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UMA EXPERIÊNCIA DE ENSINO CENTRADA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CIENTÍFICO DO ESTUDANTE

Resumo:

O curso de Bioquímica I, desenvolvido por um grupo de professores do Departamento de Bioquímica do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem como um dos seus objetivos principais a formação científica do aluno. O método pedagógico seguido da “redescoberta” é entendido como uma forma de levar os alunos à adquirirem conhecimentos ao mesmo tempo que “redescobrem” o caminho científico produtor deste mesmo conhecimento.

Este artigo trata dos resultados do estudo acerca da receptividade do curso pelos alunos e da relação desta receptividade com a possiblidade de pensar, de raciocinar, sem prejuízo da aquisição de conhecimentos. Mostra, também, a modificação que o aluno tende a sofrer durante o Curso Médico: de uma atitude de maior interesse em participar da construção do conhecimento científico, para outra de apenas atuar como consumidor desse conhecimento. Ao final da graduação, a tendência do aluno é ver a prática médica dissociada da prática científica.

Summary:

One of the main objectives of teaching the Biochemistry I discipline at the Biochemistry Department of the Universidade Federal do Rio de Janeiro is to foster the student scientific attitude. The pedagogical method followed by “the discovery” is understood as one way to lead the students to acquire knowledge as well as to discovery the scientific pattern which produced the knowledge.

This papper discuss results from a study related to the discipline receptivity by the students and the relation between that receptivity and the possibility of “thinking, reasoning and using their own minds” without loss of the subject being taught. It is also shown the change the student suffers along the undergraduate course that is, from a greater interest in participating in the building of the scientific knowledge to a situation of simple consummer. At the end of the medical course the student tendency is to see the medical practice unrelated to the scientific practice.

Introdução

Uma das questões com que a Universidade se defronta é a definição de seus objetivos de ensino no contexto da enorme quantidade de informações e dos variados meios de comunicação.

Muito se polemiza a respeito do papel do professor: informar x formar. E uma afirmação muito comum é a de que “quem forma, não informa”. A preocupação maior de um grupo de professores responsáveis pelo curso de Bioquímica I, do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, é justamente a de formar o aluno, e formar numa perspectiva científica. Não estão sozinhos nesta preocupação. Entre vários educadores, podemos citar THOMAS KUHN, físico e filósofo da ciência, que muito se preocupa com a formação científica do estudante.

KUHN critica o fato de a educação científica, que supõe uma atividade criativa, se dar através de manuais escritos especialmente para estudantes. “Até que ele esteja preparado, ou quase preparado, para fazer sua dissertação, o estudante de Química, Física, Astronomia, Geologia, ou Biologia, raramente é posto ante o problema de conduzir um projeto de investigação; ou colocado ante os produtos diretos da investigação conduzida por outros, isto é, as comunicações pro­ fissionais que os cientistas escreverem para seus colegas".33. KUHN, T. S. A Função do Dogma na Investigação Científica. In: J. Dias de Deus (org.) A Crítica da Ciência, Sociologia e Ideologia da Ciência , pág. 57. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974. Em geral, de acordo com KUHN, o estudante não é convidado a redescobrir como os problemas da ciência, em que está interessa­ do, foram definidos, nem é preparado para apreciá-los numa visão crítica. Freqüentemente, os modelos de ensino utilizados nas escolas privilegiam a função docente de repassar conhecimentos. Raramente, informam como são gerados esses conhecimentos.

Entre os diferentes modelos de ensino, encontram-se dois mais difundidos sob diferentes formas. Um é baseado na Psicologia Comportamental, e conhecido como modelo de controle de comportamento, e o outro, baseado na Psicologia Cognitiva, é conhecido como modelo da descoberta.44. NUTHALL, G. & SNOOK, I. Contemporary Models of Teaching. In: Robert M. W. Travers (Ed.), Second handbook of research on teaching. Chicago: Rand McNally College Publishing Co., 1973.

O modelo de ensino baseado no controle de comportamento surgiu a partir de conceitos e princípios de aprendizagem vindos da pesquisa experimental em Psicologia. Enfatiza a importância do controle de condições ambientais para que a aprendizagem se dê. O modelo de ensino da descoberta é mais. antigo. Sócrates pode ser exemplo com o método da maiêutica.

A partir da investigação experimental da formação de conceitos e solução de problemas, dos estudos de pensamento criativo e da pesquisa de desenvolvimento de inteligência, realizada por PIAGET, muito se avançou na compreensão do processo de aprendizagem.

PIAGET não formulou método de ensino, mas a teoria de desenvolvimento intelectual, advinda de suas pesquisas, dão rigor lógico ao modelo de ensino por descoberta. Mostrou, justamente, que as estruturas conceituais são frutos de um processo desencadeado internamente. Dessa forma, a aprendizagem humana é mais do que o produto do controle de variáveis ambientais.44. NUTHALL, G. & SNOOK, I. Contemporary Models of Teaching. In: Robert M. W. Travers (Ed.), Second handbook of research on teaching. Chicago: Rand McNally College Publishing Co., 1973.

Nas observações sobre o modelo de ensino por descoberta, distinguem-se: a) o interesse e a participação do professor é fundamental; b) não se espera que todos devam “descobrir” todo o corpo de conhecimentos já acumulado.

A experiência mostra que esta forma de aprendizagem é muito poderosa e não deve, por trabalhosa, ser relegada. O importante é utilizá-la naqueles conteúdos mais relevantes.

E na perspectiva de KUHN e do modelo de ensino pela descoberta (ou redescoberta) que vem sendo desenvolvido o referido curso de Bioquímica I, desde 1978.1 1 Durante alguns anos, este curso teve a assessoria pedagógica do NUTES. Neste período, o referido grupo de docentes era chefiado pelo Professor Leopoldo de Meis. Com o objetivo de fazer uma avaliação deste curso, segundo a percepção dos alunos, foi realizado um estudo no qual se buscou conhecer essa percepção: a) o término do curso; b) ao final do primeiro ano do ciclo básico (um semestre após a realização do curso de Bioquímica I); c) ao final do ciclo clínico (oito semestres após o curso de Bioquímica I). Aos alunos, pediu-se que avaliassem o curso como um todo, seu conteúdo, e o curso enquanto formador do pensamento científico.

A metodologia usada foi a de levantamento de percepções, por questionário anônimo, e os sujeitos do estudo foram os alunos matriculados no 1.o semestre de 1980, no ciclo básico, com opção para Medicina. No primeiro semestre de 1980, o grupo era formado por cerca de 90 alunos; no 2o semestre de 1984, estava reduzido a 65 alunos.

O curso de Bioquímica

A análise dos cursos que costumam ser desenvolvidos na Universidade mostra que podem ser resumidos em dois tipos. O primeiro segue um tipo de formulação que lista uma sucessão de assuntos agrupados em capítulos, geralmente seguindo as linhas traçadas por um livro clássico. Esses assuntos são apresentados aos alunos através de preleções em que o professor fala o tempo todo, e os alunos fazem suas anotações. Vez por outra, alguém faz uma pergunta, que, rapidamente, é respondida, e o professor segue falando. Há ainda o que se tem chamado de aula prática. Uma reação é colocada (mais ou menos no contexto do que vem sendo dito nas preleções), um roteiro maceteado é entregue ao aluno. A experiência prática aí se dá, com o resultado absolutamente previsto. Normalmente, o aluno chama a isto de processo de receita de bolo. Os professores do Departamento de Bioquímica criticam essa forma de desenvolver um curso, porque o que se ensina busca o caminho do geral e abstrato para ir ao particular e concreto, e o papel do aluno, nesse modelo, é apenas acumular conhecimentos sem outras exigências de operações intelectuais que não seja a de memorizar.

Mas, há outro tipo de programa também bastante utilizado: parte da definição do profissional a ser formado, conforme necessidade e exigência do meio social. Define objetivos gerais para orientar a formação desse profissional e objetivos específicos para orientar os programas das diferentes disciplinas, como a Bioquímica I, por exemplo. Estabelece-se a carga horária e uma vez desenvolvido o curso é feita avaliação sob diferentes aspectos da aprendizagem do aluno, desempenho do professor, seleção do conteúdo e atividades didáticas.

Aparentemente, o programa é interessante, mas os professores de Bioquímica vêem algumas dificuldades na sua realização. A Faculdade de Medicina, por exemplo, tem definido com clareza o médico que pretende formar? A sociedade brasileira como um todo tem feito o diagnóstico do médico necessário? Existe m canais para promover discussão em torno desta crucial questão? Os professores têm forças, vontade e possibilidades para promover e participar de um processo que essa discussão desencadearia?

Neste contexto, a análise desses dois tipos de programas de cursos trouxe a professores do Departamento em questão algumas idéias que deram forma ao que seria um modelo alternativo de curso, possível nos quatro meses destinados ao curso de Bioquímica I.

Essas idéias giram em torno de procurar desenvolver nos alunos modos de procurar, fazer, sentir, saber e pensar as “coisas” de Bioquímica. Assim, o curso relevaria mais as vivências das idéias e fatos que a especificidade do conteúdo. Este seria estudado desde os aspectos iniciais de sua elaboração à “época de criação”, até a fronteira atual do conhecimento. E seria apresentado do particular para o geral e do concreto para o abstrato. Sua ênfase seria uma bioquímica do controle e não uma bioquímica de reações e fórmulas.

Como foi planejado esse curso?

Esse curso foi planejado em quatro etapas ou blocos de conteúdo: Proteínas, Bioenergética, Metabolismo I e Metabolismo II. As três primeiras etapas foram desenvolvidas especialmente dentro do que, nesse Departamento, chamou-se método da redescoberta (a partir de uma retrospecção histórica de experimentos em Bioquímica, conduz-se a aluno até os dias de hoje) e a quarta etapa foi desenvolvida buscando integrar os conhecimentos e atividades num esforço de raciocínio e interpretação das três primeiras (os princípios gerais de Bioquímica, Química e Físico-Química são aplicados na área médica a partir de algumas situações normais, ou de doenças). Se no 1o e 2o blocos a fonte de informações é mais centrada no professor e nas discussões que ele estabelece com os alunos, no terceiro e quarto há maior ênfase na pesquisa bibliográfica. Os alunos aprendem a lidar com os livros de forma objetiva.

O que é o método da redescoberta? Aos alunos é feito uma rápida retrospectiva do nível de conhecimentos, relacionados ao assunto em pauta, em várias épocas, até um determinado momento. A partir deste ponto, são colocadas as questões-chave ainda sem resposta (no momento referido) onde o aluno é estimulado a formular hipóteses e propor experiências para confirmar, ou não, as hipóteses formuladas. Neste processo, o aluno é estimulado a redescobrir o caminho científico realizado para construir o conhecimento que está em foco naquela aula, possibilitando uma aquisição a partir de sua redescoberta.

O aluno é levado, não só a se familiarizar com o corpo de conhecimentos já adquiridos na ciência, como a se exercitar nos passos típicos do trabalho que leva à construção deste mesmo conhecimento.

Dois parâmetros teriam que ser considera dos para tornar possível o objetivo de ensino por redescoberta: o conteúdo e a formação médica, tendo, como restrição legal, o tempo.

As atividades específicas de laboratório seriam construídas no sentido de se tornarem geradoras de indagações para o aluno e de suporte para o professor no desenvolvimento do curso. A partir de um tema central, seria explicitada a convergência de fatos e idéias surgidas e desenvolvidas na época da sua criação e na época de sua consolidação.

Cada atividade seria previamente planejada com o aluno. Sua execução seria realizada e continuamente analisada pelo aluno. Promoveria a responsabilidade compartilhada de aluno/professor pelo resultado experimental obtido em sala de aula.

Com base nesses critérios foram selecionados os conteúdos e planejadas as atividades.

Bastante recompensador para alunos e professores foi verificar como é comum os alunos realizarem a reconstrução proposta. Freqüentemente, formulam os mesmos experimentos feitos pelos cientistas da época e demonstram muito empenho nas atividades.

Acredita-se que na medida em que o aluno se aproxima deste tipo de trabalho, de um lado, desmistifica-se o trabalho do cientista e, de outro, torna possível uma realização científica pelo aluno. O trabalho científico mostra-se como uma possibilidade para muitos, bastando para isto observar, refletir, criar, raciocinar, relacionar criticar, concluir.

Conseqüências educacionais do modelo adotado

A metodologia da redescoberta leva o aluno a falar, discutir e realizar. Estas três ações, de certa forma, podem ser relacionadas à teoria do desenvolvimento de inteligência humana e ao conceito de aprendizagem de PIAGET. Segundo este autor, um dos mais importantes teóricos do desenvolvimento da inteligência, aprendizagem é um processo de assimilação e acomodação. À medida que a pessoa assimila o que vê, ouve, sente etc (a informação, a observação etc) ela tem de acomodar esses novos materiais àqueles já aprendidos. Tanto a assimilação, como a acomodação, se dá na pessoa que atua, pensa, reflete, raciocina, experimenta. A inteligência, segundo PIAGET, se desenvolve numa busca de adaptação ao meio e suas variações. Diante de estímulos que desequilibram esquemas de acomodação já estabelecidos a pessoa tem de buscar respostas novas, ou seja, o processo de assimilação/acomodação é desencadeado: aprendizagem.22. FLAVELL, H. John. A Psicologia do Desenvolvimento de Jean Piaget. Livraria Pioneira Editora - São Paulo, 1975.

Como analisar, desse ponto de vista, a metodologia desenvolvida pelos professores do curso de Bioquímica I?

A metodologia tinha dois-momentos: a) familiarizar o aluno com a história científica que levou à criação de determinados conhecimentos; b) exercitar o comportamento que proporcionou à criação desses conhecimentos: metodologia científica.

O aluno era informado de um passado de trabalho e estimulado a continuar esse trabalho.

Na linguagem de PIAGET, propositadamente foram criadas condições de desequilíbrio, a partir da fala, discussão e realização, para que ocorra que ocorra desencadeamento do processo de assimilação e acomodação.

A filosofia do curso aproxima-se do que CHAUÍ11. CHAUÍ, Marilena. Ideologia e Educação. In: Revista Educação e Sociedade - CEDES , n. o 5 _ Cortez Editora, 1979. considera como trabalho pedagógico: menos aquisição de conhecimento e mais formação de atitudes. De acordo com a autora “O trabalho pedagógico, por ser um trabalho, não é transmissão de conhecimento (para isso existem outros instrumentos), mas também não é um diálogo, uma comunicação intersubjetiva entre o professor e seus alunos. O professor trabalha para suprimir a figura do aluno enquanto aluno, isto é, o trabalho pedagógico se efetua para que a figura do estudante desapareça”.

Ora, no curso o aluno é chamado a assumir o papel de cientista: aquele que usa o conhecimento já produzido, o critica, o toma como base para continuá-lo e comunicá-lo (o aluno expõe aos colegas e ao professor os resultados de sua reconstrução ou criação científica).

O aluno é apresentado, de certa forma, às suas próprias possibilidades de, concretamente, tomar para si este trabalho. Isto é, o desenvolvimento da atitude científica vai além do simples adestramento de uma metodologia científica. Isto implica o conceito de educação em que a pessoa é vista como alguém que pensa, critica, questiona, reflete, dirige, decide e atua. Em resumo, é conscientizado da sua capacidade de agir e das conseqüências do seu comportamento. Isto é bastante diferente de uma pedagogia que trata o educando como alguém que consome, aceita, guarda, reproduz, executa, obedece.

Resultados

A avaliação do curso segundo a percepção dos alunos

Ao final do curso (julho, 1980) foi pedido aos alunos que o avaliassem através de questionários anônimos.

Como um todo, o curso foi percebido pelos alunos como o melhor do período. Esta percepção foi justificada pelo que os alunos chamaram de “organização, interesse e dinamismo dos professores deste Departamento”. Este foi apontado como interessado em “ajudar, fazer o melhor para os alunos”. Os professores foram caracterizados como especialmente empenhados em levar os alunos a pensar, raciocinar, criticar e participar ativamente.

Alguns exemplos retirados dos questionários de avaliação são ilustrativos:

“A filosofia básica do curso é muito boa, tirando aquela idéia de decoreba que geralmente se tem de Bioquímica”.

“Achei ótimas as aulas teóricas, porque analisamos os fatos e não nos foi pedido para decorar fórmulas, ou experiências”.

“Foi bom. Primeiro, porque não foi um curso de memória e, sim, de raciocínio. Segundo, porque foi um curso onde mesmo nas aulas teóricas nos deixavam pensar nos experimentos realizados”.

Em resumo, a análise da avaliação dos alunos, imediatamente após a conclusão do curso, revela dois aspectos interessantes: 1 - a expectativa negativa sobre a Bioquímica foi frustrada: é possível aprender com prazer um assunto que muitos consideram insuportável. Uma didática adequada produz resultados eficientes; 2 - à medida que o aluno é chamado a pensar, criticar, raciocinar, assume o papel do controlador do processo ensino/aprendizagem e, assim, suprime o papel do aluno na perspectiva tradicional.

Um semestre (novembro de 1980) após a realização do curso, os alunos mantiveram a percepção positiva em relação ao mesmo, revelada em novos questionários anônimos distribuídos aos mesmos alunos. A ênfase continuou sendo dada à oportunidade que tiveram para o desenvolvimento de um comportamento científico, sentida como uma experiência nova.

Uma das inúmeras respostas ao questionário de avaliação ilustra essa percepção:

“Independente de ser ou não Bioquímica, o fato de nós termos sido obrigados a pensar em cima de gráficos, tabelas, dados experimentais, ajudou-nos a pensar cientificamente em qualquer disciplina.

“Já em certa altura do curso nós podíamos pensar também nas outras disciplinas que estávamos tendo”.

Algumas restrições foram apontadas pelos alunos: especialmente centradas na distribuição de tempo pelos quatro blocos ou etapas do curso que levava a certo desequilíbrio, discussões em grupo por vezes descoordenadas e aulas práticas nem sempre proveitosas. Algumas respostas podem ilustrar essas restrições:

“Alguns professores são melhores que os outros”.

“Muita matéria e pouco tempo em certas partes do curso”.

“Em algumas discussões ficávamos perdidos”.

Também se indagou como o conteúdo específico de Bioquímica, adquirido no primeiro semestre de 1980, auxilia nos períodos seguintes, para embasar as diversas matérias.

As respostas obtidas, à primeira vista, pareciam incongruentes, pois os mesmos conteúdos que foram apontados como deficientemente tratados foram também os apontados como aqueles onde houve maior aprofundamento. Parece assim que, embora os conteúdos tenham sido explorados, o aproveitamento não foi homogêneo. Um acompanhamento avaliativo com estratégias de atividades suplementares poderia favorecer um aproveitamento mais global. É interessante notar que se houve alguma diversidade na percepção quanto aos ganhos em relação à diferentes unidades do conteúdo, o mesmo não aconteceu quanto à formação científica. Há praticamente unanimidade quanto ao reconhecimento de que o curso propicia aprendizagem de comportamentos científicos que se mostra transferível às outras áreas do Curso de Medicina.

De fato, alguns professores desempenham o seu papel de forma mais adequada que outros, no método de redescoberta. Este, por ser centrado na atuação do grupo de alunos, exige certas habilidades do professor quanto à coordenação e orientação dos trabalhos. Não é sempre que o professor consegue um bom desempenho.

É um método que exige certo tempo para que os alunos possam de fato pensar, raciocinar, concluir, ou seja, trabalhar intelectualmente. Algumas vezes o professor se impacienta. Outras, prefere “dar logo a matéria”.

Tomada no seu conjunto a percepção dos alunos em relação a este curso é indubitavelmente positiva. Cerca de 90% das avaliações ressaltam os aspectos positivos ja mencionados, avaliações estas que permanecem, passado um semestre inteiro.

A avaliação tardia do curso pelos alunos

O Curso de Medicina, que começou em março de 1980 com cerca de 90 alunos, em setembro de 1984 contava com cerca de 65 alunos. Destes, 40 responderam ao questionário de avaliação de Bioquímica I, a que foram submetidos no primeiro semestre de 1980.

Aos alunos, indagou-se se lembravam do curso de Bioquímica I. A reação foi imediata. Os alunos se recordavam perfeitamente desse curso: sua estrutura (em blocos de conhecimentos), sua preocupação (desenvolver atitude científica), suas características (participação ativa; reconstrução, interpretação, e crítica de experimentos e conhecimentos; questionarias para casa, grupos de discussão; seminários e práticas), seus professores (os nomes de todos) e conteúdos específicos. A reação dos alunos impressionou inclusive a professora que cedera parte do seu tempo de aula para a aplicação do questionário e que comentara antes: “Será que eles ainda se lembram de alguma coisa, passado tanto tempo?”

A linha geral de respostas, decorridos 5 anos, se manteve: 36 alunos, em 40, classificaram o curso, que tiveram em 1980, como muito bom ou bom, numa escala de quatro opções (muito bom; bom; regular; sofrível).

As justificativas ressaltaram a importância do curso, seja pela possibilidade que tiveram de se desenvolver intelectualmente (pensar, raciocinar, concluir, pesquisar em livros), seja pelo conteúdo específico, como base para a posterior formação médica.

Permanecem destacadas as possibilidades que o curso ofereceu para o desenvolvimento intelectual e científico. Quanto ao conteúdo, no conjunto, os alunos relataram que os assuntos - metabolismo, proteínas, vitaminas, glicose, dinâmica celular e aminoácidos - contribuíram para o estudo de outras disciplinas. São justamente estes conteúdos os enfocados no curso de 1980. Detectaram ainda que obtiveram em Bioquímica I a base para compreender os processos biológicos do organismo normal e suas alterações nos estados patológicos. Apontaram restrições semelhantes à avaliação anterior: distribuição desequilibrada dos conteúdos no tempo, discussões em grupo às vezes descoordenadas e práticas nem sempre proveitosas. Indicaram, ainda, a necessidade de que a abordagem do conteúdo permita uma visão mais global do organismo e um relacionamento maior com a Clínica Médica.

É importante relacionar esta avaliação com certas opiniões a respeito de cursos que se preocupam com a formação intelectual do aluno, a formação de atitudes, e formar mais que informar. Costuma-se polarizar: quem se preocupa com a formação de atitudes e a atividade intelectual dos alunos não consegue ensinar conhecimentos específicos. Quase sempre esse raciocínio é concluído com a frase: “o aluno sai sem base”. Não parece ter sido o caso dos alunos de Bioquímica I. Embora apontem falhas, estes alunos ressaltam a aprendizagem que tiveram nesses dois aspectos.

O Curso enquanto formador do pensamento científico

Por ser o interesse de desenvolver o pensamento científico dos alunos a espinha dorsal do curso, tornou-se importante avaliar o impacto deste trabalho sobre a idéia que o aluno trazia a respeito da ciência. Para esta avaliação foram analisadas as respostas dos alunos a questão “o que é pensar cientificamente” antes e imediatamente depois do curso de Bioquímica I.

Alguns exemplos nos dois primeiros momentos onde os alunos responderam a questão o que é “pensar cientificamente”, ilustram o conjunto de respostas que serviu de base para esta análise.

  • em março de 1980

“O homem se diferencia dos outros seres vivos, pois este tem a capacidade de pensar cientificamente, isto é, analisar determinado fenômeno, e através de uma análise, que envolve certas suposições, provar, ou não, a veracidade das teorias levantadas para justificar o determinado fenômeno”.

“Pensar cientificamente é olhar as coisas e procurar entender o porque delas estarem ali, delas serem como são, para o que servem, chegar à uma conclusão e, se for preciso, questionar esta solução. Pensar cientificamente é nunca achar que se deu a última palavra sobre um assunto”.

“Pensar cientificamente é analisar cada lado da questão racionalmente. É questionar e procurar respostas às perguntas. Procurar as raízes da questão, ou seja, seus fundamentos, motivos e, a partir daí, desencadear um raciocínio lógico que leve à resposta. É fazer críticas, controlar à experiência, ou seja, não deixar que fatores extras influenciem um determinado raciocínio”.

  • em julho de 1980

“Criar uma hipótese, fazer experimentos particularizados, comparar com um padrão. (fundamentar fisicamente a experiência), confirmar ou não a hipótese”.

“Ter senso de crítica, analisar resultados baseados em dados reais, ou seja, experiências.”

“Tentar tirar de uma experiência todas as conclusões possíveis e tentar obter resultados através de várias vias diferentes, sempre pronto para aceitar qualquer outro novo conceito”.

A partir destas respostas, realizou-se uma análise de conteúdo e junto aos professores chegou-se a algumas conclusões:

O curso teve impacto imediato sobre as concepções iniciais de “pensar cientificamente” dos alunos: Os alunos passaram de uma concepção mais aberta de ciência para uma mais restrita-experimentalista. Passaram de uma maior valorização da lógica e da formulação teórica para a valorização do próprio experimento e evoluíram de uma posição crédula diante das descobertas e afirmação científica para uma posição maior de dúvida e crítica.

A verificação de que o curso estava enfatizando uma concepção experimentalista de ciência tornou-se motivo de preocupação dos professores que se indagaram sobre a desejabilidade deste resultado, já que outras concepções de ciência convivem no mundo acadêmico. O enfoque experimental do curso estaria impedindo a abertura para outras abordagens científicas. No entanto considerou-se que o objetivo inicialmente proposto para o curso fora atendido uma vez que atitude de crítica e de dúvida frente ao conhecimento já estabelecido foi desenvolvida (nos cursos que se seguiram, procurou-se atenuar o enfoque estritamente experimentalista da ciência).

Em agosto de 1984; quase final do Curso de Medicina, solicitou-se aos alunos que respondessem novamente a pergunta “o que é pensar cientificamente”, no contexto do questionário de avaliação do curso.

Poderíamos dizer, pela freqüência de referências específicas a esta questão nas respostas, que a marca registrada do curso de Bioquímica I é o desenvolvimento do raciocínio (o pensamento, ou metodologia) científico. O resultado do questionário de avaliação, composto por cinco perguntas, demonstra que em todos os cinco sub-grupos de respostas encontram-se observações a respeito das vantagens de “aprender pelo raciocínio”, “pensamento científico”, “raciocinar de forma científica” etc.

Em relação a concepção do que é hoje para estes alunos, “pensar cientificamente”, temos a seguinte avaliação realizada junto ao grupo de professores de Bioquímica a partir das respostas dos alunos. Cumpre ressaltar que, evidentemente, os alunos sofreram uma multiplicidade de influências, quer de outros professores, quer do próprio amadurecimento pessoal e profissional. Não se pretendeu identificar especialmente a influência da Bioquímica I nas concepções da ciência hoje, mas identificar as mudanças ocorridas nessas concepções durante o período de 1980/1984.

Alguns exemplos ilustram este terceiro momento (setembro, 1984) no qual os alunos responderam esta questão.

“Não sei, pois acho que esse tipo de pensamento se desenvolve com uma postura crítica frente ao que não é apresentado, o que infelizmente não é apresentado na maior parte do nosso curso, que em minha opinião é completamente ultrapassado, não nos estimulando sequer a pensar”.

“O pensar cientificamente do ciclo básico nada tem com a realidade do pensar cientificamente do médico brasileiro. Isto fica muito fora da realidade de um médico prático”.

“Talvez seja pensar em fatos comprovados cientificamente, ou seja, fatos que alguém já tenha se preocupado em descobrir, aprender como o fenômeno ocorre e para que ocorre, qual a finalidade”.

“Ter na mente não só a Medicina como uma visão dos grandes órgãos e sistemas de uma forma estanque, mas sim uma visão desde as bases das reações até o quadro clínico como um todo”.

“É um pensamento difícil, livre de contaminações de vários outros pensamentos paralelos, de aprendizado penoso, que infelizmente foi um dos tópicos mais ausentes ao largo destes 5 anos de curso”.

No conjunto de respostas a pergunta “o que é pensar cientificamente”, percebe-se que:

  1. O conhecimento hoje é visto de forma mais passiva, não há mais interesse em pesquisar, buscar novos conhecimentos. As respostas dos alunos falam da necessidade de ser crítico, mas não falam em experimentar, testar, ser metódico para criar, ou buscar, o conhecimento. Em outras palavras, a atitude crítica permanece, mas de dados recebidos, e não mais se direciona ativamente na busca de alternativas, ou na construção de novos conhecimentos.

  2. De uma atitude de maior interesse em participar da construção do conhecimento científico os alunos passaram a uma atitude mais pragmática: os dados ou informações científicas existem e devem ser usados, mas produzir conhecimento não faz mais parte do programa profissional desses alunos. Estes tendem a se referir a prática médica como dissociada da prática científica.

Essas conclusões conduzem à uma indagação imediata: será isto desejável? Estarão os médicos da UFRJ sendo formados numa visão de prática médica apenas curativa, sem preocupação quanto à necessidade de buscar nova compreensão dos problemas de saúde e doença, ou, ainda, de buscar alternativas quanto à abordagem dos problemas de sua área profissional?

Conclusões

  1. O método da redescoberta, além de propiciar formação de uma atitude científica, é adequado para habilitar o aluno quanto ao conteúdo específico de Bioquímica, e não indica exclusividade, podendo ser aplicado a outros conteúdos.

  2. O curso contribui destacadamente para o desenvolvimento da atitude científica nos alunos. No conjunto de respostas aos questionários de avaliação do curso, os alunos sistematicamente relacionam a experiência deste curso com a aprendizagem, ou formação de uma atitude científica, e lamentam a não continuidade durante o Curso Médico.

  3. Quando os professores trabalham no sentido de desenvolver o pensar cientificamente, encontram receptividade nos alunos quando eles ingressam na Universidade. Dentro de uma abordagem educacional adequada, o professor não encontra dificuldades especiais em trabalhar com os alunos nessa direção. Entretanto, se este trabalho não existe de forma sistemática, o potencial dos alunos não se transforma em comportamento bem estruturado; ao contrário, tende a desaparecer. O que se constata é que a resposta entusiasmada à essa formação é modificada: ao final do Curso Médico, o aluno passa a perceber a ciência como usuário e não mais como elemento que a pode construir. Esta perda deve de alguma forma ser questionada e solucionada pela comunidade universitária.

Referências bibliográficas

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  • 4
    NUTHALL, G. & SNOOK, I. Contemporary Models of Teaching. In: Robert M. W. Travers (Ed.), Second handbook of research on teaching Chicago: Rand McNally College Publishing Co., 1973.
  • 1
    Durante alguns anos, este curso teve a assessoria pedagógica do NUTES. Neste período, o referido grupo de docentes era chefiado pelo Professor Leopoldo de Meis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1985
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