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PARA QUE SERVE UM CLÍNICO?

Final de século, com toda a carga de fetichismo que costuma cercar essas oportunidades. Final de um século especial, em que duas visões economicistas fracassaram. Final de século em um país de capitalismo tardio e sui generis -com a privatização dos lucros e socialização dos riscos e dos prejuízos. País com um quadro demográfico e sanitário cheio de contradições. O médico também enfrentando uma transição - pelo empresariamento de seu trabalho e as pressões mercadológicas. Não só a doença é -o que um Ministro da Saúde (Paulo Almeida Machado) lamentava -transformada em big business; também a saúde está sendo assim encarada. Diante de todas as perplexidades até aqui sumariadas foi que encarei o honroso convite para participar deste encontro. Tenho, hoje, muitas dúvidas sobre o tema escolhido. Aliás é uma velha conhecida capacidade minha a de escolher ternas inadequados.

A verdade é que a pergunta aqui utilizada como título é formulada, com crescente frequência, por administradores de serviços de saúde, educadores e, naturalmente, por estudantes de Medicina e pelos próprios pacientes.

O texto de TumultyTUMULTY, P. -What is a Clinician and Waht Does He Do? Introdução do Livro The Efetive Cliniciam. Saunders, 1973. (Para quem não gosta de ler nada publicado há mais de cinco anos, informo que o capítulo -como a maior parte do livro não necessita de atualização. O Professor Oly Lobato há alguns anos traduziu esse capítulo e publicou na Revista da Associação Médica do Rio Grande do Sul) - um seguidor de Oslar -deve ser revisto e considerado juntamente com o presente.

Cheguei a estas considerações depois de muitos anos de prática na clínica e no ensino. Sem pretender encerrar o assunto, penso poder contribuir para provocar a discussão que me parece urgentemente necessária, especialmente em países, como o Brasil, em que se luta pelo estabelecimento de um sistema de saúde.

Muitas são as razões para que se pergunte para que serve um clínico.

O extraordinário desenvolvimento das especialidades médicas, acompanhado em regra pelo domínio de novos e mais complexos recursos tecnológicos, é uma de tais razões.

A crescente preocupação com os aspectos preventivos -também um produto do progresso e, até certo ponto, da frustração vivida pela disponibilidade de muitos dos mais modernos métodos diagnósticos e terapêuticos -certamente é outra (eventualmente ilustrar com exemplos do tipo aneurisma de aorta abdominal com "todos os exames").

Em alguns países chama a atenção um paradoxo. Ninguém duvida da utilidade do “clínico geral” de crianças, de mulheres, dos atos operatórios, amplamente reconhecidos e considerados como essenciais recebendo as denominações, respectivamente, de pediatra, gineco-obstetra ou toco-ginecologista e cirurgião geral.

Ao mesmo tempo, a figura do clínico geral de adultos parece coisa do passado, inteiramente dispensável no que se costuma chamar modernidade.

Como toda minha preocupação gira em torno de um verdadeiro e efetivo sistema de saúde, necessariamente incluindo a necessidade de formação de recursos humanos para o mesmo, passarei em revista o tema em função dos diferentes níveis de assistência médica.

Atenção Primária

Dependendo de algumas circunstâncias pode e deve a atenção primária ser desenvolvida com equipe de saúde em que se integre um médico geral, expressão aqui empregada no sentido de alguém apto a prestar a adultos e a crianças todos os cuidados necessários.

Em outros casos, porém, a presença de um profissional voltado apenas ao atendimento dos adultos é necessária e desejável, até mesmo em função de aspectos culturais da população.

Deve o clínico estar habilitado a:

  1. desenvolver cuidados preventivos. Cabe lembrar que o Professor Annes DiasANNES DIAS -Lições de Clínica Médica, 6a. série, Globo. 1916 (citado em homenagem a sua percepção muito acima da de muitos dos seus contemporâneos e seguidores; poderia ainda ser recordado que lá se aprende que Mackcenzie, no início do século, abandonou sua condição de Professor na Universidade de Londres e foi trabalhar em uma pequena cidade da Escócia onde esperava ver e estudar as manifestações mais precoces das doenças., já chamava a atenção para este ponto, provavelmente em um contexto onde a possibilidade ele prevcnção era incomparavelmente mais reduzida do que nos dias atuais;

  2. estar atento para as possibilidades do diagnóstico precoce. Frise-se que este estar atento significa, também, rigorosa avaliação crítica das limitações que por vezes impedem, ou desaconselham, a busca do diagnóstico precoce;

  3. discernir a necessidade e a oportunidade de encaminhar pacientes aos níveis de assistência de maior complexidade, bem como fazer o acompanhamento próximo desses pacientes cm todos os momentos;

  4. manter a assistência aos familiares dos pacientes que elevam permanecer em outros níveis, por exemplo hospitalizados, assim como assegurar o acompanhamento aos pacientes terminais e a seus familiares durante todo o processo sabidamente complexo de luto;

  5. cuidados especiais e racionais com vistas reabilitação.

Para o correto desempenho com referência a vários dos itens listados é importante a prática da assistência domiciliar, tão erroneamente descuidada em muitos programas assistenciais e quase completamente esquecida nos planos de formação de recursos humanos.

Em síntese, mesmo sabendo das limitações da ação do clínico na atenção primária em termos de redução da mortalidade (embora eu não creia que essa possibilidade seja nula), através dos cuidados preventivos da ocorrência de doenças, da progressão das doenças e da redução das suas consequências - uma forma de descrever prevenção primária, secundária e terciária - pode e deve ser o clínico um fator importante na redução da morbidade.

Também, estou convicto de quedo ponto de vista da economia da saúde -aspecto cada vez mais importante da morbidade do sistema -é grande o potencial da ação do clínico.

Atenção Secundária e Terciária

Tantas e tão claras são as evidências acumuladas sobre a necessidade da existência de clínicos integrando equipes especializadas nesses níveis, que me parecem dispensável a abordagem desses aspectos.

Imaginando que, até aqui, possamos estar de acordo parece-me importante recordar a discussão sobre como devem ser formados os clínicos que, pelo menos no país real em que vivemos, não está ainda encerrada e, por vezes, apenas se inicia.

A tradição compreensível -mas não mais justificada -de centrar a assistência no ambiente hospitalar, gerou a de que todo o processo de educação médica só fosse feito em tal ambiente. É minha intenção discutir, em outro momento, a falha grave que isto acarreta do ponto de vista do processo pedagógico. Por ora basta dizer que, sendo pacífico deva ser o processo de ensino-aprendizado entendido como aquisição de conhecimentos, desenvolvimento de habilidades e adoção de atitudes, estou convencido de que a transformação de pessoas em objetos para o ensino, pode até levar ao atendimento dos dois primeiros itens mas, seguramente, não leva e pode ter o efeito contrário do desejável, à adoção de atitudes de respeito ao ser humano-paciente.

A aparente simplicidade das práticas que se desenvolvem em níveis ambulatoriais de atendimento tem levado muitos a, equivocadamente, acreditar que elas poderão ser facilmente aprendidas por aqueles que tiverem tido um bom ensino em hospital. Grave equívoco que, é necessário combater com todas as forças.

Finalmente, um aspecto psicológico de maior importância. Penso, e estou certo, de que há neste ponto concordância geral, que entre os fatores condicionantes do êxito no processo de aprendizado é decisiva a motivação. É extremamente difícil fazer com que exista boa motivação para o trabalho aparentemente simples -é importante insistir em que se trata de simplicidade apenas aparente -, exigido pelos pacientes ambulatoriais, quando se trabalha com egressos da prática hospitalar, dotada de maior dramaticidade e cercada de complexos recursos tecnológicos.

Estas as considerações que desejava apresentar. Estou consciente de que nelas falta originalidade. Igualmente acredito que os problemas que me estão preocupando já foram superados cm muitos países.

Provocar discussão e através da mesma buscar o conhecimento de novos caminhos, constituíram minha motivação.

Referências Bibliográficas

  • TUMULTY, P. -What is a Clinician and Waht Does He Do? Introdução do Livro The Efetive Cliniciam. Saunders, 1973. (Para quem não gosta de ler nada publicado há mais de cinco anos, informo que o capítulo -como a maior parte do livro não necessita de atualização. O Professor Oly Lobato há alguns anos traduziu esse capítulo e publicou na Revista da Associação Médica do Rio Grande do Sul)
  • ANNES DIAS -Lições de Clínica Médica, 6a. série, Globo. 1916 (citado em homenagem a sua percepção muito acima da de muitos dos seus contemporâneos e seguidores; poderia ainda ser recordado que lá se aprende que Mackcenzie, no início do século, abandonou sua condição de Professor na Universidade de Londres e foi trabalhar em uma pequena cidade da Escócia onde esperava ver e estudar as manifestações mais precoces das doenças.
  • Roteiro básico de palestra realizada em Porto Alegre em novembro de 1994 (Workshop em Clínica Médica).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 1995
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