta-feira diferente porque era santa, os santos ressoando seus cânticos sagrados, entregou-se Ernani à eternidade.

Passamos a sentir o enorme vácuo por ele deixado quando acortina da noite baixou advertindo-nos da fragilidade existencial do ser humano: “...El alma se separó dándole altura.”

"Y en la hora plena que a pensar o invita, en tanto que contempla y que medita, casi percibe el respirar de Dios."

Frederico Simões Barbosa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1984
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com