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Grupo Tutorial e a Saúde Mental no Ensino Médico

Tutorial Group and Mental Health in Medical Education

RESUMO

Esta pesquisa objetivou investigar a presença de conteúdos de saúde mental no currículo real do ensino médico nos quatro primeiros anos da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trata-se de um estudo quantitativo e documental de caráter descritivo que avaliou esses conteúdos nos objetivos de aprendizagem dos problemas utilizados na estratégia de ensino-aprendizagem denominada tutoria nos quatro primeiros anos do curso. Como resultado, menos de 15% dos problemas estudados apresentou conteúdos de saúde mental em seus objetivos de aprendizagem no primeiro, segundo e quarto anos do curso. No terceiro ano, 36% dos problemas apresentaram tais conteúdos. A pesquisa não permite concluir o nível de exploração desses temas, bem como o aprendizado sobre eles, porém diagnostica o empobrecimento da exploração dos temas de saúde mental que permeiam o ensino médico das doenças clínicas e cirúrgicas.

Competência Clínica; Psiquiatria/Educação; Currículo; Educação Médica; Aprendizagem Baseada em Problemas; Saúde Mental

ABSTRACT

This study aimed to investigate the presence of mental health content on the curriculum of the first four years of the medical degree at the Faculty of Medical Sciences and Health at the Pontifical Catholic University of São Paulo (FCMS PUC-SP). By means of a quantitative, descriptive, and document-based study, we evaluated the mental health content in the learning objectives of problems used as part of the teaching and learning strategy known as ‘tutorial groups’. The results showed that less than 15% of the problems studied in the weekly tutorial sessions featured mental health content in their learning objectives for the first, second and fourth years of the course, while in the third year, such content only featured in 36% of problems. The research does not allow us to make conclusions on the degree to which mental health issues are explored, or the learning on them, but does point to the neglect of mental health issues pervading medical education on clinical and surgical diseases.

Clinical Competence; Psychiatry/Education; Curriculum; Medical Education; Problem-Based Learning; Mental Health

INTRODUÇÃO

Este artigo é parte de um projeto de mestrado em que se avaliou o currículo real do curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FCMS da PUC-SP), visando identificar os conteúdos de saúde mental nas estratégias de ensino-aprendizagem utilizadas no curso.

Historicamente, as mudanças nas escolas médicas no mundo ocorrem desde meados do século passado. O objetivo dessas transformações foi adequar os egressos às necessidades da realidade social existente no meio onde estão inseridas as escolas11. Schaedler LI. Sistema Único de Saúde como Rede em Prática Pedagógica. In: [Internet]. primeira. Rev-SUS Bras. Cad. textos/Ministério da Saúde, Secr. da Gestão do Trab. e da Educ. na Saúde, Dep. Gestão da Educ. na Saúde. - Brasília Ministério da Saúde. Brasilia: Ministério da Saúde; 2004. p. 85–91. Disponível em: www.saude.gov.br/sgte/versus
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. No Brasil, estas alterações são norteadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médico (DCNEM)22. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Cãmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES no 4 de 7 de novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Medicina. Diário Oficial da União. Brasília; Diário Of. da União Câmara de Educação Superior; p. 1–6., sob três eixos: orientação teórica, com a medicina centrada no doente; cenários de práticas, que são os ambientes onde estão inseridos os pacientes; e abordagem pedagógica voltada ao aprendizado do aluno. Estas diretrizes definem, assim, o perfil do médico para atuar na rede do Sistema Único de Saúde (SUS). As DCNEM apontam a necessidade de médicos com formação

[...] generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano22. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Cãmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES no 4 de 7 de novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Medicina. Diário Oficial da União. Brasília; Diário Of. da União Câmara de Educação Superior; p. 1–6. (p.38).

Em 2006, o curso de Medicina da FCMS da PUC-SP aderiu a esse processo de transformação com seu novo projeto pedagógico, hoje na versão 2014, tendo o currículo baseado em metodologias ativas como estratégias de ensino-aprendizagem.

A Proposta de Alteração do Projeto Pedagógico33. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde - PUC-SP. Proposta de alteração do Projeto Pedagógico do curso de Medicina. www.escolasmedicas.com.br/arq.php?arquivo=152. 2009.
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(PP) do Curso de Medicina da FCMS da PUC-SP descreve: “O currículo vigente até 2005 apresentava ciclos básico, clínico e profissional. Assim, predominam nos dois primeiros anos do curso as chamadas disciplinas da área das Ciências Biológicas com a disciplina de Psicologia”33. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde - PUC-SP. Proposta de alteração do Projeto Pedagógico do curso de Medicina. www.escolasmedicas.com.br/arq.php?arquivo=152. 2009.
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(p.11).

Nos dois anos seguintes (terceiro e quarto anos), são desenvolvidas as disciplinas da área das Ciências Médicas, como Psicologia Médica. No primeiro semestre do quinto ano, persiste este direcionamento para a área médica, com participação da Psiquiatria:

[...] Na proposta curricular a partir de 2010, a organização deixa de ser por disciplinas e passa a priorizar uma organização multidisciplinar em módulos, de forma a permitir a inter e a transdisciplinaridade. Um módulo temático não é uma disciplina, mas inclui conteúdos de várias delas, necessários para o entendimento de uma situação clínica ou de uma resposta fisiológica ou patológica. Os módulos promovem o desenvolvimento curricular do 1º ao 4º anos e suas temáticas são interligadas ao eixo norteador anual respectivo, de forma a manter um encadeamento lógico e integrado33. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde - PUC-SP. Proposta de alteração do Projeto Pedagógico do curso de Medicina. www.escolasmedicas.com.br/arq.php?arquivo=152. 2009.
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(p.59).

O Quadro 1 apresenta a matriz curricular do curso de Medicina.

QUADRO 1
Matriz curricular do curso de Medicina

O PBL (Problem Based Learning) ou ABP (Aprendizado Baseado em Problemas) é uma estratégia pedagógico-didática das metodologias ativas que

[...] trabalha situações-problema que devem ser o mais possível aproximadas de situações vivenciadas na prática e, além disso, capazes de contemplar várias áreas do conhecimento médico, ocorrendo, dessa forma, a interação/integração entre as disciplinas. Os problemas devem ser construídos para alcançar objetivos educacionais predeterminados, a serem discutidos pelos alunos em sessão tutorial, após busca individual44. Cezar PHN, Guimarães FT, Gomes AP, Rôças G, Siqueira-Batista R. Transição paradigmática na educação médica: um olhar construtivista dirigido à aprendizagem baseada em problemas. Rev Bras Educ Med. 2010;34(2):298–303. (p.300).

A tutoria (Aprendizado Baseado em Problemas – ABP) é definida no PP como estratégia de ensino-aprendizagem baseada em sessões semanais em que os estudantes recebem um problema, extraído e reelaborado com base numa situação real, que apresenta objetivos de aprendizagem desconhecidos para os alunos e que devem ser definidos por eles no decorrer da sessão33. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde - PUC-SP. Proposta de alteração do Projeto Pedagógico do curso de Medicina. www.escolasmedicas.com.br/arq.php?arquivo=152. 2009.
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. Subgrupos com seis a dez alunos conduzidos por tutores realizam o ciclo de atividades denominado “passos da ABP” para planejar e desenvolver estratégias de busca do conhecimento.

Segundo Berbel55. Berbel NAN. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos? Interface Comun Saúde Educ. 1998;139–54., “um bom problema deve ensejar uma boa discussão no grupo tutorial de modo que, ao fim desta discussão, os alunos elejam objetivos de aprendizado adequados ao conhecimento do tema em estudo” (p.147).

Ainda no PP, temas relacionados à saúde mental estão presentes nos módulos do primeiro ao quarto ano: a relação médico-paciente, aspectos biopsicossociais, situações de risco psicossocial, transtornos mentais prevalentes na população e aspectos emocionais associados às patologias físicas crônicas, graves e incapacitantes. A Psiquiatria é abordada no quinto ano, em regime de internato, como estágio rotativo da clínica médica, com carga horária de cinco períodos, correspondentes a 20 horas semanais durante oito semanas, desenvolvendo conteúdos de Psiquiatria como especialidade médica (epidemiologia do quadro clínico dos transtornos mentais, fisiopatologia, tratamento psicofarmacológico).

A situação do cuidado ao doente mental está também em fase de grandes mudanças. A efetiva implantação da Lei federal nº 10.216, que redireciona o modelo assistencial com uma nova rede integrada à Estratégia de Saúde da Família (ESF), gera um grande desafio: a construção da rede de proteção psicossocial, que, por ser um processo muito complexo, está sendo feito em Sorocaba, cidade do interior de São Paulo onde se situa o campus da FCMS da PUC-SP, de forma gradual. Ressalte-se que este município tinha sete hospitais em funcionamento até o censo de 2008, os quais abrigavam, por sua vez, 34,98% da população de moradores dos 58 hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo66. Barros S, Bichaff R, orgs. Desafios para a desinstitucionalização, censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo. primeira. Centro de Documentação da FUNDAP, editor. Secr. do Estado da Saúde Saõ Paulo - Fundap. São Paulo: São Paulo: Fundap: Secretaria da Saúde; 2008. p. 170..

O Relatório Mundial da Saúde de 2001 recomenda que, para que a rede de proteção psicossocial se torne uma realidade, a equipe de saúde receba treinamento nas habilidades essenciais de cuidados em saúde mental e que esse treinamento seja incluído nos currículos de formação dos profissionais da saúde77. Organização Mundial da Saúde. Relatório sobre a saúde no mundo 2001: Saúde mental: nova concepção, nova esperança. In: OMS; OPAS, editor. OMS. Genève: OMS; OPAS; 2001. p. 47–75..

Mas de quais habilidades essenciais estamos falando? Trata-se da capacidade do cuidado integral em saúde, lidando com situações de risco psicossocial. Observa-se uma coincidência de definições entre algumas habilidades referidas como ideais para o egresso do curso de Medicina, as competências para a ação diante das necessidades reais da população em geral e as habilidades inerentes do profissional da saúde mental88. Nunes SOV, Vargas HO, Costa FB, Bueno CR, Celeste L, Oliveira R, et al. O ensino da psiquiatria na graduação de medicina pelo método de aprendizagem baseada em problemas (P.B.L.). Psiquiatr Biológica. Elsevier Doyma. 2002;10(1):23–6..

Considerando que ensinar medicina é dotar o aluno de conhecimentos, competências e habilidades para o cuidado ao doente e as consequências biopsicossociais de sua morbidez; considerando ainda que na descrição da origem das doenças e abordagens terapêuticas estão a dimensão emocional, a relação médico-paciente, fatores ambientais e sociais; considerando ademais que os transtornos psiquiátricos são de alta prevalência na população atendida ambulatorialmente e em hospitais gerais; as habilidades ensinadas em saúde mental se tornam, então, vitais em todas as abordagens médicas. A magnitude do problema se expressa em números: de cinco a dez causas líderes de incapacidade atualmente são transtornos mentais99. Santos ÉG, Siqueira MM. Prevalência dos transtornos mentais na população adulta brasileira: uma revisão sistemática de 1997 a 2009. J Bras Psiquiatr. Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2010;59(3):238–46.. Finalmente, é evidente que a saúde mental reforça o conceito de unidade entre corpo e mente referendado nas DCNEM.

Como, então, estariam inseridos os conteúdos de saúde mental no currículo real, ou seja, como efetivar o que foi planejado no curso de Medicina da FCMS da PUC-SP?

O ensino da Psiquiatria, segundo instituições internacionais de ensino médico, deve ter os objetivos educacionais baseados em um referencial teórico-prático de competências na saúde mental, visando ao aprendizado daquilo que é considerado conhecimento básico para o futuro médico em sua prática diária1010. Silva JAC. Core curriculum in psychiatry for medical students. Med Educ. 1999;33:204–21.,1111. Nasser M. psychiatry: a core curriculum for undergraduate medical students. Psychiatr Bull [Internet]. 1996;20:230–3.. O Core Curriculum in Psychiatry for Medical Students1010. Silva JAC. Core curriculum in psychiatry for medical students. Med Educ. 1999;33:204–21. propõe que o foco deva estar principalmente no ensino da “psiquiatria da prática médica” e muito menos no ensino da “psiquiatria especialidade”. No Brasil, não existe tal referencial, e cada escola médica parece definir a forma e os conteúdos a serem ministrados.

É de relevância ainda pontuar que há preconceito e atitudes estereotipadas diante do doente mental que são frequentes na população em geral, entre médicos psiquiatras ou não, e entre estudantes de Medicina1212. Sartorius N, Gaebel W, Cleveland H-R, Stuart H, Akiyama T, Arboleda-Flórez J, et al. WPA guidance on how to combat stigmatization of psychiatry and psychiatrists. World Psychiatry. Blackwell Publishing Ltd; 2010;9(3):131–44.. Alguns autores interpretam que a medida correta para reverter esta postura discriminatória seria a aplicação de intervenções educativas específicas, possibilitando maior contato dos alunos com pacientes psiquiátricos e seus familiares, e o conhecimento dos múltiplos recursos terapêuticos1212. Sartorius N, Gaebel W, Cleveland H-R, Stuart H, Akiyama T, Arboleda-Flórez J, et al. WPA guidance on how to combat stigmatization of psychiatry and psychiatrists. World Psychiatry. Blackwell Publishing Ltd; 2010;9(3):131–44.,1313. Loch A, Hengartner M, Guarniero F, Lawson FL, Wang YP, Gattaz WF, et al. O estigma atribuído pelos psiquiatras aos indivíduos com esquizofrenia. Rev Psiq Clín. 2011;38(5):173–7..

O projeto pedagógico da FCMS da PUC-SP é inovador, com foco no atendimento à população em geral, e se propõe a uma constante reavaliação para se adaptar às mudanças que ocorrem ao longo dos anos. No entanto, se desconhecia o papel dos conteúdos de saúde mental nas diferentes estratégias propostas de ensino-aprendizagem.

Entre as estratégias utilizadas, serão aqui descritos os resultados da avaliação dos problemas que foram explorados nas sessões de tutorias, entendendo serem eles os direcionadores dos principais conteúdos administrados aos alunos, ou seja, o núcleo central do Módulo Temático.

OBJETIVOS

Avaliar a presença de conteúdos de saúde mental na estratégia tutoria, comparando os objetivos de aprendizagem definidos nos problemas com os Planos de Ensino (PE) que estão programados no PP. O período estudado corresponde a um ano, de agosto de 2012 a julho de 2013, nos quatro primeiros anos do curso de Medicina da FCMS da PUC-SP. O quinto e sexto anos do curso, destinados ao internato, apresentam o estágio de Psiquiatria, no qual tais conteúdos certamente são explorados e, por esse motivo, não foram incluídos no estudo.

METODOLOGIA

O material documental foi disponibilizado pela FCMS no portal acadêmico, ambiente Moodle, mediante autorização expressa do diretor da faculdade. Nele estão os textos dos problemas e os objetivos de aprendizagem depositados pelos coordenadores responsáveis pelos módulos e anos do curso. Esses textos foram lidos e avaliados como positivos, ou seja, com a existência de conteúdos de saúde mental, com base na presença de termos encontrados no Glossário de Termos de Psiquiatria e Saúde Mental do CID-10 e seus derivados1414. Bertolote JM. Glossario de termos de psiquiatria e saude mental da CID-10 e seus derivados. Asociacao Brasileira de Psiquiatria. Editora Artes Medicas; 1997. p. 184..

Utilizou-se o Projeto Pedagógico da FCMS e os Planos de Ensino descritos no portal acadêmico como referências para realizar a comparação com o currículo real, pois não existe um padrão de referência nacional que defina quais conteúdos devem estar presentes e em qual ano do curso de Medicina. Os resultados são apresentados quantitativamente. Também é apontada a correspondência entre os objetivos de aprendizagem dos problemas utilizados nas sessões de tutorias e os Planos de Ensino e o PP, ou seja, a correlação entre a teoria e a prática.

RESULTADOS

Os resultados estão sintetizados na Tabela 1, que mostra o número e a correspondente porcentagem da estratégia de ensino-aprendizagem denominada tutoria (problemas) por ano do curso médico. O quarto ano é dividido em Medicina do Adulto, Medicina da Mulher, Medicina da Criança, Medicina do Idoso e Medicina de Emergência, além do Módulo de Reflexões sobre a Prática Clínica. Não trataremos deste último porque não se desenvolve com estratégias de tutorias.

TABELA 1
Aplicação dos conteúdos de saúde mental nos quatro anos do curso médico da FCMS da PUC-SP na estratégia tutoria

Para melhor visualização, o Quadro 2 reúne os problemas, temas que foram relacionados ao Código Internacional das Doenças, versão 2010 (CID 10).

QUADRO 2
Temas dos problemas utilizados em tutorias nos quatro anos do curso

Os temas das tutorias que nos objetivos de aprendizagem dos problemas apresentaram conteúdos de saúde mental estão quantitativamente demonstrados no Gráfico 1, com as correspondentes entidades nosológicas psiquiátricas exploradas. Treze problemas com tema sobre Transtornos Ansiosos; 7 problemas com o tema Uso de Substâncias; 5 problemas com o tema Transtornos do Desenvolvimento Psicológico; 5 problemas exploraram o tema Transtornos de Humor; 2 problemas exploraram o tema Transtornos da Sexualidade; 4 problemas exploraram o tema Transtornos Mentais Orgânicos; 3 problemas exploraram o tema Transtornos de Sono; e 2 problemas exploraram o tema Transtornos Alimentares. Alguns problemas exploraram mais de um tema em seus objetivos de aprendizagem.

GRÁFICO 1
Frequência de entidades nosológicas psiquiátricas nos problemas das tutorias, pelo CID 10, distribuídos pelos quatro anos

Além da visão qualitativa, também é possível explorar a relação entre a proposta inserida no PP e a aplicação nas atividades da tutoria, a partir do Quadro 3.

QUADRO 3
Resumo da aplicação dos conteúdos de saúde mental nos quatro anos do curso médico da FCMS da PUC-SP: teoria versus prática

DISCUSSÃO

No primeiro e no segundo anos, embora com frequência inferior a 15%, observamos que existe encadeamento entre os PE e os objetivos de aprendizagem com conteúdos de saúde mental explorados nas sessões de tutorias. No terceiro ano, essa correlação é mais significativa, e os temas com conteúdos de saúde mental referidos nos Planos de Ensino estão presentes nos objetivos de aprendizagem em 36% dos problemas das tutorias. No quarto ano – que difere dos outros anos por ser segmentado entre as grandes áreas da medicina (Medicina da Criança, Medicina do Adulto, Medicina da Mulher, Medicina do Idoso e Medicina de Emergência) –, o módulo Medicina do Adulto é o que melhor apresenta conteúdos de saúde mental nos Planos de Ensino, pois se refere às doenças prevalentes e a seus tratamentos, com correspondência nas sessões de tutorias, que apresentaram problemas com esses temas. Isto não ocorre nos demais módulos.

Especialmente nas tutorias, que são os eixos norteadores das estratégias de ensino-aprendizagem1515. Lee RMKW, Kwan C-Y. The use of problem-based learning in medical education. J Med Educ. 1997;1(2):149–57., observamos nos problemas desenvolvidos que 35 problemas (15,8% do total) exploraram oito entidades nosológicas de Psiquiatria (Transtornos Ansiosos, Uso de Substâncias, Transtorno do Desenvolvimento Psicológico, Transtornos de Humor, Transtorno da Sexualidade, Transtorno Mental Orgânico, Transtorno do Sono e Transtornos Alimentares). Nossa percepção é que estas escolhas não foram baseadas em levantamentos epidemiológicos das doenças psiquiátricas prevalentes na população local e nacional. A exclusão social e a violência urbana são importantes problemas de saúde pública no Brasil, mas não estão incluídas explicitamente entre os temas desenvolvidos nas sessões de tutoria.

A Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação das Escolas Médicas (Cinaem), que reúne entidades representativas ligadas às comunidades acadêmica e universitária e à classe médica com o objetivo principal de avaliar os componentes da qualidade para a transformação da realidade do ensino médico no Brasil, constatou que não é positivo ter o currículo fragmentado, sem inter-relação entre as disciplinas, enfatizando especialidades com ênfase nas patologias.

A Organização Mundial de Psiquiatria (WPA), em sua publicação sobre o currículo de Psiquiatria para o curso de graduação em Medicina, WPA Template for Undergraduate and Graduate Psychiatric Education1616. Tasman A. WPA template for undergraduate and graduate psychiatric education [Internet]. University of Cape Town, South Africa; 2011. p. 1–60. Disponível em: http://www.wpanet.org/uploads/Education/Template_for_Undergraduate_and_Graduate/WPA-Template-
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, propõe conteúdos para o conhecimento dos graduandos, mas aconselha discutir esses conteúdos com base nas necessidades e possibilidades do ambiente onde se situa a universidade e na realidade da população local (epidemiologia das doenças prevalentes, cenários de aprendizagem possíveis, etc.), a fm de planejar estratégias para adquirir os conhecimentos. Factualmente, habilidades clínicas e de atitudes necessitam de supervisão, que sugerem ser por psiquiatra ou outro profissional de saúde mental.

O Core Curriculum in psychiatryfor medical students1717. World Psychiatric Association. WPA Core Curriculum in Psychiatry for Medical Students [Internet]. Med Educ. 1998. p. 204–11. Disponível em: http://www.wpanet.org/detail.php?section_id=8&content_id=111
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sugere que o ensino da Psiquiatria seja dividido em: áreas de conhecimento (sintomas e síndromes psiquiátricas, aspectos psicológicos das doenças e áreas psicológicas, incluindo estigma); habilidades (relação médico-paciente, obter informação, raciocínio clínico, dar a informação, relatar, tratar, aprender e relacionar-se com a equipe); e atitudes relacionadas à prática médica, aos pacientes e familiares, e à Psiquiatria como disciplina médica.

A dissintonia explicitada nesta pesquisa entre o PP e o currículo real, melhor dizendo, entre teoria e prática na estratégia tutoria, pode ter várias origens: ausência de uma referência brasileira sobre a abordagem do tema no currículo médico com metodologias ativas; discriminação e preconceito em relação ao doente mental pelos próprios profissionais que atuam na educação médica; e, como referido por Harris et al.1818. Harris A, Boyce P, Ajjawi R. clinical reasoning session: back to the pacient. Clin Teach. 2011;8:13–6., a própria ABP pode ser um fator limitante. Esta limitação pode se dever ao fato de que é frequente a utilização de tutores não especialistas ou devidamente treinados, que apresentarão as diferentes situações clínicas em Psiquiatria simplificando demasiadamente a exploração dos conteúdos de saúde mental durante as sessões de tutoria. Esta simplificação pode não dar a dimensão das interações biopsicossociais que são vitais ao entendimento do impacto emocional do paciente perante a sua situação clínica ou nos transtornos psiquiátricos. Desenvolver uma consciência sobre o efeito das emoções sobre o raciocínio clínico pode reduzir vieses e eventuais erros de diagnóstico.

Uma estrutura curricular que integre professores, gestores e profissionais da rede SUS, com diferentes formações e características, pode contribuir para a interdisciplinaridade e integralidade desejadas para o futuro médico. No entanto, essa mesma diversidade potencialmente benéfica pode ser também um fator negativo para a exploração de alguns temas, em especial a saúde mental, se estes profissionais não estiverem ou forem capacitados para esta área do saber1919. Cliquet MB. O uso de metodologias ativas e a abordagem da saúde mental no ensino médico. (defesa marcada para 23/01/2015). Puntifícia Universidade Católica de São Paulo; 2015. p. 196..

Outras escolas médicas com currículos que privilegiam metodologias ativas e que se preocupam com a inserção de conteúdos de saúde mental numa visão holística dos pacientes organizam a matriz curricular com a inserção vertical ao longo de todo o curso médico2020. Neto IPA, Filho OSL, Silva LEC, Costa NMSC. Percepção dos professores sobre o novo currículo de graduação da Faculdade de Medicina da UFG implantado em 2003. Rev Bras Educ Med. 2006;30(3):154–60.,2121. Rêgo C, Batista SH. Desenvolvimento Docente nos Cursos de Medicina: um Campo Fecundo. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2012 [acesso em 4 fev 2015];36(3):317–24. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v36n3/05.pdf
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. É possível inferir que, se numa escola médica como a FCMS da PUC-SP, onde há grande preocupação em introduzir e fixar estes conteúdos, encontrou-se esta dissintonia, como será o currículo real de escolas médicas de cursos tradicionais que privilegiam aulas magistrais para grande número de alunos?

CONCLUSÕES

A proposta deste trabalho foi obter um diagnóstico e refletir sobre a inserção da saúde mental na estratégia de tutorias do novo currículo da FCMS da PUC-SP. As mudanças curriculares que se propõem a adequar o perfil do egresso reestruturaram pedagogicamente o ensino médico, e a Psiquiatria precisa apropriar-se de mais espaços nesse novo currículo, por ser fundamental no auxílio ao desenvolvimento de uma prática médica mais humanística e integral.

Os achados da análise revelaram a confirmação da hipótese levantada: a saúde mental tem seu lugar garantido no PP e nos planos de ensino do primeiro ao quarto ano, mas não nas tutorias do primeiro ao quarto ano no currículo real da FCMS, pois pouco se expressa na prática.

Estes dados deverão gerar discussões no âmbito avaliativo para que este trabalho cumpra a função de aperfeiçoamento de um currículo vivo, em constante transformação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2015
  • Aceito
    17 Fev 2016
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