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A linha tênue entre a promoção da saúde e a reprodução de discursos gordofóbicos pelos médicos

Resumo:

Introdução:

O controle do peso corporal é fundamental para o tratamento e a prevenção das principais comorbidades no mundo, tais como hipertensão, dislipidemia e obesidade. Entretanto, as orientações médicas referentes à perda de peso, muitas vezes, não são baseadas em evidências ou comunicadas de maneira clara, e também não consideram as condições psicológicas e sociais dos pacientes, como ditam os valores da promoção da saúde, mas são abordadas de maneira preconceituosa e rasa. Este estudo busca responder à seguinte questão: “A maneira como os médicos lidam com a obesidade dos seus pacientes é uma forma de promover saúde ou de propagar ainda mais desfechos clínicos desfavoráveis nessa população?”.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo revisar a literatura no que concerne à gordofobia médica e aos seus impactos para o paciente.

Método:

Trata-se de uma revisão de literatura integrativa, realizada em janeiro de 2022. A busca de dados se deu a partir do ano de 2007 até janeiro de 2022. Usaram-se as seguintes bases de dados: SciELO, Lilacs e PubMed. Utilizaram-se, na busca de artigos, os seguintes descritores: obesity, overweight, social stigma, social discrimination, bullying, fatphobia, weight bias, medication adherence, therapeutic alliance, health professionals, binge-eating disorder.

Resultado:

Os 16 artigos selecionados foram classificados segundo tipo de estudo, ano, local, público-alvo e resultados, e, em seguida, analisados de maneira crítica.

Conclusão:

Embora seja crucial os médicos alertarem seus pacientes sobre perda de peso, essas orientações, quando feitas de maneira preconceituosa, grosseira e sem metas bem definidas, fazem com que o paciente se desinteresse em cuidar da própria saúde ou ainda procure perder peso sem apoio profissional. Logo, em vez de combater a obesidade, o atual manejo é responsável por agravá-la e, inclusive, desenvolver outras comorbidades, como a depressão.

Palavras-chave:
Obesidade; Estigma Social; Aliança Terapêutica; Promoção da Saúde

Abstract:

Introduction:

Body weight control is essential for the treatment and prevention of the main comorbidities in the world, such as hypertension, dyslipidemia and obesity. However, medical guidelines regarding weight loss are often not evidence-based or clearly communicated, and they also do not take into account the psychological and social conditions of patients, as dictated by the values of health promotion, but rather, approached in a prejudiced and shallow way. This study seeks to answer the following question: Is the manner physicians deal with their patients’ obesity a way of promoting health or of propagating even more unfavorable clinical outcomes in this population?

Objective:

This study aimed to review the literature regarding medical fatphobia and its impacts on the patient.

Method:

This is an integrative literature review, carried out in January 2022. The data search took place from the year 2007 to January 2022. The following databases were used: SciELO, Lilacs and PubMed. The following descriptors were used in the search for articles: Obesity, Overweight, Social Stigma, Social Discrimination, Bullying, Fatphobia, Weight Bias, Medication Adherence, Therapeutic Alliance, Health Professionals, Binge-Eating Disorder.

Result:

The 16 selected articles were classified according to type of study, year, place, target audience and results, and then critically analyzed.

Conclusion:

Although it is crucial for doctors to warn their patients about weight loss, these guidelines, when made in a prejudiced, rude way and without well-defined goals, make them not interested in taking care of their own health, or even trying to lose weight without professional support. Therefore, instead of fighting obesity, its current management is responsible for aggravating it and even developing other comorbidities, such as depression.

Keywords:
Obesity; Social stigma; Therapeutic alliance; Health Promotion

INTRODUÇÃO

É indiscutível que orientar o paciente a aderir a uma dieta equilibrada, realizar exercícios físicos regularmente e controlar o peso corporal é a base fundamental para o tratamento de muitas comorbidades prevalentes na atualidade. Por exemplo, a diminuição do peso está associada a um bom controle da pressão arterial (PA): a perda ponderal de 5,1 kg reduz, em média, a PA sistólica em 4,4 mmHg e a PA diastólica em 3,6 mmHg11. Barroso W, Rodrigues C, Bortolotto L, Mota-Gomes M, Brandão A, Feitosa A, et al. Diretrizes Brasileiras de Hipertensão Arterial - 2020. Arq Bras Cardiol. 2021;116(3):516-658.. Ou ainda, segundo a Diretriz Brasileira de Obesidade, a circunferência abdominal elevada (acima de 80 cm em mulheres e 94 cm em homens) tem forte relação com resistência insulínica e síndrome metabólica, comorbidades que conferem grande risco cardiovascular22. Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica. Diretrizes Brasileiras de Obesidade. São Paulo: Abeso; c2016 [acesso em 3 mar 2022]. Disponível em: Disponível em: http://www.abeso.org.br/ .
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.

Entretanto, nota-se que as escolas médicas ensinam aos acadêmicos a condição sine qua non da perda de peso para a cura de muitas enfermidades, e ainda não há um correto aprendizado sobre como deve ser essa orientação aos pacientes33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.. Artigos que analisam esse fenômeno afirmam que não estão presentes planos e metas bem definidos sobre controle de peso, dietas e atividade física durante uma consulta com um paciente gordo, pois essas práticas não foram lecionadas durante a graduação33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.),(44. Silva M, Schraiber L, Mota A. The concept of health in collective health: contributions from social and historical critique of scientific production. Physis. 2019;29(1):4-7.. Embora as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) das escolas médicas salientem a necessidade da formação de um médico generalista, capaz de atuar de maneira integral, multiprofissional, crítica e humanista55. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União; 23 jun 2014. Seção 1, p. 8-11., esses estudos destacam a carência de metodologias que instruam os acadêmicos a basear suas condutas, seus diagnósticos e suas linguagens em diretrizes e literaturas semiológicas conceituadas. O que se observa, segundo essas análises, é a reprodução de discursos rasos e ofensivos no manejo de um paciente gordo, tais como as frases “Você está assim porque é gordo” e “Emagrece que passa’’, ou ainda associar toda e qualquer comorbidade ao peso, sem que haja um correto raciocínio clínico33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12..

A expressão “gordofobia médica” foi cunhada justamente para designar essa falta de orientações corretas e baseadas em evidências. O que para o médico pode ser uma conduta normal sobre o tratamento não medicamentoso, o qual ele aprendeu durante sua graduação, para o paciente é uma grande ofensa e um grande perigo (já que, como não recebe os devidos direcionamentos sobre emagrecimento, ele os busca de maneiras radicais, com o uso de medicamentos e dietas ditas milagrosas)66. Paim M. Os corpos gordos merecem ser vividos. Estud Fem. 2019;27(1);2-6.. Sem contar que a reprodução desses discursos destrói a relação médico-paciente: o paciente deixa de se consultar, pois relaciona cuidar da saúde com sofrer preconceito. Sem essa relação médico-paciente, a terapêutica se torna ineficaz. Além disso, é impossível uma vida com saúde quando uma pessoa sofre discriminação e está em constante ódio consigo mesma, com seu corpo e com a sociedade33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.),(66. Paim M. Os corpos gordos merecem ser vividos. Estud Fem. 2019;27(1);2-6.),(77. Phelan SM, Puhl RM, Burke SE, Hardeman R, Dovidio JF, Nelson DB, et al. The mixed impact of medical school on medical students’ implicit and explicit weight bias. Med Educ. 2015;49(10):983-92..

Essa patologização infundada dos corpos gordos ganha maior problemática durante as campanhas de combate à obesidade, as quais tratam dessa enfermidade como uma epidemia mundial (conotação que confere caráter contagioso e causa pânico na população). São necessárias campanhas destinadas ao cuidado com a saúde, visto que 96 milhões de pessoas estão acima do peso no Brasil, e de 40% a 60% dos brasileiros possuem dislipidemia88. Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica. Os últimos números da obesidade no Brasil. São Paulo: Abeso c2020 [acesso em 3 março 2022]. Disponível em: Disponível em: https://abeso.org.br/os-ultimos-numeros-da-obesidade-no-bras .
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. Porém, nota-se, nessas ações, uma glorificação apenas de corpos dentro dos padrões de beleza impostos na atualidade, e não de índices e valores de referências ideais de peso, PA e circunferência abdominal, tampouco ações concretas sobre como atingi-las. Dessa forma, essa guerra contra a obesidade pode facilmente se tornar uma guerra contra as pessoas gordas, a partir de ações discriminatórias e julgamentos, vindos da equipe que mais deveria acolher e orientar sem ofender: a equipe de saúde33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12..

Segundo a Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em Ottawa, no Canadá, em 1986, “promoção da saúde” é toda transformação do meio de forma a garantir bem-estar a sociedade. Sendo que, o bem-estar deve envolver os âmbitos físicos, mentais e sociais dos indivíduos. Essa expressão ainda engloba um conjunto de valores, tais como qualidade de vida, solidariedade, cidadania e parceria99. Biblioteca Virtual da Saúde do Ministério da Saúde. Carta de Ottawa, primeira conferência internacional sobre promoção a saúde. BVSMS; c2007 [acesso em 6 jul 2022]. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf .
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. Porém, embora a Carta de Ottawa seja alicerce para os diversos sistemas de saúde do mundo, inclusive para o Sistema Único de Saúde (SUS)1010. Giovanella L, Mendonça MHM, Buss PM, Fleury S, Gadelha CAG, Galvão LAC, et al. De Alma-Ata a Astana. Atenção primária à saúde e sistemas universais de saúde: compromisso indissociável e direito humano fundamental. Cad Saude Publica. 2019;35(3):1-5, as pesquisas que analisam a gordofobia médica afirmam que o combate a obesidade, da forma como é realizado, está longe do conceito de promoção da saúde33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.),(44. Silva M, Schraiber L, Mota A. The concept of health in collective health: contributions from social and historical critique of scientific production. Physis. 2019;29(1):4-7.),(66. Paim M. Os corpos gordos merecem ser vividos. Estud Fem. 2019;27(1);2-6..

Também à luz dos conceitos que norteiam um sistema de saúde efetivo, a expressão aliança terapêutica está presente nas principais literaturas de propedêutica da medicina. Esse conceito designa o conjunto de condutas e métodos que o médico aplica em suas consultas de forma a cativar o paciente para aderir ao tratamento, usando termos claros e amigáveis, e adequando as terapias conforme a realidade e as vontades do paciente1111. Porto CC. Aliança terapêutica, decisão compartilhada e parceria na cura. Academia de Medicina; 16 jul 2018 [acesso em 3 mar 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.academiademedicina.com.br/genmedicina/alianca-terapeutica-decisao-compartilhada-e-parceria-na-cura .
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. Essa aliança, inclusive, está relacionada com a promoção da saúde, pois a parceria com o paciente é um dos valores citados na Carta de Ottawa99. Biblioteca Virtual da Saúde do Ministério da Saúde. Carta de Ottawa, primeira conferência internacional sobre promoção a saúde. BVSMS; c2007 [acesso em 6 jul 2022]. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf .
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. Assim, de acordo com as pesquisas sobre gordofobia, na medida em que os médicos ofendem seus pacientes e não delimitam planos terapêuticos bem definidos, o atual combate à obesidade também vai contra conceitos-chave da semiologia33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.),(66. Paim M. Os corpos gordos merecem ser vividos. Estud Fem. 2019;27(1);2-6..

Isso posto, para se combater a obesidade de maneira efetiva, deve-se tratar o paciente como um todo, entendendo que sua enfermidade tem relação com suas condições biológicas, psicológicas e sociais, e não somente reduzi-lo à sua circunferência abdominal33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.),(44. Silva M, Schraiber L, Mota A. The concept of health in collective health: contributions from social and historical critique of scientific production. Physis. 2019;29(1):4-7..

Assim, a presente revisão tem por objetivos discorrer e analisar como o preconceito contra corpos gordos infere na saúde física e mental das pessoas acima do peso, bem como ressaltar o caráter contraditório que essa prática exerce para a promoção da saúde e para o exercício médico.

MÉTODO

Trata-se de uma revisão de literatura integrativa com a finalidade de reunir e sintetizar o conteúdo presente em artigos que tratam da gordofobia e da prática de gordofobia médica. Consideraram-se estudos realizados com grupos de seres humanos e estudos de literatura publicados de 2007 até janeiro de 2022. A pergunta do estudo foi a seguinte:

  • A maneira como os médicos lidam com a obesidade dos seus pacientes é uma forma de promover saúde ou de propagar ainda mais desfechos clínicos desfavoráveis nessa população?

A coleta bibliográfica foi realizada nas seguintes bases de dados: Scientific Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e PubMed. Utilizaram-se, na busca de artigos, os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e operadores boolianos OR ou AND: (“Obesity”[Mesh] OR “Overweight”[Mesh]) AND (“Social Stigma”[Mesh] OR “Social Discrimination”[Mesh] OR Bullying[Mesh] OR Fatphobia OR Medical Fatphobia OR Weight Bias[Mesh]) AND (“Medication Adherence”[Mesh] OR “Therapeutic Alliance”[Mesh] OR “therapeutic”[Mesh] OR “Health Professionals”[Mesh]) AND (‘’Mental Health’’[Mesh] OR ‘’Binge-Eating Disorder’’[Mesh]).

Adotaram-se os seguintes critérios de inclusão: 1. trabalhos científicos, nacionais e internacionais, relacionados ao tema gordofobia, envolvendo seres humanos, e/ou revisões de literatura em português, inglês ou espanhol, disponíveis on-line na forma de artigo completo e gratuito, com acesso a todos os públicos, publicados de 2007 a janeiro de 2022; 2. trabalhos científicos, nacionais e internacionais, relacionados ao tema gordofobia médica, envolvendo seres humanos, e/ou revisões de literatura em português, inglês ou espanhol, disponíveis on-line na forma de artigo completo e gratuito, com acesso a todos os públicos, publicados de 2007 a janeiro de 2022.

Excluíram-se artigos que não estivessem dentro do tema proposto, textos incompletos, pesquisas com enfoque em outras temáticas fora dos descritores, teses de doutorado, capítulo de livros ou trabalhos de conclusão de curso. Excluíram-se também os trabalhos duplicados em bases de dados e os que estavam fora do período proposto. O fluxograma para seleção dos artigos encontra-se na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma de identificação, triagem, elegibilidade e inclusão dos estudos sobre gordofobia.

RESULTADOS

Foram encontrados 1.852 artigos nas seguintes bases de dados: SciELO (n = 347), Lilacs (n = 169) e PubMed (n = 1.336). Após a utilização dos critérios de inclusão e exclusão, desconsiderando artigos presentes em mais de uma base de dados, e a leitura integral dos textos, obtiveram-se 16 artigos selecionados, com base nos critérios de inclusão.

Entre os artigos analisados, notou-se um grande número de publicações advindas dos Estados Unidos e do Brasil, países que lideram rankings de doenças metabólicas relacionadas a condições e hábitos de vida22. Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica. Diretrizes Brasileiras de Obesidade. São Paulo: Abeso; c2016 [acesso em 3 mar 2022]. Disponível em: Disponível em: http://www.abeso.org.br/ .
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, bem como de discriminação social33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.. Ressalta-se, também, que boa parte dos artigos analisados refere-se a estudos observacionais.

Em relação à epidemiologia, nota-se que as mulheres são as que mais sofrem preconceito pelo seu peso durante as consultas médicas. Em adição, observa-se a alta prevalência de hipertensão arterial sistêmica (HAS) e obesidade na população preta, a qual também constitui um dos grupos que mais sofrem gordofobia nos atendimentos. Constata-se, assim, que a discriminação dos médicos contra pacientes gordos possui um alicerce mais social, de caráter preconceituoso, do que científico. Analisaram-se também dados referentes à saúde mental das pessoas gordas, salientando a forte relação entre a prática de gordofobia pela equipe de saúde e como isso acarreta falta de autoestima nesses pacientes, o que leva também à desmotivação por procura médica e ao desenvolvimento de transtornos alimentares. No quadro 1 estão descritos cada artigo analisado, com base em tipo de estudo e resultados.

Quadro 1
Relação dos estudos selecionados sobre gordofobia e suas consequências, segundo autoria, local e ano de publicação, tipo de estudo, público-alvo e resultados, durante o período de 2007 a janeiro de 2022

DISCUSSÃO

Paim et al.33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.) demonstram em seu estudo que há um círculo vicioso com relação ao número de pessoas obesas e ao manejo da obesidade. Isso ocorre porque os médicos, além de estigmatizarem corpos gordos e não considerarem as condições biopsicossociais do indivíduo, não orientam corretamente o motivo pelo qual se deve perder peso para redução de eventos cardiovasculares, tampouco exemplificam metas de dieta e exercício físico, o que impede que os valores de glicemia, peso e PA sejam atingidos. O paciente permanece, então, no seu estado de distúrbio endócrino, e isso pode levá-lo a desenvolver outros tipos de comorbidades por conta da estigmatização, tais como depressão e distúrbios alimentares e de imagem. Dessa forma, rarefaz-se o binômio médico-paciente, e, consequentemente, o conceito de aliança terapêutica se dissipa. O atingimento desse valor é de suma importância principalmente quando se refere à obesidade, pois trata-se de uma comorbidade complexa que envolve diversos âmbitos do indivíduo e, portanto, demanda um cuidado integral e concreto33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12..

Além disso, salientando esse círculo vicioso, o estudo norte-americano de Sutin et al.1212. Sutin A, Robinson E, Daly M, Terracciano A. Weight discrimination and unhealthy eating-related behaviors. Appetite. 2016;102:83-9. reporta que indivíduos que sofreram gordofobia médica revelaram maior consumo alimentar do que pessoas com sobrepeso que não sofreram tais preconceitos. Ou seja, os médicos, ao ofenderem seus pacientes, no improcedente objetivo de alertar, acabam impulsionando ainda mais a problemática da obesidade33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12..

Tylka et al.1313. Tylka TL, Annunziato RA, Burgard D, Daníelsdóttir S, Shuman E, Davis C, et al. The weight-inclusive versus weight-normative approach to health: evaluating the evidence for prioritizing well-being over weight loss. J Obes. 2014;2014(1):1-18. apontam que, por trás dessa suposta preocupação médica com o peso para melhoria da saúde, encontra-se, na verdade, uma forte carga preconceituosa que os médicos trazem para a consulta, advinda de uma formação acadêmica e de uma sociedade também gordofóbicas. Isso ocorre porque as orientações médicas se restringem a julgamentos da aparência e não têm nada a ver com práticas, dietas e exercícios bem abordados1313. Tylka TL, Annunziato RA, Burgard D, Daníelsdóttir S, Shuman E, Davis C, et al. The weight-inclusive versus weight-normative approach to health: evaluating the evidence for prioritizing well-being over weight loss. J Obes. 2014;2014(1):1-18..

Hatzenbuehler et al.1414. Hatzenbuehler L, McLaughlin A. Structural stigma and hypothalamic-pituitary-adrenocortical axis reactivity in lesbian, gay, and bisexual young adults. Ann Behav Med. 2013;(47):39-47 trazem dados epidemiológicos da gordofobia. Constatou-se que a população preta, as mulheres, os gays e as lésbicas constituem os grupos mais propensos ao abandono do tratamento para controle de comorbidades relacionadas a condições e hábitos de vida, bem como formam os grupos com mais risco de desenvolver eventos cardiovasculares. Não foram encontrados estudos relacionados à gordofobia com os outros grupos da comunidade LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexuais, assexuais). Ou seja, salienta-se a tese de que, por trás do almejo desses médicos em diminuir o peso de seus pacientes, entremeia-se, na realidade, o preconceito com populações marginalizadas33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.),(1414. Hatzenbuehler L, McLaughlin A. Structural stigma and hypothalamic-pituitary-adrenocortical axis reactivity in lesbian, gay, and bisexual young adults. Ann Behav Med. 2013;(47):39-47.

O desconhecimento acerca das etiologias da obesidade também foi pauta da pesquisa de Malterud et al.1515. Malterud K, Ulriksen K. Obesity, stigma, and responsibility in health care: a synthesis of qualitative studies. International Journal of Qualitative Studies on Health and Well-Being. 2011;6(4):1-8. .. Eles observaram que os médicos atribuem a obesidade exclusivamente à falta de exercícios físicos e à dieta hipercalórica, desconsiderando genética, estresse, depressão e distúrbios da tireoide e adrenais. O trabalho de Malterud et al.1515. Malterud K, Ulriksen K. Obesity, stigma, and responsibility in health care: a synthesis of qualitative studies. International Journal of Qualitative Studies on Health and Well-Being. 2011;6(4):1-8. .) corrobora a pesquisa de Tylka et al.1313. Tylka TL, Annunziato RA, Burgard D, Daníelsdóttir S, Shuman E, Davis C, et al. The weight-inclusive versus weight-normative approach to health: evaluating the evidence for prioritizing well-being over weight loss. J Obes. 2014;2014(1):1-18., pois, quando a obesidade é abordada pelos médicos, estes não baseiam seus argumentos em análises e estudos sólidos, mas sim em opiniões rasas, leigas e sem raciocínio clínico.

Estudos mais recentes, que trazem o contexto da pandemia causada pelo Sars-Cov-2, em que as pessoas estavam reclusas em suas casas, demonstraram que os indivíduos gordos e com predisposição a eventos cardiovasculares foram os que mais cursaram com compulsão alimentar e sofrimento psicológico durante a quarentena. No entanto, a pesquisa de Pearl et al.1616. Pearl R, Schulte E. Weight bias during the Covid-19 pandemic. Curr Obes Rep. 2021;10(2):181-90. salientou que esse fato não é levado em conta durante os atendimentos médicos, alimentando ainda mais o estigma de pessoas gordas, como se seu estado de obesidade fosse fruto unicamente de seus atos, desconsiderando quaisquer contextos sociais e históricos.

A gordofobia praticada pelos médicos se inicia nas escolas médicas. Segundo Phelan et al.1717. Phelan S, Puhl R, Burgess D, Natt N, Mundi M, Miller N, et al. The role of weight bias and role-modeling in medical students’ patient-centered communication with higher weight standardized patients. Patient Educ Couns. 2021;104(8):1962-9., os acadêmicos de Medicina tendem a basear suas condutas clínicas muito mais nas atitudes e nos raciocínios dos corpos docentes do que necessariamente nas diretrizes, linhagem essa conhecida como “currículo oculto”. Dessa forma, a negligência no cuidado envolvendo pessoas gordas passa a ser internalizada já na formação acadêmica e, inclusive, é amplamente aceita. Nesse estudo, aplicou-se um questionário do primeiro ao quarto ano, e notou-se o mesmo escore de preconceito e alienação em relação a gordos no primeiro e no quarto ano. Evidenciou-se que muitos acadêmicos acreditam que as pessoas gordas são assim por única responsabilidade do indivíduo, como consequência somente da dieta hipercalórica. Ou seja, mesmo que conforme a cada ano do curso, teoricamente, os assuntos envolvendo endocrinologia e saúde coletiva estejam mais consolidados, o estigma não se perde. Evidencia-se, assim, a pobreza de práticas na graduação que incentivem os acadêmicos a entender o paciente de maneira integral, multidisciplinar e humanitária1717. Phelan S, Puhl R, Burgess D, Natt N, Mundi M, Miller N, et al. The role of weight bias and role-modeling in medical students’ patient-centered communication with higher weight standardized patients. Patient Educ Couns. 2021;104(8):1962-9.. Embora essa pesquisa seja norte-americana, tomando como base as DCN brasileiras, observa-se um acentuado hiato entre os objetivos das escolas médicas e o que é lecionado aos acadêmicos. Isso ocorre porque, embora as diretrizes visem a uma formação acadêmica humanista, generalista e crítica5, aos acadêmicos é ensinada a reprodução de discursos rasos, preconceituosos e sem um sólido raciocínio clínico capaz de entender o paciente em sua totalidade. Essas atitudes também se desvirtuam do conceito de promoção da saúde33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12..

A pesquisa de Hurst et al.1818. Hurst D, Schmuhl N, Voils C, Antony K. Prenatal care experiences among pregnant women with obesity in Wisconsin, United States: a qualitative quality improvement assessment. BMC Pregnancy Childbirth. 2021;21(1):2-10.) realizada em uma clínica de obstetrícia dos Estados Unidos apontou a falta de vínculo e orientações adequadas dos médicos no manejo de gestantes acima do peso e/ou com diabetes mellitus do tipo II. Essas mulheres afirmaram que a equipe de saúde exercia “táticas do medo” para orientar sobre os prejuízos do mau controle glicêmico para a gestação. A equipe apenas amedrontava as pacientes, no sentido de que, caso a gestante não emagrecesse, desfechos desfavoráveis na gestação iriam ocorrer, tais como problemas no líquido amniótico, eclâmpsia e óbito fetal. Entretanto, não houve explicações nem orientações sobre a importância do controle metabólico na gestação. Nesse mesmo estudo, constatou-se que os grupos de gestantes com IMC elevado, principalmente acima de 40 kg/m², englobam não só os maiores casos de problemas na amamentação e doenças hipertensivas da gestação, mas também de depressão pós-parto e puerpério com má adesão ao controle da saúde materna.

Crianças e adolescentes que sofrem preconceito por conta do peso são os mais refratários ao controle metabólico durante um follow-up de dois anos, sendo também os que mais sofrem com crises de ansiedade, transtornos alimentares e baixa autoestima, segundo o estudo de Hübner et al.1919. Hübner C, Baldofski S, Crosby R, Müller A, Zwaan M de, Hilbert A. Weight-related teasing and non-normative eating behaviors as predictors of weight loss maintenance. A longitudinal mediation analysis. Appetite . 2016;102:25-31.. Esse estudo ainda salienta que as práticas de bullying na infância e adolescência, por causa do peso, podem ter desfechos fatais na vida adulta, como depressão, transtorno dismórfico corporal e suicídio.

Benas et al.2020. Benas J, Gibb B. Weight-related teasing, dysfunctional cognitions, and symptoms of depression and eating disturbances. Cognit Ther Res. 2006;32(2):143-60. e Richard et al.2121. Richard P, Ferguson C, Lara A, Leonard J, Younis M. Disparities in physician-patient communication by obesity status. Inquiry. 2014;51(1):2-7. . pesquisaram quantitativamente as consultas médicas com pacientes gordos. Foi constatado que, nos atendimentos à população gorda, os médicos tendem a interromper mais e escutar menos a fala dos pacientes quando comparados àqueles com peso dentro dos padrões. O tempo da consulta e a demonstração de respeito também foram diferentes. Phelan et al.77. Phelan SM, Puhl RM, Burke SE, Hardeman R, Dovidio JF, Nelson DB, et al. The mixed impact of medical school on medical students’ implicit and explicit weight bias. Med Educ. 2015;49(10):983-92.) ainda constataram que esse fenômeno é ensinado e reproduzido de maneira implícita ou explícita já no início da graduação, pontuando haver um viés associado ao peso e que é difundido nas escolas médicas.

Sob a ótica do paciente, constata-se que aqueles que não aceitam estar acima do peso são os que apresentam maior descontrole alimentar, maiores psicopatologias e menor aderência aos planos de controle metabólico. Também se verifica que eles acabam recorrendo a dietas da internet ditas milagrosas e a medicamentos para emagrecimento sem prescrição médica. Durso et al.2222. Durso L, Latner J, Hayashi K. Perceived discrimination is associated with binge eating in a community sample of non-overweight, overweight, and obese adults. Obes Facts. 2012;5(6):869-80., O’Brien et al.2323. O’Brien K, Latner J, Puhl R, Vartanian L, Giles C, Griva K, et al. The relationship between weight stigma and eating behavior is explained by weight bias internalization and psychological distress. Appetite . 2016;102:70-6.) e Murakami et al.2424. Murakami J, Latner J. Weight acceptance versus body dissatisfaction: effects on stigma, perceived self-esteem, and perceived psychopathology. Eat Behav. 2015;19:163-7. salientam nos seus estudos a importância da saúde mental do paciente durante qualquer tipo de tratamento. É ideal que o paciente se torne protagonista da sua saúde física e mental, sendo os profissionais de saúde alicerces científicos que garantam que essas metas sejam atingidas44. Silva M, Schraiber L, Mota A. The concept of health in collective health: contributions from social and historical critique of scientific production. Physis. 2019;29(1):4-7.),(1919. Hübner C, Baldofski S, Crosby R, Müller A, Zwaan M de, Hilbert A. Weight-related teasing and non-normative eating behaviors as predictors of weight loss maintenance. A longitudinal mediation analysis. Appetite . 2016;102:25-31.. Entretanto, percebe-se que, na realidade, os pacientes se sentem culpados de sua condição e buscam emagrecer com o objetivo único de minimizar os estigmas sociais que sofrem e não para adquirir melhores condições de vida. Além disso, não recebem dos médicos esclarecimentos adequados acerca de sua saúde, fazendo com que busquem informação em bases de dados não científicas e se submetam a dietas perigosas1919. Hübner C, Baldofski S, Crosby R, Müller A, Zwaan M de, Hilbert A. Weight-related teasing and non-normative eating behaviors as predictors of weight loss maintenance. A longitudinal mediation analysis. Appetite . 2016;102:25-31.),(2020. Benas J, Gibb B. Weight-related teasing, dysfunctional cognitions, and symptoms of depression and eating disturbances. Cognit Ther Res. 2006;32(2):143-60..

Tarozo et al.2525. Tarozo M, Pessa R. Impacto das consequências psicossociais do estigma do peso no tratamento da obesidade: uma revisão integrativa da literatura. Psicol Ciênc Prof. 2020;40:1-12.) defendem que, diante da enorme problemática envolvendo a obesidade, bem como as demais comorbidades e os desfechos desfavoráveis que ocorrem nos obesos, principalmente por conta da negligência da equipe de saúde, faz-se crucial diminuir os preconceitos dos profissionais de saúde e ampliar a capacidade de empregar metas e planos concretos, diretos e baseados nas evidências. Além disso, uma vez que são diversas as etiologias da obesidade, é imprescindível ampliar a colaboração de equipes multiprofissionais para atender esses pacientes, de forma a abranger todos os níveis de assistência que essa comorbidade demanda. Sem essas devidas mudanças, a obesidade e suas demais consequências continuarão aumentando na sociedade2121. Richard P, Ferguson C, Lara A, Leonard J, Younis M. Disparities in physician-patient communication by obesity status. Inquiry. 2014;51(1):2-7. .),(2525. Tarozo M, Pessa R. Impacto das consequências psicossociais do estigma do peso no tratamento da obesidade: uma revisão integrativa da literatura. Psicol Ciênc Prof. 2020;40:1-12..

Dessa forma, lidar com a obesidade da maneira como é vista na contemporaneidade vai contra os principais conceitos das boas práticas médicas, tais como a promoção da saúde e a aliança terapêutica. Embora esses valores salientem que a saúde só é possível quando se observa o paciente de modo universal, humanitário e científico55. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União; 23 jun 2014. Seção 1, p. 8-11.),(99. Biblioteca Virtual da Saúde do Ministério da Saúde. Carta de Ottawa, primeira conferência internacional sobre promoção a saúde. BVSMS; c2007 [acesso em 6 jul 2022]. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf .
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
, o atual manejo da obesidade é pautado na discriminação, na reprodução de discursos rasos e sem embasamento científico, e na falta de uma comunicação eficaz e amigável33. Paim M, Kovaleski D. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Soc. 2020;29(1):4-12.. E esse desvirtuamento entre a teoria e a prática é responsável justamente por alimentar ainda mais a obesidade e, inclusive, agregar novas comorbidades, tais como a depressão e a compulsão alimentar2323. O’Brien K, Latner J, Puhl R, Vartanian L, Giles C, Griva K, et al. The relationship between weight stigma and eating behavior is explained by weight bias internalization and psychological distress. Appetite . 2016;102:70-6..

CONCLUSÃO

A gordofobia, num todo, está presente nos vários cenários da sociedade. Estudantes de Medicina, profissionais ativos e mestrandos da área da saúde, infelizmente, estão inseridos nesse grupo. A gordofobia médica começa nos primeiros anos do curso e se perpetua ao longo dos demais: o corpo gordo é visto como resultado de desleixo, fruto de uma dieta hipercalórica. Esse preconceito acarreta, de forma direta e indireta, as perspectivas de qualidade de vida dos pacientes que estão fora do padrão estipulado, colocando-os em um círculo vicioso de permanência do seu estado e, inclusive, desenvolvendo novas comorbidades, como depressão e distúrbios de imagem.

É indiscutível que a obesidade traz diversas consequências drásticas para o paciente, tais como HAS e distúrbios cardiovasculares. Dessa forma, combater a obesidade é promover saúde. E a promoção da saúde só é efetiva quando se observa o paciente muito além de sua aparência, considerando os âmbitos sociais, físicos e psíquicos que levaram o indivíduo a esse estado. Inclusive, uma vez que são diversos os fatores que levam à obesidade, conhecer esses âmbitos é também possibilitar tratar a obesidade na sua raiz. Entretanto, os médicos desconsideram essa gama de etiologias e associam obesidade unicamente a atitudes individuais dos pacientes.

E justamente pelo fato de a obesidade envolver etiologias multifatoriais, é necessário, além de um cuidado médico humanizado e pautado nas evidências, uma abordagem interprofissional. Psicólogos, assistentes sociais e nutricionistas, por exemplo, devem compor a equipe de apoio a esses pacientes. Reconhecer que o cuidado multiprofissional é o carro-chefe não só para o tratamento da obesidade, como também de diversas comorbidades, é legitimar as DCN, as quais ressaltam a importância da promoção da saúde baseada na ciência, na humanidade e, sobretudo, no trabalho em equipe.

Também é indubitável que, uma vez que a obesidade engloba diversos eixos, contextos e etiologias, seu tratamento é complexo e, portanto, demanda uma figura médica capaz de ofertar métodos concretos e palpáveis, que se adaptam à realidade do paciente, orientados por meio de uma linguagem clara e amigável, de maneira a tornar o paciente o protagonista da própria saúde. Esse conjunto de metodologias se resume à expressão “aliança terapêutica”, conceito que, embora seja valioso para a propedêutica e, consequentemente, para a promoção da saúde, não se estabelece nas consultas. Falta um diálogo respeitoso, bem como orientações palpáveis e científicas nas abordagens para com o paciente gordo. Perde-se assim o binômio médico-paciente, já que este não se vê acolhido, tampouco orientado, recorrendo a outros métodos de emagrecimento, como dietas retiradas da internet.

E esse hiato entre as teorias para promover a saúde e o que é observado durante o manejo da obesidade é cada vez mais prevalente, pois reflete a forma como os médicos foram ensinados durante a graduação. Em muitos aspectos, prevalece nas escolas médicas mais a aplicação do currículo oculto do que o incentivo a seguir diretrizes, literaturas de semiologia e técnicas de comunicação clara e amigável. E, justamente por não seguirem as principais literaturas, também não fundamentam as condutas e os ensinos nas DCN, as quais destacam que o exercício médico eficaz se baseia em uma relação médico-paciente sólida, ética e livre de preconceitos, no entendimento do contexto social e econômico do indivíduo, e no estabelecimento de planos terapêuticos bem definidos. Fica, portanto, contraditório que os ditames para fomentar a saúde não são aplicados verdadeiramente nas escolas que deveriam formar os promotores de saúde.

Diante desse cenário, fica nítido o quão frágil é a linha entre a real promoção de saúde e a gordofobia, e que a forma como a obesidade é encarada pela classe médica agrava, ainda mais, as comorbidades presentes nos quadros de obesidade, em razão da negligência pela qual o paciente passa, o que leva a um aumento dos casos de desfechos desfavoráveis e ao abandono do tratamento. O objetivo geral desta revisão é ressaltar, e até mesmo relembrar, quais os valores de uma medicina eficiente e que promove saúde: acolher, tratar e cuidar com base na ciência, na humanidade e no atendimento multiprofissional, deixando todo e qualquer julgamento de lado.

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    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Gustavo Antonio Raimondi.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2022
  • Aceito
    22 Maio 2023
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