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Percepções do Processo de Diagnóstico por Estudantes de Medicina

Medical Students' Perceptions of the Diagnostic Process

Resumo:

O propósito deste estudo foi analisar o espectro de respostas dos alunos de medicina da Universidade de Brasília ao Inventário de Raciocínio Diagnóstico (IRD). O inventário foi aplicado na fase de iniciação clínica a 677 alunos de ambos os sexos, no decorrer de 11 anos. Foram utilizados procedimentos estatísticos para identificar conjuntos de itens inter-relacionados e grupos com respostas similares, bem como diferenças entre grupos e suas relações com atributos distintos. Os resultados das análises revelaram seis dimensões relevantes do IRD, denominadas: procedimento diligente, apreensão fácil, flexibilidade de concepção, verificação comparativa, abstração de significado e percepção de incerteza. Seis grupos de classificação foram identificados pelo espectro de variação das dimensões. Os valores dos índices do IRD e as respectivas afiliações dos alunos aos grupos se relacionaram com a época de inserção no estudo, o gradiente de rendimento cognitivo na iniciação clínica, o nível de eficácia percebida e a frequência de atividade de monitoria nos dois semestres seguintes à aplicação do IRD. Em conclusão, os estudantes diferem nas percepções, do processo diagnóstico, inclusas no IRD e as percepções configuradas em relações significativas com o progresso e as opções na aprendizagem.

Palavras-chave:
Diagnóstico; Estudantes de Medicina; Educação Médica; Avaliação

Abstract:

The purpose of this study was to asses the patterns of medical students’ responses to the Diagnostic Thinking Inventory (DTI) at the University of Brasília. The inventory was administred within an 11 year timeframe to 677 students of both sexes early in their clinical experience. Statical procedures were used to identify interrlated item sets and groups with similar response patterns, as well as diferences between groups and their relationships with distinctive features. Results of the analyses revealed six salent DTI dimensions designeted as follows: diligente procedure, easy grasp, flexibility of conception, comparative appraisal, abstraction of meaning, and perception of uncertainty. Six studentclassification groups were identified based on clustering of the dimensions índices. Studens’ DTI índices and respective group affiliation were related to theis inclusion period in the study timeframe, early clinical achievement-gradient, sel-efficacy level, and two-semester frequency of peer tutoring after the DTI appraisal. In conclusion, medical students differ in their perceptions of the diagnostic process as entalled by the DTI, and the patterns of perceptions have meaningful relationships with theur learning progress and options.

Key-words:
Diagnosis; Students, Medical; Education, Medical; Evaluation

INTRODUÇÃO

O diagnóstico clínico é um elemento distintivo da expertise em diferentes campos da prática médica e seu processo de diferenciação tem importância para o estudo da formação profissional. Evidências de pesquisa indicaram que aprendizes e profissionais utilizam similarmente vários elementos do processo diagnóstico, mas com conteúdo qualitativamente distinto e frequência variável11. Grant J, Marsden P. The sbucture of memorised knowledge in students and clinicians: an explanation for diagnostic expertise. Med Educ 1987; 21: 92-98.. A caracterização e a medida desses elementos do processo diagnóstico tem gerado interesse, considerando a pertinência para intervenções educativas em diferentes opções de delineamento curricular.

Bordage, Grant e Marsden construíram o Inventário de Raciocínio Diagnóstico (IRD) visando à avaliação e ao aprimoramento potencial do raciocínio diagnóstico22. Bordage G, Grant J, Marsden P. Quantitative assessment of diagnostic ability. Med Educ 1990; 24: 413-425.. O instrumento está fundamentado nas pesquisas conduzidas por Bordage33. Bordage G, Zacks R. The structure of medical knowledge in the memory of medical students and general practitioners: categories and prototypes. Med Educ 1984; 18: 406-411.), (44. Bordage G, Lemieux M. Semantic structures and diagnostic thinking of experts ad novices. Acad Med 1991; 66: S70- S72., Gale e Marsden55. Gale J, Marsden P. Medical diagnosis: from student to clinician. Oxford: Oxford University Press, 1983. e Grant e Marsden11. Grant J, Marsden P. The sbucture of memorised knowledge in students and clinicians: an explanation for diagnostic expertise. Med Educ 1987; 21: 92-98.), (66. Grant J, Marsden P. Primary knowledge, medical education and consultant expertise. Med Educ 1988; 22: 173-179., e abrange facetas críticas do processo diagnóstico, entre as quais: aspectos salientes, reinterpretação de achados, modo de inquirir, mudança de percepção, julgamento reversível, relações abstratas e acesso à estrutura do conhecimento na memória. Seus proponentes postularam que o IRD media duas categorias de processo: grau de flexibilidade no raciocínio e grau de estrutura do conhecimento na memória. O estudo original revelou a consistência interna do instrumento e os aspectos de sua sensibilidade discriminante; observaram-se, em particular, diferenças expressivas nos valores do IRD entre grupos representativos de etapas progressivas da formação médica. Trabalhos oriundos de contextos institucionais diversos confirmaram a validade de conteúdo, mostraram a estabilidade temporal e indicaram a utilidade potencial do instrumento no exame do processo diagnóstico em diferentes circunstâncias77. Sobral DT. Diagnostic ability of medical students in relation to their characteristics and preclinical background . Med Educ 1995; 29: 278-282.)-(1010. Round AP. Teaching clinical reasoning - a preliminary controlled study. Med Educ 1999; 33: 480-483..

Estudos realizados com estudantes de medicina apontaram correlações positivas entre os escores do IRD e medidas objetivas de rendimento cognitivo, bem como entre tais escores e indicadores subjetivos de construção/processamento da aprendizagem. Em particular, foram observadas associações relevantes entre os escores do IRD e o grau de autoconfiança como aprendiz, a extensão de valorização do aprendizado e o nível de autodeterminação percebida na aprendizagem.1111. Sobral DT. Características do Inventário de Raciocínio Diagnóstico de Bordage, Grant e Marsden. Psicol Teoria Pesq 2001; 17: 79-85.

Outros resultados de interesse revelaram que o incrementa dos escores do IRD, observado no progresso da iniciação clínica, relacionava-se diretamente no nível de autodeterminação percebida por aprendizes no raciocínio diagnóstico. Esses e outros achados indicam que o IRD reflete a noção pessoal de capacidade no processo diagnóstico, que envolve conhecimento e habilidades específicas, mas depende de diferentes fatores no contexto do aprendizado e de atitudes do aprendiz1212. Sobral DT. Avaliação da maturação do processo de racio­ cínio diagnóstico de estudantes de medicina. Medicina, Ribeirão Preto 2001; 34: 89-99.. Essa relação foi interpretada em termos do princípio da auto eficácia. Segundo Bandura, a percepção da auto eficácia refere-se às crenças pessoais na capacidade de organizar e efetuar os atos requeridos para conseguir uma realização e tem caráter preditivo em relação ao funcionamento psicossocial do indivíduo1313. Bandura A The nature and structure of self-efficacy. ln : Bandura A. Self-efficacy. The exercise of control. New York: WH Freeman, 1997, p. 36-78.. No processo diagnóstico, a expectativa de auto eficácia deriva das convicções pessoais do aprendiz quanto a sua competência em organizar e efetuar as condutas requeridas para a consecução do diagnóstico clínico. São fontes de informação para a percepção da auto eficácia as experiências diretas ou vicariantes, a persuasão verbal e os estados afetivo e fisiológico do aprendiz. Esses elementos são inerentes ao contexto de uso do processo diagnóstico nas condições de aprendizagem durante a iniciação clinica da formação médica.

Os achados de diversos estudos anteriores sugerem a possibilidade de que os aprendizes difiram tanto na intensidade de expressão quanto na configuração dos elementos do processo de diagnóstico clínico embutidos no IRD. Como se caracteriza e em que importa esse espectro de configurações? Esta questão foi examinada no presente estudo, que faz parte de linha de investigação sobre o desenvolvimento do processo diagnóstico, realizado na situação real da aprendizagem clínica. Partiu-se da hipótese de que fatores relacionados às circunstâncias do aprendizado na fase de iniciação clínica influenciam o espectro de respostas ao IRD e suas relações com desfechos acadêmicos. Nessa perspectiva de análise, aproveitou-se a base de dados da experiência de aplicação do instrumento de Bordage e colaboradores em turmas consecutivas de estudantes de medicina na Universidade de Brasília. Três objetivos dessa análise são realçados no relato.

  1. 1) Identificar as dimensões do processo diagnóstico que estão implícitas nas respostas do conjunto dos estu­dantes ao Inventário de Raciocínio Diagnóstico (IRD).

  2. 2) Averiguar as diferenças nas dimensões do processo entre grupos de estudantes classificados pelo espectro de respostas ao IRD.

  3. 3) Examinar as relações entre os grupos de classificação do IRD e quatro indicadores e atributos pertinentes aos estudantes: a época de inserção no estudo, o nível de eficácia pessoal no processo, o gradiente de rendimen­to cognitivo na iniciação clínica e a realização subsequente de atividade de monitoria em disciplina.

METODOLOGIA

Delineamento

Trata-se do estudo retrospectivo, constituído de dados de coortes consecutivas, com elementos de acompanhamento no período de um ano.

Sujeitos

A população-alvo do estudo compreendeu estudantes do curso de medicina da Universidade de Brasília, no período de 1/92 a 2/02. O critério de inclusão foi o registro dos estudantes no sexto semestre do curso, por amostragem consecutiva de 22 turmas de ingresso semestral1414. Hulley SB, Cummings SR. Designing clinicai research. Baltimore: Williams and Wilkins, 1988.. Do total de 691 alunos (56,7% masculinos) incluídos pelo critério, 14 (52,3% masculinos) não completaram o inventário e foram excluídos das análises. No ano de acesso ao sexto semestre, a média da idade dos 677 alunos credenciados foi 22,09.

Contexto

A iniciação clínica formal no curso de medicina da Universidade de Brasília começa no quinto semestre, quando os estudantes cursam a disciplina de semiologia e desenvolvem o aprendizado da entrevista e do exame físico lidando diretamente com pacientes. No sexto semestre, os estudantes realizam exames clínicos completos e são orientados a usar e desenvolver o raciocínio clínico nas enfermarias de clínica médica e clínica cirúrgica do Hospital Universitário de Brasília. O conteúdo da experiência clínica dos estudantes se refere, portanto, a uma multiplicidade de problemas clínicos de variável complexidade, em adultos.

Medidas e Procedimentos

A versão em Português do Inventário de Raciocínio Diagnóstico (IRD), utilizada neste estudo, consta de anexo do trabalho de Sobral1212. Sobral DT. Avaliação da maturação do processo de racio­ cínio diagnóstico de estudantes de medicina. Medicina, Ribeirão Preto 2001; 34: 89-99.. O IRD tem 41 itens. Cada item do inven­tário consiste em um enunciado seguido por duas afirmações opostas separadas por uma escala de seis pontos do tipo dife­rencial semântica, conforme o exemplo a seguir.

(Item 33) Quando me vem uma idéia geral sobre o problema do paciente:

Posso usualmente passar para um diagnóstico específico Acho difícil colocá-la em termos específicos

O respondente deve assinalar o ponto na escala que melhor expressa sua posição entre as afirmações opostas. Cada item tem uma pontuação máxima de 6, na dependência da proximidade do ponto com a afirmação mais claramente associada ao padrão definido por peritos22. Bordage G, Grant J, Marsden P. Quantitative assessment of diagnostic ability. Med Educ 1990; 24: 413-425.. O coeficiente de consistência interna do IRD (alfa de Cronbach) foi 0,83. No presente estudo, os escores do inventário foram expressos na forma de índices médios (quociente da soma da pontuação dos itens, na escala de 1 a 6, dividida pelo número de itens), Assim, o índice médio global corresponde à soma das pontuações dos 41 itens, dividida por 41 e tem limites mínimo e máximo, portanto, na faixa de 1,0 a 6,0. Na aplicação do inventário adicionou-se uma questão expressa em escala global de quatro pontos para aferir a percepção de autodeterminação no raciocínio diagnóstico. A extensão de autodeterminação, nessa escala, se estendia de restrita (necessitando amadurecimento, incentivo, treinamento e feedback para desenvolvimento de raciocínio clínico eficaz), até máxima (capaz de raciocínio clínico eficaz mesmo em condições adversas de tempo e contexto de desempenho).

O IRD foi aplicado entre as 10; e 121 semanas do período letivo, com referência ao modo geral de raciocínio diagnóstico, levando em conta a natureza da experiência clínica dos aprendizes. Sua aplicação, no seguimento de várias discussões de casos clínicos, serviu como exercício educativo e cada aprendiz teve acesso a um retomo comentado de suas respostas, realçando os indicadores de flexibilidade de raciocínio e estrutura do conhecimento na memória.

O índice de rendimento acadêmico dos estudantes foi calculado para o quinto e sexto períodos do curso, com base nas menções e no número de créditos das respectivas disciplinas obrigatórias. O gradiente de rendimento cognitivo foi obtido pela comparação emparelhada desses índices consecutivos.

Apurou-se, em acréscimo, o registro de atividade de monitoria no ano seguinte ao exercício do IRD (sétimo e oitavo períodos do curso). Para a grande maioria dos estudantes, a realização de monitoria, nessa fase do curso, tem por objeto disciplinas cursadas no ano anterior -entre as quais semiologia, clínica médica e clinica cirúrgica.

Dados do questionário de orientação (incluindo estilo de aprendizagem e grau de autoconfiança como aprendiz), completado ao término do primeiro ano do curso, estavam disponíveis para 667 alunos1111. Sobral DT. Características do Inventário de Raciocínio Diagnóstico de Bordage, Grant e Marsden. Psicol Teoria Pesq 2001; 17: 79-85.. Essas informações não foram obtidas no caso de outros 10 alunos transferidos de outras insti­tuições ao término da fase pré-clínica do curso.

Análise

Quatro procedimentos estatísticos principais foram utilizados; (a) análise fatorial para identificar variáveis subjacentes (fatores) que explicam as correlações entre os itens do IRD; (b) análise de agregação hierárquica (hierarchical cluster analysis), para obter uma classificação de casos similares, segundo as variáveis identificadas; (e) testes t, ou análises de variância, para aferir diferenças entre médias de grupos; (d) análise de regressão logística para verificar a associação entre um fator explanatório e a variável binária de desfecho, quando outros fatores são controlados. Os textos de Norman e Streiner1515. Norman GR, Streiner DI. Biostatistics: the bare essentials . St. Louis: Mosby, 1994. e de Glantz e Slinker1616. Glantz AS, Slinker BK. Primer of applied regression analysis and variance. New York: McGraw-Hill, 1990. orientaram os planos e procedimentos de análise. A análise foi realizada no programa SPSS 10.0.

RESULTADOS

A análise fatorial (método de componentes principais, com rotação equamax) das respostas aos 41 itens do IRD, no conjunto total de 677 estudantes, identificou seis fares principais pelo scree test1515. Norman GR, Streiner DI. Biostatistics: the bare essentials . St. Louis: Mosby, 1994.. Os fatores identificados explicam cerca de 36% da variância total das respostas aos itens do IRD e correspondem às dimensões implícitas das percepções do processo diagnóstico que estão embutidas nas respostas ao inventário.

As seis dimensões fatoriais foram assim denominadas (na ordem decrescente de variância explicada):

  1. (1) Procedimento diligente, 10 itens; índice médio: 3,90;

  2. (2) Apreensão fácil, 9itens; índice médio: 4,27;

  3. (3) Flexibilidade de concepção, 9 itens; índice médio: 4,27;

  4. (4) Verificação comparativa, 4itens; índice médio: 4,63;

  5. (5) Abstração de significado, 4 itens; índice médio: 4,06;

  6. (6) Percepção de incerteza. 5 itens; índice médio: 4,31.

Os índices médios diferem significativamente entre si, exceto na comparação entre a terceira e sexta dimensões. Apenas na dimensão de avaliação comparativa houve diferença significante entre os sexos, sendo o índice maior para o feminino (t= 2,3; df= 675; p= 0,024). Todas as dimensões, exceto a sexta, mostraram correlações significantes com o grau de autoconfiança como aprendiz; a dimensão de procedimento diligente mostrou a correlação mais forte (r= 0,31 p< 0,000). A Tabela 1 apresenta itens representativos de cada dimensão fatorial.

Foram observadas diferenças significativas entre os índices médios das dimensões do IRD para os estudantes agrupados segundo duas épocas históricas de inserção no sexto período do curso: semestre 1/92 a 1/97 (n= 292/54,6% masculinos), ou semestre 2/97 a 2/02 (n= 385/57,4% masculinos). Estudantes inseridos na época mais recente apresentaram valores significativamente maiores do índice médio global e dos índices médios dos conjuntos de itens correspondentes às dimensões de procedimento diligente, abstração de significado, apreensão fácil e verificação comparativa, mas não de flexibilidade de concepção ou percepção de incerteza. O tamanho do efeito da época histórica foi pequeno (effect size= 0,40) para índice médio global.

Tabela 1
Dimensões das Respostas de Estudantes de Medicina ao Inventário de Raciocínio Diagnóstico (IRD), Obtidas por Análise Fatorial (N= 677)*

Tabela 2
Testes de Diferenças entre Índices Médios das Dimensões do Inventário de Raciocínio Diagnóstico (IRD) em Estudantes de Medicina Agrupados Segundo Duas Épocas a Inserção no Sexto Semestre do Curso.

As variáveis das dimensões fatoriais foram utilizadas para uma classificação dos estudantes em grupos relativamente homogêneos, mediante análise de agregação hierárquica (hierarchical cluster analysis). Obteve-se uma solução estável de seis grupos com distribuição sexual equivalente e tamanho desigual: A (96), B (271), C (62), D (77), E (109) e F (61). A Tabela 3 identifica tais grupos, que diferem significativamente entre si pelo valor decrescente (na ordem alfabética) do índice médio global e, também, pelos valores relativos dos índices médios das dimensões do IRD. Os grupos A e C têm índices médios mais elevados que os demais grupos nas dimensões de procedimento diligente, apreensão fácil, abstração de significado e percepção de incerteza. Em acréscimo, os graus de autoconfiança como aprendiz dos grupos A, C e B foram significativamente superiores aos graus dos grupos E, F e D.

Tabela 3
Testes de Diferenças entre Índices Médios das Dimensões do IRD em Estudantes de Medicina Agrupados Segundo Classificação por Análise de Agregação Hierárquica

Observou-se uma associação significante entre as propor­ções de estudantes nos grupos de classificação do IRD e a época histórica de inserção no sexto período do curso. Essa relação é atribuível, principalmente, ao aumento das proporções de es­tudantes dos grupos A e C na época mais recente de inserção.

Tabela 4
Distribuição de Estudantes de Medicina por Grupos de Classificação do IRD em Duas Épocas Históricas do Curso.

Verificou-se que os índices globais do IRD eram significativamente distintos entre os estudantes na dependência do nível de autodeterminação (ou eficácia pessoal) percebida no processo de raciocínio diagnóstico. Os seis itens relacionados a seguir foram identificados, em análise de regressão logística, como preditivos significantes da distinção entre o nível limitado (restrito ou parcial), ou nível extenso (amplo ou máximo) de autodeterminação percebida no processo diagnóstico.

(Item 20) Ao considerar os sinais e sintomas do paciente (penso neles em termos de possíveis opostos - e.g., progressivo X. súbito; espástico X flácido; unilateral X. bilateral).

(Item 12) Ao considerar possibilidades de diagnóstico em casos clínicos (habitualmente estou na pista certa).

(Item 18) Quando um possível diagnóstico surge na minha mente durante uma entrevista (usualmente vejo-me antecipando mentalmente possíveis sintomas e sinais que combinam com tal hipótese).

(Item 27) Em relação a um diagnóstico que eu tenha finalmente feito (usualmente eu tenho poucas dúvidas).

(Item 23) Quando estou tirando uma história, acho que (posso obter novas idéias por simples repasse dos dados existentes na minha mente).

(Item 41) Em termos do modo como eu conduzo uma entrevista (usualmente eu rastreio a área que preciso durante a entrevista).

O índice médio de pontuação calculado para os seis itens - denominado doravante eficácia diagnóstica presumida - diferiu significantemente entre os seis grupos de classificação hierárquica do IRD (anova one-way, F= 127,1 p= 0,000). A Tabela 5 mostra os valores desses índices de eficácia presumida para cada grupo e a relação respectiva com a proporção de estudantes referindo nível extenso de autodeterminação no processo diagnóstico. Quatro conjuntos foram diferenciados (A, B+C, D+E, F) por testes de comparação múltipla.

Tabela 5
Diferenças no Índice de Eficácia Diagnóstica Presumida e na Percepção de Autodeterminação no Processo Diagnóstico entre Estudantes de Medicina em Grupos de Classificação do IRD.

Observaram-se, também, diferenças expressivas na comparação emparelhada dos índices de rendimento acadêmico nos quinto e sexto semestres do curso, entre os estudantes agrupados sendo a classificação de agregação hierárquica do IRD. Houve crescimento significante no rendimento médio dos estudantes de quatro dos seis grupos. Os dois grupos sem crescimento significante (E e F) são aqueles que apresentam valores menores tanto no índice global quanto, especialmente, em duas dimensões do IRD: procedimento diligente e apreensão fácil. A Tabela 6 revela os dados de comparação.

Tabela 6
Comparação Emparelhada de Rendimento Acadêmico dos Estudantes de Medicina no Quinto e Sexto Per.lodos do Curso entre Grupos de Classific;ição do IRD.

A Tabela 7 mostra as diferenças nas proporções de estudantes que realizaram atividade de monitoria em disciplinas no sétimo e/ou oitavo semestre do curso. Observou-se uma associação significante entre a categoria de classificação do IRD e a frequência da atividade de monitoria. Quatro grupos

Tabela 7
Distribuição de Atividade de Monitoria Realizada por Estudantes de Medicina no Sétimo e Oitavo Períodos do Curso, Segundo Grupos de Classificação do IRD.

(A-0) mostraram proporções crescentes de casos na faixa de frequência de monitoria de O a 2. Para um grupo (F), as respectivas proporções foram decrescentes: a parcela maior de alunos não realizou atividade de monitoria e a menor parcela realizou duas atividades consecutivas.

DISCUSSÃO

Uma vantagem do uso do IRD nos estudos sobre diagnóstico clínico em aprendizes é a facilidade de aplicação. O instrumento pode ser respondido em 15 a 20 minutos e os estudantes de medicina têm demonstrado continuado interesse no seu teor, conforme revela o elevado índice de resposta (98%) ao longo da duração deste estudo.

Bordage e colaboradores admitiram que o IRD seria útil para identificar potencialidades e limitações dos aprendizes em termos de flexibilidade e estrutura no raciocínio diagnóstico22. Bordage G, Grant J, Marsden P. Quantitative assessment of diagnostic ability. Med Educ 1990; 24: 413-425.. Os resultados da análise fatorial indicam que os dais componentes aventados são insuficientes para explicar a matriz de intercorrelação entre os itens e a variação de respostas ao IRD. A identificação de seis fatores de variação no presente estudo revela distinções mais extensas entre os aprendizes na composição do processo diagnóstico aferido pelo instrumento, além de ser compatível com o modelo de múltiplas facetas do diagnóstico clínico proposto por Meyer e Cleary1717. MeyerJHF, Cleary EG. An exploratory student learning model of clinical diagnosis. Med Educ 1998; 32: 574-581..

As diferenças entre os índices do IRD na comparação entre estudantes de duas épocas distintas do curso provavelmente refletem, em parcela maior, efeitos de aceleração da aprendizagem do diagnóstico clínico no evolver do curso, Mudanças de enfoque educativo -tais como a maior inclusão de discussão de casos clínicos no ensino de várias disciplinas básicas e o revigoramento da aprendizagem prática e baseada em evidências no ensino de semiologia, clínica médica e clinica cirúrgica - ocorreram em anos mais recentes. O tamanho do efeito (effect size = 0,4) da época de inserção no índice médio global do IRD foi equivalente àquele observado na passagem do quinto para o sexto período do curso, conforme dados publicados1212. Sobral DT. Avaliação da maturação do processo de racio­ cínio diagnóstico de estudantes de medicina. Medicina, Ribeirão Preto 2001; 34: 89-99., Outro ponto a favor dessa interpretação deriva do fato de que houve diferenças significantes nas dimensões que implicam orientação específica e experiência clínica (tais como procedimento diligente, apreensão fácil e abstração de significado), mas não naquelas que refletem o perfil psicológico dos estudantes (flexibilidade de concepção e percepção de incerteza). Contudo, efeitos de mudanças na composição do alunado - em termos de grau de autoconfiança, estilo de aprendizagem e distribuição sexual - não podem ser descartados. Os estudantes da época mais recente revelaram maior grau de autoconfiança como aprendiz, associado principalmente à dimensão de procedimento diligente; já no caso da dimensão de avaliação comparativa, a relação mais estreita foi com a diferença na distribuição sexual.

O efeito diferencial da época de formação se expressa nos grupos de classificação. Os dois grupos (A e C), em que houve aumento maior da proporção de estudantes na época mais recente, são aqueles que apresentaram índices mais elevados de procedimento diligente e apreensão fácil, bem como pro­porções mais significativas de nível extenso de autodeterminação percebida no processo diagnóstico. Um estudo anterior mostrou uma associação estreita entre o nível de autodeterminação percebida e o incremento no escore global do IRD do quinto para o sexto semestre1212. Sobral DT. Avaliação da maturação do processo de racio­ cínio diagnóstico de estudantes de medicina. Medicina, Ribeirão Preto 2001; 34: 89-99..

Outro aspecto de interesse é a associação entre os grupos de classificação e o gradiente de crescimento no rendimento cognitivo. Os achados sugerem que alguma restrição na maturação do raciocínio diagnóstico (associada em um nível limitado de eficácia presumida ou de autodeterminação no processo) prevalece entre aprendizes que não evidenciaram ampliação do rendimento cognitivo do quinto para o sexto semestre. Esse fenômeno deriva potencialmente de fatores próprios dos aprendizes (e.g., nível de reflexão na aprendizagem), ou do contexto de aprendizagem (e.g., compatibilidade com expectativas do estudante) 1212. Sobral DT. Avaliação da maturação do processo de racio­ cínio diagnóstico de estudantes de medicina. Medicina, Ribeirão Preto 2001; 34: 89-99.),(1818. Sobral D.T. An appraisal of medical students' reflection in leaming. Med Educ 2000; 34: 182-187..

Em acréscimo ao exposto acima, estudos diversos identi­ficaram uma relação positiva e significante entre os escores do IRD e o nível de experiência clínica22. Bordage G, Grant J, Marsden P. Quantitative assessment of diagnostic ability. Med Educ 1990; 24: 413-425.), (1919. Groves, M, Scott I & Alexander H. Assessing clinicai reasoning: a method to monitor its development in a PBL curriculum. Med Teacher 2002; 24: 507-515.. Um trabalho anterior revelou que o índice global do IRD era um fator preditivo fraco, mas significante e independente (do nível de conhecimento) do escore de estudantes em teste de resolução de problemas clínicos1111. Sobral DT. Características do Inventário de Raciocínio Diagnóstico de Bordage, Grant e Marsden. Psicol Teoria Pesq 2001; 17: 79-85.. Os índices do IRD, embora claramente relacionados ao nível de experiência clínica, não medem diretamente a expertise no diagnóstico clínico, segundo dados publicados recentemente. Esses dados mostraram discrepância entre o índice global do IRD e a expertise no diagnóstico, definida em termos de precisão, eficiência e efetividade2020. Groves M, O'Rourke P, Alexander H. The clinical reasoning characteristics of diagnostic experts. Med Teacher 2003; 25: 308-313.. Os autores desse estudo indicam que o IRD avalia globalmente o estilo e as atitudes relacionadas ao raciocínio clínico e não necessariamente a expertise no diagnóstico. Os achados do presente estudo permitem especular que a inferência de expertise deve se basear em elementos específicos, antes que no índice global do IRD.

Os dados da atividade de monitoria mostraram um espectro de distribuição peculiar que tem mais correspondência com o quadro de gradiente de rendimento acadêmico do que com o perfil de índices do IRD. Como seria de se esperar, a frequência de atividade de monitoria tem relação mais estreita com o nível de rendimento acadêmico, especialmente o do sexto período do curso no qual os estudantes se envolvem em extensos estudos em clínica médica e clínica cirúrgica. Um dos fatores pertinentes às diferenças encontradas talvez seja o nível de motivação para a aprendizagem, relacionado à preferência por carreira. Nessa fase de iniciação clínica, o nível de motivação pode ser mais intenso entre os aprendizes que tenham em mente carreiras nas áreas de cirurgia e clínica médica do que entre aqueles que visam outras áreas da prática profissional.

Que implicações têm os resultados deste estudo para a instrução acerca do processo de diagnóstico clínico? Os índices globais têm sido preferencialmente utilizados no uso educativo do IRD. Observou-se no presente estudo que o rendi­mento cognitivo no sexto semestre mostrou correlações mais fortes com as dimensões de apreensão fácil e abstração de significado (que implicam conhecimento elaborado ou construção de esquemas) do que com a dimensão de procedimento diligente (habitualmente enfatizada na instrução clínica). Esse achado é realçado por evidências acumuladas nos últimos anos que sugerem a predominância variável de três modos de processo cognitivo no diagnóstico clínico: raciocínio hipotético­dedutivo, raciocínio esquema-indutivo e reconhecimento de arquétipos (pattern recognition)2122. Norman GR, Eva KW. Doggíe diagnosis, diagnostic success and diagnostic reasoning strategies; an alternative view. Med Educ 2003; 37: 676-677.. Aprendizes e peritos possivelmente adotam uma combinação variável de modos dependendo do tipo de problema clínico, do nível de conhecimento pertinente ao problema, da etapa na busca de resolução e do contexto de desempenho em que se encontram. Coderre e colaboradores sugeriram recentemente que as estratégias educacionais deveriam favorecer a aprendizagem do modo esquema-indutivo de raciocínio diagnóstico na iniciação clínica2223. Coderre S, Mandin H, Harasym PH, Fick GH. Diagnostic reasoning strategíes and diagnostic success. Med Educ 2003; 37: 695-703..

Os resultados descritos neste trabalho são consistentes com a noção de que a perspectiva do processo diagnóstico, embutida no IRD, envolve distintos elementos e suas medidas refletem, em grau variável, o conhecimento elaborado e a experiência clínica, a percepção da eficácia pessoal e o perfil de conduta individual (em termos de interação interpessoal, motivação e processo decisório) no encontro clinico. Os achados implicam que os estudantes diferem no entendimento e no modo do processo diagnóstico, ainda que demonstrem receptividade à orientação de aprendizagem desse processo.

Em conclusão, este estudo examinou as relações e distribuição dos índices das dimensões do Inventário de Raciocínio Diagnóstico na população-alvo de estudantes de medicina envolvidos na situação real de aprendizagem clínica. Verificou-se que os estudantes diferem nas percepções do processo diagnóstico, inclusas no IRD, e as percepções configuradas têm relações significativas com o progresso na aprendizagem e as opções de aprofundamento e aplicação do aprendizado.

AGRADECIMENTOS

O autor agradece a participação ativa e o interesse real dos aprendizes envolvidos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2004

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2003
  • Aceito
    11 Mar 2004
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