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Música: um estudo físico matemático sobre o som através da série de Fourier e do núcleo de Fejér com o uso de ferramentas espectrais

Music: a mathematical physical study about the sound athwart the Fourier series and the Fejér’s kernel with the use of spectral tools

Resumos

O presente estudo aborda a história do desenvolvimento da teoria musical sob um olhar físico e matemático das propriedades do som por meio do software Spectrum Lab. O programa de análise espectral de livre acesso é uma ferramenta a qual permite a visualização da formação das sequências harmônicas e dos harmônicos que compõem um sinal sonoro. O trabalho propõe o uso dessa ferramenta no ensino de Música e Física para a verificação da formação de séries harmônicas produzidas por cordas vibrantes, partindo da investigação teórica das funções periódicas, da série de Fourier e da formação de harmônicos pelo núcleo de Fejér.

Palavras-chave:
Análise Espectral; Séries Harmônicas; Cordas Vibrantes; Série de Fourier; Núcleo de Fejér; Música; Física


The present study deals with the history of the development of musical theory from a physical and mathmatical perspective of the sound’s properties using the software Spectrum Lab. The free spectral analysis’s software is a tool that allows the view of harmonic sequences and the harmonics that compose a sonorous signal. The study proposes the use of this tool in the Physics and Music teaching to verify the formation of harmonic series produced by vibrating strings, based on the investigation of periodic functions, Fourier’s series and the harmonic formation by Fejér’s kernel.

Keywords:
Espectral Analisys; Harmonic Series; Vibrating Springs; Fourier Series; Fejér’s Kernel; Music; Physics


1. Introdução

A música é sem dúvidas uma das formas mais instigantes do ser humano expressar sua história, seus sentimentos e emoções. Um exemplo disso são os modos gregos, uma formatação na organização dos sons em setes escalas realizada na Grécia Antiga, em que se destacou dois tipos de modos, o chamado Jônio e o Eólio, que atualmente se referem às escalas maiores e menores respectivamente. A diferença entre esses dois modos está na sensação causada ao serem entoados: o Jônio possui uma sonoridade alegre, de mais euforia, enquanto que o Eólio passa uma sensação introspectiva e de tristeza. Como citado por David B. Monro em sua obra The Modes of Ancient Greek Music [1[1] D.B. Monro, The Modes of Ancient Greek Music (Oxford University Press Warehouse, London, 1894).]:

Na Grécia antiga, haviam certos tipos ou formas de música, as quais eram conhecidas por nomes de nações ou tribos (Dóricos, Jônios, Frígios, Lídios etc.), cada uma dessas era acreditada ser capaz não somente de expressar emoções particulares, mas de agirem sobre a sensibilidade de tal maneira a exercer uma influência poderosa e específica na formação do caráter. Consequentemente, a escolha dentre essa variedade de formas musicais daquelas que deveriam ser admitidas na educação do estado era questão da mais séria preocupação. (MONRO, 2012, p. 20).

A Física unida com a teoria musical explica os fenômenos da natureza do som e de como tal é emitido em diferentes instrumentos. A forma com que é escolhida uma escala (ou o modo musical) influencia na construção das séries harmônicas (sequência de frequências composta por uma fundamental e suas múltiplas inteiras) em um instrumento de corda ou de sopro, ou ainda como a superposição de ondas é capaz de transmitir um sentimento por meio da música, o que já era uma preocupação de estudo dos gregos a 500 a.C. De uma forma muito bem definida pelo escritor inglês Aldous Leonard Huxley em sua obra Música na noite & outros ensaios [2[2] A.L. Huxley, Música na noite & outros ensaios (L&PM, Porto Alegre, 2014).]:

Depois do silêncio, aquilo que mais se aproxima de exprimir o inexprimível é a música. E, de modo significativo, o silêncio é parte integral de toda boa música. […] Numa modalidade diferente, em outro plano de existência, a música é o equivalente de algumas das mais significativas e mais inexpressivas experiências do homem. Por uma misteriosa analogia, ela evoca na mente do ouvinte por vezes o fantasma dessas experiências e por vezes até mesmo as próprias experiências em sua plena força vital – é uma questão de intensidade. (HUXLEY, 1975, p. 13).

Um notável estudo das propriedades do som se deu com Pitágoras [3[3] J.F.M. Rocha, Origens e evolução das ideias da física (EDUFBA, Salvador, 2015), 2 ed.] por volta do século VI a.C. O filósofo, por meio de um monocórdio (instrumento de apenas uma corda tensionada sob uma caixa acústica), o fez vibrar em diferentes frações do comprimento da corda. Notou que quando se dividia a corda em duas partes, fazendo vibrar apenas uma, o som produzido era muito parecido com o primeiro só que mais agudo. Foi assim que Pitágoras formulou a lei das cordas vibrantes, também conhecida por Música das Esferas, pois associava a cada órbita planetária um respectivo som, e tal lei baseava-se em escrever as razões entre os comprimentos da corda do monocórdio postos a vibrar.

Tabela 1
Razões das frequências das notas de uma oitava em relação a fundamental Do1 (C1).

Partindo da teoria ondulatória, podemos configurar a seguinte situação: tomando uma corda fixa em suas extremidades e de comprimento L, fazendo-a vibrar de modo a formar um harmônico, seu comprimento L será igual a λ2 e sua frequência fica definida como f1=v2L, em que v é a velocidade de propagação da onda na corda e λ o comprimento de onda, neste caso definido por λ=2L. Tomando agora metade da corda (vibrando no segundo harmônico), ou seja, λ=L, a frequência correspondente será f2=vL. A relação obtida entre a razão das frequências é que f2 = 2f1, ou seja, a razão para o som emitido por metade da corda vibrando em relação a toda a corda vibrando é igual a dois, denominada na música como intervalo de oitava (que contém a fundamental e a respectiva com o dobro de sua frequência).

Pitágoras observou que as razões formadas por números inteiros menores soavam em consonância com a fundamental, e que quanto maior fosse essa razão de números inteiros, menos consonante soava a nota com a fundamental. Na Tabela 1 são apresentadas as razões entre as frequências e temos que quando o Do1 (C1) de frequência f é tocado junto com o Mi1 (E1), ou com o Fá1 (F1), ou com o Sol1 (G1) ou com o Lá1 (A1), um som é formado e é agradável, pois a razão entre suas frequências é “pequena”. Entretanto, caso o Do1 (C1) seja tocado junto com o Ré1 (D1) ou com o Si1 (B1), o som formado será dissonante (não agradável), pois a razão “é grande”.

1.1. Teoria Musical Ocidental: o SistemaTemperado

O número de frequências expressas por uma razão numérica, como abordado na Tabela 1, é vasta e complicada para a construção de instrumentos musicais num mesmo sistema. O que vimos é aplicado para cordas, já para tubos como em flautas, trompetes etc. seria um outro sistema para representar e tabelar as frequências das notas musicais. Houve então uma necessidade e uma curiosidade dos compositores em trabalhar com as notas que não soam em consonância num arranjo melódico. No séc. XVII foi tomado como referência o novo modelo de afinação denominado Sistema Temperado [4[4] O.J. Abdounur, Matemática e música: o pensamento analógico na construção de significados (Escrituras Editora, São Paulo, 2003), 3 ed.]. “Temperado” é uma palavra que vem do latim temperare, que significa mistura correta, regular. Tal sistema reduz a menor distância entre duas notas num intervalo denominado semitom, em que a frequência de uma nota a sua posterior é dada por um múltiplo que se aplica igualmente a todos esses semitons, ou seja, há um regulamento igual em toda a formação das notas e consequentemente das escalas musicais.

Dentro de uma oitava (representação: [1[1] D.B. Monro, The Modes of Ancient Greek Music (Oxford University Press Warehouse, London, 1894)., 2[2] A.L. Huxley, Música na noite & outros ensaios (L&PM, Porto Alegre, 2014).]) há doze notas, logo, doze frequências, doze semitons. Se queremos dar um temperamento igual, podemos imaginar a seguinte distribuição num teclado de um piano: cada tecla comportará um termo φ, que representa a base de uma potência, tal que a frequência de uma nota será dada pelo múltiplo da frequência de sua anterior por esse termo. Suponhamos que a frequência de Do1 (C1) assuma o valor arbitrário de φ0=1, a fim de exemplificarmos a demonstração ilustrada na Figura 1.

Figura 1
Representação da distribuição do termo de potência φ num intervalo de uma oitava em um piano.

Sabemos que a razão da frequência do Do (C) da segunda oitava (fC2) com o Do (C) da primeira (fC1) é igual a dois, ou seja:

(1) f C 2 f C 1 = 2 φ 12 φ 0 = 2 φ 12 = 2 φ = 2 1 12

Sendo assim, determinamos o valor da base de uma potência a qual descreverá a função da frequência do Sistema Temperado. O temperamento proporciona uma distribuição regular que pode ser aplicada a qualquer instrumento musical, desde que se adote o semitom como a menor distância entre duas notas, tal que a razão da frequência de uma nota com a da sua anterior é sempre igual a φ, fato que não ocorre na escala justa (ou também chamada de Escala Pitagórica, advinda da lei das cordas vibrantes). Portanto, a frequência de uma nota qualquer pode ser dada multiplicando a frequência de uma fundamental adotada pelo termo φk, em que k é o número de semitons da fundamental até à nota que buscamos encontrar a frequência (fN), podendo ser negativo, quando a nota está abaixo da fundamental, e positivo, quando a nota está acima da fundamental. No sistema ocidental adota-se a nota Lá4 (A4) de frequência igual 440 Hz como fundamental, logo, podemos formalizar matematicamente uma igualdade para encontrarmos as frequências de qualquer nota como:

(2) f N ( k ) = 440 2 k 12 , k

Ou seja, o sistema do temperamento igual se baseia em uma curva exponencial (equação (2)). Na Figura 2 foi adotado o Lá4 (A4) de 440 Hz como fundamental (φ0) e a frequência para semitons acima e abaixo dela. Por exemplo, a nota Fá5 (F5) dista oito semitons acima do Lá4 (A4), logo sua frequência pode ser encontrada utilizando a equação 2 e adotando k igual a + 8.

Figura 2
Relação entre a frequência de uma nota fN com o nº de semitons k que dista em relação à fundamental Lá4 (A4) de 440 Hz.

1.2. Séries de Fourier

Ao vibrarmos uma corda, por exemplo, criamos um sinal sonoro o qual carrega uma informação sobre as características da frequência entoada pela vibração. Um sinal sonoro não representa apenas a frequência do som que escutamos, mas sim uma série de outras frequências que se formam juntamente com o sinal, denominadas por harmônicos. No entanto, percebemos com maior intensidade a frequência a qual essa corda está tensionada para emitir (o harmônico fundamental), porém a reunião dos demais harmônicos, juntamente com a fundamental é que caracteriza o som emitido e suas propriedades, ou seja, a percepção sonora se dá em conjunto, não é algo único e um exemplo disso é o timbre, uma propriedade do som a qual discutiremos mais a frente. Um sinal sonoro é periódico, ou seja, se repete em intervalos de tempos iguais, e isso se deve à frequência do sinal, que está diretamente relacionada com sua repetição, logo, podemos dizer que o som é uma função periódica [5[5] B. Demidovitch, Problemas e Exercícios de Análise Matemática (MIR, Moscou, 1977), 1 ed.].

Definição 1 (Funções Periódicas). Uma função f(t) é dita ter período T ou ser periódica com período T se, para todo tDf, vale que f(t+T)=f(t), em que T+*.

A função periódica mais simples que existe é

(3) f ( t ) = A sin ( ω t + ϕ )

em que A, ω e ϕ são constantes. Denominamos tal função por harmônico de amplitude |A|, frequência angular ω e fase inicial ϕ, em que o período de cada harmônico é T=2πω. A partir dessa formatação, podemos representar infinitos sinais sonoros, modulando suas amplitudes, frequências e fases. Podemos expandir essa representação utilizando polinômios trigonométricos [6[6] D.J.H. Garling, A course in mathematical analysis (Cambridge University Press, Cambridge, 2013), v. 1.], os quais nos retornaram quais são as funções periódicas relacionadas aos harmônicos envolvidos na formação de um sinal sonoro mais complexo por exemplo.

Definição 2 (Polinômios Trigonométricos Reais). Uma função da forma

(4) p ( t ) = a 0 2 + j = 1 m a j cos ( j t ) + j = 1 n b j sin ( j t ) ,

em que aj, bj, é denominada polinômio trigonométrico real.

Polinômios trigonométricos são periódicos de período T=2π satisfazendo a Definição 1. Isso levou o físico e matemático francês Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768–1830) a questionar: se uma função é dita ser periódica, tal pode ser expressa como um limite de polinômios trigonométricos? Para isso, Fourier [7[7] G.P. Tolstov, Fourier Series (Dover Publications, New York, 1976).] considerou a função f(t) de período 2π a qual tem a seguinte expansão

(5) f ( t ) = a 0 2 + n = 1 [ a n cos ( n t ) + b n sin ( n t ) ] .

Integrando ambos lados da igualdade na equação (5) no intervalo [-π,π], teremos

(6) - π π f ( t ) d t = π a 0 .

Agora, multiplicando ambos lados da equação (5) por cos(nt) e em seguida integrando o resultado no mesmo intervalo, encontraremos que

(7) - π π f ( t ) cos ( n t ) d t = π a n .

Realizando o mesmo procedimento mas agora multiplicando ambos os lados da equação (5) por sin(nt), obteremos

(8) - π π f ( t ) sin ( n t ) d t = π b n .

Finalmente, das equações (6), (7) e (8) temos que

(9) a 0 = 1 π - π π f ( t ) d t a n = 1 π - π π f ( t ) cos ( n t ) d t , n + b n = 1 π - π π f ( t ) sin ( n t ) d t , n .

Portanto, os valores a0, an e bn calculado pelas igualdades em (9) são denominados coeficientes de Fourier. Sendo assim, a série de Fourier de f(t) é dada por

(10) f ( t ) a 0 2 + n = 1 a n cos ( n t ) + n = 1 b n sin ( n t ) .

Podemos reescrever a expressão (10) considerando a fórmula de Euler (eit=cost+isint), logo:

(11) f ( t ) n = - c n e i n t

em que o termo cn é dado por

(12) c n = 1 2 ( a n - i b n )

Dizemos que a quantidade eint da equação (11) são os harmônicos de f(t), enquanto que o termo cn representa a amplitude desses harmônicos. Perceba que até agora definimos a série de Fourier utilizando o símbolo ao invés do de igualdade, e isso se deve ao fato de que mesmo considerando uma função contínua, a soma de sua série pode não convergir.

Se dizemos que um sinal sonoro pode ser descrito por uma f(t) e que tal possui uma determinada frequência, significa que o sinal se repete (é o mesmo) quando esse valor é adicionado a um ponto tDf. Além dessa propriedade de periodicidade das ondas sonoras, tais podem ser analisadas mais a fundo quando expandidas por uma série. Essa percepção é formatada pela série de Fourier, que consiste em encontrar a partir da expansão da função que descreve um sinal sonoro as demais frequências que compõem o sinal, porém com amplitudes menores, e a esse conjunto denominamos por Série Harmônica. Esse método matemático em suma diz que um sinal ondulatório periódico, como é o caso das ondas sonoras, pode ser decomposto em sinais de onda mais simples, com amplitudes bem definidas. Para que uma função possa ser aproximada por uma série de Fourier, ou seja, para que possamos trocar por uma igualdade, precisamos que certas condições existam, e tais são as seguintes denominadas condições deDirichlet [8[8] A.V. Oppenheim, A.S. Willsky e S.H. Nawab, Sinais e Sistemas (Pearson Prentice Hall, São Paulo, 2010), 2 ed.]:

  1. f(t) deve ser absolutamente integrável em T, isso significa que a área entre f e a abscissa é finita, ou seja

    0 T f ( t ) d t = α , α ;

  2. f(t) deve ser de variação finita em T, ou seja, o número de máximos e mínimos locais de f são finitos;

  3. f(t) deve ter um número finito de descontinuidades em qualquer intervalo limitado e as descontinuidades devem ser finitas;

Dadas as condições que tornam uma função válida para ser aproximada por uma série de Fourier, segue o teorema de Dirichlet:

Teorema 1 (Teorema de Dirichlet para séries de Fourier). Seja uma uma função f periódica com período T que satisfaz as condições de Dirichlet, então tDf, temos que a série resultante quando substituímos t na série de Fourier converge para f(t).

(13) n = - + a n i n t = f ( t )

O Teorema 1 nos garante que seja uma função f(t) contínua num intervalo T=[-l,l] de periodicidade, para todos os pontos t de continuidade, tal pode ser desenvolvida por uma série de Fourier, e tal série converge para a própria f(t). Dado uma função que modela um determinado harmônico n de frequência angular ωn=2πfn=πl, a seguinte configuração da equação (14) corresponde à forma trigonométrica da série de Fourier para um sinal sonoro:

(14) F ( t ) = X 0 2 + n = 1 [ X n cos ( n π t l ) + Y n sin ( n π t l ) ]

Essa série irá decompor a curva f(t) incrementando a essa uma parte cossenoide escalonada a ondas senoidais de frequências iguais a múltiplos inteiros de uma fundamental. X0, Xn e Yn, os coeficientes de Fourier, podem ser expressos por:

(15) X 0 = 1 l - l l f ( t ) d t X n = 1 l - l l f ( t ) cos ( n π t l ) d t Y n = 1 l - l l f ( t ) sin ( n π t l ) d t

Novamente, utilizando a fórmula de Euler, podemos reescrever F(t) da equação (14) na forma complexa

(16) F ( t ) = n = - Z n e i n π t l , Z n = X n - i Y n 2 .

Na representação do som usamos tal configuração matemática para descrever os sinais advindos da vibração de instrumentos e objetos em geral. Um pulso sonoro é descrito graficamente por uma função a qual é expandida por uma série de Fourier, haja vista a periodicidade das funções que descrevem as ondas sonoras. Uma corda ao vibrar está emitindo uma frequência fundamental, a qual percebemos com maior intensidade, e uma série de outras frequências, as denominadas frequências harmônicas, com uma intensidade menor. Podemos observar pela Figura 3 um exemplo do emprego da expansão de um pulso sonoro em uma série de Fourier.

Figura 3
Aproximação de um sinal por uma série de Fourier, a qual representa os sinais sonoros (harmônicos a, b e c) que compõem o pulso f(t). Em f=0 temos o plano que representa o sinal sonoro f(t), e em t=0 temos o plano que representa a amplitude de cada harmônico correspondente da série (perceba que quanto maior o harmônico, menor é sua intensidade).

2. O Spectrum Lab

O objetivo deste estudo é elucidar as questões sobre a formação do som dado pela vibração de uma corda através do software Spectrum Lab, um programa de acesso gratuito que nos permite analisar sinais sonoros gravados em formato .wav. Para argumentar a formação das séries harmônicas partimos de uma investigação física matemática sobre o som e da representação das ondas sonoras a fim de formalizar os conceitos para a interpretação dos dados que obteremos com o software. A justifica reside em fornecer uma fundamentação teórica acerca da natureza do som juntamente com a história da música e sua construção no Sistema Temperado, base para a teoria musical em todo o Ocidente.

O estudo da natureza ondulatória do som geralmente se distancia da parte teórica advinda da música e de sua construção, o que acaba desviando o entendimento do por que certas igualdades são satisfeitas como o caso da apresentada na equação (2). O entendimento de que todo o sistema musical ocidental se baseia em uma curva exponencial é de fundamental importância para o entendimento da formação de séries harmônicas em diversos instrumentos musicais, em especial os de cordas. O Spectrum Lab permite a união entre a parte teórica na descrição do som juntamente com a parte prática proveniente da música. O uso desse programa permite esclarecer e visualizar os fenômenos sonoros de forma didática e clara, evidenciando a beleza da interdisciplinaridade entre Física e Música.

Para elucidar as questões apresentadas, utilizando o software, obteremos o espectro das frequências que se formam quando uma corda oscila. Usaremos neste estudo um áudio .wav da nota Do4 (C4) de um piano. Executando o programa seguiremos o seguinte caminho: File Audio File & Stream Analysis Analyse audio file (without DSP). Uma janela se abrirá e selecionaremos o arquivo a ser analisado. O documento será analisado automaticamente, gerando uma informação na janela espectral (janela principal) e após, terminado o processo, seguiremos em: Quick Settings For Musicians Logarithmic display with Musical Note Frequencies e com isso, logo acima do Spectrum Graph aparecerão as notas musicais. Sendo assim fica visível quais frequências compõem o som em análise e suas linhas espectrais (seus harmônicos). A Figura 4 mostra a janela de análise do programa para os dezessete primeiros harmônicos que compõem a série harmônica do Do4 (C4) do áudio que foi utilizado.

Figura 4
Janela de análise do Spectrum Lab a qual mostra a série harmônica do Do4 (C4) de f = 261 Hz para seus primeiros dezessete harmônicos. A janela inferior corresponde ao espectrograma das frequências harmônicas: quanto mais claro as faixas espectrais são, mais intenso é som relacionado a elas. No topo, a variação dos valores de frequência (segundo equação (2)), e na direita, variação na intensidade dos harmônicos (escala em decibéis).
Figura 5
(a) Diagrama de espectro de amplitude (função da equação (22)) para ξ(t) com n=1 e (b) derivada de |Zn|(ω) da curva em (a).

3. Análise das Funções Harmônicas pela Série de Fourier

A partir do espectro que obtivemos pelo software, é possível visualizar que a intensidade dos harmônicos diminui com o aumento da frequência desses, ou seja, suas amplitudes diminuem. Podemos representar o termo Zn da série de Fourier na forma complexa (equação (16)) através de um diagrama de amplitudes, conhecido como Espectro de Amplitudes [9[9] C.M.C. Simas, Consonance in Music and Mathematics: Application to Temperaments and Orchestration . Instituto Superior Técnico, Lisboa, 2014, disponível em: https://fenix.tecnico.ulisboa.pt/downloadFile/1689244997255368/Extended%20Abstract.pdf, acessado em: 6/05/2022.
https://fenix.tecnico.ulisboa.pt/downloa...
], e para isso precisamos extrair o valor absoluto de Zn, ou seja, seu módulo. Tomemos por exemplo que um sinal sonoro de uma nota qualquer pode ser aproximado pela função periódica da equação (3) com fase inicial ϕ=0, amplitude A e frequência angular ω quaisquer:

(17) ξ ( t ) = A sin ( ω t )

Calculando a série de Fourier em sua forma trigonométrica para f(t)=ξ(t) [10[10] H.F. Oslon, Music, Physics and Engineering (Dover Publications, New York, 1967), 2. ed.], obtemos

(18) F ( t ) = 2 A sin ( ω π ) π n = 1 [ ( - 1 ) n n sin ( n t ) ω 2 - n 2 ] .

Reescrevendo a equação (18) na forma exponencial:

(19) F ( t ) = 2 A sin ( ω π ) π n = 1 [ ( - 1 ) n n ω 2 - n 2 ( e n i t - e - n i t 2 i ) ]

e agora tomando somente a parte com termos exponenciais maiores que zero (haja vista que a análise de frequências harmônicas se dá para aquelas que são positivas), obtemos

(20) F + ( t ) = 2 A sin ( ω π ) π n = 1 [ ( - 1 ) n n ω 2 - n 2 ( e n i t 2 i ) ] .

Comparando a equação (20) com equação (16), chegamos a conclusão que o termo Zn desse caso particular vale

(21) Z n = ( - 1 ) n A n sin ( ω π ) i π ( ω 2 - n 2 ) .

Tomando o seu valor absoluto concluímos que |Zn| é uma função de ω (|Zn|=|Zn|(ω)) dada por

(22) | Z n | ( ω ) = A n π | sin ( ω π ) ( ω 2 - n 2 ) | , ω n .

Portanto, o gráfico de |Zn|×ω resultará no diagrama de espectro de amplitude. Isso se deve ao fato de que o termo Zn na equação (16) representa a amplitude como uma função das frequências harmônicas geradas por um sinal sonoro descrito em sua expansão numa série de Fourier. A Figura 5(a) representa um exemplo de diagrama de espectro de amplitude para um sinal do tipo ξ(t) com n=1 e A=10u.a. (unidades de amplitude).

Na Figura 5(b) temos a função derivada da curva descrita no gráfico da Figura 5(a). As frequências da série harmônica correspondem aos pontos de máximo de |Zn|, ou seja, somente quando a derivada da equação (22) é igual a zero e concomitantemente quando a sua segunda derivada é menor do que zero é que teremos um ponto o qual representa a amplitude de um harmônico. Portanto existem duas condições (equações (23) e (24)) que fazem uma frequência pertencer ou não a série harmônica em estudo, tais que quando obtemos o diagrama de espectro de amplitude e tomamos o valor absoluto de Zn em função de ω, para acharmos os pontos representantes das intensidades dos harmônicos, as seguintes relações devem ser satisfeitas:

(23) d | Z n | d ω = 0
(24) d 2 | Z n | d ω 2 < 0

4. Espectro de Amplitudes e os Núcleos de Dirichlet e Fejér

Podemos relacionar o que encontramos no espectro de amplitudes com os núcleos de Dirichlet e Fejér [11[11] A. Zygmund, Trigonometric Series (Cambridge University Press, Cambridge, 2002), 3. ed.]. Tais definições em suma teorizam que a série de Fourier converge para a própria f(t) em estudo devido a distribuição dos harmônicos que compõem a série.

Definição 3 (Núcleo de Dirichlet). Seja f(t) uma função periódica de período T=2l,l e contínua nesse intervalo, definimos o núcleo de Dirichlet de f como o polinômio trigonométrico escrito na forma

(25) 𝔇 n ( t ) = 1 2 l k = - n n e i k π t l .

A convolução de 𝔇 com qualquer função f que satisfaça as condições de Dirichlet implica na aproximação da série de Fourier de f. Como tal série converge para f(t) segundo o teorema de Dirichlet, então tal é dita ser somável em Cesàro [12[12] G.H. Hardy, Divergent Series (Clarendon Press, Oxford, 1949), 1. ed.].

Definição 4 (Soma de Cesàro). Seja an uma sequência e sk a k-ésima soma parcial dessa sequência. Dizemos que an é somável no sentido de Cesàro se o seguinte limite existir e for igual a α.

(26) lim n ( 1 n n = 1 a n ) = α

Sendo assim, podemos fazer um paralelo à série de Fourier, a qual é somável no sentido de Cesàro, pois nesse caso o α da definição é a própria f(t). Vamos agora definir o núcleo de Fejér [13[13] K. Hoffman, Banach Spaces of Analytic Functions (Prentice-Hall, Englewood Cliffs, 1962).], um núcleo composto por uma família de funções periódicas e integráveis utilizado para expressar a consequência da soma de Cesàro na série de Fourier.

Definição 5 (Núcleo de Fejér). Seja f(t) uma função periódica de período T=2l,l que satisfaz as condições de Dirichlet, definimos o núcleo de Fejér por

(27) 𝔉 n ( t ) = 1 2 n l [ k = 0 n - 1 ( k = - n n e i k π t l ) ] ,

em que k=-nneikπtl é o núcleo de Dirichlet (𝔇n(t)). De forma fechada, definimos 𝔉n(t) como

(28) 𝔉 n ( t ) = 1 n [ 1 - cos ( n t ) 1 - cos ( t ) ] .

Teorema 2 (Teorema de Fejér). Seja f: uma função contínua de período T=2l,l, então a sequência σn da soma de Cesàro significa a sequência sn de somas parciais da série de Fourier de f, que converge uniformemente para f em [-l,l]. Temos então

(29) s n ( x ) = 1 2 l k = - n n ( - l l f ( t ) e - i k t d t ) ,
(30) σ n ( x ) = 1 2 l - l l f ( x - t ) 𝔉 n ( t ) d t ,

logo segue que

(31) lim N ( σ n f ) ( t ) = f ( t ) .

Sendo assim, a partir do teorema de Dirichlet (Teorema 1), provamos que a série de Fourier converge para a própria função em análise desde que tal satisfaça as condições de Dirichlet, e isso se deve ao fato de que as somas parciais da série, ou seja, os harmônicos da função, convergem uniformemente para a função devido ao teorema de Fejér. Em resumo, o núcleo de Fejér nos retorna os valores dos harmônicos presentes em uma série de Fourier e suas intensidades, assim como o espectro de amplitudes, porém, nesse momento, estamos generalizando o comportamento dos harmônicos para um conjunto de funções que, primeiramente, satisfazem as condições de Dirichlet, e que modelam um sinal sonoro mais geral. Antes expandíamos uma f(t) numa série de Fourier e extraíamos o módulo do termo referente a amplitude na notação complexa da série (equação (16)) para encontrar os harmônicos presentes no espectro de amplitudes, agora podemos determinar a presença desses harmônicos partindo de uma análise do porque a série de Fourier converge para a própria f(t) no seu intervalo de periodicidade.

Os gráficos da Figura 6 representam os núcleos de Fejér para uma função arbitrária (equação (32)) que modela um sinal sonoro, o qual buscamos encontrar o espectro de amplitudes referentes a intensidade sonora do sinal. Define-se o núcleo de Fejér de tal função como

(32) 𝔉 n ( ω ) = 1 n [ 1 - cos ( n ω ) 1 - cos ( ω ) ] ,

em que ω é a frequência angular do sinal sonoro.

Figura 6
Núcleo de Fejér (𝔉5(ω)) para n=5 (cinco harmônicos) numa escala linear e abaixo o mesmo núcleo porém em decibéis (escala log10).
Figura 7
Janela de análise do Spectrum Lab: no retângulo vermelho temos a série harmônica de Lá4 (A4) numa flauta pã e no retângulo azul a série harmônica da mesma frequência só que num piano. Perceba que na flauta apenas os harmônicos ímpares se formam com maior intensidade, enquanto que no piano todos os harmônicos múltiplos da fundamental se formam.

Portanto, mesmo realizando uma análise mais abrangente do que a de espectro de amplitudes, podemos perceber que um sinal sonoro sempre reduzirá sua amplitude de harmônicos conforme aumenta-se o número desses. Essa é a característica que faz com que tenhamos a percepção de escutar apenas uma única frequência quando tocamos a nota de um piano por exemplo, pois a amplitude da fundamental (nota que foi tocada) será sempre maior (às vezes muito maior) que a amplitude dos harmônicos que a formam. Possivelmente essas amplitudes harmônicas possam estar abaixo do limiar da audição humana, fazendo com que nossos tímpanos não as captem.

Uma outra propriedade sonora que deriva dessa análise é o timbre: característica do som que permite distinguirmos fontes sonoras (instrumentos) as quais estão entoando uma mesma frequência. Ao ouvirmos uma nota x em um piano e em um violino ao mesmo tempo, sabemos sem vê-los que são instrumentos diferentes, e essa percepção se dá pela diferença entre seus timbres. Dependendo da anatomia do instrumento musical, a formação de seus harmônicos difere da de outro instrumento, por exemplo, uma flauta de pã possui uma extremidade aberta e outra fechada, o que propicia a formação de harmônicos ímpares somente, enquanto que num piano, em que a corda é fixa em ambas extremidades, a formação de harmônicos é linear (pares e ímpares). A Figura 7 representa uma comparação entre a série harmônica da nota Lá4 (A4) num piano e numa flauta de pã. Em instrumentos eletrônicos como guitarras e alguns teclados é possível usar a ferramenta denominada distorção, que consistem em amplificar determinados harmônicos (distorcer os sinais sonoros) a fim de mudar o timbre de uma nota, causando um efeito de variação de tom que geram sons mais difusos e não uniformes.

5. Conclusão

A música nem sempre foi fixa como a conhecemos hoje, com uma teoria consolidada. Sua construção passou por mudanças e avanços para a entendermos e descrevermos suas características e propriedades melhor. Em suma é impossível desvincularmos essa história da matemática, pois desde o primeiro estudo formal sobre o som realizado na área feito por Pitágoras, a relação matemática sempre manteve-se muito presente. A ideia de que nas cordas tensionadas existia uma espécie de “sequência”, “padrão”, é que moldou a forma com que o ser humano poderia estabelecer uma regra, uma norma para “medir” as notas (frequências). O norte desse estudo foi guiado com a construção dos instrumentos musicais, os grandes responsáveis pelo salto da afinação justa (ou Pitagórica) para a afinação temperada, a qual englobou uma métrica igual aplicável a maioria dos instrumentos no ocidente.

O interesse no estudo do som sempre se manteve em sequenciar as relações existentes entre as notas. Esse sequenciamento reside simplesmente na formação das frequências sonoras, a série harmônica, que explica a presença de demais frequências dentro da formação do espectro de um sinal sonoro, a relação de amplitude (intensidade) dessas frequências, que vimos matematicamente no espectro de amplitudes e no núcleo de Fejér, sendo esse último relacionado diretamente à sequência da soma dos harmônicos, ou seja, ao próprio sinal sonoro, descrito pela série de Fourier.

Com o uso do Spectrum Lab, evidencia-se que o som tem muitas propriedades características e que sua formação é complexa, não provem de algo único, mas sim de uma formação de várias sequências de vibrações. Conforme aumenta-se o número de harmônicos, diminui-se a amplitude desses, ou seja, suas intensidades, o que explica o por que de não conseguirmos capta-los numa série quando entoamos uma nota num instrumento.

Com o avanço da produção e uso de tecnologias, novos olhares foram dados a todas as áreas do conhecimento, em especial à Física e à Música. O estudo da formação das séries harmônicas as quais são modeladas pela expansão de uma função na série de Fourier é de fundamental importância para compreendermos a natureza do som e suas propriedades ondulatórias no âmbito teórico e de ensino de Física. A ferramenta Spectrum Lab nos mostra esse avanço na tecnologia e no estudo da ondulatória, moldando o aprendizado de uma forma mais visual e dinâmica na análise da formação de sequências harmônicas. O presente estudo é o resultado de uma detalhada investigação do software para a compreensão e elucidação das propriedades sonoras.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2022
  • Revisado
    08 Jul 2022
  • Aceito
    09 Jul 2022
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