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Cinco Caminhos para Não Abrir Espaços de Transformação do Ensino Médico

Five Ways for Not Open Transformation spaces in Medical Teaching

Resumo:

Há pelos menos 30 anos, nos momentos de discussão sobre a educação médica que a ABEM tem propiciado, acumulam-se os argumentos sobre a necessidade de mudar a educação médica. Pouco se tem conseguido, no entanto, em termos de resultados efetivos. Pode-se dizer que existe quase uma exigência social de que se mude o processo de formação para que se produzam médicos diferentes. O artigo procura analisar cincos problemas frequentemente relacionados com o fracas­so de diversas tentativas de mudanças da educação médica no país.

O primeiro deles, deixar que a proposta de mudança tenha 'proprietários' ou corra em paralelo ás estruturas de poder da faculdade, curso ou centro, não acumulando poder suficiente para implementar projetos inovadores. O segundo problema é tratar de maneira simplista e superficial problemas complexos como concepção pedagógica e metodologias de ensino-aprendizagem.

O terceiro problema é tentar construir a proposta de mudança dentro dos limites da universidade. O quarto erro é continuar tratando o processo de formação de maneira fragmentada.

O último problema diz respeito à tendência de acentuar as contradições e a dicotomia entre as especialidades no processo de formação e na prática profissional, especialmente entre a clínica e a saúde coletiva.

Descritores:
Educação médica - tendências; Aprendizado baseado em problemas

Abstract:

For at least 30 years, during the opportunities afforded by ABEM for discussion and reflection on medical, arguments have accumulated as to the need to change medical education. Little has been achieved, however, in terms of concrete results. lt may almost be said that there is social demand for the training process be changed to produce a different kind of doctor. This article seeks to analyze five problems often connected with the failure of various attempts to change medical education in Brazil.

The first is to allow the proposal for change to have 'owners' or to proceed in parallel with the power structures of the faculty, course or center, and thus fail to accumulate sufficient power to implement innovative projects. The second problem is to treat simplistically and superficially complex problems such as the pedagogical conception and methodologies of leaching and learning.

The third problem is trying to construct a proposal for change within the limits of the university.

The fourth mistake is to continue treating the training process in a fragmented fashion.

The last problem has to with the tendency to accentuate the contradictions and dichotomy between specialties in the training process and in professional practice, especially as between the clinic and collective health.

Keywords:
Medical education - trends; Problem - based learning

Há pelo menos 30 anos, nos momentos de discussão e reflexão sobre a educação médica que a Abem tem propiciado, acumulam-se os argumentos favoráveis à necessidade de mudar a educação médica. Pouco se tem conseguido, no entanto, em termos de resultados efetivos. Razões para isso? Aparentemente, as forças conservadoras tiveram maior poder e capacidade de (des)articulação que as que buscavam impulsionar as transformações: muito difícil mudar estruturas tão rígidas, romper os acordos baseados no corporativismo, mobilizar professores mais ocupados com as atividades de investigação ou com sua prática profissional que com o processo de formação, impossível superar as pressões exercidas pelo mercado.de trabalho sobre o processo de formação profissional11. ALMEIDA, M. J. Educação dos profissionais de saúde: limites e possibilidades dos processos de mudança. Tese de doutorado. Faculdade de Saúde Pública da USP. São Paulo, 1997.),(77. FEUERWERKER, L. C. M. Mudanças na Educação Médica e Residência Médica no Brasil. Hucitec, São Paulo , 1998..

No entanto, nos últimos anos parecem estar se acumulando pro­blemas e elementos de contexto que favorecem as possibilidades de mudança. Problemas e elementos que dizem respeito à situação da profissão médica e seu papel social, ao processo de acumulação capitalista em saúde, à organização do trabalho1414. SANTOS, B. Um discurso sobre as ciências. Afrontamento, Porto, 1987., à organização da atenção à saúde (pública e privada), às relações médico-paciente por um lado, e à universidade, seu papel, suas relações com os outros segmentos sociais, seu papel na produção, distribuição e consumo do conhecimento, na formação e educação permanente dos profissionais, etc. por outro55. DEMO, P. Desafios modernos da educação. Editora Vozes, Petrópolis, 1998.),(1515. SIEBENEICHLER, F. B. Jürgen Habermas: Razão comunicativa e emancipação. Ed. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1989..

Pode-se dizer que existe quase uma exigência social de que se mude o processo de formação para que se produzam médicos diferentes. Médicos com formação geral, capazes de prestar uma atenção integral e humanizada às pessoas, que trabalhem em equipe, que saibam tomar suas decisões considerando não somente a situação clínica individual, mas o contexto em que vivem os pacientes, os recursos disponíveis, as medidas mais eficazes. Como fazê-lo é a pergunta que a Abem apresenta publicamente, inclusive por meio deste concurso, e é a pergunta que estou tentando ajudar a responder com minha investigação de doutorado.

Para este artigo, proponho um exercício de relacionar brevemente as causas das sucessivas histórias de resultados desfavoráveis nas tentativas de mudar a educação médica com as oportunidades e desafios do contexto atual para tentar respondera essa questão de maneira inversa: o que não se deve fazer para transformar a educação médica. Ou seja, que lições aprendemos com o passado e com as experiências presentes que nos ajudam a ser mais efetivos e a não cometer os mesmos erros de antes (sejamos criativos, vamos inventar alguns novos...).

1- DEIXAR QUE A PROPOSTA DE MUDANÇA TENHA "PROPRIETÁRIOS" OU CORRA EM PARALELO ÀS ESTRUTURAS DE PODER DA FACULDADE, CURSO OU CENTRO

Esse é um tema relacionado à construção de viabilidade de uma proposta de mudança. É quase uma "tentação irresistível" trabalhar preferencialmente com as pessoas que já estão ganhas para a ideia de mudar, que pensam de maneira parecida ou que se mobilizam mais em torno do tema. As discussões evoluem mais facilmente, os consensos se constroem mais rapidamente, mas a chance de esses planos saírem do papel e se tomarem realidade é muito pequena.

A decisão de mudar deve ser institucional. O que isso quer dizer? Que a proposta de mudar deve entrar pela porta da frente, deve ser compromisso do núcleo central de poder ou seja, a direção. Isso torna possível utilizar, pelo menos em parte, os recursos de poder de que a direção da escola, curso ou centro disponha para viabilizar a mudança. Isso é importante para aumentar as chances de acesso e mobilização dos professores, para minimizar o peso de determinados entraves burocráticos, para quebrar as barreiras dos nichos de poder estabelecido, etc. Portanto, uma das tarefas dos grupos "mudancistas" dentro das escolas é chegar ao poder - direta ou indiretamente.

A decisão de mudar deve ser coletiva. O que isso quer dizer? Que a proposta de mudar deve ser assumida pelo maior número possível de professores e alunos, do maior número possível de áreas e departamentos. A proposta deve refletir um consenso amplamente construído. Por quê? Porque a transformação da educação médica implica a mudança da postura e do trabalho cotidiano de todos os professores.

As transformações, portanto, dependem da capacidade de criar "massa crítica" e do grau de "governabilidade" dos sujeitos envolvidos nas relações de ensino-aprendizagem. Sem isso a mudança não se viabiliza na prática, mesmo que consiga ser formalmente aprovada: corre o risco de virar letra morta. Ou pior: nem sair da gaveta.

Transformar a educação médica implica mudar relações de poder estabelecido dentro da escola médica. Por isso a condução de um processo de mudança não pode ser ingênua: tem que levar em conta a necessidade de ativamente acumular poder a favor e diminuir a capacidade de ação das forças contrárias.

Existe reflexão conceitual e experiência prática acumulada sobre esse tema de mudanças organizacionais. As direções dos processos de mudança nas escolas médicas, portanto, devem se instrumentalizar para enfrentar esse desafio11. ALMEIDA, M. J. Educação dos profissionais de saúde: limites e possibilidades dos processos de mudança. Tese de doutorado. Faculdade de Saúde Pública da USP. São Paulo, 1997.),(33. CAMPOS, G. W. S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução e reforma das pessoas. O caso da saúde. In: CECILIO, L.C.O. (org.) Inventando a mudança na saúde. Hucitec, São Paulo, 1994.),(1212. MERHY, E. E. Em busca da qualidade dos serviços de saúde: os serviços de porta aberta para a saúde e o modelo técnico­assistencial em defesa da vida. In CECILIO, L.C.O. et al. Inventando a mudança na saúde. Hucitec, São Paulo , 1994..

Consenso não é unanimidade, não é espontâneo, portanto tem que ser ativamente construído. Processos de mudança não são estáticos, ao contrário. Quem está de um lado hoje pode estar do outro amanhã. Planejamento estratégico combinado com um esforço organizado de construir canais de comunicação e discussão coletiva são alguns dos instrumentos essenciais para a condução dos processos de mudança(16) .

As transformações devem ocorrer no cotidiano da prática pedagógica e não simplesmente no papel, na prática clínica concreta e não somente "em laboratório" ou "ambientes especiais", em todos os cenários onde se dá a prática profissional e enfrentando os problemas que se apresentam na realidade. O projeto de transformação maior e mais profunda da formação profissional se constrói também por meio do conhecimento e da força que se acumula através das pequenas inovações e da reflexão crítica sobre o cotidiano e as novas experiências desenvolvidas55. DEMO, P. Desafios modernos da educação. Editora Vozes, Petrópolis, 1998..

Assim, é fundamental que sejam oferecidas oportunidades para que muitos professores se envolvam/proponham/construam múltiplas experiências inovadoras. O foco da ação deve estar centrado no investimento no "capital humano", enquanto potencialidade para um novo processo de formação dos profissionais de saúde.

Tudo isso dá trabalho, leva tempo, consome muita energia. Mas não há mudança profunda que passe sem isso.

2-TRATAR DE MANEIRA SIMPLISTA E SUPERFICIAL PROBLEMAS COMPLEXOS

Um dos problemas importantes das tentativas anteriores de mudar a educação médica foi embolar conteúdos e objetivos das propostas de transformação. São muitos os temas na pauta da mudança, todos s.fo importantes e merecem tratamento adequado. Vamos explorar dois deles.

Concepção pedagógica e metodologias de ensino-aprendizagem são um desses temas importantes que não podem mais ser tratados de maneira superficial e não profissional. Existe muito conhecimento acumulado sobre aprendizagem de adultos que deve necessariamente ser incorporado quando se trabalha com formação profissional e educação permanente22. BORDENAVE, J. D. & PEREIRA, A. M. Estratégias de ensino-aprendizagem. Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1977.),(1010. LÜCK, H. Pedagogia Interdisciplinar: fundamentos teórico­metodológicos. Editora Vozes, Petrópolis , 1994..

Aprendizagem independente, aprender com base na prática, na vida real, ser capaz de enfrentar e resolver problemas verdadeiros e de buscar a informação onde ela esteja são elementos comumente apontados como indispensáveis a um processo eficiente de ensino­aprendizagem no mundo atual99. JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Imago; Rio de Janeiro, 1976..

Esses atributos conduzem ao terreno das metodologias ativas de ensino-aprendizagem. Um terreno amplo, em que existem diversas vertentes e propostas de operacionalização. Um terreno que deve ser cuidadosamente explorado e ao qual o conjunto dos professores deve ser exposto de maneira sistemática. Isso implica não somente oferecer ampla possibilidade de capacitação prática em metodologias concretas, mas também a necessidade de uma revisão crítica profunda das práticas e conceitos atualmente predominantes.

Verdade que não existe apenas uma proposta ou solução adequada. Mas é importante conhecer as alternativas em profundidade e experimentá-las de maneira sistemática e criteriosa para não correr o risco de transformar a proposta pedagógica em um "monstrinho" sem consistência interna e externa.

Excesso de conteúdos, falta de integração básico-clínico e de teoria-prática são problemas frequentemente identificados nas escolas médicas. A superação dessas dificuldades passa pela adoção/construção de um currículo integrado, em que as disciplinas deixem de existir autonomamente e passem a contribuir com conteúdos específicos dentro do processo de formação. Módulos temáticos por ciclo vital, unidades por sistema, são várias as possibilidades de reorganização dos conteúdos. Qual a questão fundamental? Estabelecer os conteúdos indispensáveis à formação geral profissional e organizá-los de maneira articulada, rompendo os limites das disciplinas, propiciando a integração dos conhecimentos. Melhor ainda se a abordagem desses conteúdos se faz a partir de interrogantes concretos, baseando-se em sua utilização prática.

Uma mudança curricular com esses objetivos vai muito além de redistribuir carga horária e "trocar disciplinas de lugar". Implica uma mudança de poder: as disciplinas e departamentos deixam de dispor livremente de seu tempo e seus conteúdos para fazer parte de um jogo mais amplo, em que a participação de cada um está subordinada a um plano mais geral de formação, construído com base em grandes acordos coletivos e gerenciado por um comitê curricular ou similar.

Não adianta querer "simplificar" os processos. Reconhecer sua complexidade e instrumentalizar os coletivos para enfrentá-los são os passos a serem dados.

3-CONSTRUIR A PROPOSTA DE MUDANÇA DENTRO DOS LIMITES DA UNIVERSIDADE

É pequena a chance de sucesso de uma proposta de transformação da educação médica construída dentro dos limites da universidade e com a participação somente de seus atores internos. Por quê? Porque sem elementos externos que ajudem a "balizar" certas disputas é muito difícil chegar a resolver satisfatoriamente certos conflitos e contradições.

Um exemplo disso é a definição de quais seriam os conteúdos fundamentais, indispensáveis para a formação de graduação. Um critério potente deveria ser o epidemiológico. Outro, o perfil profissional necessário aos serviços de saúde e à população.

Um caminho interessante para ajudar a superar essa dificuldade é a diversificação de cenários. Diversificação de cenários de ensino­aprendizagem, de trabalho e de investigação. Sair dos muros da universidade e agir no cenário real, considerando que nesse outro mundo existem outros atores, com demandas e necessidades próprias, que precisam ser consideradas e trabalhadas de maneira articulada33. CAMPOS, G. W. S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução e reforma das pessoas. O caso da saúde. In: CECILIO, L.C.O. (org.) Inventando a mudança na saúde. Hucitec, São Paulo, 1994..

Ir aos serviços de saúde ou à comunidade com os estudantes com uma agenda definida unilateralmente pelo professor é completamente diferente de ir a esses mesmos lugares com uma agenda construída em conjunto, que leve em conta não somente as necessidades de ensino-aprendizagem, mas também os problemas identificados pelos serviços e pela comunidade.

Assim como pensar a organização dos serviços de saúde levando em conta as prioridades identificadas pela população ou suas necessidades de atenção é inteiramente distinto da prática predominante de pensar os serviços a partir de sua própria lógica de prestação.

Do mesmo modo, a população ser objeto de uma intervenção dos estudantes ou dos serviços de saúde é completamente diferente de participar efetivamente da eleição do tema a ser trabalhado, da definição dos objetivos, da construção e da implementação da ação.

A partir dessa interação, novos objetos de estudo e de trabalho podem ser definidos, e sua abordagem muitas vezes exige outro referencial teórico e metodológico, exige a intervenção de diversas disciplinas. As novas práticas pedagógicas e de investigação, então, passam a ser urna necessidade para enfrentar novos problemas; as inovações, então, passam a ser fruto dos desafios concretos e não simplesmente de definições teóricas feitas a priori.

Ninguém melhor que os personagens reais para defender seus próprios interesses e necessidades no processo de mudança da formação profissional... Quando se abrem as portas da universidade, abre­se espaço não somente para novas demandas e novos conteúdos, mas também para outras forças políticas e sociais que podem ativamente ajudar a criar e a superar obstáculos, interferindo diretamente na conformação dos núcleos de poder dentro da universidade.

A universidade não vai se tornar socialmente relevante no terreno da produção de conhecimentos, da prestação de serviços ou da formação profissional se não criar possibilidades para que os outros segmentos e instituições sociais sejam participantes ativos e efetivos de seu processo de identificação de problemas e de estabelecimento de prioridades de ação88. GERSCHMAN, S. Democracia, Políticas Sociais e Globalização: Relações em Revisão. In GERSCHMAN, S. & VIANNA, M.LW. A Miragem da Pós-modernidade. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro , 1997..

O Ministério da Saúde, a Coordenação da Atenção Básica (Programa de Saúde da Família) e o Conselho Nacional de Saúde (o SUS e os hospitais universitários), por exemplo, começaram recentemente a manifestar o interesse e a intenção de dizer claramente às escolas quais suas necessidades em termos de perfil profissional e de serviços prestados. Pode-se dizer o mesmo em relação às seguradoras, convênios médicos e entidades de proteção ao consumidor.

Há que trabalhar tudo isso de maneira sistemática e organizada. Porém, mais que isso, além dessas interações no nível macro, é preciso buscar a interação no nível local, com os parceiros existentes no cenário real dos serviços e da população.

4.Continuar tratando o processo de formação de maneira fragmentada

Reconhecer que o processo de formação profissional é um contí­nuo, que se inicia na graduação e segue ao longo de toda a vida profissional, deveria levar a universidade a pensar o processo de formação de maneira integral, revendo seu papel não somente no ensino de graduação, como também na pós-graduação e na educação permanente, articulando esses processos. Isso seria muito útil para projetar o alcance e o papel de cada momento da formação, elemento essencial dentro de uma proposta de mudança.

Por vários motivos, hoje em dia a Residência Médica é elemento fundamental da formação profissional médica. Existem vagas de Residência para potencialmente absorver 70% dos graduados em Medicina (claro que distribuídas de maneira heterogênea pelo país e pelas áreas), e praticamente todos os estudantes de Medicina buscam hoje em rua a complementação do processo de formação por meio dessa modalidade de especialização77. FEUERWERKER, L. C. M. Mudanças na Educação Médica e Residência Médica no Brasil. Hucitec, São Paulo , 1998..

Considerando o impacto que a Residência Médica tem na conformação do perfil profissional, seria indispensável pensar de maneira articulada em processos de mudança envolvendo a graduação e a Residência Médica, atingindo ao menos os programas mantidos pelas escolas médicas.

E atingi-los de que maneira? Incluindo-os nas atividades que seriam alvo de revisão metodológica (do ponto de vista das metodologias de ensino-aprendizagem), revendo os conteúdos necessários à especialização em cada área e os cenários onde são desenvolvidos os programas, revendo o número de vagas necessário a cada especialidade (considerando o perfil e as necessidades do mercado).

Mudanças na Residência causariam impacto positivo nas mudanças na graduação porque seus resultados se tomam visíveis mais rapidamente, porque os médicos egressos vão se inserir rapidamente no mercado de trabalho (reforçando um ou outro modelo de atuação profissional), porque os médicos egressos podem assumir papel ativo no processo de formação profissional no nível da graduação.

5-ACENTUAR AS CONTRADIÇÕES E A DICOTOMIA ENTRE AS ESPECIALIDADES NO PROCESSO DE FORMAÇÃO E NA PRÁTICA PROFISSIONAL, ESPECIALMENTE ENTRE A CLÍNICA E A SAÚDE COLETIVA

Algumas das insuficiências do atual processo de educação médi­ca residem exatamente na excessiva e precoce fragmentação dos conhecimentos, que resulta na formação não terminal de um profissional incapaz de uma abordagem integral.

O profissional atualmente formado pelas escolas médicas é distante, incapaz de ouvir e de cuidar, incapaz de olhar o paciente como um todo, excessivamente intervencionista, desperdiçador de recursos e pouco resolutivo. Não atende nem aos anseios da população, nem às necessidades expressas pelo SUS (especialmente em relação aos médicos para o Programa de Saúde da Família, mas também para a rede de atenção como um todo), nem às demandas dos serviços privados que já identificaram a necessidade de um médico capaz de operar em um novo modelo de atenção (que articule prevenção e promoção, que use os recursos de maneira mais racional, que encaminhe aos especialistas com moderação, etc.)33. CAMPOS, G. W. S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução e reforma das pessoas. O caso da saúde. In: CECILIO, L.C.O. (org.) Inventando a mudança na saúde. Hucitec, São Paulo, 1994.),(1111. MENDES, E. V. Uma agenda para a saúde. Editora Hucitec, São Paulo , 1996.),(1212. MERHY, E. E. Em busca da qualidade dos serviços de saúde: os serviços de porta aberta para a saúde e o modelo técnico­assistencial em defesa da vida. In CECILIO, L.C.O. et al. Inventando a mudança na saúde. Hucitec, São Paulo , 1994.),(1313. PAIM, J. S. A reorganização das práticas de saúde em distritos sanitários. In: MENDES, E.V. (org.). Distrito Sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. Hucitec-ABRASCO, São Paulo-Rio de Janeiro, 1993..

Na verdade, no momento atual, nem mesmo os serviços (públicos ou privados) têm a definição clara e completa do novo perfil necessário ao médico, pois esses novos modelos de atenção apenas começam a ser construídos e implementados. Por isso, a construção desse perfil é em si um grande desafio a ser enfrentado conjuntamente por universidades e serviços.

De qualquer maneira, sabe-se já que algumas contradições terão que ser superadas: a subestimação da importância da clínica e da abordagem individual pela saúde coletiva; as limitações da abordagem clínica usando as ferramentas da epidemiologia clínica e do conhecimento do contexto social e sanitário; a dicotomia entre preventivo e curativo; a desumanização da atenção provocada pela desresponsabilização das equipes e dos profissionais em relação aos indivíduos e populações atendidos, etc.

Tomemos como um exemplo a não ser seguido o tratamento até agora dado à formação dos profissionais para o Programa de Saúde da Família. Para a implementação desse programa, é necessário um profissional que domine conteúdos e técnicas atualmente contidos pelo menos nas cinco áreas básicas, que saiba trabalhar em equipe e que saiba comunicar-se com a população, entre outros requisitos.

Que solução vem sendo adotada para produzir respostas imediatas? Por um lado, foram formados pólos de capacitação, que envolvem trabalho articulado entre serviços e universidades, mas que ainda não possibilitaram que se rompesse a unilateralidade das relações. Isso porque, apesar de o perfil profissional necessário dever ser construído em conjunto entre universidades e serviços, na prática, em muitos casos, a universidade continua "dando as cartas" em relação aos conteúdos e metodologias, e os serviços fazem apenas as demandas em relação à população a ser capacitada.

Por outro lado, da maneira como a maior parte dos pólos está estruturada, dificilmente a demanda por um novo profissional vai entrar nas escolas "pela porta da frente", pois, apesar de a formação de um profissional de saúde da família ser um tema que deveria dizer respeito pelo menos às cinco áreas básicas de especialização médica, na maior parte dos casos a discussão continua restrita ao campo da saúde coletiva. Como chegar então a um processo de mudança da educação médica como um todo, partindo somente de uma área?

Pelo mesmo motivo, os cursos de especialização em saúde da família muitas vezes repetem as insuficientes fórmulas dos currículos de especialização em saúde pública, e as recém-criadas residências em saúde da família correm o risco de repetir a fórmula das residências de saúde comunitária.

A formação médica geral e a formação de um médico para a saúde da família envolvem necessariamente a articulação entre as áreas clínicas básicas e a saúde coletiva. Ao invés de criar uma nova área de especialidade, por que não redireciona ruma parte das vagas já existentes de Residência nas áreas básicas e construir um currículo que integre os conhecimentos, práticas e habilidades essenciais de cada urna delas?

Durante muito tempo, os conflitos entre saúde coletiva e clínica levaram a uma quase virtual impossibilidade de relação entre os profissionais de uma e outra inserção. Essa é uma contradição que precisa ser enfrentada claramente no processo de transformação da educação médica, pois os novos modelos de atenção e formação baseiam-se numa abordagem integral, para a qual todos concorrem.

A TÍTULO DE ENCERRAMENTO

No início do texto, fiz referência às possíveis explicações para o insucesso das mudanças na educação médica. Acrescentaria às já mencionadas o fato de ter havido muitas insuficiências e imprecisões conceituais nas propostas de mudança, pouco profissionalismo na condução dos processos e limitações históricas que só o tempo pode ajudar a superar.

Existem algumas experiências recentes de mudança na educação médica que tratam de maneira mais ou menos explícita dos problemas aqui apontados. A sistematização e análise crítica desses trabalhos e a criação de espaços de reflexão coletiva e troca de experiências são fundamentais para que o atual movimento a favor de mudanças na educação médica leve a resultados concretos.

Menos sectarismo, menos dogmatismo, menos certezas absolutas e mais abertura à reflexão crítica e aberta serão ingredientes indispensáveis para uma transformação que só ocorrerá se deixar de ser o sonho de alguns para se transfo1mar no projeto de ação coletiva de muitos. E a hora é agora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • PRÊMIO ABEM DE EDUCAÇÃO MÉDICA 1999

    1° LUGAR CATEGORIA DISCENTE DE PÓS-GRADUAÇÃO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Dec 1999
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