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DEZ ANOS DE EXPERIÊNCIA COM UM CURSO DE IMUNOLOGIA CLÍNICA NA GRADUAÇÃO EM MEDICINA

Resumo:

Os autores relatam sua experiência como docentes da disciplina de Imunologia Clínica ministrada durante 10 anos no ciclo profissional do Curso Médico da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Fazem análise crítica da posição da Imunologia Clínica como especialidade médica, da sua interrelação com as demais disciplinas do currículo, das atividades didáticas e métodos de avaliação dos alunos e, finalmente, do resultado da avaliação do desempenho do curso feita pelos alunos nos últimos 4 anos. Concluem que a formação de um grupo de imunologistas clínicos no hospital universitário traz numerosas vantagens para a 'pesquisa, o ensino e a assistência, ressaltando, entre elas, a possibilidade de oferecer ao aluno o estudo sistemático das doenças imunológicas, num curso baseado nos princípios de diagnóstico e tratamento, de caráter eminentemente prático e continuamente avaliado.

Summary:

The authors describe their experience in teaching Clinical Immunology for medical students in the School of Medicine of Ribeirão Preto during the past ten years. They critically analyse the place of Clinical Immunology as a medical speciality, its relationship to other courses of the medical curriculum, the activities and evaluation criteria of the course and, finally, the opinions of the students about the course, collected during the past four years. They conclude that the organization of a group of clinical immunologists in an University Hospital has several advantages for research, teaching and medical care of patients with immunological diseases. One of the most important consequences is the introduction of the systematic study of these diseases for the medical students during a course of Clinical Immunology. The course should be focused on the principles of diagnosis and treatment of immunological diseases, based mainly on practical activities and reavaluated continuosly by students and teachers, and modified when appropriate.

Introdução

A Medicina constitui uma ciência em contínua evolução, experimentada em um ritmo vertiginoso nos últimos anos, e a emergência da Imunologia Clínica como especialidade médica é uma das conseqüências bem definidas deste progresso. Embora o reconhecimento de sua importância médica seja crescente, a introdução da disciplina no currículo dos cursos de Medicina não se deu com a mesma facilidade, principalmente por problemas institucionais, deficiência de recursos humanos e resistências das especialidades estabelecidas.77. HOULY, C. A. P. Imunologia: a necessidade de seu estudo na escola médica. Scientia ad Sapientiam, 10: 33-5, 1982. Superando estas dificuldades, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), em 1975, introduziu a disciplina de Imunologia Clínica no Curso de Graduação em Medicina, em experiência pioneira no Brasil e pouco imitada até o presente. Ao longo destes 10 anos, a disciplina evoluiu continuamente, ganhando mais espaço no currículo médico e nas novas instalações do Hospital das Clínicas (HC) no Campus Universitário da USP em Ribeirão Preto, alterando freqüentemente as atividades didáticas para adequá-las à evolução da Imunologia e dos métodos de ensino e à análise crítica de alunos e professores. O objetivo deste trabalho é relatar esta experiência didática, concentrando-se na forma atual de desenvolvimento do curso e de avaliação do seu desempenho.

Imunologia clínica como especialidade médica

No conceito de VAUGHAN (1972)1616. VAUGHAN, J. The emerging concept of clinical immunology. J. Allergy Clin. Immunol. , 50:294-304, 1972., a Imunologia Clínica é a imunologia do homem e das suas doenças e o imunologista clínico é o médico versado nas teorias e técnicas da Imunologia, utilizando-as na investigação e tratamento de pacientes. A Imunologia Clínica surgiu no início da década de 1970, em hospitais universitários europeus e americanos, em conseqüênciada explosão de conhecimentos ocorrida na Imunologia Básica naquela época, e que tiveram grande repercussão, não só na compreensão da patogênese, como nos métodos práticos de diagnóstico e tratamento de uma variedade de doenças. Estas doenças, que definem a área de atuação do Imunologista Clínico33. BLOCH, K. J. Clinical immunology: a new speciality based in the laboratory and clinical departments. In: ROSE, N. R. & FRIEDMAN, H. ed. Manual of clinical immunology. Washington, American Society for Microbiology, 1976. p. 921-3.),(55. COMMITTEE on hospital - based laboratory and clinical immunology of the American Association of Immunologists. Clinical immunology: meeting report. J. Immunol., 115: 609-10, 1975.),(77. HOULY, C. A. P. Imunologia: a necessidade de seu estudo na escola médica. Scientia ad Sapientiam, 10: 33-5, 1982.),(88. PRUZANSKI, W. Clinical immunology: its role in medicine and future in Canada. Can Med. Assoc. J., 128: 1277-9, 1983.),(1010. RESIDENCE review committee for allergy and immunology, USA: Special requeriments for residences in allergy and immunology. J. Allergy Clin. Immunol. , 71: 1-4, 1983. incluem: imunodeficiências primárias e secundárias; doenças alérgicas; doenças auto-imunes difusas; doenças auto-imunes órgão-específicas (endócrinas, digestivas, neurológicas, cardíacas, oculares etc.); hemopatias imunológicas; transplantes de órgãos; imunologia tumoral; imunologia das doenças infecto­parasitárias.

As primeiras gerações de imunologistas clínicos, obviamente, não tiveram formação específica na área, mas eram oriundos de áreas correlatas, como Reumatologia, Alergia, Nefrologia, Hematologia, Dermatologia, Pediatria, Oncologia, Cirurgia de Transplantes, Patologia Clínica, ou mesmo de áreas básicas. Entre estes profissionais dos primeiros tempos, observa-se também uma dicotomia entre aqueles predominantemente orientados para a atividade clínica, ou para a investigação laboratorial das doenças imunológicas, raramente se encontrando indivíduos que exerciam ambas as atividades de modo equilibrado. O desenvolvimento dos grupos universitários propiciou a formação de novas gerações de imunologistas clínicos com uma formação mais homogênea, não só entre os diversos campos de atuação da especialidade, como entre seus aspectos clínicos e laboratoriais. Entretanto, pela abrangência da área, será impossível a um único indivíduo dominar todos os métodos de investigação das diversas subáreas da Imunologia Clínica, sendo inevitável a subespecialização em uma ou poucas áreas de atuação e imperiosa a colaboração entre indivíduos e grupos para permitir urna cobertura de toda a Imunologia Clínica em termos de investigação laboratorial aprofundada de pacientes.

Do mesmo modo que outros grupos de Imunologia Clínica, o da FM RP originou-se de elementos formados em outras áreas, ou sejam, Hematologia, Alergia e Imunoquímica e Imunopatologia. Esta formação se reflete atualmente ainda nas linhas de pesquisa de cada um dos docentes da disciplina (VOLTARELLI, FALCÃO & BOTTURA, 1984, SARTI, 1985, COIMBRA, FURTADO & CARVALHO, 1984).44. COIMBRA, T. M.; FURTADO, M. R. F. & CARVALHO, I. F. Crossed - immunoelectrophoresis analysis of the urinary excretion of a1 acid glycoprotein, a1 - antitrypsin, albumin and transferrin in normal subjects and in patient with renal disease. Brazilian J. Med. Biol. Res., 17:35-41, 1984.),(1212. SARTI, W. Routine use of skin testing for immediat penicillin allergy to 6,764 patients in an out­patient clinic. Annals of Allergy 55, 1985.),(1717. VOLTARELLI, J. C.; FALCÃO, R. P. & BOTTURA, C. Antibody dependent cellular cytotoxicity in some lymphoreticular disorders. Tumori, 70:49-55, 1984. Os novos docentes de Imunologia Clínica, com formação específica nos cursos de pós-graduação, recebem um treinamento clínico e laboratorial mais homogêneo, possibilitando que se dediquem, no futuro, a praticamente qualquer sub­área da especialidade, desempenhando atividades clínicas e laboratoriais, com finalidade de ensino, pesquisa e assistência. Neste sentido, AUSTEN (1984)11. AUSTEN; K. F. An organizational framework for training service and research in clinical immunology and allergy. J. Allergy Clin. Immunol., 69: 479-83, 1982. demonstra claramente as vantagens de se organizarem grupos de Imunologia Clínica em ambientes universitários, enumerando-as: maior facilidade para os pesquisadores desenvolverem novos conhecimentos, pela troca de reagentes raros, habilidades técnicas e conceitos críticos; grande número de opções clínicas para aplicação, ou transferência, de tecnologia sobre conhecimentos, ou técnicas básicas recém-adquiridas; maior facilidade de obtenção de financiamento para pesquisa em programas básicos e clínicos; ambiente adequado de treinamento para pesquisadores clínicos, em que a sólida formação básica será aplicada em problemas relevantes para a doença humana.

Se estas vantagens são largamente reconhecidas na organização de disciplinas de Imunologia Clínica em hospitais universitários ou congêneres, com o objetivo de racionalizar a pesquisa e ensino na área, a mesma anuência não se aplica ao estabelecimento da Imunologia Clínica como especialidade na prática médica, dentro e fora das Universidades. Ao contrário, há inúmeras resistências médicas tradicionais, principalmente a Alergia e a Reumatologia, para que isto ocorra. O argumento principal, contrário à consolidação da Imunologia Clínica como especialidade médica prática, é a invasão de áreas de atuação tradicionais, como as mencionadas acima, por especialistas não suficientemente treinados nos aspectos não-imunológicos, como por exemplo, das doenças alérgicas e reumáticas. Trata-se de um problema real, não suficientemente discutido e resolvido e que se tem procurado contornar na formação do residente em Imunologia Clínica do HC, estimulando a realização de estágios em outros serviços (Reumatologia, Ortopedia, Fisioterapia, Alergia), a integração com especialidades afins, no próprio Hospital, e o atendimento, nos Ambulatórios e Enfermarias da Imunologia Clínica, de pacientes com síndromes reumáticas, ou alérgicas, independentemente de seu mecanismo etiopatogênico, imunológico, ou não. Por outro lado, as especialidades médicas tradicionais ainda exercem grande atração mesmo sobre os residentes recém-formados em programas de Imunologia Clínica, ainda não reconhecidos oficialmente, desestimulando o exercício da nova especialidade de modo integrado, como seria de se desejar. Reflexo fiel deste problema é a tendência de muitos residentes egressos do HC de se dedicarem quase exclusivamente às doenças reumáticas, ou alérgicas, e se estabelecerem no mercado de trabalho como reumatologistas, ou alergistas, apesar do treinamento relativamente abrangente recebido em Imunologia Clínica. Dificuldades semelhantes têm ocorrido, tanto em países desenvolvidos,33. BLOCH, K. J. Clinical immunology: a new speciality based in the laboratory and clinical departments. In: ROSE, N. R. & FRIEDMAN, H. ed. Manual of clinical immunology. Washington, American Society for Microbiology, 1976. p. 921-3.),(55. COMMITTEE on hospital - based laboratory and clinical immunology of the American Association of Immunologists. Clinical immunology: meeting report. J. Immunol., 115: 609-10, 1975.),(66. DENMAN, A. M. What is clinical immunology? J. Clin. Pathol., 34: 277-86, 1981.),(99. REPORT OF THE BRITISH SOCIETY FOR IMMUNOLOGY WORKING PARTY ON CLINICAL IMMUNOLOGY 1981-1982. Functions and training of the clinical immunologist. Clin. exp. Immunol., 52: 702-5, 1983.),(1515. TURK, J. L. The role of the clinical immunologist. In: _____. Immunology in clinical medicine. London, Heinemann, 1972. p. 242-51. como nos em desensolvimento22. BIANCO, N. E. Imunologia clínica como especialidad nueva en salud pública: un modelo para los países em desarrollo. Bol. Of. Sanit. Panam., 93: 118-26, 1982.),(1111. SANCHEZ, J. R. Perfil del alergólogo e imunólogo clínico. Alerg., México, 30: 119-27, 1983. nestes anos iniciais do exercício da Imunologia Clínica como especialidade prática. A experiência venezuelana de criação de um sistema descentralizado de assistência, pesquisa e ensino em Imunologia Clínica tem proporcionado resultados que a credenciam como modelo para outros países em desenvolvimento.22. BIANCO, N. E. Imunologia clínica como especialidad nueva en salud pública: un modelo para los países em desarrollo. Bol. Of. Sanit. Panam., 93: 118-26, 1982.

Apesar de todos estes problemas, superáveis com a evolução dos conhecimentos científicos e da mentalidade médica, a Imunologia Clínica certamente terá um lugar defini o como especialidade médica independente em um futuro próximo. A emergência explosiva e dramática da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida SIDA revelou ao público leigo a existência e necessidade do Imunologista Clínico (TALAL, 1983)1414. TALAL, N. A clinician and a scientific look at acquired immune-deficiency syndrome (AIDS): a validation of immunology's theoretical foundation. Immunol. Today, 4: 180-3, 1983. e, além de validar os fundamentos teóricos de Imunologia Clínica, está exigindo uma aceleração da sua transição de uma ciência descritiva para outra mais devotada à imunomodulação e imunorreconstituição, a fim de enfrentar não só este dramático de safio da terapêutica da SIDA, como também o de outras imunodeficiências, de doenças auto-imunes, alérgicas, neoplásicas, infecciosas e rejeições de transplantes. Assim, a atividade individualizada do imunologista clínico é claramente requerida no diagnóstico e tratamento das imunodeficiências primárias e secundárias, no acompanhamento de protocolos de imunossupressão, imunoestimulação e hipossensibilização, na orientação, como consultor, do diagnóstico e terapêutica de um grande número de doenças de outras especialidades que tenham patogênese imunológica, além do atendimento da maioria dos casos de doenças reumáticas difusas e alérgicas, que seguramente são causadas por mecanismos imunológicos. Seu principal papel, conferido pela híbrida formação clínica e imunológica, ser decerto, acompanhar criticamente a enorme massa de informação científica oriunda da pesquisa imunológica básica e clínica, selecionando e interpretando corretamente, no contexto clínico, aqueles procedimentos diagnósticos e terapêuticos que poderão resultar num avanço significativo na assistência aos pacientes de todas as áreas médicas.33. BLOCH, K. J. Clinical immunology: a new speciality based in the laboratory and clinical departments. In: ROSE, N. R. & FRIEDMAN, H. ed. Manual of clinical immunology. Washington, American Society for Microbiology, 1976. p. 921-3. Este papel, pela sua complexidade e impossibilidade de ser exercido por algum outro profissional sem a formação clínica e imunológica, justificaria, por si só, a individualização da Imunologia Clínica como especialidade médica. Espera-se, para breve, o reconhecimento completo desta realidade no Brasil, inclusive com a aprovação dos programas de Residência Médica em Imunologia Clínica pela Comissão Nacional de Residência Médica, como tem ocorrido em países desenvolvidos88. PRUZANSKI, W. Clinical immunology: its role in medicine and future in Canada. Can Med. Assoc. J., 128: 1277-9, 1983.),(1010. RESIDENCE review committee for allergy and immunology, USA: Special requeriments for residences in allergy and immunology. J. Allergy Clin. Immunol. , 71: 1-4, 1983.. Nestes, os seguintes números de imunologistas clínicos por milhão de habitantes estão sendo treinados nas universidades: Canadá 0,17, Suécia 1,1, Austrália 0,8, Checoslováquia 0,71, Grã-Bretanha 0,43, Alemanha Ocidental 0,23, além da Venezuela 0,5.88. PRUZANSKI, W. Clinical immunology: its role in medicine and future in Canada. Can Med. Assoc. J., 128: 1277-9, 1983.

Recursos materiais e humanos envolvidos no curso

O curso de Imunologia Clínica é repetido oito vezes por ano para turmas de aproximadamente 10 alunos, tendo 5 semanas de duração. É ministrado em sua maior parte, por três docentes, autores deste artigo, que trabalham em dedicação exclusiva à docência e à pesquisa, sendo que um deles fica responsável pela coordenação do curso de cada turma, em sistema de rodízio. Colaboram, ainda, um docente da Imunologia Básica e um pós-graduando da FMRP, um médico contratado e dois residentes (R2 e R3) do HC. A disciplina de Imunologia Clínica conta com 8 leitos no HC, dois turnos de ambulatórios semanais, ocupando cada um deles uma manhã e contando com 10 salas de atendimento e um laboratório para exames rotineiros em Imunologia Clínica. Além do Curso de Graduação, a disciplina oferece pós-graduação (Área de Concentração Clínica Médica) e Residência Médica.

Relação entre o curso de imunologia clínica e outras disciplinas: uma apreciação crítica do currículo médico da FMRP

Ministrado ao longo do 4o ano médico, a disciplina de Imunologia Clínica recebe alunos que, no 2o ano, freqüentaram dois outros cursos de Imunologia, um de Imunologia Básica, com carga horária de 75 horas e outro de imunopatologia, com carga horária de 45 horas. Estas disciplinas prévias fornecem aos alunos, respectivamente, os fundamentos da ciência imunológica e dos mecanismos imunológicos envolvidos nas doenças, possibilitando que o curso de Imunologia Clínica seja dedicado preponderantemente aos aspectos clínicos do diagnóstico e terapêutica de doenças com patogenia imunológica, principalmente as imunodeficiências, as doenças reumáticas e as doenças alérgicas. Como todas as outras disciplinas especializadas da Clínica Médica, a Imunologia Clínica é precedida por um curso de Semiologia Médica, ministrado no 3o ano, em que o aluno é introduzido à técnica de elaboração da observação clínica completa e da interpretação de sinais e sintomas. No Internato, após terem sido ministradas todas as disciplinas especializadas, um estágio geral em enfermarias, ambulatórios e Pronto-Socorro permite ao aluno integrar o conhecimento adquirido nas especialidades, através do atendimento de pacientes com variados problemas clínicos, apresentados, então, de modo aleatório, sem os limites das especialidades. Esta organização curricular recebe muitas críticas, principalmente pelo seu caráter compartimentalizado em disciplinas, surgindo como alternativas os modelos de integração vertical, com blocos de assuntos abrangendo desde a anatomia até a terapêutica de um determinado sistema orgânico, ou de integração horizontal, na Clínica Médica, com a extinção das disciplinas especializadas e a criação de um curso de Clínica Médica Geral, não sistematizado desde o início. Sem negar os méritos dessas alternativas, nem se recusar a examiná-las, deve-se considerar que o atual esquema curricular da Clínica Médica, onde o curso de Imunologia Clínica se insere, é perfeitamente compatível com um ensino clínico abrangente e de boa qualidade, como se acredita seja ministrado atualmente na FMRP. Esta estrutura curricular tem a vantagem de se adaptar à tendência moderna da especialização na Medicina, permitindo ser o ensino de cada área ministrado pelos especialistas e estes poderem desempenhar sua atividade didática em conjunto com a atividade clínica e de pesquisa nas suas respectivas disciplinas. Tanto o estudante, como o especialista, neste esquema, têm oportunidade de um demorado contato com os aspectos gerais da Clínica Médica, no curso introdutório de Semiologia Médica e no estágio final do Internato. As deficiências existentes na formação clínica do médico egresso da FMRP, que não são poucas, decorrem muito menos da organização curricular do que de problemas não sanados no planejamento e desenvolvimento dos cursos individualmente, conseqüentes, em grande parte, da heterogeneidade dos objetivos e métodos de ensino de cada disciplina e, principalmente, do fato destes cursos serem repetidos ano após ano quase inalterados, sem o hábito de avaliá-los e ajustá-los periodicamente. O mesmo se diga em relação à integração básico clínica (leia­se Imunologia Básica - Imunologia Clínica), para a qual não seria indispensável um curso único ministrado verticalmente, mas um entendimento entre docentes básicos e clínicos, em que estes explicitem os seus objetivos didáticos finais e aqueles forneçam subsídios fundamentais aos alunos para o ciclo clínico. Entretanto, este diálogo é raramente estabelecido, clamando-se então, por uma mudança curricular que, certamente, não irá também sanar as falhas existentes.

Organização das atividades do curso

Como se observa no Quadro I, o enfoque do curso é centrado em atividades práticas, que ocupam 4 ou 5 dias de cada semana letiva. Nos ambulatórios, os alunos, em grupos de 2 ou 3, atendem a pacientes que comparecem às primeiras consultas na disciplina, e as observações clínicas são discutidas com um docente, resultando em uma orientação diagnóstica e terapêutica para o caso. Cada estudante recebe também um paciente internado para elaborar uma observação clínica completa e acompanhar sua evolução clínica diária; todos os casos são apresentados semanalmente pelos estudantes na visita à enfermaria; um, ou dois, destes casos são selecionados, em cada semana, para uma discussão clínica mais minuciosa, enfocando os aspectos diagnósticos e terapêuticos, mas abordando, também, a epidemiologia, etiopatogenia e fisiopatologia da doença em questão, quando pertinente. A cobertura teórica é fornecida em seminários semanais, versando os seguintes temas: 1. Organização anatômica do sistema imune. Imunodeficiências primárias e secundárias. 2. Reações de hipersensibilidade. Alergia a drogas. 3. Bases fisiopatológicas e terapêuticas da asma brônquica. 4. Tolerância imunológica e auto-imunidade. Bases etiopatogênicas, fisiopatológicas e diagnósticas das doenças auto-imunes difusas. 5. Terapêutica medicamentosa das doenças reumáticas (anti-inflamatórios, imunossupressores, drogas remissivas de ação lenta etc.) A parte básica de alguns destes temas (Organização anatômica do sistema imunológico, Reações de hipersensibilidade imediata e Tolerância imunológica) é revista através de textos programados de auto-instrução, adaptados pelos professores do curso a partir do livro “Immunology - A Programmed Text, JW Streilein & JD Hughes, Little, Brown & Co., 1977”.1313. STREILEN, J. W. & HUGHES, J. D. Immunology: a programmed text. Little Brown & Co. 1977. O restante do material bibliográfico para os seminários é selecionado de fontes diversas (livros de Imunologia, monografias, revisões etc.), predominantemente em língua portuguesa. Além destes textos, os estudantes recebem um roteiro de cada seminário, com os objetivos a serem alcançados no fim de cada um deles. Para estimular os estudantes a lerem o material dos seminários e deles participarem, faz-se uma pequena avaliação escrita após a discussão do tema do seminário. Completando as atividades do curso, são desenvolvidas três demonstrações práticas sobre métodos subsidiários ao diagnóstico de doenças imunológicas, com os seguintes assuntos: 1. Testes laboratoriais auxiliares ao diagnóstico das doenças reumáticas; 2. Investigação da competência imunológica humoral; 3. Testes cutâneos para o diagnóstico das reações de hipersensibilidade.

Quadro I
Distribuição semanal das atividades didáticas do curso de Imunologia Clínica

Avaliação do desempenho dos alunos

A avaliação dos conhecimentos é realizada pela somatória das avaliações de cada seminário e por uma prova escrita final. Na última semana do curso, os alunos são avaliados também na sua competência em elaborar e discutir uma observação clínica de um paciente desconhecido, com doença alérgica, ou reumática ou, eventualmente, uma imunodeficiência. São aprovados os alunos que obtiverem nota igual ou superior a 5,0, independentemente, nestas três avaliações (escrita, prática de doenças reumáticas e prática de doenças alérgicas). Ao aluno que não alcançar suficiência em uma das avaliações, é oferecida uma nova oportunidade dentro do semestre do curso; se a insuficiência for constatada em duas ou três avaliações, o aluno é reprovado e, pelas· normas da USP, terá que repetir todo o curso no semestre seguinte. Com este critério de aprovação, pretende-se alcançar um rendimento aproximadamente homogêneo do estudante nas atividades do curso (teórica, prática de alergia e de doenças reumáticas) e, ao mesmo tempo, impedir a repetição indefinida de “provas de recuperação”, tão habituais no nosso sistema universitário, levando à aprovação do aluno insuficiente quase por saturação do professor. O índice de reprovações tem sido inferior a 5%.

Avaliação do desempenho do curso

Parte importante desta avaliação é realizada através de questionário sobre várias atividades do curso que os alunos de cada turma respondem durante a prova escrita final, no último dia do curso. Os Quadros II e III mostram o resultado desta avaliação, quanto aos conceitos atribuídos a cada atividade e aos principais comentários abertos feitos pelos alunos que freqüentaram o curso de 1982 ao 1o semestre de 1985. Estes dados revelam a aprovação dos alunos em relação ao curso, principalmente porque, em contraste com outros cursos do ciclo clínico e do próprio Departamento de Clínica Médica, ele tem um enfoque essencialmente prático e oferece amplas oportunidades ao estudante, no início da sua formação clínica, de contato direto e de atendimento de pacientes nas enfermarias e ambulatórios. Esta atividade clínica é supervisionada pelos docentes, juntamente com a discussão médica que dela e origina, constituí a maior parte do curso, objetivando fundamentalmente treinar o aluno no diagnóstico e terapêutica das doenças determinadas por mecanismos imunológicos. Os alunos reconhecem também muitas falhas nas atividades do curso, como se observa nos Quadros II e III, sendo suas críticas e sugestões rotineiramente utilizadas para se introduzir modificações visando à melhoria do curso. Ao fim de cada semestre, ou, excepcionalmente, no decorrer do semestre letivo, os docentes e demais colaboradores do curso se reúnem para analisar o resultado da avaliação oferecida pelos alunos e decidir as possíveis modificações. Excetuando-se pequenas contradições que refletem preferências pessoais de um ou outro grupo de estudantes, a maioria das críticas e sugestões dos estudantes são consideradas procedentes e se procura atendê-las. Algumas das modificações sugeridas, embora bastante pertinentes, esbarram com dificuldades estruturais e externas difíceis de superar (número insuficiente de salas de atendimento no Ambulatório; disponibilidade limitada de textos didáticos adequados, ou de tempo para prepará-los, ou atualizá-los; grande absorção do tempo dos alunos por outras disciplinas concomitantes; falta de conhecimentos de outras áreas, que serão supridos posteriormente). Problema igualmente relevante é a limitação do tempo da disciplina, acomodando em 25 períodos matinais uma grande diversidade de atividades didáticas, muitas delas exigindo certo número de repetições para que o rendimento seja adequado (ambulatórios, visitas, discussões de caso). Outras modificações, mais facilmente introduzíveis, envolvem mudança de atitudes e comportamento dos docentes (quanto ao modo de conduzir os seminários e as visitas às enfermarias, por exemplo), posição e enfoque de temas no cronograma do curso (antecipar os temas mais práticos, enfatizar aspectos diagnósticos e terapêuticos) e mesmo critérios de avaliação (medir o aprendizado prático ao longo das atividades nos ambulatórios e na enfermaria e não só nos dois últimos atendimentos no ambulatório). Finalmente, algumas das sugestões dos alunos, embora compreensíveis, chocam-se com a orientação do curso,· pois muitas delas simplesmente atendem ao espírito de passividade e comodidade do estudante e encontram, resistência dos docentes em adotá-las (trocar o atendimento de casos novos feito pelo estudante pela observação do atendimento de retornos feito pelos residentes; destinar o tempo das demonstrações práticas para a realização de testes laboratoriais pelo estudante em detrimento da discussão do princípio e aplicações clínicas dos exames; abolição das avaliações dos seminários, ou mesmo da prova final).

Um outro questionário, elaborado pela entidade representativa discente e respondido pelos estudantes que freqüentaram o curso em 1982, confirmou, de modo geral, as virtudes e deficiências do curso comentadas acima e forneceu sugestões que foram incorporadas ao Quadro III. Um processo mais amplo de avaliação de todos os cursos do currículo médico da FMRP está atualmente em andamento, coordenado pela Comissão de Ensino da Faculdade. Embora não seja a única nem a mais perfeita forma de avaliar o desempenho do curso (poderia ser complementada, por exemplo, com um diálogo aberto com os estudantes de cada turma ao final do curso), estes questionários têm proporcionado informações extremamente valiosas para, ao longo destes anos, alterar continuamente o curso de Imunologia Clínica, visando sempre a aprimorar a formação do aluno.

Quadro II
Questionário para avaliação do desempenho do curso de Imunologia Clínica
Quadro III
Principais críticas e sugestões de alunos às várias atividades do curso de Imunologia Clínica

Conclusões

A constituição de um grupo de profissionais voltados para o ensino, pesquisa e assistência de doenças com mecanismos imunológicos representa um considerável avanço na organização departamental, pois une recursos materiais e humanos preciosos, em uma área extremamente complexa e rapidamente mutável, os quais, de outro modo, estariam dispersos em outras disciplinas clínicas organizadas por sistemas orgânicos e mesmo em disciplinas básicas. A vultosa massa de informações advinda da pesquisa da Imunologia Básica e dos mecanismos das doenças imunológicas não deve desviar o objetivo primordial de um curso de Imunologia Clínica, na graduação médica, o qual, como qualquer outro de Clínica Médica, visa a capacitar o estudante para o diagnóstico e tratamento das doenças. E esta capacitação se faz mais eficientemente pelo treinamento dos estudantes em contato direto com o paciente, o que exige um conjunto de requisitos nem sempre disponíveis nas nossas escolas médicas: pequeno número de alunos por turma; infra­estrutura de ambulatórios, enfermarias, laboratórios, pessoal docente e auxiliar preparado, enfim, um Serviço organizado, exercendo todas as etapas do atendimento médico de alto nível na área. A Disciplina de Imunologia Clínica da FMRP, iniciando-se em 1975 com recursos modestos (3 leitos no velho HC e um ambulatório em período distinto do de aulas), pôde evoluir de um ensino predominantemente teórico e demonstrativo para o curso atual, majoritariamente prático e participativo. Esta evolução foi orientada, em grande parte, pelas críticas e sugestões dos alunos, recolhidas periodicamente ao longo destes anos, analisadas em reuniões dos docentes e consideradas prioritariamente na introdução de modificações aperfeiçoadoras do curso. Esta experiência didática está longe de ser perfeita, mas suas características de pioneirismo, dinamismo e reavaliação contínua a recomendam para auxiliar outros grupos e cursos no País, interessados no ensino da Imunologia Clínica em nível de graduação.

Agradecimentos

Os autores agradecem aos Professores Antonio Campos Neto e Marco Antonio Zago pela revisão do manuscrito.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1985
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