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Assistência primária à saúde: alguns aspectos físicos, funcionais, técnicos e políticos

DOIS CONCEITOS

Conceito de atenção primária à saúde

No que tange às responsabilidades institucionais, a assistência primária à saúde deve constituir o elenco de todas as atividades apoiadas em tecnologias de manejo simples, recursos humanos não especializados, custos compatíveis para grandes coberturas e sólido embasamento técnico-científico dirigidas para:

  1. orientar e executar medidas de promoção da saúde e proteção contra doenças, para toda a população (imunizações, saneamento, alimentação, salubridade habitacional e no trabalho, saúde mental etc.);

  2. fornecer primeiro atendimento de sintoma, ou doença para toda a população;

  3. oferecer acompanhamento após o primeiro atendimento, para todos os casos necessários;

  4. encaminhar casos que requeiram maior complexidade diagnóstica e terapêutica aos serviços de nível secundário ou terciário;

  5. interagir com o saber popular e as práticas populares de saúde e não obstaculizar o acesso da população e auxiliares de saúde a vários conhecimentos e práticas, hoje de monopólio exclusivo dos profissionais de nível superior.

Conceito de serviços básicos de saúde

Constituem o somatório e integração das atividades de assistência primária à saúde exercida através de uma rede básica, com um núcleo mínimo de serviços de maior complexidade, sob controle do setor público, e coma finalidade de assegurar à rede o imprescindível apoio nas áreas de Vigilância Epidemiológica, Saneamento, Alimentação, Habitação, Laboratório, Atenção Médica de especialidades estratégicas e Hospitalizações nas quatro áreas básicas e, finalmente, através de canais político-administrativos facilitadores, a participação da comunidade.

PARÂMETROS FÍSICOS E FUNCIONAIS

Relacionaremos, a seguir, 11 parâmetros, ou características, com a finalidade de ilustrar a necessidade de cada experiência em níveis local e regional, de defini-los, redefini-los, testá-los e divulgá-los. Para tanto, tomamos um posto de assistência primária à saúde médio, isto é, que seja institucionalizado e cuja complexidade esteja a meio termo dos extremos: desde o simples agente comunitário, que atua a partir de um cômodo do seu domicílio, até um posto, ou centro de saúde mais complexo que inclui as quatro áreas básicas e algumas estratégicas, apoio laboratorial mais completo, engenharia sanitária etc. Este posto médio, segundo algumas experiências concretas no País, parece-nos que se deva pautar por:

1. Equipe própria

É o parâmetro que decide a linha do posto: Composição mínima: atendentes (auxiliares de saúde) polivalentes, enfermeira e médico. Os atendentes seriam 4 a 6 por posto; a enfermeira, 1 para cada 3 postos; e o médico, 1 por posto (ou 2 em tempo parcial). Os técnicos de enfermagem têm demonstrado ótima adaptação a este tipo de trabalho, e outros profissionais podem também adequar-se: assistente social, psicólogo, nutricionista, pedagogo etc. No recrutamento e seleção dos profissionais de nível elementar (que devem residir na área de abrangência do posto). deve haver participação da comunidade, e o treinamento inicial deve ser curto, ter conteúdo crítico desde o início e o maior padrão técnico possível para a solução dos problemas mais freqüentes ao nível da assistência primária à saúde. Devem haver reciclagens e atualizações permanentes. O raciocínio clínico-epidemiológico-social deve prevalecer sobre os atuais figurinos laboratoriais. A educação em saúde deve ser fruto da interação Medicina oficial/Medicina popu-lar/situação sócio-econômica. Os perfis profissionais devem ser revistos e adequados ao novo tipo de trabalho, com desmonopolização de conhecimentos e técnicas, hoje exclusivos do nível superior. O dentista e os auxiliares odontológicos (ou polivalentes) aparecem segundo critérios semelhantes, mas baseados inclusive nas atuais experiências de equipamentos simplificados e portáteis.

2. Equipamento próprio

É o parâmetro que mais determina o grau de complexidade do posto: sua simples presença provoca pressão da equipe do posto, da instituição e da própria população, para ser utilizado. Por isso é necessário estabelecer um limite: o otoscópio e o espéculo? Acrescentam-se o bisturi e o porta-agulha? Monta-se um minilaboratório? É necessário permanecermos alerta contra a forte e insidiosa pressão dos fornecedores de equipamentos, na maior parte, multinacionais, pois através da pretensa elevação da qualidade e precisão do serviço, na verdade o modelam, em função de seu objetivo mercantil, influenciando inclusive a legislação e normalização das instituições de saúde em seu benefício. O atual sistema de saúde já cedeu a esta pressão: a cidade do Rio de Janeiro possui mais tomógrafos computadorizados que três Estados dos EEUU; o bairro de Botafogo naquela cidade é a maior concentração mundial de RX; a nossa importação de equipamentos médicos cresceu de 600% em 9 anos (1961/1970), e aí está a avalanche de exames laboratoriais. Eletroencefalogramas, perfis laboratoriais, monitorizações etc. desnecessários e remunerados.

3. Medicamentos próprios

Como os equipamentos, influem decisivamente no grau de complexidade do posto. A OMS preconiza uma lista de 176 medicamentos básicos e 32 complementares, totalizando 208. Certamente. um número bem menor poderia suprir as necessidades básicas com todo o respaldo técnico-científico. Sabemos contudo que o nosso País autorizou mais de 30.000 fórmulas comerciais, quase todas produzidas parcial, ou totalmente, pelas multinacionais; que, em 1979, tínhamos na praça 1.800 antibióticos, 419 analgésicos. 268 antianêmicos, 307 vitamínicos. 163 antitussígenos, 150 expectorantes etc.; que sua utilização é fortemente influenciada pela publicidade insidiosa perante as farmácias, os médicos, os pesquisadores e a própria população.

4. Acessibilidade

O fácil e rápido acesso da população-clientela ao posto, e da equipe à população, decide a oportunidade da intervenção mais precoce na história natural das doenças: tanto para o diagnóstico e tratamento precoces e acompanhamento eficaz. como para a promoção e proteção da saúde (ações preventivas e educativas). Tanto na zona urbana, como na rural, o ideal é o posto ser atingido a pé pela clientela, durante um tempo não maior que 20 minutos de caminhada. A necessidade de utilizar transporte coletivo é, em regra, fator de inacessibilidade, quer pelo tempo dispendido (tempo de espera na ida e na volta), quer pelo gasto da passagem. Qualquer tipo de cobrança de serviços prestados, inclusive com o pretexto de valorizar o serviço, ou colaborar com o posto, além de ser fator de inacessibilidade financeira, não é recomendável do ponto de vista ético e doutrinário. A postura de respeito ao padrão cultural da população e solidariedade ao seu nível sócio-econômico, por parte da equipe, é fator de acessibilidade sócio-cultural (a prática vem demonstrando não ser tão simples atingir esta postura). Finalmente, do ponto de vista funcional, o posto deve abolir a possibilidade de filas de espera e de marcação de consultas (com exceção das consultas de rotina).

Os parâmetros, ou características acima referidos decidem o grau de resolução do posto, isto é, dos problemas de saúde e doença, quantos são resolvidos nele, sem necessidade de encaminhamento para serviços mais complexos. Baseados em dados de vários países, técnicos da OMS estimam que 90% da demanda da rede básica de postos aí recebem uma atenção terminal, sendo 60% por auxiliares de saúde e 30% por médicos gerais; 8% são encaminhados para serviços de baixa especialização e 2% para de alta especialização. Em Londrina, Paraná, os postos de assistência primária à saúde resolveram, em 1978, 92,1% de sua demanda (78,8% pelos atendentes, 13,3% pelos médicos gerais) ficando 7,9% para os ambulatórios especializados e hospitalização. Na Grã-Bretanha, Fry classificou as doenças da população em solucionáveis pela assistência primária à saúde (66.6%), crônicas com incapacidade permanente (27%) e graves, matadoras em potencial (5%).

5. Planta física

Os postos elementares do Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) foram projetados pelos Estados do Nordeste, a partir de 40 m2, e os postos de apoio, em cidades-pólo, até 300 m2. Esta variação de 40 a 300 m2. parece-nos aceitável, de acordo com a densidade demográfica, tamanho da clientela, grau de desenvolvimento sócio-econômico etc. Pensamos que o posto mais simples deva ter, pelo menos, um local para espera, 1 cômodo para Atendimento de Enfermagem, 1 Consultório Médico, 1 cômodo para Registro, Arquivo e Farmácia e 1 sanitário.

6. Cobertura

É tanto maior, quanto maior a densidade demográfica. Na zona urbana, a cobertura ótima por posto parece variar de 5 a 15.000 habitantes e na, zona rural, de 500 a 5.000. É fundamental que haja uma certa delimitação da área de abrangência do posto: por limites geográficos e por população. Isto permite cálculos mais realistas das previsões de recursos necessários, uma boa acessibilidade e uma avaliação periódica da cobertura e concentração, por atividades do posto. Além disso, outro nível de avaliação torna-se mais factível: avaliação do posto pela população.

7. Programas por riscos

É o atendimento, tanto médico, como de enfermagem, feito com prioridade para certos grupos da população submetidos a maiores riscos: crianças abaixo de 1,5 anos, gestantes/puérperas, tuberculosos, hansenianos, várias doenças ocupacionais, hipertensos, diabéticos, doentes mentais etc. Estes grupos devem ser atendidos periodicamente em datas pré-agendadas, daí o nome programa de pré-natal, programa de hipertensos etc. No posto, estes programas devem ser efetivados por toda a equipe, que deve ser polivalente e, tanto quanto possível, utilizar a dinâmica de grupo como método de eleição, e servir de canal entre a equipe e a comunidade, em termos de participação. Desta maneira, assegura-se, ao nível do posto, a horizontalização destes programas, cuja origem é o verticalismo e autoritarismo da Saúde Pública convencional.

8. Educação em saúde

É a atividade que se vem mantendo mais paralisada pelos serviços de saúde, inclusive os de Saúde Pública, e, nas raras ocasiões em que é exercida, o é através demétodos professorais, com o objetivo de inculcar na população valores e hábitos, e, por isso, vem sendo uma atividade sempre fracassada (métodos e objetivos autoritário-paternalistas). A assistência primária à saúde proporciona condições para esta atividade ser exercida de modo permanente e baseada na interação respeitosa das subculturas: a popular, com toda sua riqueza secular, suas verdades e mistificações, e a nossa, elitizada e, também, com suas verdades e mistificações. Nestes termos, parece-nos que o maior desafio é criar, conjuntamente com a população, canais, métodos pelos quais ela se vai apropriando de conhecimentos e práticas importantes para sua autonomia e seu desenvolvimento. Acreditamos, contudo, que desde o início devemos combater a tendência (em nós mesmos) de conduzir o processo da desmonopolização, ou transferência de conhecimentos e práticas, numa ordem ditada pelo consumismo de equipamentos, medicamentos, consultas especializadas e hospitalizações. Em decorrência, parece-nos interessante discutir com a população-clientela do posto a história natural das doenças que mais a afligem, história natural real: que considere, na relação causa-efeito, todas as variáveis que interferem no processo, nos seus graus de influência e nos seus momentos. As questões do saneamento, alimentação e habitação, que tantos desafios intransponíveis e frustrações colocam para o pessoal do setor saúde, possuem todas suas soluções efetivas localizadas em outros setores, o que não exime o setor saúde na sua participação, secundária, porém intransferível, e fortemente ligada à área da educação em saúde.

9. Atividades de apoio

São também atividades imprescindíveis, das quais depende a operacionalização dos postos. Nestes, os mapas de produção e registro dos dados epidemiológicos; as reuniões periódicas da equipe com finalidade de avaliação das atividades e de atualização; as previsões de recursos humanos e materiais etc. Na retaguarda dos postos, a elaboração de relatórios detalhados das atividades e da produção de serviços; as orientações de vigilância epidemiológica; o sistema de coleta de material para exames laboratoriais; suporte laboratorial em local estratégico; a logística de previsão, aquisição e estocagem de materiais; a supervisão e treinamento etc.

10. Mecanismos de referência e contra-referência

Pretende-se que os casos referidos pelo posto tenham pronto atendimento nos serviços mais complexos: são casos já atendidos, comprovadamente necessitados de atenção mais complexa. Após esta, os casos devem ser contra-referidos ao posto, tão logo possam continuar com atenção no nível da assistência primária à saúde, isto é, a atenção especializada deve ser uma parte pequena e momentânea da atenção global. Somente pequena porcentagem da demanda (no máximo 10%) necessita realmente ser referida, mas a repercussão dos resultados desta referência atinge intensamente a clientela total em termos de confiança e segurança que o posto lhe proporciona. Por isso, um bom mecanismo de referência e contra-referência é também condição de sucesso do posto, e este mecanismo deve ser forjado desde o início, para que vícios e distorções, que crescem na sua ausência, não venham substituí-lo e impedir sua futura introdução.

11. Custos

Já que o modelo imposto a nossa estrutura de serviços de saúde é o hospitalar, concentrado nas grandes cidades, e de alto custo, é com uma unidade hospitalar que deve haver o cotejo. Recente estimativa de um professor de Administração Hospitalar mostrou que o custo de implantação de 1,5 leitos de Hospital Geral corresponde ao de 1 posto de assistência primária à saúde de 100 m2, o que significa que a implantação de 1 Hospital Geral de 100 leitos corresponde à de 66 postos (não estão incluídos os custos das atividades de apoio, ou retaguarda dos postos). Outra estimativa, também recente, da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, mostra que para a rede de serviços básicos projetada para a zona periférica da capital, o custo de implantação do Hospital Geral de 150 leitos equivale aproximadamente ao de 13 Centros de Saúde de 540 m2 em média no projeto há unidades de 400 a 750 m2), o que equivale a aproximadamente 70 postos de 100 m2. Não se trata, evidentemente, de propor a substituição de hospitais por postos, mas deixar claro aos órgãos de saúde, principalmente às Prefeituras Municipais, as alternativas existentes e os interesses em jogo, e daí, condições de opção para uma estrutura onde o hospital venha a ser complementação e retaguarda da rede de assistência primária à saúde.

A CONFIGURAÇÃO DA REDE DE POSTOS

Cremos que se deva partir da diferença entre um, ou mais postos isolados de assistência primária à saúde, baseados em alguns princípios, predominantemente ao nível pessoal de seus responsáveis, e uma situação com o maior número possível de postos em uma região, ou município, postos estes com as seguintes características:

  1. cada um delimitando razoavelmente a população a ser coberta;

  2. todos baseados em objetivos e normas básicas comuns;

  3. todos participando de um intercâmbio permanente: diretamente entre as equipes, e. indiretamente, através de uma supervisão participante;

  4. todos participando de reuniões periódicas (com espaçamento máximo de 1 mês) de seus representantes, a fim de discutir criticamente a prática de cada um e de todos e de absorver a riqueza da heterogeneidade das experiências e ao mesmo tempo transformá-la em linhas comuns de fortalecimento de cada um e do conjunto.

Nesta segunda situação, temos uma rede. Por que dar a maior importância a esta configuração da rede? Porque vemos nisto um elemento de resistência e avanço das tentativas de implantação da assistência primária à saúde em nosso País, pois consideramos que os obstáculos estão fortemente alicerçados no atual sistema de saúde. Não é demais lembrar que vivemos em um ciclo vicioso de consumismo em saúde: de equipamentos caros, de medicamentos e de serviços médicos especializados e hospitalares. Não foi por acaso que, enquanto a prestação de serviços médicos, financiados pelo Ministério da Previdência Social. triplicou na década 68/78, suas despesas com saúde sextuplicaram. Quem foram os grandes favorecidos? Em 1976, 96% das hospitalizações no País eram financiadas pela Previdência Social, quase todas utilizando a rede privada. Em 1977, o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS) destinava 80% dos seus recursos ao sudeste do País, quando sua finalidade inicial era financiar serviços básicos de saúde nas regiões carentes e, naquele ano, 75% dos seus recursos financiaram o setor privado. Por fim, estimativa recente veio mostrar que, no qüinqüênio 75/80, 30 a 40% das hospitalizações financiadas pela Previdência Social foram desnecessárias. Então, fica claro o tripé: fornecedores de equipamentos, de medicamentos e serviços mercantilizados.

A necessidade de configuração da rede de assistência primária à saúde emerge, então, não somente para preencher a ausência da base da pirâmide da nossa atual estrutura de serviços de saúde, mas principalmente da necessidade do reordenamento dessa estrutura e, portanto, a implantação da rede de assistência primária à saúde assume a finalidade de elemento estratégico fundamental. Em outras palavras, se a atual estrutura dos serviços não for reordenada para apoiar e dar retaguarda à rede de assistência primária à saúde, sem interesses mercadológicos, esta rede terá recursos ínfimos para sua implantação e manutenção e terminará por ser mais uma grande criadora de casos para a lucratividade dos serviços complexos do que um local de grande capacidade resolutiva e porta de entrada para os serviços mais complexos.

A NECESSIDADE DE TECNOLOGIA PRÓPRIA

O conjunto de técnicas e conhecimentos científicos que se aplicam a problemas de saúde está hoje concentrado nas atividades de diagnóstico e tratamento da Medicina especializada e hospitalar. Estes conhecimentos e técnicas são reproduzidos nos cursos de saúde, especialmente os de nível universitário, para capacitar recursos humanos que por sua vez, alimentarão o sistema atual de saúde, através de condutas diagnósticas, terapêuticas e administrativas. Estes mesmos conhecimentos e técnicas são ampliados, aprofundados e produzidos por institutos de pesquisa e pelas escolas da área de saúde, no sentido de levar o sistema a prestar serviços de saúde cada vez mais sofisticados, caros e de maior lucratividade para os prestadores (Medicina Especializada e Hospitalar) e para as indústrias de equipamentos e medicamentos. Não é por acaso que estas indústrias constituem os grandes estimuladores e financiadores, não só da investigação técnico-científica, mas da expansão de condutas através de congressos, simpósios, viagens etc.

Este modelo de serviços de saúde, ditado pelos figurinos tecnológicos das indústrias de equipamentos e medicamentos e das grandes empresas médicas, não consegue cobrir, razoavelmente, mais que um terço da população do País, e, assim mesmo, porque a Previdência Social financia a maior parte. Outro terço da população está coberto precariamente por este modelo, e o terço restante se encontra desassistido.

Por outro lado, sabemos não ser pequena a porcentagem de clientes ambulatoriais que não seguem, ou seguem apenas parcialmente, a conduta da consulta médica, ou por não possuir condições financeiras para comprar os medicamentos, alimentos, repouso etc., ou por não ficar convencida dessas condutas. Desses, uma porcentagem, sabidamente não pequena, melhora das queixas que deram origem à consulta, ou pelas mãos do balconista da farmácia, ou do curandeiro, do benzedor, ou pelo chá caseiro, ou pelo “seja o que Deus quiser” etc. Por outro lado, sabemos também que dos clientes que seguem rigorosamente a conduta médica, uma porcentagem, não pequena, não melhora, obrigando alteração da conduta médica, ou encaminhamento, ou abandono. Uma investigação cientifica destas proporções dos desdobramentos da demanda, e sua causalidade, acreditamos, seria bastante reveladora.

Na assistência primária à saúde, a prática vem mostrando que não basta a simplificação e adequação da tecnologia atual: é necessário criar tecnologia própria ao lado da adequação de uma parte da tecnologia atual, que alimenta e é alimentada pelo atual sistema.

A maior parte das condutas preventivas, diagnósticas e terapêuticas das doenças freqüentes deve passar por novas investigações onde o objetivo é exclusivamente o benefício da população, dos trabalhadores e, desta maneira, uma série grande de parâmetros deve ser revalorizada: a probabilística; as leis da saúde coletiva e da epidemiologia; o papel efetivo e a oportunidade de cada exame subsidiário e de cada medicamento; as práticas da Medicina Popular e a nossa flora; o raciocínio fisiopa­ tológico-epidemiológico-social; a ansiedade, a fobia, a agressividade, sua causalidade sócio-cultural e sua resolução; a “medicalização” da sociedade; a reformulação dos perfis profissionais etc.

Estas investigações têm como melhor campo a própria rede de assistência primária à saúde, mas pode e deve ser iniciada desde já. nos ambulatórios e postos tradicionais, ou em transição para esse nível de assistência.

Deve ficar inequívoco que a proposta acima colocada, de tecnologia própria, nada tem a ver com certos projetos de assistência primária à saúde que não são de assistência primária à saúde, mas de simples extensão de cobertura, de atividades simplificadas mecanicamente, sem benefício à população, iludindo-a, confundindo-a.

A PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE

Entendendo-se por participação um processo dinâmico, bilateral, onde os dois lados (posto e comunidade) se interagem sem barreiras, pensamos que a melhor situação seria, da parte da equipe do posto, a realização de palestras e debates com grupos da população que os solicitam - grupos de clientes, escolas, clubes, associações, sociedades, amigos de bairro etc. Além dos temas de saúde e doença, abordar também o da organização dos serviços de saúde. Da parte da comunidade, a participação na gestão do posto na identificação das necessidades, estabelecimento de prioridades, execução das atividades e na avaliação. As formas desta gestão não sabemos, pois nunca vimos, mas sem dúvida deverão ser descobertas e experimentadas com a própria participação, e não predefinidas pela instituição.

No processo da participação, talvez seja oportuno lembrar três limitações que não devemos ultrapassar:

  1. O setor saúde pertence ao setor social, ou de serviços, cujos recursos públicos constituem a renda indireta das pessoas, pois os serviços são benefícios que influem no nível de vida. Contudo, é a renda direta, ou poder aquisitivo da população, o fator que realmente determina o nível de vida. Por isso, no processo participativo, não se deve permitir a ilusão de que os serviços de saúde, mesmo organizados só para beneficiar a população, produzirão uma população sadia por si só.

  2. A comunidade é uma fração da população que nós, por nossa conta, classificamos segundo os interesses mais diversos. Para o posto, deve ser a própria clientela da sua área de cobertura, somente por motivos operacionais, de facilidade de acesso e disponibilidade da equipe. Isto deve ficar bem claro, porque os problemas de saúde não se originam na comunidade, mas sim em toda a sociedade, cuja estrutura atual favorece a doença. Assim, a solução efetiva dos problemas de saúde não é de responsabilidade da comunidade, mas da estrutura social e da organização dos serviços de saúde. Por isso. participação da comunidade não deve ser exigir da população que, através de voluntariado, substitua os deveres dos órgãos públicos. Esta substituição pode ser justificável somente em uma etapa inicial, com a finalidade de pressionar o setor público a cumprir seu papel.

  3. No processo da participação, os profissionais de saúde devem conter sua tendência de inculcar na população as suas verdades quanto aos interesses populares, às prioridades e aos caminhos pelos quais a população deveria livrar-se do sofrimento e injustiça. Os interesses, as prioridades e os caminhos estão sendo arduamente apurados pela população, seus líderes e organizações populares autênticas. Na área da saúde, os profissionais devem-se ajustar ao papel de simples aliados da população, e nisto já há muito o que fazer. Não é necessário, aliás só atrapalha, querer passar de aliado a organizador da população e protagonista da sua história.

Finalmente, o que até agora colocamos sobre participação é algo para se atingir na nossa realidade. Julgamos que, no momento, os postos de assistência primária à saúde têm pela frente algumas pré-condições, cujo cumprimento deve abrir caminho ao processo de participação.

  1. diminuição do caráter historicamente autoritário dos serviços de saúde (e dos profissionais), que utilizam um emaranhado fantástico de normas, procedimentos, rotinas, condutas diagnósticas e terapêuticas. ordens médicas etc. Este caráter deverá ser cada vez mais explicativo, através do exercício da desmonopolização do saber e passagem para a população do maior controle possível dos seus problemas de saúde;

  2. ampliação da informação e discussão das questões de saúde comunitária e políticas de saúde para toda a equipe. Hoje esta discussão está monopolizada por um pequeno número de profissional de nível universitário. Por outro lado, também a ampliação da participação no controle e nas decisões, dentro das instituições de saúde, com acesso dos profissionais e funcionários subalternos a níveis maiores de informação e decisão;

  3. elevação permanente do padrão técnico da assistência primária à saúde, expansão da rede de postos e manutenção de um núcleo mínimo de atividades em cada posto. Merece destaque, também, a consecução do melhor apoio de serviços complexos à rede dessa assistência;

  4. alterações simplificadoras e democratizantes na estrutura político- administrativa da instituição, com a finalidade de absorver as experiências e a participação da população, principalmente através das organizações populares.

Consideramos estas pré-condições como o desafio imediato para haver a participação da comunidade. Não entendemos a participação sem que passe pelas pré-condições apontadas, não necessariamente no sentido cronológico: primeiro as pré-condições e, após. a participação, mas sim no sentido de que somente o cumprimento das pré-condições vai creditando o serviço e os profissionais perante a população, que por sua vez, gradativamente, estabelecerá seus canais de participação.

A QUESTÃO DA MUNICIPALIZAÇÃO

Parece-nos indubitável que o processo de descentralização, democratização e participação em nosso País contemplará as municipalidades com um papel muito mais significativo na organização social, na política administrativa e produtiva e na qualidade de vida da população. Será algo como verdadeira recuperação histórica do papel do município, entidade esta que foi expressão das primeiras aglutinações e ocupação espacial pela população, desde o descobrimento, há 5 séculos, quando fora os pilares do povoamento e formação territorial da Nação e dos Estados.

É no nível da municipalidade que:

  1. surge a consciência da vida gregária humana e da necessidade de organizar esta vida gregária ou coletiva, no seu contato com a natureza e no bem estar urbano;

  2. surgem o espírito de comunidade e as lideranças locais, autênticas por viverem os problemas concretos, diários, da comunidade e serem conhecidas e acessíveis para esta comunidade;

  3. surge o poder local. único poder sujeito às pressões populares diuturnamente, e por isso melhor conhecedor das realidades da população, das suas necessidades, prioridades e das soluções mais adequadas: no sistema viário municipal, tanto urbano, como rural, na ocupação dos espaços industriais e agropecuários, na saúde, no ensino, no lazer, na produção e abastecimento de alimentos básicos, nos projetos habitacionais etc;

  4. surge a grande oportunidade de população participar concretamente no planejamento e gestão do poder local (Executivo e Legislativo), enriquecendo este poder com a inesgotável criatividade popular (desde que haja canais político-administrativos capazes de absorver e estimular aquela participação através das organizações populares).

Não foi por acaso que as municipalidades e o poder local antecederam historicamente a configuração dos Estados e da própria União.

Contudo, o modo com que a nação foi crescendo e enriquecendo, e com que foi se tornando dependente do comércio externo, levou à formação de fortes núcleos de interesses financeiros e políticos, hegemônicos, e que passaram a utilizar os poderes dos Estados e da União para o seu benefício. Para garantir a concentração das riquezas, os Estados, e principalmente a União, passaram a ser cada vez mais centralizados e autoritários. Os grandes acertos econômicos e políticos-administrativos do grande capital (financeiro, industrial e agropecuário) passaram a ser diretos com a União e os Estados. As expressões naturais e iniciais do poder municipal foram sendo gradativamente abafadas. Exemplos:

  1. Enquanto 41%, 39%, 38% e 34%, da arrecadação total permanecem nas Prefeituras Municipais, respectivamente nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Itália, no Brasil era de 6,6% no biênio 1963/64, caindo para 5% em 1979, tendo passado para 3,6% no biênio 1970/71, segundo dados do Ministério da Fazenda. Enquanto isso, a porcentagem da arrecadação municipal que sobe à União cresceu de 4,96% no biênio 63/ 64, para 60,6% em 1979, e a que sobe aos Estados, caiu de 43,9% para 34,4%. Sabe-se, hoje, que mais de 70% ficam para a União, menos que 30% para os Estados, e por volta de 2% para os Municípios.

  2. Para compensar a disparidade da política tributária, a União e o Estado transferem, ou emprestam aos Municípios parte da arrecadação, evidentemente, sob certas condições: para aplicar os recursos em prioridades estabelecidas à margem do poder municipal, “longe de atender aos problemas mais urgentes dos municípios”, segundo pesquisa do IBAM. Na região sudeste, as transferências constituem por volta de 70% da receita arrecadada, e a maioria dos municípios brasileiros depende das transferências do FPM.

  3. A Lei Orgânica dos Municípios não é elaborada pelos Municípios, e nem com a sua participação.

Dentro deste quadro, a maior parte dos Prefeitos da quase totalidade dos pequenos Municípios, e da maior parte dos médios, estão reduzidos hoje à humilhante situação de funcionários da União, ou do Estado, com a missão de sujeitar seus municípios às prioridades e interesses que pouco lhes dizem respeito, em troca de alguma aplicação financeira. (Em 1977, dos 3.974 municípios brasileiros, mais de 3.000 possuíam menos de 25.000 habitantes.) E como se não bastasse, a União e o Estado aparecem como “doadores beneméritos”.

Na área da saúde não pode ser diferente: através das' décadas, as indústrias de equipamentos e de medicamentas e as grandes empresas hospitalares acertaram, com a União e os Estados, uma política de saúde que produziu o atual modelo de Medicina especializada e hospitalar, verdadeiro sorvedouro de recursos públicos para tornar viável seus objetivos mercantilizados. Este modelo foi imposto aos Municípios diretamente (a Lei Orgânica dos Municípios e, depois, a Lei 6.229, impõem a responsabilidade pelos serviços de Pronto-Socorro), ou subliminarmente, através de consultorias, aconselhamen-tos etc. A regra final é que a maior parte das municipalidades, principalmente as Prefeituras e Câmaras Municipais, acaba assumindo que deve construir um Pronto­ Socorro, ou Hospital, ou comprar serviços de Hospitais Privados, vendo nisto o grande objetivo municipal em saúde.

Como solução, a prazos médio e longo, as municipalidades encontram o desafio de se engajar na luta democrática e conquistarem um novo relacionamento com a União e Estados, começando pela revisão da Política Tributária, e aqui, nada ou pouco pode fazer o setor saúde.

Contudo, algumas medidas, na área da saúde, podem ser iniciadas pelos Municípios, desde já:

  1. buscar informações e exemplos concretos de outras alternativas, principalmente aquelas da área da atenção primária à saúde;

  2. formular metas suportáveis pelos recursos municipais baseadas não somente em tecnologias eficazes, disponíveis e de baixo custo, mas também na criatividade e participação popular, e mais, na adequada articulação com a Secretaria Estadual de Saúde e com o INAMPS;

  3. dispor-se a rever os objetivos municipais em saúde, e passar a dar prioridade à rede de postos de assistência primária à saúde. Esta revisão não implica mudança radical, pois em algumas situações pode haver uma responsabilidade municipal com atenção hospitalar, mas a prioridade à assistência primária deverá ser assumida, inclusive na sua participação do orçamento municipal. O apoio da opinião, pública e a força política, necessários para esta revisão, a Prefeitura e a Câmara terão, através da repercussão da inauguração e funcionamento adequado de cada posto;

  4. articular e organizar encontros periódicos de grupos de Municípios vizinhos, com a finalidade de trocar experiências e consolidar suas redes de postos. Exemplos de alguns importantes para trocar experiências:
    • Listas padronizadas de equipamentos e medicamentos para os postos.

    • Composição das equipes dos postos.

    • Planta física dos postos.

    • Métodos de supervisão, treinamento e reciclagens.

    • Avaliação.

    • Cálculo de custo-benefício.

    • Encaminhamento para serviços complexos. Educação em Saúde.

    • Saneamento e Imunização.

    • Convênios e articulações com a Secretaria Estadual de Saúde e com o INAMPS.

    • Participação da população.

Ao finalizar, é bom reconhecer-se que a luta pela municipalização comporta quatro limitações:

  1. Municípios muito pequenos de regiões agropecuárias mais pobres possuem arrecadação quase nula e muitas vezes foram artificialmente elevados a essa condição. Por isso sua viabilidade fica na dependência de se uni­ rem em torno de Municípios-pólo, formando microrregiões que possuam suficiente potencial populacional, econômico e político;

  2. as regiões metropolitanas possuem uma problemática própria à qual não se aplicam várias das análises e recomendações feitas aqui;

  3. a prioridade dos Municípios para a rede de assistência primária à saúde não deve excluir a participação dos Estados e União na implantação e manutenção da rede. Esta prioridade irá se efetivando gradativamente, à medida que os Municípios incorporem os recursos e as tecnologias que lhes cabem historicamente, e hoje, de forma arbitrária, monopolizados pelos Estados e União;

  4. a questão da municipalização não esgota nem determina as soluções definitivas para os problemas sociais, pois as soluções profundas e duradouras cabem à toda sociedade e à nação. A concentração da renda, a pobreza, o comércio externo não são atingidos pelo poder municipal, e nem um Sistema Nacional de Saúde voltado para os interesses da população será determinado pelo poder municipal. Estas limitações devem estar presentes na memória para que não sejam criadas ilusões na população acerca das possibilidades municipais.

IDENTIFICANDO O MOMENTO

Sabemos, hoje, dos equívocos dos Ministros de Saúde das Américas ao traçarem objetivos e metas para o setor saúde, consubstanciados nos Planos Decenais de Saúde para as Américas, a partir da reunião de Punta Del Este em 1961. Objetivos e metas ligados à extensão de cobertura por serviços básicos de saúde e saneamento e todo o elenco de atividades-meio: rede física, recursos humanos e materiais, medidas racionalizadoras etc. A regra geral, revelada pelos fatos concretos que se desenrolaram nas últimas décadas, foi não só o fracasso das tentativas de atingir aquelas metas, mas também a intensificação das distorções do setor saúde e da sua ineficácia e ineficiência.

A IV Reunião dos Ministros de Saúde das Américas em 1977, comprovou o irrealismo dos Planos Decenais e recomendou a extensão de cobertura dos serviços básicos, a partir das “Estratégias de Atenção Primária à Saúde e Participação da Comunidade”, o que não passou muito da simples oficialização de recomendações que já vinham sendo insistidas por setores da OPS, do Banco Mundial e das Fundações Kellog, Ford, Rockfeller etc., recomendações estas que diferiam em doutrinas e métodos de acordo com sua origem, mas que eram bastante semelhantes em grande parte da sua operacionalização. Esta IV Reunião acabou por não ter deixado maiores rastros.

No Brasil, nos anos 70, várias tentativas bastante promissoras não passaram da etapa de planejamento e estudos (como o PLUS e UBAMs), outras sofreram graves pressões e impedimentos já na etapa de implantação e principalmente de manutenção (como o PIASS) e outras, de nível local e microrregional, muito poucas, tendem a consolidar-se a duras penas, como Montes Claros, Londrina, Campinas.

A década de 70 conheceu também um aumento sem precedentes de trabalhos e elaborações críticas na área da saúde, incorporando definitivamente as Ciências Sociais e a Filosofia como o grande referencial de análise (a ponto de aparecer um desafio adicional: combater o “sociologuês” e o “filosofes”, doenças infantis de fundo autoritário que confundem e prejudicam a aceitação e incorporação de categorias sociológicas e filosóficas como elementos básicos para a análise e compreensão do binômio saúde-doença e do setor saúde). Nesta década, começaram a ser elaborados trabalhos mais aprofundados acerca da interação Medicina científica, formal, oficial ou institucional com a Medicina popular ou informal, e também acerca das propostas inovadoras dentro da Medicina institucional. Aqui, destacamos o trabalho de Castellanos Robayo (1977), pelo aprofundamento mais sério da questão da cobertura e dos níveis de atenção.

Finalmente, a Conferência Internacional da OMS, em Alma-Ata (1978), liga definitivamente a extensão de cobertura à imperiosidade de reordenamento de todo o setor saúde, e a atenção primária à saúde à uma estratégia de mudança muito além da simples implantação e manutenção de serviços básicos. A VII Conferência Nacional de Saúde no Brasil (1980) reflete, aprofunda e adequa as conclusões de Alma-Ata para a situação brasileira, e respalda a proposta inicial do Prev-Saúde, hoje submetida a pressões e alterações conjunturais.

O maior ou menor grau de participação das organizações populares, dos profissionais de saúde, do poder legislativo e das municipalidades determinará a maior ou menor aproximação das características dos serviços básicos de saúde no País, das reais necessidades e prioridades da população.

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    * Subsídios expostos no 1° Encontro Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Belo Horizonte, março de 1981) e no Encontro Estadual Sobre Cuidados de Saúde em Vilas Populares (Porto Alegre, abril de 1981).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1981
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