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Velocidade instantânea: uma proposta de ensino inspirada em Galileu

Instantaneous speed: a teaching proposal inspired by Galileo

Resumos

Pesquisas em ensino de física indicam que o processo de limite é um obstáculo no entendimento do conceito de velocidade instantânea por estudantes em cursos introdutórios de física. Autores medievais, contudo, conseguiram definir o conceito sem uso aparente do processo de limite. Galileu Galilei explorou as ideias medievais para estabelecer as leis da queda dos corpos. Seus métodos inspiram uma alternativa de ensino do conceito de velocidade instantânea.

Palavras-chave:
Cinemática; velocidade instantânea; regra da dupla distância


Researches in physics education indicate that the limit process is an obstacle in understanding the concept of instantaneous speed by students in introductory courses of physics. Medieval authors, however, defined the concept without apparent use of a process of limit. Galileo Galilei explored the medieval ideas to state laws of motion for falling bodies. His methods inspire an alternative way to teach the concept of instantaneous speed.

Keywords:
Kinematics; instantaneous velocity; double-distance rule


1. Introdução

Em seu Teaching Introductory Physics, A. B. Arons chama atenção para a dificuldade do conceito de velocidade instantânea [1[1] A.B. Arons, Teaching Introductory Physics (Wiley, New York, 1996), 1 ed., p. 30]:

Eu gostaria de conhecer alguma maneira mágica para inculcar o conceito de velocidade instantânea, sem exigir nenhum esforço intelectual de um aluno passivo. Que tal maneira provavelmente não exista é indicado pela longa história da evolução dos conceitos de movimento.

O modelo tradicional de ensino do conceito de velocidade instantânea é baseado na noção de limite; inicialmente, discute-se o conceito de velocidade média e, em seguida a velocidade instantânea é definida como o limite da velocidade média, quando o intervalo de tempo tende a zero. Entretanto, D. E. Trowbridge e L. C. McDermott diagnosticam que [2[2] D.E. Trowbridge e L.C. McDermott, American Journal of Physics 48, 1020 (1980)., p. 1024]:

[Estudantes mostram ter problema] em estender o conceito de velocidade em um intervalo de tempo finito ao caso de um intervalo de tempo infinitesimal. A interpretação da velocidade instantânea como um número referente a um único instante é um verdadeiro obstáculo conceitual para muitos alunos.

e ilustram a dificuldade com o comentário de um aluno:

Objetos não podem realmente ter velocidade por um instante; para que a velocidade seja calculada, deve haver um intervalo de tempo. Em um instante, os objetos não têm velocidade, apenas localização.

Os autores observam que o aluno está “ciente da necessidade de considerar uma distância finita e intervalo de tempo finito para calcular a velocidade de um objeto”. Essa dificuldade também é discutida por I. A. Halloun e D. Hestenes. Eles observam que, para os alunos [3[3] I.A. Halloun e D. Hestenes, American Journal of Physics 53, 1056 (1985)., p. 1063]:

  • Os conceitos de “intervalo de tempo” e “instante de tempo” não são diferenciados. Um “instante” é considerado como um intervalo de tempo muito curto.

  • Velocidade é definida como uma distância dividida pelo tempo. Assim, a velocidade média não se diferencia da velocidade instantânea.

Talvez a história da física possa sugerir uma forma de enfrentar essas dificuldades. Muitos autores já utilizaram a história da ciência no ensino introdutório de física. Na década de 1960, o Harvard Project Physics [4[4] F.J. Rutherford, G. Holton e F.G. Watson, Project Physics (Saunders College Pub., Philadelphia, 1981).] propôs o ensino da física com uma perspectiva histórica; nas palavras de G. Holton, o livro concebia a física “na maneira mais ampla e humanista possível e não apenas nos termos pré-profissionais” [5[5] G. Holton, Physics Education 4, 19 (1969)., p. 20]. Em outra vertente, a história revelou-se um guia útil para a compreensão das noções intuitivas que os estudantes possuem, antes da instrução formal; por exemplo, M. McCloskey reconhece que a teoria dinâmica intuitiva “tem uma semelhança notável com a teoria pré-newtoniana do ímpeto” [6[6] M. McCloskey, Scientific American 248, 122 (1983)., p. 123], indicando um paralelo entre as concepções dos alunos sobre a dinâmica e ideias medievais. Nós reconhecemos, no presente artigo, que, além dessas características, a história tem um papel muito mais estrutural. Ela revela os instrumentos de pensamento utilizados pelos pensadores para superar dificuldades na compreensão de ideias, conceitos, etc. Talvez isso explique por que as noções intuitivas dos estudantes tenham uma similaridade com concepções do passado; afinal, esses pensadores tiveram de criar um novo conhecimento a partir de noções mais imediatas ou primitivas a eles disponíveis, mudando-as e colocando-as em outro contexto, superando dificuldades similares às que nossos estudantes encontram.

No que diz respeito à velocidade instantânea, no século XIV, filósofos no Colégio de Merton, em Oxford, foram capazes de dar ao conceito “uma definição precisa, que foi aplicada a uma análise exata e substancialmente correta do movimento uniformemente acelerado” [7[7] E.A. Moody, The Scientific Monthly 72, 18 (1951)., p. 20]. No entanto, eles não tinham um conceito matemático de limite de infinitésimos; como esses pensadores conseguiram contornar uma dificuldade crucial, seus métodos podem sugerir uma forma alternativa de ensino do conceito de velocidade instantânea. Cerca de duzentos anos depois, Galileu Galilei concretizou a definição mertoniana de velocidade instantânea, o que lhe possibilitou a dedução da equação do movimento uniformemente acelerado.

Essa concretização sugeriu um experimento para introduzir o conceito de velocidade instantânea a alunos do ensino médio, apresentado na referência [8[8] C.E. Aguiar, M.F. Barroso, P.M.C. Dias e M.F.B. Francisquini, Physics Education 57, 055017 (2022).]. No experimento, dados são obtidos analisando vídeos do movimento uniformemente acelerado com um programa de vídeo-análise, o Tracker [9[9] Tracker, Video Analysis and Modeling Tool, https://physlets.org/tracker/, acessado em 06/09/222.
https://physlets.org/tracker/...
]. Contudo, o experimento pode não ser viável em muitas escolas, pois não somente é desejável o uso de um celular com câmera de boa resolução e alta velocidade, mas também é preciso que o estudante se familiarize com algum programa de vídeo-análise. Daí, a necessidade de um outro experimento – simples e rápido – que possa ser feito em sala de aula. Foi, então, elaborado um novo experimento, em que filmagem e vídeo-análise são substituídos por gravação de som e áudio-análise, envolvendo um único programa de fácil manuseio.

Na seção 2 2. O conceito mertoniano de velocidade instantânea Entre 1328 e 1350, os filósofos mertonianos propuseram uma nova maneira de entender o movimento e desenvolveram conceitos cinemáticos [11, p. 199–219; p. 211–212]; essas ideias não foram aplicadas a problemas concretos, mas estavam inseridas em um contexto de conceitualização filosófica do movimento. De acordo com os mertonianos, “[…] a grandeza da velocidade instantânea […] é determinada pelo caminho que seria descrito em um dado período de tempo, se um ponto movesse uniformemente com o grau de velocidade com o qual ele se move no dado instante” [11, p. 210]. Essa definição pode ser visualizada, recorrendo à representação anacrônica na Figura 1. Figura 1: Definição mertoniana da velocidade instantânea. A linha contínua descreve a posição de um corpo em função do tempo, em um movimento não uniforme. A velocidade instantânea no ponto P é a velocidade no movimento uniforme que o corpo seguiria, caso a aceleração fosse “desligada” a partir de P. A posição em função do tempo nesse movimento uniforme fictício é descrita pela linha tracejada. Já foi dito sobre essa definição que ela é [12, p. 56]: […] irremediavelmente circular, pois define “velocidade instantânea” pela velocidade uniforme igual à própria velocidade instantânea que se pretende definir […]. Embora a ambiguidade na definição possa causar desconforto ao leitor moderno, isso não a torna menos correta. A definição medieval de velocidade instantânea foi concretizada por Galileu, como ilustrado pela Figura 2, reproduzida de um de seus fólios. Na figura, o plano horizontal (bec) “desliga” a aceleração do movimento sobre o plano inclinado (ab) e o trecho horizontal é percorrido com uma velocidade uniforme, igual à velocidade – instantânea – no ponto b ao pé do plano. O presente trabalho propõe que esse exemplo pode ser interpretado como uma definição operacional do conceito ilustrado na Figura 1. Figura 2: Concretização galileana do conceito de velocidade instantânea. A velocidade no ponto b no movimento acelerado ao longo do plano inclinado (ab) é a velocidade no movimento uniforme sobre a reta bec. Contudo, o objetivo de Galileu não era concretizar o conceito de velocidade instantânea, mas achar uma relação entre a velocidade e a distância, em um movimento de queda. Na referência [13], é feita uma reconstituição do pensamento de Galileu, a partir de fólios datados do período 1602–1603 a 1609–1610. , a definição mertoniana de velocidade instantânea é discutida, bem como sua concretização por Galileu. Na seção 3 3. Um velocímetro galileano e as leis da queda dos corpos A Figura 2 inspira a construção de um aparato e um experimento para medir a velocidade instantânea. O aparato será chamado “velocímetro galileano”.1 O esquema do “velocímetro” está descrito na Figura 3. Figura 3: Medida de velocidade com o “velocímetro galileano”. A velocidade instantânea no pé do plano inclinado é dada pela velocidade v=D/T na horizontal. Para medir a velocidade instantânea com a qual uma bolinha chega ao pé do plano inclinado, mede-se o tempo T que ela leva para percorrer uma extensão D no plano horizontal. Usando a definição mertoniana, a velocidade instantânea no pé do plano é, então, obtida, dividindo D por T. O valor de D é determinado, marcando-se dois pontos no plano horizontal e medindo a distância entre eles com uma régua. O valor de T é mais difícil de medir, pois a bolinha move-se com uma velocidade relativamente alta no plano horizontal. Neste artigo, é proposto um método para medir o tempo T, utilizando uma gravação de som. Para isso, dois sinos são colocados sobre os pontos no plano horizontal que estão separados pela distância D, de forma que os sinos ressoem, quando a bolinha passar pelos pontos (Figura 4). Os sons dos sinos são captados por dois microfones, um para cada sino, e enviados para um computador, onde são gravados. Figura 4: Montagem do experimento. A foto mostra o velocímetro, os sinos, os microfones que captam os sons dos sinos e o gravador do som. A gravação e análise do som podem ser realizadas com um único programa de áudio-análise, como o Audacity [14]. A Figura 5 mostra um exemplo da forma de onda gravada e analisada pelo programa. Os dois pulsos representam os sons emitidos pelos sinos. O usuário marca com o mouse os dois pontos correspondentes ao início do som de cada sino (“sino 1” e “sino 2”), indicando o intervalo T que deseja medir; o próprio programa fornece o tempo entre esses dois sons, o qual é exibido na parte inferior da janela do aplicativo. Figura 5: Exibição dos dados pelo Audacity. A medida do tempo tem alta precisão, pois gravações de áudio têm resolução melhor que 1 ms. 3.1. A velocidade como função da distância No experimento (Figura 3), D é escolhido e T é medido, colocando um sino no pé do plano e o outro a uma distância D do primeiro. Valores das velocidades no pé do plano são calculados (v=D/T) para diferentes escolhas da distância x percorrida pela bolinha sobre o plano inclinado. Os valores da velocidade no pé do plano e a distância sobre o plano inclinado são colocados em uma tabela (Tabela 1). Como os valores de x são arbitrariamente escolhidos no plano inclinado, os valores das velocidades no pé do plano representam, também, a dependência da velocidade com a distância, no movimento acelerado sobre o plano. Tabela 1: Distância, velocidade e tempo no movimento uniformemente acelerado. Para cada valor de x são calculados três valores de v para três medidas de T; cada linha na coluna v é a média dos três valores. x (m) T (s) v (m/s) escolhido medido para D = 2x calculado 0,5 0,527 1,90 0,4 0,474 1,69 0,3 0,414 1,45 0,2 0,333 1,20 Colocando os valores da Tabela 1 em um gráfico v2 versus x, os pontos estão sobre uma reta que passa pela origem (Figura 6), como é esperado, em um movimento uniformemente acelerado. Figura 6: A lei v2∝x. 3.2. Medida do tempo No ensino médio, o movimento uniformemente variado é mais comumente representado pela proporcionalidade entre velocidade e tempo, v = at. Para verificar esse resultado, é necessário medir o tempo t que a bolinha leva para percorrer a distância x sobre o plano inclinado. Mas não é fácil fazer com que a bolinha produza um ruído no ponto de partida, pois sua velocidade nesse instante é nula e ela não possui energia para fazer um sino soar. Uma opção para contornar essa dificuldade seria soltar a bolinha, no mesmo instante em que um ruído externo, por exemplo, palmas, fosse produzido. Isso obrigaria medir dois tempos, o tempo t para descer o plano inclinado e o tempo T, para percorrer o plano horizontal. A solução do problema é, de novo, inspirada nos métodos de Galileu. Em sua dedução das equações do movimento, ele determinou o tempo t ao longo do plano inclinado, recorrendo à Regra da Dupla Distância (RDD). Não existe uma maneira de explicá-la, que não envolva, de alguma forma, as próprias leis do movimento uniformemente acelerado, as quais se quer obter.2 Para os propósitos deste artigo, portanto, é mais conveniente verificá-la experimentalmente, o que é feito na seção 3.3, e enunciá-la na situação particular do velocímetro galileano. Referindo à Figura 2, a RDD diz que, se a distância D = bc percorrida no movimento uniforme for o dobro da distância x = ab percorrida no movimento uniformemente acelerado sobre o plano inclinado (D = 2x), então os movimentos ab e bc terão a mesma duração (t = T). Figura 7: A lei v∝t. Claramente, a RDD evita o trabalho extra de medir t. É suficiente colocar o segundo sino a uma distância D = 2x do primeiro e somente T precisa ser medido. As medidas na Tabela 1 foram feitas com D = 2x, de modo que t = T. Portanto, a tabela mostra os valores de x, t e v no movimento uniformemente acelerado sobre o plano. Colocando os valores da Tabela 1 em um gráfico v versus t, os pontos estão sobre uma reta que passa pela origem (Figura 7). Colocando os valores da Tabela 1 em um gráfico x versus t, os pontos estão sobre uma linha que representa a parábola x∝t2, ajustada aos pontos medidos (Figura 8); essa parábola é outra representação do movimento uniformemente acelerado, familiar aos estudantes. Figura 8: A lei x∝t2. 3.3. Verificação da RDD A RDD é uma assinatura do movimento uniformemente acelerado, tanto quanto as equações do movimento. Enunciá-la sem conhecer equações do movimento foi um desafio enfrentado pelos mertonianos e por Galileu. Discutir em sala de aula a justificativa teórica da RDD, mesmo usando os argumentos de Galileu, seria longo e desviaria o foco deste artigo, sendo mais eficiente verificá-la experimentalmente. Figura 9: Gravação, no Audacity, dos três sons: batida de palmas, o som do primeiro sino e o som do segundo sino. Os intervalos t e T são muito parecidos. No experimento, o segundo sino é colocado a uma distância 2x do primeiro. A bolinha é solta, no mesmo instante em que um ruído externo é feito. Uma batida de palmas é uma maneira simples de marcar esse início de movimento.3 A gravação com o Audacity mostra, então, três sons: (1) a batida de palmas que deve ser simultânea à soltura da bolinha ou início do movimento, (2) o som do primeiro sino colocado ao pé do plano, a uma distância x do ponto inicial, e (3) o som do segundo sino, colocado a uma distância D = 2x do primeiro. A Figura 9 mostra uma forma de onda gravada com esse procedimento. A Figura 9 foi obtida em uma única tentativa. Um teste mais rigoroso da RDD pode ser realizado, medindo-se t para três distâncias de descida, x=20, 30⁢e⁢40⁢cm e os correspondentes valores de T para as distâncias D = 2x, no plano horizontal. Para cada uma das distâncias x, de descida, foram realizadas diversas medidas de t e T. Os valores médios dessas medidas com os correspondentes erros padrão (desvios padrão da média) estão dados na Tabela 2. Tabela 2: A distância de descida é x, o tempo médio de descida é t e o tempo médio para percorrer a distância 2x na horizontal é T. As incertezas são erros padrão. x (m) t (s) T (s) 0,20 0,340 ± 0,005 0,345 ± 0,002 0,30 0,380 ± 0,010 0,390 ± 0,001 0,40 0,470 ± 0,010 0,468 ± 0,002 A Figura 10 mostra os valores de t e T dados na Tabela 2, com suas respectivas barras de erro. Dentro das limitações do procedimento, os resultados são compatíveis com a previsão da RDD, t = T. Tanto na Tabela 2 quanto na Figura 10, nota-se que os erros experimentais em t são muito maiores que os erros em T, refletindo a dificuldade em sincronizar o ruído das palmas com o lançamento da bolinha. Além de reduzir o número de medidas, o emprego da RDD fornece t com precisão maior que a da medida direta. Figura 10: Gráfico com os valores de t e T na tabela 2. As barras de erro em T não aparecem, por serem menores que os pontos. A linha tracejada corresponde a T=t. , o novo experimento é descrito e discutido. O experimento foi feito e testado em sala de aula, em escolas do ensino médio [10[10] G.V. Silva, Velocidade instantânea: uma proposta de ensino inspirada em Galileu Galilei. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2019).], o que é discutido na seção 4 4. O velocímetro galileano na sala de aula Foi elaborada uma sequência didática em cinco unidades, a qual pode ser acessada em [15]. Unidade 1 O objetivo é fazer uma avaliação diagnóstica do conhecimento dos alunos sobre o conceito de velocidade. Eles respondem a um questionário, em sala de aula, para avaliar o significado que atribuem a expressões tais como “A é mais rápido que B”, em termos de espaço percorrido e tempo transcorrido. Unidade 2 O objetivo é formalizar o conceito de velocidade, sem caracterizá-la como velocidade média, introduzindo a definição: (1) velocidade = distância percorrida tempo para percorrê-la . Os estudantes aplicam a definição às situações apresentadas na unidade 1 e comparam seus resultados com as respostas anteriormente dadas. Finalmente, é introduzido um movimento linear, no qual a velocidade não é uniforme sobre todo o percurso; os estudante são conduzidos a perceber que velocidades podem depender do trecho considerado, o que leva a rever a definição acima. Unidade 3 O conceito de velocidade média é introduzido. A definição dada na unidade 2 recebe um significado mais preciso: (2) velocidade média = distância percorrida tempo para percorrê-la . Na sequência, o movimento uniforme é definido como aquele em que a velocidade média é a mesma em qualquer parte do percurso total. Por isso, o trecho específico do percurso não precisa ser especificado, ou seja, o movimento uniforme é caracterizado por uma única velocidade. São apresentadas várias questões, em que o aluno deve diferenciar um movimento uniforme de um não uniforme, de acordo com a definição acima e sua representação gráfica. Por último, um questão chave é colocada, ao confrontar o aluno com a foto estroboscópica de um movimento de queda de uma bolinha (Figura 11); a seta indica a posição da bolinha em um instante arbitrário de seu movimento e é perguntado ao aluno: Faz sentido falar de velocidade em um único instante, por exemplo, no instante marcado na figura? Figura 11: Movimento de queda. A foto mostra as posições de uma bolinha durante sua queda, a iguais intervalos de tempo [16]. Unidade 4 Nesta unidade, é introduzido o conceito de velocidade instantânea. Na primeira parte, a definição medieval de velocidade instantânea é apresentada aos alunos, assim como sua concretização pelo plano inclinado de Galileu (Figura 2 na seção 2). Na segunda parte, os estudantes são apresentados ao “velocímetro galileano”. O método de medida do tempo por gravações de som é explicado e, após os experimentos, eles preenchem uma tabela com os valores de x, D, T e v. Os dados da tabela são colocados em uma planilha e são construídos os gráficos velocidade versus distância e quadrado da velocidade versus distância. A unidade termina, generalizando a pergunta que finaliza a unidade anterior: Faz sentido falar de velocidade em um único instante? Unidade 5 O objetivo é analisar como a velocidade instantânea e a distância percorrida dependem do tempo de descida do plano inclinado. As dificuldades para medir o tempo de descida são explicadas e a RDD é apresentada como uma forma de contorná-las. Com o auxílio da RDD, o experimento da medida de tempo torna-se tão simples quanto o anterior. Havendo tempo disponível, a verificação da RDD pode ser uma etapa inicial da atividade; caso contrário, a RDD é apenas enunciada. Os alunos medem o tempo e preenchem uma tabela com os valores de x, t e v, análoga à Tabela 1, na seção 3.1. Finalmente, os alunos constroem, em um papel milimetrado, os gráficos velocidade versus tempo e posição versus tempo. 4.1. Alguns resultados As respostas às questões na unidade 1 mostram que os alunos conseguem identificar o mais rápido de dois corpos em termos de maior distância ou menor tempo. Porém não entendem completamente que o conhecimento das duas variáveis, distância e tempo, é necessário para comparar velocidades. Quando introduzidos à definição de velocidade, na unidade 2, todos acertaram as questões da unidade 1 – isso é macumba, disse uma aluna. Quando confrontados, ainda na unidade 2, com um movimento não uniforme, os problemas foram maiores, indicando a existência de dificuldades em entender que distintos trechos de um dado percurso podem ter velocidades que diferem entre si e da velocidade no percurso completo. Quando confrontados com a pergunta que finaliza a unidade 3, as seguintes respostas apareceram: Acredito que não pois a velocidade requer 2 fatores o tempo e a distância que ele percorre, em um ponto específico não tem como. Não, pois não seria a velocidade de um percurso e a velocidade depende de um percurso para existir A ideia de que velocidade só pode ser definida para uma distância finita em um tempo finito parece remeter à definição aristotélica de “mais rápido”. Para Aristóteles, um corpo é mais rápido do que outro, se percorre uma distância maior em igual tempo ou, equivalentemente, se percorre igual distância em menor tempo. Na unidade 4, durante a apresentação, no decorrer da definição mertoniana, algumas observações interessantes foram feitas, mostrando que o conceito foi entendido, pelo menos por alguns estudantes: Ahhhh! Então a gente pode calcular a velocidade de um instante usando o que a gente tava estudando nas outras aulas? Professora, então a velocidade vai ser igual depois do ponto P? Após os experimentos e confrontados, novamente, com a pergunta se existe velocidade instantânea, um aluno assim se expressou: Sim, porque o velocímetro galileano comprova que é possível. Ao final das atividades, alguns comentários curiosos foram feitos, indicando surpresa com alguns resultados e interesse pelo assunto: Genial o que eles fizeram, né? Tipo o Galileu com os planos. O movimento uniforme tem a mesma velocidade em qualquer trecho do plano que tá reto. Eu ainda tô abismada que o tempo para percorrer 50 cm aqui é o mesmo tempo pra bolinha percorrer 100 cm ali. .

2. O conceito mertoniano de velocidade instantânea

Entre 1328 e 1350, os filósofos mertonianos propuseram uma nova maneira de entender o movimento e desenvolveram conceitos cinemáticos [11[11] M. Clagett,The Science of Mechanics in the Middle Ages (The University of Wisconsin Press, Madison, 1959)., p. 199–219; p. 211–212]; essas ideias não foram aplicadas a problemas concretos, mas estavam inseridas em um contexto de conceitualização filosófica do movimento.

De acordo com os mertonianos, “[…] a grandeza da velocidade instantânea […] é determinada pelo caminho que seria descrito em um dado período de tempo, se um ponto movesse uniformemente com o grau de velocidade com o qual ele se move no dado instante” [11[11] M. Clagett,The Science of Mechanics in the Middle Ages (The University of Wisconsin Press, Madison, 1959)., p. 210]. Essa definição pode ser visualizada, recorrendo à representação anacrônica na Figura 1.

Figura 1:
Definição mertoniana da velocidade instantânea. A linha contínua descreve a posição de um corpo em função do tempo, em um movimento não uniforme. A velocidade instantânea no ponto P é a velocidade no movimento uniforme que o corpo seguiria, caso a aceleração fosse “desligada” a partir de P. A posição em função do tempo nesse movimento uniforme fictício é descrita pela linha tracejada.

Já foi dito sobre essa definição que ela é [12[12] E. Grant, Physical Science in the Middle Ages (Cambridge University Press, Cambridge, 1978)., p. 56]:

[…] irremediavelmente circular, pois define “velocidade instantânea” pela velocidade uniforme igual à própria velocidade instantânea que se pretende definir […].

Embora a ambiguidade na definição possa causar desconforto ao leitor moderno, isso não a torna menos correta. A definição medieval de velocidade instantânea foi concretizada por Galileu, como ilustrado pela Figura 2, reproduzida de um de seus fólios. Na figura, o plano horizontal (bec) “desliga” a aceleração do movimento sobre o plano inclinado (ab) e o trecho horizontal é percorrido com uma velocidade uniforme, igual à velocidade – instantânea – no ponto b ao pé do plano. O presente trabalho propõe que esse exemplo pode ser interpretado como uma definição operacional do conceito ilustrado na Figura 1.

Figura 2:
Concretização galileana do conceito de velocidade instantânea. A velocidade no ponto b no movimento acelerado ao longo do plano inclinado (ab) é a velocidade no movimento uniforme sobre a reta bec.

Contudo, o objetivo de Galileu não era concretizar o conceito de velocidade instantânea, mas achar uma relação entre a velocidade e a distância, em um movimento de queda. Na referência [13[13] P.M.C. Dias, M.F.B. Francisquini, C.E. Aguiar e M.F. Barroso, Physics in Perspective 21, 194 (2019).], é feita uma reconstituição do pensamento de Galileu, a partir de fólios datados do período 1602–1603 a 1609–1610.

3. Um velocímetro galileano e as leis da queda dos corpos

A Figura 2 inspira a construção de um aparato e um experimento para medir a velocidade instantânea. O aparato será chamado “velocímetro galileano”.1 1 O nome é uma homenagem. Não significa que Galileu tivesse construído um velocímetro. O esquema do “velocímetro” está descrito na Figura 3.

Figura 3:
Medida de velocidade com o “velocímetro galileano”. A velocidade instantânea no pé do plano inclinado é dada pela velocidade v=D/T na horizontal.

Para medir a velocidade instantânea com a qual uma bolinha chega ao pé do plano inclinado, mede-se o tempo T que ela leva para percorrer uma extensão D no plano horizontal. Usando a definição mertoniana, a velocidade instantânea no pé do plano é, então, obtida, dividindo D por T. O valor de D é determinado, marcando-se dois pontos no plano horizontal e medindo a distância entre eles com uma régua. O valor de T é mais difícil de medir, pois a bolinha move-se com uma velocidade relativamente alta no plano horizontal.

Neste artigo, é proposto um método para medir o tempo T, utilizando uma gravação de som. Para isso, dois sinos são colocados sobre os pontos no plano horizontal que estão separados pela distância D, de forma que os sinos ressoem, quando a bolinha passar pelos pontos (Figura 4). Os sons dos sinos são captados por dois microfones, um para cada sino, e enviados para um computador, onde são gravados.

Figura 4:
Montagem do experimento. A foto mostra o velocímetro, os sinos, os microfones que captam os sons dos sinos e o gravador do som.

A gravação e análise do som podem ser realizadas com um único programa de áudio-análise, como o Audacity [14[14] Audacity, Audio Editor and Recorder, www.audacityteam.org/, acessado 06/09/2022.
www.audacityteam.org/...
]. A Figura 5 mostra um exemplo da forma de onda gravada e analisada pelo programa. Os dois pulsos representam os sons emitidos pelos sinos. O usuário marca com o mouse os dois pontos correspondentes ao início do som de cada sino (“sino 1” e “sino 2”), indicando o intervalo T que deseja medir; o próprio programa fornece o tempo entre esses dois sons, o qual é exibido na parte inferior da janela do aplicativo.

Figura 5:
Exibição dos dados pelo Audacity. A medida do tempo tem alta precisão, pois gravações de áudio têm resolução melhor que 1 ms.

3.1. A velocidade como função da distância

No experimento (Figura 3), D é escolhido e T é medido, colocando um sino no pé do plano e o outro a uma distância D do primeiro. Valores das velocidades no pé do plano são calculados (v=D/T) para diferentes escolhas da distância x percorrida pela bolinha sobre o plano inclinado.

Os valores da velocidade no pé do plano e a distância sobre o plano inclinado são colocados em uma tabela (Tabela 1). Como os valores de x são arbitrariamente escolhidos no plano inclinado, os valores das velocidades no pé do plano representam, também, a dependência da velocidade com a distância, no movimento acelerado sobre o plano.

Tabela 1:
Distância, velocidade e tempo no movimento uniformemente acelerado. Para cada valor de x são calculados três valores de v para três medidas de T; cada linha na coluna v é a média dos três valores.

Colocando os valores da Tabela 1 em um gráfico v2 versus x, os pontos estão sobre uma reta que passa pela origem (Figura 6), como é esperado, em um movimento uniformemente acelerado.

Figura 6:
A lei v2x.

3.2. Medida do tempo

No ensino médio, o movimento uniformemente variado é mais comumente representado pela proporcionalidade entre velocidade e tempo, v = at. Para verificar esse resultado, é necessário medir o tempo t que a bolinha leva para percorrer a distância x sobre o plano inclinado. Mas não é fácil fazer com que a bolinha produza um ruído no ponto de partida, pois sua velocidade nesse instante é nula e ela não possui energia para fazer um sino soar. Uma opção para contornar essa dificuldade seria soltar a bolinha, no mesmo instante em que um ruído externo, por exemplo, palmas, fosse produzido. Isso obrigaria medir dois tempos, o tempo t para descer o plano inclinado e o tempo T, para percorrer o plano horizontal.

A solução do problema é, de novo, inspirada nos métodos de Galileu. Em sua dedução das equações do movimento, ele determinou o tempo t ao longo do plano inclinado, recorrendo à Regra da Dupla Distância (RDD). Não existe uma maneira de explicá-la, que não envolva, de alguma forma, as próprias leis do movimento uniformemente acelerado, as quais se quer obter.2 2 A distância (x) no movimento uniformemente acelerado é dada por x=12⁢a⁢t2; como a aceleração é constante, v = at, a expressão pode ser escrita x=12⁢v⁢t. Esta última expressão tem duas interpretações equivalentes. Por um lado, x=vm⁢t, onde vm=12⁢v é a velocidade média, o que permite enunciar o Teorema da Velocidade Média, segundo o qual a distância percorrida no movimento uniformemente acelerado é igual à distância percorrida no movimento uniforme de igual duração (t), feito com a velocidade média. Por outro lado, 2x = vt, o que permite enunciar a Regra da Dupla Distância (RDD), segundo a qual a distância percorrida no movimento uniforme feito com a velocidade v que o corpo tem em t é o dobro da distância percorrida no movimento uniformemente acelerado, de igual duração (t). Conversamente, se x=12⁢v⁢t, a aceleração é d2⁢xd⁢t2=a+t2⁢d⁢ad⁢t, o que implica d⁢ad⁢t=0. Para os propósitos deste artigo, portanto, é mais conveniente verificá-la experimentalmente, o que é feito na seção 3.3 3.3. Verificação da RDD A RDD é uma assinatura do movimento uniformemente acelerado, tanto quanto as equações do movimento. Enunciá-la sem conhecer equações do movimento foi um desafio enfrentado pelos mertonianos e por Galileu. Discutir em sala de aula a justificativa teórica da RDD, mesmo usando os argumentos de Galileu, seria longo e desviaria o foco deste artigo, sendo mais eficiente verificá-la experimentalmente. Figura 9: Gravação, no Audacity, dos três sons: batida de palmas, o som do primeiro sino e o som do segundo sino. Os intervalos t e T são muito parecidos. No experimento, o segundo sino é colocado a uma distância 2x do primeiro. A bolinha é solta, no mesmo instante em que um ruído externo é feito. Uma batida de palmas é uma maneira simples de marcar esse início de movimento.3 A gravação com o Audacity mostra, então, três sons: (1) a batida de palmas que deve ser simultânea à soltura da bolinha ou início do movimento, (2) o som do primeiro sino colocado ao pé do plano, a uma distância x do ponto inicial, e (3) o som do segundo sino, colocado a uma distância D = 2x do primeiro. A Figura 9 mostra uma forma de onda gravada com esse procedimento. A Figura 9 foi obtida em uma única tentativa. Um teste mais rigoroso da RDD pode ser realizado, medindo-se t para três distâncias de descida, x=20, 30⁢e⁢40⁢cm e os correspondentes valores de T para as distâncias D = 2x, no plano horizontal. Para cada uma das distâncias x, de descida, foram realizadas diversas medidas de t e T. Os valores médios dessas medidas com os correspondentes erros padrão (desvios padrão da média) estão dados na Tabela 2. Tabela 2: A distância de descida é x, o tempo médio de descida é t e o tempo médio para percorrer a distância 2x na horizontal é T. As incertezas são erros padrão. x (m) t (s) T (s) 0,20 0,340 ± 0,005 0,345 ± 0,002 0,30 0,380 ± 0,010 0,390 ± 0,001 0,40 0,470 ± 0,010 0,468 ± 0,002 A Figura 10 mostra os valores de t e T dados na Tabela 2, com suas respectivas barras de erro. Dentro das limitações do procedimento, os resultados são compatíveis com a previsão da RDD, t = T. Tanto na Tabela 2 quanto na Figura 10, nota-se que os erros experimentais em t são muito maiores que os erros em T, refletindo a dificuldade em sincronizar o ruído das palmas com o lançamento da bolinha. Além de reduzir o número de medidas, o emprego da RDD fornece t com precisão maior que a da medida direta. Figura 10: Gráfico com os valores de t e T na tabela 2. As barras de erro em T não aparecem, por serem menores que os pontos. A linha tracejada corresponde a T=t. , e enunciá-la na situação particular do velocímetro galileano. Referindo à Figura 2, a RDD diz que, se a distância D = bc percorrida no movimento uniforme for o dobro da distância x = ab percorrida no movimento uniformemente acelerado sobre o plano inclinado (D = 2x), então os movimentos ab e bc terão a mesma duração (t = T).

Figura 7:
A lei vt.

Claramente, a RDD evita o trabalho extra de medir t. É suficiente colocar o segundo sino a uma distância D = 2x do primeiro e somente T precisa ser medido. As medidas na Tabela 1 foram feitas com D = 2x, de modo que t = T. Portanto, a tabela mostra os valores de x, t e v no movimento uniformemente acelerado sobre o plano. Colocando os valores da Tabela 1 em um gráfico v versus t, os pontos estão sobre uma reta que passa pela origem (Figura 7). Colocando os valores da Tabela 1 em um gráfico x versus t, os pontos estão sobre uma linha que representa a parábola xt2, ajustada aos pontos medidos (Figura 8); essa parábola é outra representação do movimento uniformemente acelerado, familiar aos estudantes.

Figura 8:
A lei xt2.

3.3. Verificação da RDD

A RDD é uma assinatura do movimento uniformemente acelerado, tanto quanto as equações do movimento. Enunciá-la sem conhecer equações do movimento foi um desafio enfrentado pelos mertonianos e por Galileu. Discutir em sala de aula a justificativa teórica da RDD, mesmo usando os argumentos de Galileu, seria longo e desviaria o foco deste artigo, sendo mais eficiente verificá-la experimentalmente.

Figura 9:
Gravação, no Audacity, dos três sons: batida de palmas, o som do primeiro sino e o som do segundo sino. Os intervalos t e T são muito parecidos.

No experimento, o segundo sino é colocado a uma distância 2x do primeiro. A bolinha é solta, no mesmo instante em que um ruído externo é feito. Uma batida de palmas é uma maneira simples de marcar esse início de movimento.3 3 Tentamos reduzir o tempo de reação batendo as palmas em sequência ritmada (1-2-3, por exemplo) e liberando a bolinha apenas na última batida. A gravação com o Audacity mostra, então, três sons: (1) a batida de palmas que deve ser simultânea à soltura da bolinha ou início do movimento, (2) o som do primeiro sino colocado ao pé do plano, a uma distância x do ponto inicial, e (3) o som do segundo sino, colocado a uma distância D = 2x do primeiro. A Figura 9 mostra uma forma de onda gravada com esse procedimento.

A Figura 9 foi obtida em uma única tentativa. Um teste mais rigoroso da RDD pode ser realizado, medindo-se t para três distâncias de descida, x=20, 30e40cm e os correspondentes valores de T para as distâncias D = 2x, no plano horizontal. Para cada uma das distâncias x, de descida, foram realizadas diversas medidas de t e T. Os valores médios dessas medidas com os correspondentes erros padrão (desvios padrão da média) estão dados na Tabela 2.

Tabela 2:
A distância de descida é x, o tempo médio de descida é t e o tempo médio para percorrer a distância 2x na horizontal é T. As incertezas são erros padrão.

A Figura 10 mostra os valores de t e T dados na Tabela 2, com suas respectivas barras de erro. Dentro das limitações do procedimento, os resultados são compatíveis com a previsão da RDD, t = T. Tanto na Tabela 2 quanto na Figura 10, nota-se que os erros experimentais em t são muito maiores que os erros em T, refletindo a dificuldade em sincronizar o ruído das palmas com o lançamento da bolinha. Além de reduzir o número de medidas, o emprego da RDD fornece t com precisão maior que a da medida direta.

Figura 10:
Gráfico com os valores de t e T na tabela 2. As barras de erro em T não aparecem, por serem menores que os pontos. A linha tracejada corresponde a T=t.

4. O velocímetro galileano na sala de aula

Foi elaborada uma sequência didática em cinco unidades, a qual pode ser acessada em [15[15] G. Vieira Silva, P.M. Cardozo Dias e C.E. Aguiar, O Conceito de Velocidade Instantânea. Disponível em: https://www.if.ufrj.br/~pef/producao_academica/dissertacoes/2020_Glaucemar_Silva/material_instrucional_1.pdf
https://www.if.ufrj.br/~pef/producao_aca...
].

Unidade 1

O objetivo é fazer uma avaliação diagnóstica do conhecimento dos alunos sobre o conceito de velocidade. Eles respondem a um questionário, em sala de aula, para avaliar o significado que atribuem a expressões tais como “A é mais rápido que B”, em termos de espaço percorrido e tempo transcorrido.

Unidade 2

O objetivo é formalizar o conceito de velocidade, sem caracterizá-la como velocidade média, introduzindo a definição:

(1) velocidade = distância percorrida tempo para percorrê-la .

Os estudantes aplicam a definição às situações apresentadas na unidade 1 e comparam seus resultados com as respostas anteriormente dadas. Finalmente, é introduzido um movimento linear, no qual a velocidade não é uniforme sobre todo o percurso; os estudante são conduzidos a perceber que velocidades podem depender do trecho considerado, o que leva a rever a definição acima.

Unidade 3

O conceito de velocidade média é introduzido. A definição dada na unidade 2 recebe um significado mais preciso:

(2) velocidade média = distância percorrida tempo para percorrê-la .

Na sequência, o movimento uniforme é definido como aquele em que a velocidade média é a mesma em qualquer parte do percurso total. Por isso, o trecho específico do percurso não precisa ser especificado, ou seja, o movimento uniforme é caracterizado por uma única velocidade.

São apresentadas várias questões, em que o aluno deve diferenciar um movimento uniforme de um não uniforme, de acordo com a definição acima e sua representação gráfica. Por último, um questão chave é colocada, ao confrontar o aluno com a foto estroboscópica de um movimento de queda de uma bolinha (Figura 11); a seta indica a posição da bolinha em um instante arbitrário de seu movimento e é perguntado ao aluno:

Faz sentido falar de velocidade em um único instante, por exemplo, no instante marcado na figura?

Figura 11:
Movimento de queda. A foto mostra as posições de uma bolinha durante sua queda, a iguais intervalos de tempo [16[16] A. Davidhazy, Images for Science and Education. Disponível em: http://www.davidhazy.org/andpph/, acessado em 06/09/2022.
http://www.davidhazy.org/andpph/...
].

Unidade 4

Nesta unidade, é introduzido o conceito de velocidade instantânea. Na primeira parte, a definição medieval de velocidade instantânea é apresentada aos alunos, assim como sua concretização pelo plano inclinado de Galileu (Figura 2 na seção 2 2. O conceito mertoniano de velocidade instantânea Entre 1328 e 1350, os filósofos mertonianos propuseram uma nova maneira de entender o movimento e desenvolveram conceitos cinemáticos [11, p. 199–219; p. 211–212]; essas ideias não foram aplicadas a problemas concretos, mas estavam inseridas em um contexto de conceitualização filosófica do movimento. De acordo com os mertonianos, “[…] a grandeza da velocidade instantânea […] é determinada pelo caminho que seria descrito em um dado período de tempo, se um ponto movesse uniformemente com o grau de velocidade com o qual ele se move no dado instante” [11, p. 210]. Essa definição pode ser visualizada, recorrendo à representação anacrônica na Figura 1. Figura 1: Definição mertoniana da velocidade instantânea. A linha contínua descreve a posição de um corpo em função do tempo, em um movimento não uniforme. A velocidade instantânea no ponto P é a velocidade no movimento uniforme que o corpo seguiria, caso a aceleração fosse “desligada” a partir de P. A posição em função do tempo nesse movimento uniforme fictício é descrita pela linha tracejada. Já foi dito sobre essa definição que ela é [12, p. 56]: […] irremediavelmente circular, pois define “velocidade instantânea” pela velocidade uniforme igual à própria velocidade instantânea que se pretende definir […]. Embora a ambiguidade na definição possa causar desconforto ao leitor moderno, isso não a torna menos correta. A definição medieval de velocidade instantânea foi concretizada por Galileu, como ilustrado pela Figura 2, reproduzida de um de seus fólios. Na figura, o plano horizontal (bec) “desliga” a aceleração do movimento sobre o plano inclinado (ab) e o trecho horizontal é percorrido com uma velocidade uniforme, igual à velocidade – instantânea – no ponto b ao pé do plano. O presente trabalho propõe que esse exemplo pode ser interpretado como uma definição operacional do conceito ilustrado na Figura 1. Figura 2: Concretização galileana do conceito de velocidade instantânea. A velocidade no ponto b no movimento acelerado ao longo do plano inclinado (ab) é a velocidade no movimento uniforme sobre a reta bec. Contudo, o objetivo de Galileu não era concretizar o conceito de velocidade instantânea, mas achar uma relação entre a velocidade e a distância, em um movimento de queda. Na referência [13], é feita uma reconstituição do pensamento de Galileu, a partir de fólios datados do período 1602–1603 a 1609–1610. ). Na segunda parte, os estudantes são apresentados ao “velocímetro galileano”. O método de medida do tempo por gravações de som é explicado e, após os experimentos, eles preenchem uma tabela com os valores de x, D, T e v. Os dados da tabela são colocados em uma planilha e são construídos os gráficos velocidade versus distância e quadrado da velocidade versus distância. A unidade termina, generalizando a pergunta que finaliza a unidade anterior:

Faz sentido falar de velocidade em um único instante?

Unidade 5

O objetivo é analisar como a velocidade instantânea e a distância percorrida dependem do tempo de descida do plano inclinado.

As dificuldades para medir o tempo de descida são explicadas e a RDD é apresentada como uma forma de contorná-las. Com o auxílio da RDD, o experimento da medida de tempo torna-se tão simples quanto o anterior. Havendo tempo disponível, a verificação da RDD pode ser uma etapa inicial da atividade; caso contrário, a RDD é apenas enunciada.

Os alunos medem o tempo e preenchem uma tabela com os valores de x, t e v, análoga à Tabela 1, na seção 3.1 3.1. A velocidade como função da distância No experimento (Figura 3), D é escolhido e T é medido, colocando um sino no pé do plano e o outro a uma distância D do primeiro. Valores das velocidades no pé do plano são calculados (v=D/T) para diferentes escolhas da distância x percorrida pela bolinha sobre o plano inclinado. Os valores da velocidade no pé do plano e a distância sobre o plano inclinado são colocados em uma tabela (Tabela 1). Como os valores de x são arbitrariamente escolhidos no plano inclinado, os valores das velocidades no pé do plano representam, também, a dependência da velocidade com a distância, no movimento acelerado sobre o plano. Tabela 1: Distância, velocidade e tempo no movimento uniformemente acelerado. Para cada valor de x são calculados três valores de v para três medidas de T; cada linha na coluna v é a média dos três valores. x (m) T (s) v (m/s) escolhido medido para D = 2x calculado 0,5 0,527 1,90 0,4 0,474 1,69 0,3 0,414 1,45 0,2 0,333 1,20 Colocando os valores da Tabela 1 em um gráfico v2 versus x, os pontos estão sobre uma reta que passa pela origem (Figura 6), como é esperado, em um movimento uniformemente acelerado. Figura 6: A lei v2∝x. . Finalmente, os alunos constroem, em um papel milimetrado, os gráficos velocidade versus tempo e posição versus tempo.

4.1. Alguns resultados

As respostas às questões na unidade 1 mostram que os alunos conseguem identificar o mais rápido de dois corpos em termos de maior distância ou menor tempo. Porém não entendem completamente que o conhecimento das duas variáveis, distância e tempo, é necessário para comparar velocidades. Quando introduzidos à definição de velocidade, na unidade 2, todos acertaram as questões da unidade 1 – isso é macumba, disse uma aluna. Quando confrontados, ainda na unidade 2, com um movimento não uniforme, os problemas foram maiores, indicando a existência de dificuldades em entender que distintos trechos de um dado percurso podem ter velocidades que diferem entre si e da velocidade no percurso completo. Quando confrontados com a pergunta que finaliza a unidade 3, as seguintes respostas apareceram:

  • Acredito que não pois a velocidade requer 2 fatores o tempo e a distância que ele percorre, em um ponto específico não tem como.

  • Não, pois não seria a velocidade de um percurso e a velocidade depende de um percurso para existir

A ideia de que velocidade só pode ser definida para uma distância finita em um tempo finito parece remeter à definição aristotélica de “mais rápido”. Para Aristóteles, um corpo é mais rápido do que outro, se percorre uma distância maior em igual tempo ou, equivalentemente, se percorre igual distância em menor tempo.

Na unidade 4, durante a apresentação, no decorrer da definição mertoniana, algumas observações interessantes foram feitas, mostrando que o conceito foi entendido, pelo menos por alguns estudantes:

  • Ahhhh! Então a gente pode calcular a velocidade de um instante usando o que a gente tava estudando nas outras aulas?

  • Professora, então a velocidade vai ser igual depois do ponto P?

Após os experimentos e confrontados, novamente, com a pergunta se existe velocidade instantânea, um aluno assim se expressou: Sim, porque o velocímetro galileano comprova que é possível.

Ao final das atividades, alguns comentários curiosos foram feitos, indicando surpresa com alguns resultados e interesse pelo assunto:

  • Genial o que eles fizeram, né? Tipo o Galileu com os planos. O movimento uniforme tem a mesma velocidade em qualquer trecho do plano que tá reto.

  • Eu ainda tô abismada que o tempo para percorrer 50 cm aqui é o mesmo tempo pra bolinha percorrer 100 cm ali.

5. Considerações finais

A sequência de ensino proposta não pretende substituir a abordagem tradicional da velocidade instantânea, mas complementá-la. Porém os resultados mostram que é possível apresentá-la de forma independente, integrando-a a um curso usual de cinemática, de modo produtivo, pois é um recurso a mais no difícil ensino do conceito de velocidade instantânea. Além disso, os dados experimentais obtidos podem ser ferramentas úteis na discussão de temas como a queda dos corpos, funções do tempo e as equações do movimento de queda, entre outros. Como observou Arons, [1[1] A.B. Arons, Teaching Introductory Physics (Wiley, New York, 1996), 1 ed., p. 30]:

Não é de forma alguma necessário desenvolver o cálculo e o conceito de “derivada”, mas os estudantes devem ter a chance de encontrar a ideia de velocidade instantânea lentamente e com vários episódios de idas e vindas para reencontrá-la e reafirmá-la à medida que se prossegue no estudo da cinemática e da dinâmica. Somente uns poucos estudantes absorverão o conceito em um primeiro encontro, mas um número adicional progredirá em cada episódio subsequente.

Esperamos que este artigo traga uma contribuição nesse sentido.

Referências

  • [1]
    A.B. Arons, Teaching Introductory Physics (Wiley, New York, 1996), 1 ed.
  • [2]
    D.E. Trowbridge e L.C. McDermott, American Journal of Physics 48, 1020 (1980).
  • [3]
    I.A. Halloun e D. Hestenes, American Journal of Physics 53, 1056 (1985).
  • [4]
    F.J. Rutherford, G. Holton e F.G. Watson, Project Physics (Saunders College Pub., Philadelphia, 1981).
  • [5]
    G. Holton, Physics Education 4, 19 (1969).
  • [6]
    M. McCloskey, Scientific American 248, 122 (1983).
  • [7]
    E.A. Moody, The Scientific Monthly 72, 18 (1951).
  • [8]
    C.E. Aguiar, M.F. Barroso, P.M.C. Dias e M.F.B. Francisquini, Physics Education 57, 055017 (2022).
  • [9]
    Tracker, Video Analysis and Modeling Tool, https://physlets.org/tracker/, acessado em 06/09/222.
    » https://physlets.org/tracker/
  • [10]
    G.V. Silva, Velocidade instantânea: uma proposta de ensino inspirada em Galileu Galilei Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2019).
  • [11]
    M. Clagett,The Science of Mechanics in the Middle Ages (The University of Wisconsin Press, Madison, 1959).
  • [12]
    E. Grant, Physical Science in the Middle Ages (Cambridge University Press, Cambridge, 1978).
  • [13]
    P.M.C. Dias, M.F.B. Francisquini, C.E. Aguiar e M.F. Barroso, Physics in Perspective 21, 194 (2019).
  • [14]
    Audacity, Audio Editor and Recorder, www.audacityteam.org/, acessado 06/09/2022.
    » www.audacityteam.org/
  • [15]
    G. Vieira Silva, P.M. Cardozo Dias e C.E. Aguiar, O Conceito de Velocidade Instantânea Disponível em: https://www.if.ufrj.br/~pef/producao_academica/dissertacoes/2020_Glaucemar_Silva/material_instrucional_1.pdf
    » https://www.if.ufrj.br/~pef/producao_academica/dissertacoes/2020_Glaucemar_Silva/material_instrucional_1.pdf
  • [16]
    A. Davidhazy, Images for Science and Education Disponível em: http://www.davidhazy.org/andpph/, acessado em 06/09/2022.
    » http://www.davidhazy.org/andpph/
  • 1
    O nome é uma homenagem. Não significa que Galileu tivesse construído um velocímetro.
  • 2
    A distância (x) no movimento uniformemente acelerado é dada por x=12at2; como a aceleração é constante, v = at, a expressão pode ser escrita x=12vt. Esta última expressão tem duas interpretações equivalentes. Por um lado, x=vmt, onde vm=12v é a velocidade média, o que permite enunciar o Teorema da Velocidade Média, segundo o qual a distância percorrida no movimento uniformemente acelerado é igual à distância percorrida no movimento uniforme de igual duração (t), feito com a velocidade média. Por outro lado, 2x = vt, o que permite enunciar a Regra da Dupla Distância (RDD), segundo a qual a distância percorrida no movimento uniforme feito com a velocidade v que o corpo tem em t é o dobro da distância percorrida no movimento uniformemente acelerado, de igual duração (t). Conversamente, se x=12vt, a aceleração é d2xdt2=a+t2dadt, o que implica dadt=0.
  • 3
    Tentamos reduzir o tempo de reação batendo as palmas em sequência ritmada (1-2-3, por exemplo) e liberando a bolinha apenas na última batida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2022
  • Revisado
    31 Ago 2022
  • Aceito
    01 Set 2022
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