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Desenvolvimento e utilização de um aplicativo móvel brasileiro para videoanálise: “Videoanalisando”

Development and utilization of a Brazilian mobile application for videoanalysis: “Videoanalisando”

Resumos

O objetivo deste trabalho é apresentar o programa “Videoanalisando”, um software para videoanálise que foi desenvolvido no Brasil. Busca-se contextualizar o tema e tecer algumas considerações a respeito da videoanálise no ensino de Física, no cenário nacional. São discutidos alguns aspectos fundamentais relativos ao desenvolvimento do projeto, associado ao produto de um doutorado profissional. Descreve-se ainda um procedimento inicial de validação, baseado na utilização do programa em sala de aula e na comparação entre o “Videoanalisando” e o bastante conhecido programa Tracker. Demonstra-se que o “Videoanalisando” tem potencial para ser utilizado em atividades experimentais em sala de aula, por meio de telefones celulares e tablets. Além de estar livremente disponível para a plataforma Android, seu uso é facilitado no Brasil, por se tratar de um programa em língua portuguesa.

Palavras-chave:
Videoanálise; Videoanalisando; Programa Videoanalisando; Software Videoanalisando; Ensino de Física


The objective of this work is to present the program “Videoanalisando”, a video analysis software that was developed in Brazil. It seeks to contextualize the subject and to make some broad considerations regarding videoanalysis in physics teaching, given the Brazilian scenario. We discuss certain fundamental aspects related to the development of the project, which relates to a doctorate thesis project (in the Brazilian context of the emerging “professional doctorates”). An initial validation procedure of the software is also described, based on the in-classroom use of the program, and including a comparison between “Videoanalisando” and the well-known software Tracker. We therefore demonstrate that the software “Videoanalisando” has the potential to support in-classroom experimental activities using mobile phones and tablets. The software is freely available for the Android platform and, because it is originally available in Portuguese, it has the potential to contribute to Physics Teaching in Brazil.

Keywords:
Videoanalysis; Videoanalisando; App Videoanalisando; Videoanalisando Software; Physics Teaching


1. Introdução

O ensino de Física, muitas vezes, padece de um problema relacionado à ênfase e ao emprego acrítico, nos processos educacionais, de “situações idealizadas” e descontextualizadas, que implicam em desinteresse e nas dificuldades dos estudantes com relação à aplicação do conhecimento físico para a descrição, leitura e interpretação do real [1[1] N.C. Saavedra Filho, J.A. Lenz, A.G. Bezerra Jr, M.A. Florczak e V.G. Garcia, Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia 10, 231 (2017).]. Há uma crítica crescente ao ensino muito focado na aprendizagem mecânica, na preparação para as provas e, por isso, tem sido apresentadas alternativas no sentido de uma aprendizagem significativa da Física [2[2] M.A. Moreira, Revista Brasileira de Ensino de Física 43, e20200451 (2021).].

A atividade experimental em sala de aula, particularmente relacionada a Física, ainda que tenha como fundamentação conceitos científicos abstratos, é focada no elemento real, ou seja, busca problematizar a realidade, que, por sua vez, pode ser associada ao cotidiano do aluno. Daí é possível extrair hipóteses e concepções espontâneas e dialogar com experiências vividas. Pode-se, então, inferir que a utilização da atividade experimental em sala de aula acrescenta ao pensamento do aluno elementos de realidade e de experiência pessoal, que podem preencher lacunas cognitivas, estimulando a formulação de conceitos científicos mais elaborados, dando a esses conceitos a força que a vivência dá aos conceitos espontâneos [3[3] A. Gaspar e I.C.C. Monteiro, Investigações em Ensino de Ciências 10, 227 (2005).]. Além disso, destacam-se as tendências modernas associadas às metodologias ativas em processos de ensino que promovam aprendizagem com significado e compreensão do aluno, numa integração que pode ser nomeada “ensinagem” [4[4] N. Studart, Revista do Professor de Física 3, 1 (2019).]. Neste sentido, tanto num contexto mais geral (o Ensino de Ciências), quanto no contexto específico do Ensino de Física, é fundamental superar os modelos em que o professor apenas “narra” a matéria, em que não se utiliza o recurso do laboratório e no qual as aulas (muitas vezes baseadas em um único livro) não estabelecem conexões interdisciplinares e apresentam situações que não fazem sentido para os alunos [5[5] M.A. Moreira, Experiências em Ensino de Ciências 16, 1 (2021).].

Com o cenário pandêmico que assola o planeta desde o ano de 2019, os presentes autores sentiram-se desafiados a superar a forma dissociada como a teoria e a prática são frequentemente tratadas no ensino de Física, buscando contribuir para o ensino no contexto do necessário isolamento social [6[6] G.D. Bordin, M. Peres, J.A. Lenz e A.G. Bezerra Jr, Revista Tecnologia e Sociedade 16, 147 (2020).]. De fato, este trabalho vem sendo realizado no âmbito de um programa de Mestrado e Doutorado Profissional associado a uma universidade pública. Um resultado específico do trabalho de pesquisa constitui o desenvolvimento do Produto Educacional denominado “Videoanalisando”, um aplicativo de videoanálise para dispositivos móveis com sistema operacional Android. Este é um Produto Educacional com características inovadoras e até então inexistente no cenário nacional. Esta iniciativa está em ressonância com os conceitos de ensinagem [4[4] N. Studart, Revista do Professor de Física 3, 1 (2019).] e dialoga com a necessidade de a pesquisa em ensino “chegar à sala de aula” [2[2] M.A. Moreira, Revista Brasileira de Ensino de Física 43, e20200451 (2021)., 3[3] A. Gaspar e I.C.C. Monteiro, Investigações em Ensino de Ciências 10, 227 (2005)., 4[4] N. Studart, Revista do Professor de Física 3, 1 (2019)., 5[5] M.A. Moreira, Experiências em Ensino de Ciências 16, 1 (2021).].

A opção por desenvolver um aplicativo para celulares e tablets se dá pelas potencialidades que essas tecnologias possuem para mediar práticas pedagógicas, para reforçar o interesse e atrair atenção dos estudantes [7[7] A. Ribas, Telefone celular como um recurso didático: possibilidades para mediar práticas do ensino de física. Dissertação de Mestrado, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa (2012).]. Além disso, busca cobrir uma lacuna referente ao software Tracker, um dos programas mais utilizados para videoanálise, que não possui versão mobile. A não existência de uma versão para celulares e tablets dificulta a permeação da videoanálise em sala de aula, pois a utilização do Tracker exige uma infraestrutura com microcomputadores ou notebooks, nem sempre largamente disponível nas escolas.

Neste trabalho, apresentamos a construção e implementação de um aplicativo móvel para celulares e tablets que possuam sistema Android. A utilização do aplicativo em sala de aula foi desenvolvida em uma turma da disciplina de Introdução à Física em uma escola particular e também se buscou uma validação a partir de uma comparação entre o Videoanalisando e o Tracker, bem como uma validação realizada com os pares do Grupo Tracker Brasil.

2. O Ensino de Física, TIC e a Videoanálise

Estar preparado para a mediação de experiências práticas de laboratório de forma eficaz nas aulas de Física é uma tarefa desafiadora, mesmo quando as instalações de laboratório atuais, equipamentos e novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) para coleta e análise de dados estão disponíveis.

Em instituições sem recursos adequados, especialmente aquelas em países em desenvolvimento, descobrimos que o problema de oferecer atividades experimentais significativas e eficazes é especialmente desafiador por pelo menos dois motivos:
  1. a falta de equipamentos e dispositivos de medição atualizados;

  2. mesmo em instituições que possuem algum equipamento de laboratório, os alunos que têm acesso a telefones celulares com temporização digital e recursos de vídeo ou câmeras digitais baratas ficam entediados em tentar usar aparelhos “antiquados” para medições.

Diante deste contexto, o celular torna-se um aparato tecnológico e científico de alta potencialidade educacional, pois os estudantes usam seus próprios aparelhos o que, por conta dessa familiaridade, gera motivação e engajamento durante as atividades experimentais [8[8] F.S. da Rocha, F. Fajardo, M. Grisolía, J. Benegas, R. Tchitnga e P. Laws, Phys. Teach 49, 165 (2011).].

Segundo a UNESCO [9[9] UNESCO, Padrões de Competência em TIC para professores: diretrizes de implementação, versão 1.0. Paris, 2008. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000156209_por, acessado em 01/05/2021.
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], os alunos e professores devem usar a tecnologia de forma efetiva, pois em um ambiente educacional qualificado, a tecnologia pode permitir que os alunos se tornem: usuários qualificados das tecnologias da informação; pessoas que buscam, analisam e avaliam a informação; solucionadores de problemas e tomadores de decisões; usuários criativos e efetivos de ferramentas de produtividade; comunicadores, colaboradores, editores e produtores; cidadãos informados, responsáveis e que oferecem contribuições.

Particularmente, ao estudar as disciplinas de Física, os estudantes se deparam com conceitos abstratos que, via de regra, são apresentados através de uma metodologia essencialmente verbal e, muitas vezes, não dialogada, o que, com frequência, ocasiona desmotivação e insucesso em seu aprendizado. As TIC podem contribuir para o delineamento de estratégias que envolvam os alunos, promovendo um melhor entendimento do conteúdo e, além disso, podem servir de estímulo à interação (entre estudantes e entre esses e o professor). Tais tecnologias permitem, por exemplo, realizar experimentos simulando situações reais com precisão, os quais, provavelmente, só seriam possíveis em laboratórios muito bem equipados. Entre outras coisas, possibilitam também a modelagem das variáveis Físicas de um problema e o estabelecimento de relações entre essas variáveis [10[10] S.S. Peduzzi, L.O.Q. Peduzzi e S.S.C. Costa, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 29, 5 (2012).].

O presente trabalho propõe uma articulação da Videoanálise enquanto TIC para promover e estimular a realização de atividades experimentais em sala de aula. Vale destacar que, antes de se tornar uma tecnologia utilizada em computadores e smartphones, a videoanálise foi utilizada pela primeira vez em 1878 pelo fotógrafo inglês Eadweard Muybridg, que queria solucionar uma dúvida que pairava na época sobre o galope de um cavalo [11[11] F.A.G. Araújo, M.M. Oliveira, E.F. Nobre, A.G. Pinheiro e M.S. Cunha, Revista do Professor de Física 1, 68 (2017).]. Havia embates sobre se os cavalos levantavam todas as patas ao mesmo tempo durante um galope. No experimento realizado pelo fotógrafo, foram utilizadas várias câmeras para obter 24 fotografias, as quais foram tiradas em rápida sucessão e em diferentes momentos durante o movimento do cavalo. Com as fotos, Muybridg conseguiu capturar um instantâneo e comprovar que o cavalo, de fato, tirava as quatro patas do chão.

Em resumo, a videoanálise consiste do rastreamento de objetos em movimento através de uma sequência de quadros ou imagens obtidas em tempos sucessivos, para que os dados possam ser analisados numericamente ou através de gráficos, como, por exemplo, velocidade e aceleração.

No passar dos anos, diversos softwares de Videoanálise foram desenvolvidos, nos mais diversos contextos, mas, para os propósitos do presente artigo, destacamos dois: O Tracker e o PAI.

2.1. O Tracker

O Tracker é um software robusto de videoanálise, sua primeira aparição acontece em 2008, por Doug Brown, em um trabalho intitulado: “Video Analysis and Modeling in Physics Education”, no qual o autor comenta sobre experimentos realizados no Outono de 2007, no curso de Introdução a Mecânica [12[12] D. Brown, em: American Association of Physics Teachers (AAPT) Summer Meeting (Maryland, 2008).]. Trata-se de um software gratuito e disponível nas mais diversas plataformas, porém, sem versão para Android.

No contexto brasileiro, em uma pesquisa realizada em dezembro de 2021, no sítio desta RBEF, utilizando os termos de busca “Tracker”, “video-análise”, “videoanálise” e “vídeo análise”, obtém-se 27 artigos, o que evidencia a importância deste programa (o Tracker). Assim, a partir desta pesquisa, compilamos, na Quadro 1, propostas de uso (“O que se pode fazer…”) da videoanálise com o Tracker.

A Videoanálise, de fato, possui uma abrangência internacional e o Tracker é um consolidador pois possui tradução em diversos idiomas, porém, no contexto de países que apresentam dificuldades estruturais, como a falta de computadores em sala de aula e problemas de acesso à internet, a utilização desta ferramenta, em sua versão online mais recente (https://physlets.org/Tracker/TrackerJS/) pode inviabilizar seu uso em sala de aula. Recentemente, os presentes autores entraram em contato com os desenvolvedores do Tracker. A ideia era sondar se e quando haveria uma versão Android do aplicativo e, na ocasião, recebemos a informação de que dariam prioridade à versão online. Esta, inclusive, foi uma das motivações para desenvolvermos um aplicativo de videoanálise no Brasil, para ser utilizado diretamente em dispositivos móveis.

2.2. O PAI – Programa de Análise de Imagens

É importante fazer um registro histórico com respeito ao “PAI” (Programa de Análise de Imagens). Trata-se de um software nacional que se tornou inspiração aos autores deste trabalho. Originalmente desenvolvido por Barbeta e Yamamoto [13[13] V.B. Barbeta e I. Yamamoto, em: XXX COBENGE – Congresso Brasileiro de Ensino de Engenharia (Piracicaba, 2002).], o PAI foi apresentado à comunidade de ensino de Física no artigo intitulado “Desenvolvimento e Utilização de um Programa de Análise de Imagens para o Estudo de Tópicos de Mecânica Clássica”, nesta RBEF, 2002. Na Figura 1, reproduzimos uma das figuras presentes no artigo em questão. Note-se que, em 2002, Barbeta e Yamamoto já destacavam importância da análise de vídeo em aulas de laboratório, como ferramenta para “reforçar conceitos que são introduzidos em aulas teóricas”. Além disso, os autores destacavam o potencial da análise de vídeo auxiliar na interpretação de gráficos, para abordar “situações reais” para os estudantes. Segundo os autores “pode-se explorar todo o processo de produção desses vídeos, isto é, a imagem, digitalização e análise, embora isso demande um tempo maior para a sua realização”. Na ocasião, já eram destacados alguns dos cuidados de natureza técnica que se deve ter na filmagem e utilização dos vídeos, por exemplo, “manter o movimento do objeto num plano que seja normal à direção de imagem” [13[13] V.B. Barbeta e I. Yamamoto, em: XXX COBENGE – Congresso Brasileiro de Ensino de Engenharia (Piracicaba, 2002).]. Contudo, tendo em vista a tecnologia disponível no início dos anos 2000, havia limitações significativas como, por exemplo, a necessidade de realizar filmagens com câmeras do tipo VHS e posteriormente converter os arquivos em formatos digitais.

O programa PAI foi desenvolvido em Visual Basic, para o Sistema Operacional Windows. O Software não teve seu projeto continuado, porém, isso não diminui o mérito da iniciativa inovadora dos autores, nos anos 2000. Na tentativa de determinar quando o tema volta a ganhar destaque nos periódicos, uma pesquisa no Google Acadêmico, utilizando as palavras-chave “videoanálise”, “video-análise” e “vídeo análise”, resulta em um artigo da Revista Electrónica de Investigación en Educación en Ciencias, publicado em 2011 [14[14] L.I. Leitão, P.F.D. Teixeira e F.S. da Rocha, Revista Electrónica de Investigación en Educación en Ciencias 6, 18 (2011).] e, usando como critério a relevância, também resulta em artigo publicado no Caderno Brasileiro de Ensino de Física, em 2012 [15[15] A.G. Bezerra Jr, L.P. Oliveira, J.A. Lenz e N. Saavedra, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 29, 469 (2012).]. Desde então, o tema vem produzindo crescente atenção e engajamento da comunidade [16[16] A.G. Bezerra Jr, G.D. Bordin, M. Peres, J.A. Lenz e M.A. Florczak, Experiências em Ensino de Ciências 16, 557 (2021).].

2.3. Outros aplicativos

Para o ambiente mobile foram prospectados 2 aplicativos: o Lablet (https://github.com/czeidler/Lablet), desenvolvido pela Universidade de Auckland, que possibilita aos alunos extraírem e analisarem dados físicos diversos, utilizando os recursos de dispositivos móveis, como som, detector de movimento, além da própria videoanálise, e o aplicativo austríaco Vidanalisys (vide Google Playstore), específico para videoanálise, porém, sem atualização recente de funcionalidades e com baixo score na Google Playstore. Note-se que tanto o Lablet quanto o Vidanalisys, ainda que disponíveis para plataforma Android, não apresentam versão em língua portuguesa.

Vale destacar que a videoanálise é utilizada em diversos contextos, como por exemplo o ambiente esportivo e da mesma forma, existem aplicativos que foram desenvolvidos focados na extração de dados para esse fim, mas vale destacar que a finalidade deste trabalho é apresentar aplicativos que apresentam recursos de videoanálise para o Ensino de Física.

Além disso, existe uma demanda para que se possa utilizar smartphones e tablets em sala de aula, portanto, há uma necessidade concreta do desenvolvimento de uma alternativa para a videoanálise que esteja disponível para plataformas móveis. Ainda que haja alguns outros programas de videoanálise além do Tracker (nota: esses programas não têm versões em língua portuguesa, um sério obstáculo para uma utilização em sala de aula no Brasil) é evidente a importância deste último no contexto do ensino de Física do Brasil. Isso justifica um projeto para o desenvolvimento de um programa de videoanálise nacional e em língua portuguesa.

Quadro 1
Revisão de Artigos da RBEF com referência direta ao Tracker e à videoanálise, publicados entre 2011 e 2021.
Figura 1
Reprodução da figura utilizada no artigo de Barbeta e Yamamoto [13[13] V.B. Barbeta e I. Yamamoto, em: XXX COBENGE – Congresso Brasileiro de Ensino de Engenharia (Piracicaba, 2002).], evidenciando uma tela do programa PAI e algumas de suas funcionalidades. Neste caso, a imagem diz respeito à análise do vídeo de um ponto na periferia de uma roda de bicicleta.
Figura 2
Diagrama esquemático do processo de “faseamento” utilizado no programa Videoanalisando.

3. O Desenvolvimento do Aplicativo Videoanalisando

Visando suprir a carência de um aplicativo de Videoanálise para Celulares e Tablets, em língua portuguesa, com todo o know-how adquirido ao longo de 10 anos de trabalho com o software Tracker, desenvolvemos um aplicativo para smartphones Android chamado “Videoanalisando”.

Tanto o aplicativo, quanto sua especificação foram desenvolvidos por profissionais da área de Sistemas de Informação, com o apoio de professores de Física que auxiliaram na validação dos dados obtidos.

O Videoanalisando tem como função analisar vídeos em smartphones apresentando funcionalidades como: escolha de taxa de reprodução (quadros por segundo), definição de escala (em metros), definição de eixos, marcação de pontos, exclusão de pontos marcados, zoom in/out, gravação dos resultados obtidos em galeria interna, exportação dos dados obtidos em arquivo .CSV, compartilhamento dos dados obtidos e geração de gráficos.

A ideia central do aplicativo é protagonizar o usuário por meio do processo de experimentação, ou seja, a partir de uma filmagem realizada em seu smartphone, cada estudante (sem prejuízo do trabalho em grupo) pode analisar os fenômenos físicos existentes nesse vídeo e com poucos toques pode compartilhar com o professor os resultados obtidos.

Para o desenvolvimento do aplicativo foram utilizadas as seguintes ferramentas:

  • Android Studio IDE (https://developer.android.com/studio) – Software gratuito oficial da Google para desenvolvimento mobile para sistema operacional Android; através dele, além de codificar, também é possível simular no sistema operacional o funcionamento de um smartphone antes da publicação do aplicativo.

  • Visual Studio Code – é uma ferramenta para edição de código, possibilitando a execução de tarefas e controle de versão (https://code.visualstudio.com/). Esse editor tem como objetivo providenciar somente as ferramentas necessárias para que os desenvolvedores consigam construir seus códigos, além de, tornar os fluxos de trabalhos mais completos.

  • React Native – o React é uma biblioteca open-source JavaScript para construção de interfaces de usuários utilizando principalmente componentes desenvolvidos com a linguagem de marcação JSX, que seria uma extensão do código JavaScript. O React é desenvolvido e mantido pelo Facebook. Segundo o site oficial (https://reactnative.dev/), o React Native é um framework open-source JavaScript que está na versão 0.63.2 e é utilizado para criação de aplicações nativas para dispositivos mobile, utilizando o React para renderizar seus componentes, convertendo-os para código nativo das plataformas Android e IOS (sistema operacional da Apple), portanto, com apenas um código é possível compilar, com pouca ou nenhuma alteração, para ambas as plataformas de forma totalmente nativa.

  • EXPO - é um framework que abstraiu diversas funcionalidades (https://expo.dev/) ajudando no desenvolvimento de projetos com o React Native. Bibliotecas de acesso as principais funcionalidade do smartphone mais amigáveis e simplificadas, painel de informações sobre a emulação no desenvolvimento, são alguns de seus benefícios.

O aplicativo Videoanalisando tem um aspecto de usabilidade diferenciado pois convida o usuário a percorrer todo o processo de videoanálise, sem a necessidade de ficar alternando telas, ou mudando de áreas de trabalho, isso é chamado “faseamento”, processo esquematizado na Figura 2.

As etapas dizem respeito ao processo que ocorre após a realização da filmagem, quando o usuário realiza a marcação da escala, a escolha dos eixos coordenados e faz a marcação dos pontos, até o desfecho com a gravação da análise.

Após instalado, o Videoanalisando não necessita conexão de internet para seu funcionamento e não possui propagandas, além disso, não exige nenhuma permissão especial além de acesso a pastas, algo comum para aplicações mobile. Para fazer o download do aplicativo é necessário acessar: http://videoanalisando.org, pois, como se trata de um produto educacional, ainda não é possível disponibilizá-lo diretamente na loja da Google.

4. Implementando o Videoanalisando

Para implementação do Videoanalisando como ferramenta mediadora para o ensino, foram realizadas algumas atividades exploratórias em sala de aula do ensino fundamental. Os alunos receberam uma introdução prévia de conceitos sobre Velocidade, Aceleração, Deslocamento e Distância Percorrida; a aula buscava um diálogo com a BNCC, em particular a habilidade EF07CI01 (Discutir a aplicação, ao longo da história, das máquinas simples e propor soluções e invenções para a realização de tarefas mecânicas cotidianas) [17[17] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Base Nacional Curricular Comum. Brasília, 2022. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/, acessado em 17/02/2022.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abas...
]. A escolha desta turma específica se deve ao fato de que um dos desenvolvedores atuou como seu professor de Física. Ademais, a experiência acumulada do grupo de pesquisa proporcionou apoio para a realização das tarefas.

A turma foi dividida em grupos de 5 alunos, em um total de 3 grupos. Tendo em vista a importância de ancorar o desenvolvimento da tecnologia a um referencial no campo da área da Educação, os autores optaram por uma abordagem baseada em trabalhos de Vygotsky [18[18] L.S. Vygotsky, A construção do pensamento e da linguagem (Martins Fontes, São Paulo, 2001).]. Neste contexto, para a realização da prática experimental, estimula-se o trabalho em equipe, tendo como princípio que a interação social só pode existir efetivamente quando relacionada ao desenvolvimento de uma tarefa específica. Além disso, deve existir, entre os parceiros, alguém que saiba realizar a tarefa (o parceiro “mais capaz”) conduzindo a um desenvolvimento decorrente da colaboração via imitação, porque na escola a criança não aprende o que sabe fazer sozinha, é necessário a colaboração de um professor. Este tema será abordado com mais profundidade em trabalho futuro, contudo, faz-se necessária esta menção ao referencial utilizado, a fim de também destacar que este projeto está associado a um doutorado profissional e, portanto, deve haver uma ligação orgânica entre o produto desenvolvido e as bases teóricas que lhe dão suporte, tendo em vista as discussões concernentes à importância de uma maior qualificação dos produtos educacionais desenvolvidos nos Programas de Pós-graduação Profissionais, para que haja reflexos diretos na melhoria da Educação Básica [19[19] I.M. Rizzatti, A.P. Mendonça, F. Mattos, G. Rôças, M.A.B.V. Silva, R.J.S. Cavalcanti e R.R. Oliveira, Actio: Docência em Ciências 5, 1 (2020).].

Para o processo investigativo, os alunos receberam o link para realizar download do Videoanalisando, da mesma forma, uma instrução demonstrativa pelo professor do procedimento para obtenção de dados. O vídeo, ilustrado na Figura 3, foi confeccionado em sala de aula a partir de uma experiência simples com os alunos; neste caso, procedeu-se à análise da queda-livre de um pincel usado para escrever em quadro-branco.

Figura 3
Vídeo de queda-livre produzido em sala de aula. Ao fundo, observa-se a escala (em incrementos de 10 cm) e o objeto em queda (indicado pela seta vermelha).

Na Aula seguinte, os alunos compartilharam com o professor seus resultados, marcação dos pontos, dados obtidos e gráficos gerados, conforme Figura 4.

Figura 4
Sequência de passos para Mapeamento, conforme realizado e entregue pelos alunos.

O aplicativo exporta um arquivo com extensão .CSV que pode ser compartilhado, ele possui dados tais como, coordenadas X e Y, tempo (em segundos), além de dados sobre o arquivo e a escala utilizada, conforme Figura 5.

Figura 5
Visão do arquivo .CSV do Experimento tratado no programa Excel®.
Figura 6
Mapeamento de dados do experimento utilizando o Tracker.

Todos os grupos conseguiram manipular facilmente o aplicativo, inclusive alguns alunos solicitaram que o professor sugerisse outros vídeos para mapeamento e sugeriram a possibilidade de analisar vídeos que estão no Youtube.

Os dados obtidos foram semelhantes entre si e, a partir dessa iniciativa, os alunos elaboraram hipóteses sobre a diferença entre aceleração e velocidade, além de diferenciar deslocamento e distância percorrida.

Num primeiro momento, o aplicativo foi desenvolvido a partir da experiência prévia do grupo de pesquisa, incluindo comparações com o programa Tracker. Foram realizadas diversas reuniões de planejamento, que conduziram a uma primeira versão. Esta foi utilizada extensivamente pelos membros do grupo, num processo que durou aproximadamente 12 meses, o que resultou na versão utilizada em sala de aula. A partir da experiência prospectiva com os alunos, foram realizadas diversas modificações, que implicaram na versão do programa que está atualmente disponível.

5. Validação Comparativa – Tracker x Videoanalisando

Para validar o programa desenvolvido, optamos por realizar um experimento simples, filmado com um telefone celular comum (30 quadros por segundo) e realizar a análise de vídeo com o Tracker e com o Videoanalisando. Trata-se de um experimento referente ao movimento parabólico em que um carrinho de brinquedo foi solto em uma pista de modo a que, ao final desta pista, pudesse sair em movimento parabólico. O experimento foi realizado em sala de aula e foram utilizados materiais de fácil acesso (carrinho, pista e banqueta para apoiar a pista). Na Figura 6, apresentamos a tela do Tracker, na qual é possível observar parte do movimento (quadro a quadro), e os gráficos da posição (horizontal, x, e vertical, y) em função do tempo. Na Figura 7, são apresentadas as telas correspondentes, quando o mesmo vídeo é tratado com o programa Videoanalisando. São notáveis as semelhanças entre as figuras, contudo, é necessário realizar o tratamento dos dados e, para isso, utilizamos as planilhas de dados (x, y, t) registradas com cada um dos programas.

Figura 7
Mapeamento de dados do experimento utilizando o Aplicativo Videoanalisando.

Na sequência, na Figura 8, apresentamos uma série de gráficos que foram produzidos a partir dos arquivos e tabelas gerados pelos programas Tracker e Videoanalisando. Nesta figura, observa-se o movimento em cada um dos eixos coordenados: as retas da posição horizontal versus tempo (um MRU) e as curvas da posição vertical em função do tempo (um MRUV). Dado que se trata de um movimento parabólico, fica evidente que os gráficos obtidos com o programa Videoanalisando são equivalentes àqueles obtidos com o Tracker. Realizando o tratamento dos dados, obtém-se a velocidade em x como sendo 1,24 m/s (+-0,01 m/s) com o Tracker e 1,23 m/s (+-0,01 m/s) com o Videoanalisando.

No caso do movimento vertical, o ajuste dos pontos experimentais implica em parábolas (tanto para o Tracker, quanto para o Videoanalisando), com valores de g equivalentes a 9,4 m/s2 (+-0,4 m/s2) e 9,8 m/s2 (+-0,4 m/s2), para o Tracker e para o Videoanalisando, respectivamente. Portanto, para um experimento padrão, como o aqui descrito, o Videoanalisando permite obter dados com qualidade semelhante àquela que se obtém quando o programa de escolha é o Tracker.

Figura 8
Gráficos comparativos Tracker vs. Videoanalisando.

No caso do Tracker, porque o programa é utilizado em computadores e notebooks, existe uma maior versatilidade para, por exemplo, manipular os dados obtidos nos experimentos. Dado que o Videoanalisando funciona em aparelhos móveis – e as telas dos smartphones tendem a ser menores – existem algumas dificuldades que daí emergem, por exemplo, a necessidade de manipular os dados em um ambiente de tamanho reduzido.

Dada a nossa experiência, a existência de canetas do tipo touch screen tende a otimizar e facilitar o uso do aplicativo, logo, é importante estabelecer experimentos significativos que possam ser realizados com o programa Videoanalisando.

Neste contexto, o uso da videoanálise com o Videoanalisando pode ser tomado como complementar ao uso de um programa mais elaborado, como o Tracker, porém, o Videoanalisando também pode ser empregado em aulas e atividades para as quais os aparelhos móveis constituam elemento facilitador da aprendizagem: há uma série de situações em sala de aula em que o simples fato de a maioria dos estudantes disporem de smartphones já implica em uma evidente vantagem no caso de professor e alunos disporem de um programa móvel como o Videoanalisando, porque assim é possível realizar atividades experimentais sem necessariamente terem que recorrer aos computadores.

Por exemplo, experimentos tais como os de queda livre, MRU, MRUV, movimento parabólico, pêndulos, oscilações, colisões (e conservação de momento e de energia) podem ser realizados a partir do uso do programa Videoanalisando. Daí a importância do aprofundamento e divulgação desta iniciativa, inclusive, o fato de ter sido desenvolvida enquanto recurso educacional aberto e estar assim disponível para o uso por toda a comunidade do ensino.

6. Considerações Finais

Acreditamos que, a partir da publicação deste trabalho – e com o programa Videoanalisando (http://videoanalisando.org) sendo conhecido por pesquisadores, docentes e estudantes – estará aberta uma nova fase no desenvolvimento deste programa que é a realização de experimentos diversos e atividades nele baseadas, por parte da comunidade. Isso, por sua vez, apontará para o potencial do Videoanalisando, incluindo pontos positivos e limitações. Neste contexto, por se tratar de um software desenvolvido no Brasil e por um grupo atuante na área de Ensino, acreditamos que será possível implementar mudanças e melhorias, em resposta aos questionamentos, experiências e sugestões da comunidade. Assim, os professores, pesquisadores e estudantes que se valem da videoanálise para incrementar o ensino de Física e de ciências passarão a ter mais uma ferramenta à sua disposição.

Referências

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    N.C. Saavedra Filho, J.A. Lenz, A.G. Bezerra Jr, M.A. Florczak e V.G. Garcia, Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia 10, 231 (2017).
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  • [3]
    A. Gaspar e I.C.C. Monteiro, Investigações em Ensino de Ciências 10, 227 (2005).
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    N. Studart, Revista do Professor de Física 3, 1 (2019).
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2022
  • Revisado
    10 Mar 2022
  • Aceito
    13 Mar 2022
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