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CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DOS VALORES, FINALIDADES E OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO MÉDICA

Resumo:

O Autor, após revisão da literatura filosófica, estabelece seus pontos de vista sobre o conceito e natureza dos valores. Situa a importância dos valores para a Educação Médica e define três critérios para escolha: um histórico, um sócio-cultural e outro pragmático.

A seguir classifica e descreve os valores que a Educação Médica deve transmitir: 1 - Lógico-epistemológicos: busca de verdade, busca de sabedoria, disciplina mental, capacidade de rever princípios, disposição de descobrir e respeitar fatos novos, estímulo à criatividade; 2 - Valores éticos: beneficência, justiça, liberdade, disciplina, responsabilidade, respeito ao paciente, respeito à vida, participação e compartilhamento de grupos , capacidade de tomar decisões, empatia, honestidade, escrúpulo, moderação, serenidade, humildade; 3 - Valor estético: beleza.

Defende que a Educação Médica deva considerar finalidades culturais sócio-econômicas, éticas e políticas, decorrentes dos valores escolhidos. Propõe uma taxionomia de Bloom, considerando os domínios cognitivo, afetivo e psicomotor.

Summary:

The Author, after making a revision of philosophical literature, he establishes his points of view about values concept and nature. After placing the values importance im Medical Education, he establishes three criteria for his choices: one historical, one socio-cultural and another prafmatic.

Afterwards be makes a Medical Education values classification and description: 1 - Logic-epistemologis values: truth search, knowledge search, mental discipline, capacity to make principle revision, disposition to discover and to respect new facts, to stimulate creativiness; 2 - Ethics values: goodness, justice, freedom, discipline, responsibility, patient respect, life respect, group participation, to make decisions capacity, honesty, moderation, humility, serenity, scruples; 3 - Esthetic value: beauty.

The author defends that Medical Education must consider cultural, socioeconomics, and political finalities, resulting of the chosen values. At last he proposes a toxonomy of medical education objectives, with foundation in the bloom taxonomy, considering the cognitive, affective and psychomotor field of action.

I - INTRODUÇÃO

Uma das funções mais importantes da educação é justamente a de transmitir os valores de uma determinada cultura às novas gerações de aprendizes, de modo a dar-lhes competência, a capacitá-los, para viverem harmonicamente na Comunidade da qual são membros, sendo úteis a si próprios e úteis à comunidade. Dentro desta perspectiva, a Educação Médica, como caso particular da Educação Geral, deve assumir um caráter normativo e prescritivo, extraindo as regras a serem prescritas dos valores inerentes à vida da cultura considerada. Posta a questão desta forma, a primeira pergunta a ser respondida deve ser: quais os valores que a Educação Médica deve transmitir? Tal questão pode ser, se judiciosamente analisada, transformada em uma outra: quais os critérios que devem ser adotados para selecionar os valores a serem transmitidos?

Três critérios podem ser considerados, no entendimento do Autor:

  1. Um critério histórico, que implica em identificar quais os valores universais que foram adotados, ao longo da história da humanidade, constantemente, na prática da profissão médica, ou que forem indispensáveis para o adequado preparo do aprendiz da medicina. Aqui devem ser considerados aqueles Valores aprovados e adotados pela maioria ou totalidade das correntes filosóficas, independentemente de suas crenças substantivas, fundamentais - estes são os valores transculturais. Entre eles temos a verdade, a sabedoria, a justiça, a bondade, a beleza, etc.

  2. Um critério sócio-cultural, que implica em identificar quais os valores particulares, implícitos ou explícitos, da cultura considerada, relevantes para a formação e a prática médicas. Tais valores são de natureza predominante ética, face à natureza circunstancial, geográfica e histórica, da própria ética geral, e da ética médica.

  3. Um critério pragmático, que implica na adoção de valores úteis para o preparo do médico com as competências necessárias para o exercício da prática médica, de modo a atender as expectativas da comunidade em que se insere.

Pressupostos - Na análise que faremos serão considerados os seguintes pressupostos:

1 - Conceito de valor: fazendo uma análise histórica da sua evolução, podemos registrar o fato de que, desde os Sofistas, no século IV a.C., até os filósofos do século XX (Abbagnano11. ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 2 ed. Mestre Joe, São Paulo. 1982., Scheller2121. SCHELLER, M. Der Formalism in Der Ethick, 3.a ed. 1927, p. 262, apud Abbagnano, op. cit., Hartmann99. HARTMANN, N. Fundamentos de uma Metafísica do Conhecimento, apud Hessen, J., op. cit. 11., Hessen1212. HESSEN, J. Filosofia dos Valores. Coimbra. Armenio Amado Editor, Portugal, 1980., James1414. JAMES, W. Pragmatismo, Ed. Abril Cultural, São Paulo , 1974., Dewey66. BRAMELD, T. O. O Poder da Educação, Rio de Janeiro, Zahar, 1972., Brameld66. BRAMELD, T. O. O Poder da Educação, Rio de Janeiro, Zahar, 1972.) e passando por Sócrates, Platão1717. PLATÃO. Diálogos, Fédon, Ed. Abril Cultural, São Paulo , 1972., Aristóteles22. ARISTÓTELES. Ética a Nicômano, Os Pensadores, Ed. Abril Cutural, São Paulo. 1973., Rousseau1919. ROUSSEAU, J. J. Emílio ou da Educação, 3.a ed., Ed. Difel, São Paulo, 1979., Hegel1010. HEGEL. A Fenomenologia do Espírito, Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1974., Kant1616. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Ed. Abril Cultural, São Paulo , 1980., Lotze1212. HESSEN, J. Filosofia dos Valores. Coimbra. Armenio Amado Editor, Portugal, 1980. (considerados nestes interregnos) todos, implícita ou explicitamente, relacionaram o conceito de valor a uma preferência. Divergiram, e muito, quanto à natureza do valor, se têm eles um caráter objetivo (objetivismo axiológico) ou subjetivo (subjetivismo axiológico), mas concordaram que o conceito de valor é ligado à idéia de preferência, à idéia de “significação”.

Os psicólogos, que têm dado grande contribuição para o estudo dos valores, relacionaram os valores a categorias psicológicas, afetivas e cognitivas, tornando o conceito de valor mais abrangente, englobando, além de objetos, também “estados” (Jones e Gerard, 1967). Allport33. ALLPORT, G. W. Desenvolvimento e Personalidade, 3 ed., Ed. Herder, São Paulo, 1973. (1963) centraliza o valor no indivíduo valorante, considerando-o uma crença em que ele se baseia para atuar por preferência. Rockeach1818. ROKEACH, M. e COCHRANE, R. Self Confrontation and Confrontation With Another as Determinantes of Long Term Value Chance, Journal of Applied Social Psychology, 2: 293 - 5, 100, 1972. (1967), enfatiza a crença “duradoura” em um modo específico de conduta ou “estado definitivo de existência”, na mesma linha subjetivista de Allport.

Considera o Autor o valor como a expressão do significado que um objeto ou estado de coisa tem para o sujeito valorante, o que gera a sua preferência ou escolha, em relação a outros objetos ou estados de coisas. Determinando a preferência ou escolha, estão as necessidades, interesses desejos, aspirações, ou propósitos do sujeito valorante.

2 - Natureza do valor: o subjetivismo axiológico sustenta que as coisas não são valiosas em si, e que o valor é conferido às coisas pelo sujeito valorante, reduzindo assim o valor a um estado psíquico subjetivo, a uma vivência pessoal. Nega a participação das propriedades do objeto na elaboração do valor, do processo de valo ração. Em oposição, o objetivismo axiológico sustenta que há objetivos valiosos em si, independentemente do sujeito. Os valores constituem um reino particular, subsistente por si próprio, sendo absolutos, imutáveis e incondicionados, tem a capacidade de se concretizarem em bens (que são objetos valiosos), embora sejam independentes deles; os valores são imutáveis, não mudando com o tempo e de uma sociedade para outra; não têm os valores existência real, sendo objetos ideais, que independem da própria existência humana, bem como dos bens em que se concretizam.

Acredita o Autor que os valores surgem quando da interação do homem com o mundo, pois o homem é um “ser-no-mundo”, é um ser-de-relações, e, ao contactar com o mundo lhe atribui significados, lhe atribui valores, e realiza valorizações. A valoração é uma experiência concreta, vivenciada pelo sujeito valorante, que tem, necessariamente, uma interação com o objeto valorado, sendo ambos, sujeito e objeto, co-participantes do processo. São os valores que conferem sentido e sentidos à vida de cada singular existente, como defende Merleau-Ponty77. DESCAMPS, C. Os Existencialismos, in Chatelet, F. História da Filosofia, O Século XX. 28 ed., Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1982.. Cada existente singular cria e estrutura seu sistema pessoal de valores, hierarquizando-os, orientando sua existência em função de tal sistema, que, inclusive, estrutura e determina o desenvolvimento de sua personalidade. A fonte da maioria dos valores é a cultura em que o homem vive, pois ela condiciona o sujeito cognoscente em função de suas normas, costumes, mitos, linguagem, religião, política, ciência e arte. E exatamente a realização, a concretização dos valores da cultura em que vive, por ele absorvidos, ao lado de valores outros relacionados com sua estrutura genética, quem dá sentido, em cada momento à existência de cada ser humano. O sentido global da existência de cada homem, que é expressão de sua essência, conforme Sartre20, somente pode ser conhecido no seu término.

Quanto à dicotomia universalidade e relativismo dos valores, acredita o Autor que alguns valores são universais, transculturais, enquanto outros são próprios de determinadas culturas. A identificação de uns e outros é tarefa relevante para o processo de planejamento educacional.

3 - Classificação de valores: aqui, nos ateremos a uma classificação que, embora longe de ser abrangente, se nos parece adequada para atingir o objetivo a que nos propomos, que é o de identificar os valores prioritários a serem considerados pela Educação Médica. Tomaremos três grupos de valores: os lógicos-epistemológicos, os éticos e os estéticos.

Nos lógicos-epistemológicos, trataremos dos valores relacionados com a categoria cognitiva no sentido de informações, de conhecimentos ao lado das categorias lógicas.

II - VALORES LÓGICOS-EPISTEMOLÓGICOS

Consideraremos neste grupo a busca da verdade, a busca da sabedoria, a disciplina mental, a capacidade de rever princípios, a disposição de descobrir e respeitar fatos novos e o estímulo à criatividade.

1. Busca da verdade

Analisaremos dois conceitos de verdade, o conceito transcendente e o conceito imanente1111. HESSEN, J. Teoria do Conhecimento, 7 ed., Armenio Amado Editor, Coimbra, Portugal, 1980.. No transcendente, a verdade consiste na concordância entre o conteúdo do pensamento e o objeto - este é um conceito abrangente que engloba todas as situações em que o objeto está fora da consciência cognoscente, que é o caso do paciente considerado como um ser-no-mundo: No conceito imanente, que se restringe a objetivos próprios da consciência, nela contidos, a verdade é a concordância do pensamento consigo mesmo. Refere-se exclusivamente a objetos imanentes à consciência cognoscente, como os lógico matemáticos. Um juízo é verdadeiro quando é formulado de acordo com as leis lógicas, que podem ser reduzidas á dois princípios, o princípio da identidade e o princípio da contradição Pelo Princípio da Contradição, conforme Jolivet1515. JOLIVET, R. Curso de Filosofia, Agir, Rio de Janeiro, 1972., duas proposições que diferem ao mesmo tempo pela quantidade e pela qualidade (contraditórias, portanto), não podem ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo. Se uma é verdadeira, a outra é necessariamente falsa, e se uma é falsa a outra é necessariamente verdadeira.

Aristóteles11. ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 2 ed. Mestre Joe, São Paulo. 1982. formulou assim o Princípio da Contradição: “É necessário que toda asserção seja afirmativa ou negativa”. Kant exprimia-o dizendo: “Aquilo cujo oposto é falso, é verdadeiro” ou “A coisa nenhuma convém um predicado que a contradiga”.

Para a verdade transcendente é válido o critério da evidência, assim entendida a presença ou realidade imediata do objeto. São verdadeiros todos os juízos que assentam numa presença ou realidade imediata do objeto pensado. Eu estou palpando um fígado porque estou tendo, com minhas mãos, a percepção de um órgão que tem as características anatômicas de um fígado: a idéia, a representação mental que eu tenho do conceito “fígado”, corresponde à minha percepção (volume, consistência, forma, localização, etc.), logo, para mim é verdade que o objeto palpado é um fígado.

A busca da verdade deve ser um dos valores prioritários da Educação Médica pois ela é a base do elemento fundamental do atendimento a um paciente - o diagnóstico correto da sua patologia.

Devem ser considerados dois aspectos: um, a coleta adequada dos dados semiológicos, na anamnese e no exame físico, em que deve ser buscada a verdade transcendente. O outro reside na elaboração do raciocínio clínico, estágio referente à lógica formal, durante o qual o pensamento deve obedecer às leis lógicas, com atenção especial para as armadilhas dos sofistas - aqui, trata-se da busca da verdade imanente, com respeito à não contradição.

2. Busca da sabedoria

Aqui usamos o termo no sentido de grande soma de conhecimentos, de conhecer, de ter informações acerca do conteúdo das ciências biomédicas, para utilizá-los adequadamente na presta­ção de serviços ao paciente ou no desenvolvimento da ciência biomédica. A sabedoria implica também no possuir um conjunto de competências que, além de permitir ao médico a prestação de serviços de atenção a saúde, lhe permitirá outrossim a sua educação adicional, numa especialidade médica, numa ciência biomédica ou no aperfeiçoamento profissional. O conceito de competência, conforme Kodgkin13, comporta um duplo significado - capacidades dadas para o uso e também para o desenvolvimento. É usado tanto para poderes ou capacidades herdados, quanto com referência a um sistema flexível aberto ao aprendizado e à adaptação conseqüente. A palavra competência requer uma referência em termos de atividade futura: há uma competência para alguma coisa, e, quando o campo de ação em questão é mais limitado, emprega-se a palavra “habilidade”, referindo-se ela a conhecimentos específicos, o que inclusive facilita a avaliação mais acurada, se o aprendiz adquiriu ou não determinada habilidade.

Como método, em busca da sabedoria, que muitas vezes se confunde com a busca da verdade, deve o aprendiz habituar-se a pensar com clareza, sempre atento às leis lógicas, fugindo dos sofismas. Ao lado disto, deve desenvolver um pensamento crítico como instrumento a ser utilizado, tanto na coleta quanto na utilização de dados para a elaboração do diagnóstico e no processo terapêutico.

3. Disciplina mental

Aqui daremos a palavra a John Dewey88. DEWEY, J. Democracia e Educação, 48 ed., Ed. Nacional, São Paulo, p. 141, 1979:

"No lapso de tempo que medeia entre um determinado estado de coisas incompleto e o desejado estado de coisas completo, é necessário empregar-se esforço, para efetuar-se a transformação; isto exige, também, atenção e paciente perseverança. Esta atitude é o que virtualmente significamos com a expressão “força de vontade”. Seu resultado é disciplina ou o desenvolvimento da capacidade de prestar-se atenção contínua, desdobrar-se no esforço perseverante”.

É fundamental no aprendiz de medicina o desenvolvimento da capacidade de organização de todas suas atividades, de ordenação das mesmas visando obter os objetivos previamente definidos. Não só das esferas cognitiva e psicomotora, mas também da esfera afetiva, buscando uma disciplina emocional, no sentido de controle adequado de seus sentimentos e emoções. Tal controle é altamente desejável, principalmente no atendimento de situações de emergência, dependendo às vezes dele o controle de uma situação delicada.

4. Desenvolver a capacidade de rever princípios

Deve o educando reconhecer que o conhecimento científico não é, pela sua própria natureza, definitivo, sofrendo alterações em função dos progressos científicos, e, por esta razão, deve estar sempre pronto a fazer revisão crítica dos seus princípios. Tal atitude, calcada no ceticismo metódico, deve ser assumida pelo aprendiz, representando inclusive elemento importante para a sua educação continuada, que deve ser fundamentada na lógica crítica.

  1. Disposição no sentido de descobrir novos fatos e de respeitá-los na medida em que sejam merecedores de credibilidade.

O estudante de medicina deve desenvolver uma atividade receptiva em relação à descoberta de novos fatos significantes no domínio da ciência biomédica, resultante das pesquisas contemporâneas Deve ser alertado entretanto para os critérios que definem as pesquisas merecedoras de credibilidade pela comunidade científica, bem como para as limitações impostas pelo Código de Ética Médica às pesquisas realizadas “in anima nobile”.

5. Estímulo à criatividade

Quer o graduado em medicina vá dedicar-se no futuro à atenção à saúde, quer vá dedicar-se ao estudo das ciências biomédicas, em qualquer das duas situações, sempre se deparará com novas situações problemas. Então será crucial o uso de sua criatividade. Sem dúvida, o estímulo à criatividade, necessariamente repousará, em Educação, à utilização de métodos ativos no processo ensino-aprendizagem, em que o aprendiz é o centro do processo, e todos os outros elementos curriculares giram em torno dele.

III - VALORES ÉTICOS

Consideraremos neste grupo a bondade, a justiça, a liberdade, a disciplina, a responsabilidade, o respeito ao paciente, o respeito à vida, a participação e compartilhamento de grupos, a capacidade de tomar decisões, empatia, honestidade, escrúpulo, moderação, serenidade e humildade.

1. Bondade ou beneficência

É uma decorrência do Princípio da Utilidade ou Beneficência: o fim moral a ser buscado em tudo que fazemos é a maior porção possível de bem em relação ao mal, ou a menor porção possível de mal em relação ao bem. O médico, sempre, deve procurar fazer o que seja melhor para seu paciente, procurando sempre levar-lhe todo o bem que for possível, fazendo-lhe o menor mal. As vezes a ação médica, visando o diagnóstico ou o tratamento, pode levar algum sofrimento, impossível de ser afastado, ao paciente.

2. Justiça

Aqui nos referimos à justiça distributiva, ao modo pelo qual se distribui o bem ou o mal que surgiu ou que se espera que surja. Refere-se ao tratamento comparativo dos indivíduos: se há dois indivíduos semelhantes, em condições semelhantes, o tratamento dado a um não deve ser diferente, pior ou melhor do que o tratamento dado a outro. A justiça equivale a tratamentos iguais, dados a iguais e a injustiças a tratamento desigual dado a iguais. Todos os pacientes devem receber o mesmo tratamento, a mesma atenção médica independentemente de qualquer condição. Obviamente os recursos econômico-financeiros do paciente limitarão os recursos subsidiários que o médico disporá para seu acompanhamento, porém isto não deve limitar a qualidade da atenção que lhe deve ser dispensada pelo profissional médico.

3. Liberdade

Liberdade aqui é entendida como “possibilidade” - a possibilidade de agir, de escolher. É uma condição inerente à própria natureza do ser humano, que é um ser-no-mundo. O princípio de não interferir na liberdade alheia pode ser considerado como decorrente do princípio da benevolência. O médico deve dar ao seu paciente a possibilidade de escolher as alternativas passiveis na relação médico-paciente, e para isto deve esclarecê-lo suficientemente sobre a sua situação médica, oferecendo-lhe todos os dados necessários para uma escolha consciente de sua parte. Caso o paciente não seja capaz de judiciação adequada, tal liberdade de decisão deve ser transferida para sua família.

4. Respeito ao paciente

É um caso particular do respeito ao ser humano, decorrente do valor liberdade. A liberdade possibilita ao homem exercer suas ações, mas não de uma forma ilimitada - sua liberdade pára no direito do outro homem ser livre, de exercer, também, suas ações. Aí reside a essência do respeito à dignidade de cada ser humano, do res­ peito à dignidade de cada paciente. O respeito ao paciente consiste em: a) o direito de participar nas decisões que lhe sejam referentes; b) a possibilidade de expor suas dúvidas, seus anseios, suas angústias e seus temores; c) o atendimento de suas necessidades médicas; d) esforçar-se para obter os melhores resultados nos cuidados assistenciais prestados; e) resguardar a privacidade do paciente enquanto tal; f) ser fiel ao compromisso ético imanente a todo ato médico; g) ser atencioso e delicado com o paciente.

5. Disciplina

Aqui entendida no sentido sócio-cultural, e numa visão kantiana, disciplina é o respeito, acatamente e colaboração com as normas sociais. Ao aprendiz de Medicina deve ser incutida a necessidade do respeito, acatamento e colaboração com as normas contidas no Código de Ética Médica.

6. Responsabilidade

O estudante de medicina deve ser conscientizado da necessidade da obrigação de responder pelos seus atos, ou por atos de outros, na medida em que cumpram determinações suas.

7. Respeito à vida

É um valor que deve ser considerado no topo da hierarquia dos valores da educação médica, posto que é um dos maiores valores da própria Medicina. Duas situações particulares merecerem consideração específica: o aborto e a eutanásia, tanto a ativa quanto a passiva. Acredita o Autor que a Educação Médica deve transmitir aquilo que for determinado pelo Código de Ética Médica devendo também ser feita uma análise crítica dos Códigos Internacionais e das “Declarações” resultantes de congressos internacionais da ética médica.

8. Participação e compartilhamento de grupos

Devem ser estimulados o não egoísmo e o companheirismo, face à necessidade de formar-se um profissional que deverá participar de ações de saúde comunitárias, que, necessariamente, têm de ser desenvolvidas através de uma equipe de saúde. No período de formação deve o aprendiz de medicina ser treinado para o trabalho em equipe, cultivando-se a harmonia grupal e o conhecimento dos processos de dinâmica de grupo, indispensáveis para que sejam atingidos os objetivos do grupo em questão. Deve ser ele alertado de que a liderança do grupo, necessariamente não deve ser exercida pelo médico, pois, em certas circunstâncias, outros elementos da equipe terão mais condições de exercê-la, não só por questões relacionadas com formação profissional, mas também com estrutura e dinâmica de personalidade.

9. Capacidade de tomar decisões

Tais decisões podem ser a nível individual ou a nível grupal, podendo depender delas o destino do paciente ou da comunidade em questão. O importante é que tais decisões sejam previamente refletidas, adequadamente judiciadas, e no caso de equipe de saúde, sejam com ela discutidas. É importante que no período de formação sejam atribuídas responsabilidades crescentes ao estudante de medicina, sendo-lhe permitido o tomar decisões, devendo entretanto suas execuções serem precedidas pela análise crítica do seu supervisor, que lhe dará a devida orientação.

10. Empatia

Aqui entendida como a capacidade de penetrar na imaginação e sentimentos do paciente, procurando situar-se na sua posição, como se fosse ele. Tal capacidade dá um profundo sentido de humanização ao ato médico, devendo ser tal atitude estimulada ao longo da formação médica.

11. Outros valores

Aqui incluiremos alguns valores que o Autor acredita devam ser buscados mas que, entretanto, dependem muito do sistema de valores que o estudante de medicina já traga consigo estrutura e hierarquizado. Referimo-nos à honestidade a moderação, à serenidade, à humildade e ao ser escrupuloso, cuidadoso em suas ações.

IV - VALORES ESTÉTICOS

Tais valores, na educação médica, se relacionam com aquelas situações em que deva ser restaurada a anatomia do corpo do paciente ou quando sejam desejadas modificações através da cirurgia plástica. Obviamente, no primeiro caso neve ser respeitada a anatomia do corpo humano, e no segundo, deve ser respeitada a escolha do paciente, que deve ditar a morfologia desejada. Isto na medida em que sejam mantidas em condições adequadas as funções orgânicas.

V - FINALIDADES DA EDUCAÇÃO MÉDICA

Acredita o Autor que devam ser consideradas finalidades culturais, sócio-econômicas, éticas ou políticas.

  1. Finalidades Culturais: referem-se à trans­missão dos conhecimentos necessários à boa formação médica, e à utilização crítica dos mesmos, bem como do desenvolvimento de habilidades psicomotoras especificas, indispensáveis ao exercício da medicina. Tais requisitos devem propiciar a qualificação de um profissional com as competências necessárias ao adequado atendimento do homem, na saúde e na doença, e considerado em sua unidade biopsicossócio-cultural­ axiológico, colaborando outrossim para a melhoria das condições de saúde e bem-estar da comunidade.

  2. Finalidade sócio-econômica: preparação de um profissional qualificado para o trabalho de assistência ao binômio saúde /doença, capaz de integrar-se de um modo eficaz na força de trabalho social, cooperando assim com o desenvolvimento do país.

  3. Finalidade ética: qualificar um profissional capaz de orientar suas ações médicas dentro dos valores éticos adotados pela sociedade, consubstanciados nos códigos ético-deontológicos aprovados por ela, principalmente os expressos nos códigos de ética médica.

  4. Finalidade política: promover e desenvolver o sentimento da unidade de independência nacional, e da democracia como forma legítima de determinação das normas que presidem as relações sociais.

VI - OBJETIVOS EDUCACIONAIS GERAIS DA EDUCAÇAO MÉDICA

Devem estar coerentes com as finalidades consideradas. Podem ser considerados dois objetivos, para a graduação médica:

  1. Qualificar um profissional, em termos de conhecimentos, atitudes e habilidades, capaz dedar atenção médica, na saúde e na doença, ao indivíduo na condição de pessoa humana, assumindo a responsabilidade da promoção, preservação e recuperação de sua saúde.

  2. Qualificar um profissional, em termos de conhecimentos, atitudes e habilidades capaz de promover ações específicas junto à comunidade, visando a promoção e preservação de sua saúde.

Taxionomia de Bloom aplicada à educação médica: é uma contribuição do Autor para a melhor compreensão e operacionalização dos objetivos da educação médica, mediante a concretização dos valores escolhidos.

1 - Domínio cognitivo

Deverá o educando adquirir e utilizar:

  1. Os conhecimentos referentes à organização, funcionamento e desenvolvimento do ser humano sadio. Valores concretizados: busca da verdade e da sabedoria, disciplina mental, capacidade de rever princípios e de descobrir fatos novos, estímulo à criatividade.

  2. Os conhecimentos referentes aos distúrbios mais freqüentes da organização, funcionamento e desenvolvimento do ser humano. Valores concretizados: busca da verdade e da sabedoria, disciplina mental, capacidade de rever princípios e de descobrir fatos novos, estímulo à criatividade.

  3. Os conhecimentos referentes aos tipos de agentes capazes de atuar na organização, desenvolvimento e funcionamento do ser humano, qualquer que seja sua natureza - física, química, biológica, hereditária, psicológica e sócio-cultural. Valores concretizados: busca da verdade e da sabedoria, disciplina mental, capacidade de rever princípios e de descobrir fatos novos, estímulo à criatividade.

  4. Os conhecimentos referentes às técnicas de diagnóstico e terapêutica das patologias prevalentes no eco-sistema cultural em que vive. Os valores concretizados são os referidos no item anterior.

  5. Os conhecimentos referentes às técnicas de prevenção de enfermidades que afetam ao indivíduo ou à comunidade em que atua, bem como os conhecimentos referentes aos recursos profiláticos gerais. Os valores concretizados são os referidos no item “c”.

  6. Os conhecimentos, referentes ao ecossistema sócio-cultural em que exercerá sua atividade profissional médica, de sociologia e de antropologia cultural. Os valores concretizados são os referidos no item “c”.

  7. Os conhecimentos referentes à promoção da saúde do indivíduo a que dá atenção de saúde, bem como da comunidade a que assiste. Os valores concretizados são os referidos no item “c”.

2 - Domínio psicomotor

Para concretizar os valores de busca da verdade e da sabedoria, disciplina mental, capacidade de rever princípios e de descobrir fatos novos, e estímulo à criatividade, deverá o educando:

  1. Realizar a anamnese do paciente esforçando-se para obter a descrição dos sintomas com a maior exatidão possível.

  2. Realizar o exame físico do paciente esforçando-se para identificar os sinais com a maior exatidão possível.

  3. Utilizar de modo eficaz os aparelhos fundamentais e o instrumental cirúrgico necessários para o exame adequado do paciente, bem como da terapêutica aconselhável.

  4. Realizar e interpretar os testes de laboratório fundamentais necessários à elaboração do diagnóstico do paciente.

3 - Domínio afetivo

Deverá o educando, no período de formação médica, desenvolver atitudes, sentimentos e valores, que resultem nos seguintes comportamentos:

  1. Fazer diagnóstico e trata mento definitivos somente após o estudo adequado do paciente, mediante a utilização do método científico, e, sempre, com o espírito crítico. Valores concretizados: honestidade e responsabilidade.

  2. Consultar os especialistas competentes, na medida em que perceba ser necessário complementar seu julgamento. Valores concretizados: honestidade, responsabilidade, humildade, escrúpulo, capacidade para tomar decisões.

  3. Respeitar os direitos e a dignidade do paciente, tratando-o como pessoa humana. Valores concretizados: respeito ao paciente, beneficência e justiça.

  4. Respeitar os colegas, principalmente em relação às suas reputações, na forma prescrita pelo código de ética médica. Valores concretizados: moderação, disciplina, respeito humano.

  5. Demonstrar consciência de suas obrigações para com a comunidade, em relação a seus problemas de saúde. Valores concretizados: capacidade de tomar decisões, beneficência, justiça, responsabilidade.

  6. Demonstrar o sentimento de respeito à vida, agindo, de referência ao aborto e à eutanásia, de acordo com o estabelecido no código de ética médica. Valores concretizados: beneficência, respeito à vida, disciplina.

  7. Ao assumir a responsabilidade dos problemas de saúde/doença de um paciente, envidar todos os esforços necessários para solucioná-los. Valores concretizados: beneficência, justiça, responsabilidade, respeito ao paciente, empatia.

  8. Dar gratuitamente sua assistência profissional em qualquer emergência que for solicitado. Valores concretizados: beneficência, respeito à vida.

  9. Dar prioridade à promoção e manutenção da saúde dos pacientes, em relação à medicina curativa. Valor concretizado: respeito ao paciente.

  10. Aceitar as limitações do conhecimento médico, como parte da limitação do conhecimento humano, e a obrigação de que, quando não puder curar ou aliviar, deve o médico confortar seu paciente. Valores concretizados: humildade e beneficência.

  11. Identificar o paciente na sua unidade biopsícossócio-cultural-axiológica. Valores concretizados: busca da verdade e da sabedoria, beneficência.

  12. Fazer sua contínua auto-educação médica, desenvolvendo o hábito da leitura crítica de fontes, autorizadas e atualizadas, de informações. Valores concretizados: humildade, busca da verdade e da sabedoria, capacidade de rever princípios e descobrir novos fatos, disciplina mental, escrúpulo, honestidade.

  13. Demonstrar a procura da obtenção da confiança do paciente e de sua família, através de seus atos. Valores concretizados: respeito ao paciente e beneficência

  14. Explicar ao paciente e à sua família sua situação médica, de modo a lhe dar esperanças, evitando apreciações pessimistas e apreensão indevidas. Valores concretizados: beneficência, respeito ao paciente e moderação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    Este artigo é um dos capítulos do livro do Autor “EDUCAÇÃO MÉDICA - Filosofia, Antropologia, Axiologia, Planejamento, Ensino” que se encontra no prelo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1987
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