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Octávio Gouvêa de Bulhões e a Revista Brasileira de Economia* * O autor agradece ao financiamento do CNPq.

Resumo

Este artigo contribui para a análise do pensamento econômico de Octávio Gouvêa de Bulhões. Analisam-se todos os artigo publicados por Bulhões na Revista Brasileira de Economia (RBE) de 1947 a 1986. A conclusão é que o autor tem um contribuição intelectual rica e diversificada. Esta avaliação contrasta com classificações generalistas de seu trabalho que, apesar de úteis para níveis introdutórios de discussão, não fornecem uma visão acurada e justa de sua contribuição. Bulhões apontou erros e fragilidades de seus contemporâneos e desenvolveu uma agenda de pesquisa que, até hoje, é essencial. Por estas razões, o autor é um dos mais instigantes economistas brasileiros do século XX.

Palavras-chave:
História do pensamento econômico brasileiro; Octávio Gouvêa de Bulhões; Revista Brasileira de Economia

1. Introdução

Nascido em 07 de janeiro de 1906, Octávio Gouvêa de Bulhões foi em seu tempo um dos mais importantes intelectuais e homens públicos do Brasil. No campo acadêmico merece destaque, entre outros feitos, sua participação como um dos fundadores da Fundação Getulio Vargas (FGV) e sua intensa colaboração na Revista Brasileira de Economia (RBE), na qual participou como membro do Conselho Editorial por quase quatro décadas e publicou vinte artigos científicos (Faro, 1990)Faro, C. d. (1990). Octávio Gouvêa de Bulhões e a revista brasileira de economia. Revista Brasileira de Economia, 44(4),489-491. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/view/7960
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Vale à pena destacar também a divulgação de suas ideias em livros, especialmente em “Economia e Política Econômica” (Bulhões, 1960b)Bulhões, O. G. d. (1960b). Economia e política econômica. Rio de Janeiro: Editora Agir. e “Dois Conceitos de Lucro” (Bulhões, 1969). No primeiro, já se denota uma das características distintivas do autor, sua capacidade de conjugar a análise teórica com a formulação de propostas de política econômica. Outra marca importante deste dois trabalhos, tal como apontado por Chacel (1990)Chacel, J. M. (1990). Bulhõeseseus escritos. Revista Brasileira de Economia, 44(4),493-496. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/view/7961
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, é a capacidade de diálogo de Bulhões com diversos autores e correntes do pensamento econômico. Tinbergen, Schumpeter, Lange, mas especialmente, Marshall, Hicks e Wicksell são referências centrais nestes trabalhos.

A difusão de suas ideias e o respeito intelectual, mesmo daqueles que divergiam de suas análises, também devem ser imputadas à sua personalidade. Maria da Conceição Tavares, um dos expoentes intelectuais da heterodoxia brasileira, em sua “A última homenagem ao mestre Bulhões”, afirma que “seu modo de ser, tolerante e aberto, era o de um verdadeiro liberal da velha estirpe, espécie hoje em extinção” (Tavares, 1990, p.1)

Além de suas contribuições acadêmicas, destacou-se como homem público dos mais ativos e importantes na área de economia. Sua carreira pública teve início em 1926 na Diretoria Geral do Imposto de Renda do Ministério da Fazenda antes, portanto, de se formar em direito pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro.1 1 Bulhões graduou-se em Direito no ano de 1930. Foi nomeado chefe da seção de Estudos Econômicos e Financeiros do Ministério da Fazenda em 1939 (Beloch & Abreu, 1984)Beloch, I., Abreu, A. A. d. (Orgs.). (1984). Dicionário histórico-biográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, CPDOC; Forense Universitária; Finep.. No exercício desta função merece destaque o seu papel na criação da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC). Foi de Bulhões a sugestão de criação do órgão em 1939 e coube a ele a redação original do decreto2 2 Decreto-Lei n° 7.293 de fevereiro de 1945. que criou o órgão, no qual exerceu a função de Diretor-executivo em dois momentos, entre 1954 e 1955, e entre 1961 e 1962 (Motta, 1995)Motta, M. S. (1995). Histórias de vida e história institucional: A produção de uma fonte histórica. In XVIII Simpósio Nacional de História , ANPUH, Recife.. Em sua visão, a criação do órgão, semente para a posterior criação do Banco Central do Brasil, foi fruto de um esforço coletivo, pois “(...) resultou de conversações frequentes entre os funcionários do Banco do Brasil, do Ministério da Fazenda e de alguns empresários. E, sobretudo, da orientação do professor Eugênio Gudin” (Bulhões, 1990).

Entre 1964 e 1967 foi ministro da Fazenda do primeiro governo militar. Ao lado de Roberto Campos, que ocupava o cargo de ministro do Planejamento, foi responsável por intensas transformações econômicas - sob a égide do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) - e pela promoção de um conjunto de reformas estruturais, especialmente no mercado de trabalho e nos sistemas financeiro e tributário. Como aponta, entre outros Resende (2014)Resende, A.L. (2014). Estabilizaçãoereforma: 1964-1967. In M. P. Abreu(Org.), Aordem do progresso: Dois séculos de política econômica no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier., os desafios de Bulhões à frente do Ministério da Fazenda estiveram longe de ser singelos. Em 1963, somava-se à turbulência política, resultados econômicos pífios, especialmente o baixo crescimento do PIB, a elevação do desemprego, a aceleração da inflação e a deterioração das contas externas e das finanças públicas.

Bielschowsky (1988)Bielschowsky, R. (1988). Pensamento econômico brasileiro: O ciclo ideológico do desenvol-vimentismo (Série PNPE No 9). Rio de Janeiro: Ipea/Inpes. e Saretta (2001)Saretta, F. (2001). Octavio Gouvêa de Bulhões. Estudos Avançados, 15(41), 111-125. http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9783
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, entre outros, sustentam que Bulhões foi um dos líderes intelectuais do “pensamento econômico neoliberal” no Brasil. Classificações desta natureza, ainda que ajudem no desenho de quadros mais gerais, úteis para estudos introdutórios, estão longe de dar conta da complexidade do pensamento econômico de autores sofisticados, como Bulhões.3 3 Os especialistas em história do pensamento têm ciência desta limitação. Saretta (2001), por exemplo, alerta que tais classificações sempre incorrem “na possibilidade de um reducionismo empobrecedor” (2001, p.112). Finalmente, classificações ex-post desta natureza nem sempre revelam a forma como os próprios autores se enxergavam em sua época. Roberto Campos, por exemplo, em seu livro de memórias, não diverge frontalmente da classificação “desenvolvimentista não nacionalista” atribuída a ele por Bielschowsky (1988), mas entende que a expressão “liberal desenvolvimentista teria sido talvez a verbiagem mais acurada” (Campos, 1994, p.168).

Este artigo pretende contribuir na análise da produção intelectual de Bulhões para além de sua classificação como expoente intelectual do pensamento “neoliberal”. Para tanto analisam-se todos os artigos publicados pelo autor na Revista Brasileira de Economia (RBE) entre os anos de 1947 e 1986. A amostra é formada por vinte trabalhos, em sua maioria artigos originais e de autoria individual.

Três ordens de fatores justificam este esforço de pesquisa. O primeiro diz respeito à promoção de uma análise mais acurada do pensamento econômico de um dos principais intelectuais do século XX. Em outros termos, pretende-se avançar para além da visão já reconhecida do autor enquanto um dos líderes do “pensamento neoliberal”. A reduzida atenção dispensada à obra de Bulhões, especialmente quando comparada a de outros autores, como por exemplo Celso Furtado, é outro estímulo para este trabalho. Finalmente, o terceiro e último elemento é de caráter memorial. Quase trinta anos após a sua morte,4 4 Bulhões faleceu em 1990. apesar de sua inegável importância histórica na construção da RBE, uma análise mais detalhada de sua contribuição acadêmica à Revista ainda não foi realizada, lacuna que se pretende cobrir com o presente trabalho.

O artigo é organizado da seguinte forma. Após esta introdução, discutem-se, a partir da literatura já estabelecida sobre o tema, os aspectos mais gerais da obra de Bulhões. Na sequência é apresentada a análise específica dos trabalhos do autor na RBE. A última seção apresenta as considerações finais do trabalho.

2. O pensamento econômico de Octávio Gouvêa de Bulhões

2.1 Aspectos Gerais: Bulhões e o "pensamento neoliberal"no pós-guerra

Octávio Gouvêa de Bulhões e Eugênio Gudin são reconhecidos pela literatura dedicada ao estudo do pensamento econômico no Brasil como expoentes intelectuais do “neoliberalismo” no imediato pós-guerra. Em essência, esta corrente de pensamento “defendia a prioridade da livre movimentação das forças de mercado como meio de atingir a eficiência econômica” (Bielschowsky, 1988Bielschowsky, R. (1988). Pensamento econômico brasileiro: O ciclo ideológico do desenvol-vimentismo (Série PNPE No 9). Rio de Janeiro: Ipea/Inpes., p.33). O prefixo “neo” adotado pela literatura tem um significado, indica o reconhecimento por parte destes autores que, no contexto das transformações vigentes na economia após 1930, era necessário adaptar o pensamento liberal clássico à realidade específica brasileira.

Bielschowsky (1988)Bielschowsky, R. (1988). Pensamento econômico brasileiro: O ciclo ideológico do desenvol-vimentismo (Série PNPE No 9). Rio de Janeiro: Ipea/Inpes. sustenta ainda que o “pensamento neoliberal” no imediato pós-guerra era caracterizado por três elementos básicos: i) Eram partidários da redução da intervenção do Estado na economia; ii) Manifestavam-se a favor de políticas de equilíbrio monetário e financeiro; e iii) Não propunham e, via de regra, eram contrários às medidas de incentivo à industrialização.

No que tange especificamente ao tema mais relevante dos debates do imediato pós-guerra, o papel da industrialização para o desenvolvimento, destacam-se as críticas elaboradas por Gudin e Bulhões ao ativismo estatal e à indução do processo de industrialização pretendidas pelos desenvolvimentistas. Vale lembrar, tal como apresentado por Goldenstein (1994)Goldenstein, L. (1994). Repensando a dependência. Rio de Janeiro: Paz & Terra., ? e Fonseca (2015), que no imediato pós-guerra a agenda desenvolvimentista, proposta entre outros por Roberto Simonsen e Celso Furtado, advogava que a superação do subdesenvolvimento seria alcançada através de um intenso processo de industrialização. Para atingir este objetivo, dadas as limitações do capital privado nacional, a participação do Estado como planejador e investidor direto num conjunto de atividades produtivas seria imprescindível.

Os neoliberais se opunham aos desenvolvimentistas tanto no que tange à necessidade de industrializar, quanto ao papel de liderança atribuída ao Estado para o desenvolvimento. Não se tratava de negar a importância da diversificação das atividades produtivas, desde que este processo fosse conduzido prioritariamente a partir de decisões de mercado. Os neoliberais concentraram suas críticas ao processo de industrialização brasileiro que, desde a era Vargas, se caracterizava pela primazia da lógica e das ações governamentais na alocação de recursos e que relegava a um plano marginal as decisões de mercado. Os neoliberais não eram, portanto, contrários à industrialização; mais adequado é dizer que criticavam a excessiva intervenção estatal e a promoção de uma “industrialização artificial”, tal como apresentado, entre outros por Bielschowsky (1988)Bielschowsky, R. (1988). Pensamento econômico brasileiro: O ciclo ideológico do desenvol-vimentismo (Série PNPE No 9). Rio de Janeiro: Ipea/Inpes. e Curado (2013)Curado, M. (2013). Industrialização e desenvolvimento: Uma análise do pensamento econômico brasileiro. Economia e Sociedade, 22(3), 609-640. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-06182013000300002
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O processo de desenvolvimento econômico não tinha, da perspectiva “neoliberal” um recorte setorial. Diferentemente de desenvolvimentistas que enxergavam na indústria características essenciais para o desenvolvimento, para Gudin e Bulhões o relevante era a ampliação da produtividade, independentemente do setor produtivo; fosse ele a agricultura, a indústria ou o setor de serviços. É bastante conhecida a defesa de Gudin deste argumento em seu debate nas “controvérsias do planejamento” com o desenvolvimentista Roberto Simonsen, ao afirmar que “um dos argumentos mais correntes a favor de nossa industrialização é o de que os países industrializados são ricos e os países de economia agrícola ou extrativa são pobres. Como princípio, não é verdadeiro ... a economia agrícola pode formar um país muito rico e de alto padrão de vida. Para nós brasileiros, basta que olhemos para a Argentina (Gudin, 1945/2010, p.105)

Em síntese, para os neoliberais a elevação da produtividade, decorrente de novos investimentos produtivos, era a variável central para o desenvolvimento de uma nação. O recorte setorial, essencial para os desenvolvimentista e para o argumento da necessidade de industrializar, não encontravam eco no pensamento de Gudin e Bulhões, sendo, na maior parte do tempo, duramente criticado.

O baixo nível de poupança doméstico era tido como um entrave à expansão dos investimentos e da produtividade. A solução para o problema encontrava-se em promover políticas de incentivo à poupança e atrair capitais estrangeiros, especialmente os de natureza produtiva. Finalmente, dentre os elementos marcantes da “retórica neoliberal” liderada por Gudin e Bulhões, cabe destacar a argumentação favorável à abertura comercial. A ampliação da competição externa era tida como essencial para tornar mais eficiente a estrutura produtiva doméstica.

Ainda no contexto desta breve caracterização da corrente neoclássica liderada por Gudin e Bulhões, deve-se ressaltar a preocupação com o problema inflacionário, fruto, em essência, da expansão monetária utilizada para financiar os desequilíbrios fiscais. O controle da inflação era a tarefa prioritária do governo; elemento que distanciava os neoclássicos dos desenvolvimentistas, tendo em vista que para os últimos o controle da inflação, ainda que importante, não poderia se sobrepor à transformação da atividade produtiva resultante do processo de industrialização. Boianovsky (2012)Boianovsky, M. (2012). Celso Furtado and the structuralist-monetarist debate on economic stabilization in Latin America. History of Political Economy, 44(i2 ), 277-325. apresenta evidências de que para Celso Furtado, na década de 1950, a ampliação da capacidade produtiva derivada do processo de industrialização ajudaria a conter o processo de inflação. Neste contexto, políticas contracionistas para conter a inflação, apenas agravariam o problema, segundo Furtado.

A caracterização mais geral das correntes de pensamento, especialmente as controvérsias entre “desenvolvimentistas e neoliberais” no imediato pós-guerra, é tema amplamente discutido pela literatura, não valendo a pena estender-se neste ponto para além dos elementos gerais já expostos. É reconhecido, tal como defendido por Bielschowsky (1988)Bielschowsky, R. (1988). Pensamento econômico brasileiro: O ciclo ideológico do desenvol-vimentismo (Série PNPE No 9). Rio de Janeiro: Ipea/Inpes. e Saretta (2001)Saretta, F. (2001). Octavio Gouvêa de Bulhões. Estudos Avançados, 15(41), 111-125. http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9783
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, que Bulhões foi um dos “líderes intelectuais do neoliberalismo” o que implica, como argumentado, a defesa da primazia das forças do mercado na alocação dos recursos produtivos e da concentração dos esforços do Estado no controle da inflação. A caracterização está longe, no entanto, de fornecer um quadro mais completo da contribuição intelectual do autor, tema que se pretende avançar na próxima seção.

2.2 Bulhões e a Revista Brasileira de Economia

No intuito de avançar para além destes elementos mais gerais e promover uma análise mais acurada e diversificada do pensamento de Bulhões, definiu-se uma estratégia. Optou-se por promover uma revisão dos artigos publicados por Bulhões na Revista Brasileira de Economia (RBE) entre 1947 e 1986, ano em que publicou seu último artigo na Revista. A escolha desta estratégia para abordar o tema tem duas vantagens. A primeira é que delimita de forma precisa o material analisado; a segunda é que fornece uma amostra representativa das preocupações e análises de Bulhões sobre um amplo conjunto de temas.

Bulhões publicou seu primeiro artigo na RBE em 1947Bulhões, O. G. d., Kingston, J. (1947). A política monetária para 1947. Revista Brasileira deEconomia, 1(1), 9-50. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/view/2473
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. O trabalho, em co-autoria com Jorge Kingston, intitulado: “A política monetária para 1947”, apresenta uma análise detalhada da evolução dos meios de pagamento e das condições de crédito para este ano. O trabalho conclui que o superávit comercial era a principal fonte de ampliação dos meios de pagamento durante os anos da Guerra. Vale lembrar que durante o período da II Grande Guerra o Brasil registrou uma forte expansão em seus superávits comerciais, fruto do aumento do valor das exportações e das restrições às importações derivadas do esforço de guerra nos países centrais.5 5 Em dólares correntes, o superávit comercial brasileiro saltou de US$51,4 milhões em 1940 para US$332,6 milhões em 1945 (Abreu, 2014, anexo estatístico). Outro aspecto que merece destaque, especialmente pela recorrência em sua obra, é a associação entre o desequilíbrio fiscal, a expansão dos meios de pagamento e a inflação. O autor sustenta que em 1947 “persiste, de maneira latente, a fonte de inflação do Tesouro” (Bulhões & Kingston, 1947, p.22).

Ainda que o foco do trabalho seja a análise da expansão dos meios de pagamento e do crédito, o artigo também apresenta uma discussão sobre as perspectivas de curto prazo da economia brasileira. O foco, no que tange especificamente às expectativas, encontrava-se na preocupação com os efeitos depressivos que poderiam advir da redução da demanda externa a partir do fim do conflito e o retorno de produtores tradicionais ao comércio internacional de manufaturas. O olhar em retrospectiva confirma a expectativa pessimista de Bulhões. De fato, como apresenta Vianna (2014)Vianna, S. B. (2014). Política econômica externa e industrialização. In M. P Abreu (Org.), A ordem do progresso: Dois séculos de política econômica no Brasil (pp. 1946-1951). Rio de Janeiro: Elsevier., as exportações de manufaturas, que chegaram a representar 20% da pauta de exportação do país em 1945, caíram para 7,5% em 1946, em função do retorno dos produtores tradicionais ao mercado.

Bulhões não se restringiu, no entanto, apenas à elaboração do diagnóstico. O artigo apresenta um rol de medidas de política econômica, como por exemplo a sugestão de “diminuir os créditos do Banco do Brasil ao Tesouro”, que tinham como objetivo constituir “um conjunto harmônico de medidas monetárias e amonetárias como programa de combate à inflação e de cautela contra a depressão” (Bulhões & Kingston, 1947, p.29).

Em 1948, publicou o artigo: “Índices de preços no Brasil” (Bulhões, 1948)Bulhões, O. G. d. (1948). Índices de preços no Brasil. Revista Brasileira de Economia, 2(2), 49-91.. Trata-se de um trabalho técnico, cuja ênfase era promover uma discussão, comum na época, sobre o significado e a metodologia mais adequada à formulação dos índices de preços. O autor destaca a existência de problemas nos índices calculados pelo IBGE, especialmente no que tange a limitação na composição da cesta de bens analisada. Seu caráter técnico, no entanto, torna o material menos rico no que se refere à análise do pensamento econômico. Vale a pena como registro, no entanto, a preocupação do autor com a precisão da mensuração da variação dos preços.

Em 1949, a RBE publicou um extenso material com o título: “Lei monetária: exposição perante à Comissão de Indústria e Comércio”. O documento é composto por quatro elementos: i) O texto do projeto de Lei Monetária, apresentado pelo deputado Alde Sampaio; ii) O parecer do deputado Daniel Faraco; iii) O voto do autor contrário ao parecer do relator; e iv) A exposição do professor Octávio Gouvêa de Bulhões, à época chefe da seção de Estudos Econômicos e Financeiros do Ministério da Fazenda, na Comissão de Indústria e Comércio. A análise será concentrada no último ítem. Vale, no entanto, uma breve nota sobre a proposta. Seu principal objetivo, destacado tanto pelo parecer de Daniel Faraco, quanto pela exposição de Bulhões, era estabelecer um conjunto de regras para a emissão monetária, reduzindo substancialmente o grau de discrionariedade da política monetária, com o objetivo final de promover “a regulação automática do meio circulante” (Bulhões, 1949, p.128).

A exposição oral de Bulhões transcrita pela RBE, incluindo os questionamentos dos debatedores, deixa claro o posicionamento favorável à construção de regras para nortear a execução da emissão de moeda que, após o abandono do padrão-ouro, havia se tornado alvo de extrema discrionariedade. O autor, no entanto, apresenta severas críticas ao caráter automático da proposta, especialmente por “procurar dar uma precisão mecânica à dosagem dos meios de pagamento” (Bulhões, 1949, p.137). A emissão de papel moeda não poderia ser mecanicamente definida, tal como definido na proposta de Lei, dada a necessidade de adaptar a emissão monetária às flutuações no nível de atividade e na inflação.

Em 1952, o artigo “Economia e nacionalismo” apresenta elementos chaves das objeções do autor ao nacionalismo econômico (Bulhões, 1952)Bulhões, O. G. d. (1952). Economia e nacionalismo. Revista Brasileira de Economia, 6(1), 91-117. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/view/2383
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. O artigo critica a opção pela nacionalização da propriedade do subsolo - que implicava na propriedade estatal do petróleo e outros recursos minerais - e o movimento contra a transferência de lucros para o exterior. O artigo reflete sua preocupação com a exacerbação do nacionalismo no contexto da campanha do “Petróleo é Nosso” e do decreto n° 30.363 de 3 de janeiro de 1952, que limitava o retorno de capital estrangeiro investido no país.

Para o autor, a limitação da atuação do capital estrangeiro no setor de petróleo e os entraves à transferência de lucros para o exterior restringiam a possibilidade de investimentos estrangeiros, o que contribuía para atrasar o desenvolvimento econômico do país. O argumento nacionalista incorreria num erro básico: confundir a proteção de produtores nacionais com bem-estar social. Bulhões parte da premissa smithiana de que “o consumo é a finalidade dos atos econômicos” (Bulhões, 1952, p.92) e que a competição é o móvel para o processo de ampliação das inovações e da produtividade, pois “se o mercado fôr aberto, exclusivamente, para um determinado grupo de produtores ... estes preferirão seguir o caminho da rotina e da escassez” (Bulhões, 1952, p.93).

Bulhões imputa a Friedrich List boa parte dos equívocos nacionalistas ao confundir progresso e bem-estar econômico com o desenvolvimento das “forças de produção” de propriedade nacional. Para Bulhões o bem-estar econômico seria obtido, na terminologia atual, através da maximização do consumo da sociedade, pouco importando a origem de propriedade do capital responsável pela produção. A política de restrição ao capital estrangeiro beneficiava apenas um grupo restrito de produtores em detrimento do bem-estar global.

Nosso autor enveredou também pelo campo da metodologia e da teoria econômica. O artigo “Previsão Econômica e Investimentos”, publicado em 1956, é um exemplo deste tipo de preocupação. O trabalho analisa os limites das previsões realizadas pela ciência econômica, especialmente em comparação com as ciências da natureza, como a Física. Bulhões destaca a impossibilidade de prever os “atos lógicos” e os “não lógicos” dos indivíduos para compreender os limites da ciência econômica. Apesar destas limitações, decorrentes da natureza do objeto investigado, o comportamento humano, o autor sustenta que a teoria pode ajudar na compreensão das trajetórias econômicas, especialmente do processo de crescimento do produto. Para tanto, em leitura explicitamente influenciada pelo modelo de Harrod, argumenta que a análise da dinâmica econômica deve concentrar seus esforços em entender a determinação dos níveis de investimento e consumo. Em suas palavras, “o problema do investimento ... expressa a tendência da evolução econômica” (Bulhões, 1956, p.16).

O investimento desempenha um papel central na determinação da dinâmica econômica para Bulhões. O texto revela também com clareza sua principal referência teórica no tema referente à determinação dos investimentos. Para o autor, “falar em investimento é falar na contribuição de Wicksell” (Bulhões, 1956, p.9), especialmente por ter sido Wicksell o responsável por compreender o investimento como resultado de uma “produção indireta”, ou seja, como o resultado do acréscimo da renda que não foi consumido, tema que foi recorrentemente abordado em diversos trabalhos de Bulhões.

O trabalho “Algumas considerações sobre valor e formação de preços”, publicado em 1957, apresenta uma análise de natureza teórica sobre a formações de preços, valor e o papel do excedente no sistema econômico. Chama atenção a diversidade de abordagens teóricas trabalhadas para tratar o tema, que passa por discussões de autores contemporâneos como Gaetan Pirou, Paul Samuelson e Nicolas Kaldor, mas também por autores clássicos como Smith, Ricardo e Marx, austríacos, como Bohm-Bawerk e institucionalistas como Thorstein Veblen. Não deixa de ser curiosa a relevância depositada às discussões sobre questões teóricas como a determinação “do valor”. O autor chega a afirmar que “o estudo do valor constitui o alicerce das Cadeiras que têm ligação mais direta com os problemas da vida econômica” (Bulhões, 1957Bulhões, O. G. d. (1957). Algumas considerações sobre “Valor e Formação de Preços” (Aspectos teóricos e práticos). Revista Brasileira de Economia, 11(2' ), 39-87. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/viewFile/1879/2760
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, p.53).

A discussão sobre alocação de recursos, especificamente a relação entre consumo, poupança e investimento é outro tema abordado no artigo, tal como em seu trabalho do ano anterior. “Se se reconhece que a expansão dos investimentos exige a utilização de parte apreciável do acréscimo da renda, não há lugar para o aumento do consumo. Se ao contrário, se opta pelo consumo, então dever-se-á renunciar aos investimentos” (Bulhões, 1957Bulhões, O. G. d. (1957). Algumas considerações sobre “Valor e Formação de Preços” (Aspectos teóricos e práticos). Revista Brasileira de Economia, 11(2' ), 39-87. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/viewFile/1879/2760
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, p.54). Oautor comunga assim comavisão dominante à época entre analistas de diversas matrizes, tais como Gudin e Prebisch, sobre a necessidade de ampliar a poupança para alavancar os investimentos.

O autor trava ainda uma discussão com Celso Furtado. Em “Contribuições à análise do desenvolvimento econômico”, Furtado sustenta que nos países desenvolvidos os salários seriam determinados a partir da produtividade marginal do trabalho, enquanto nos subdesenvolvidos prevalecia o princípio do “mínimo de subsistência”. Para Bulhões, o que determinava o baixo salário da agricultura brasileira era a sua baixa produtividade, elemento que limitava a remuneração ao nível de subsistência. Ampliações na produtividade teriam como consequência uma elevação dos salários, desde que mantida a escassez do fator de produção.

Finalmente, vale realçar a sugestão final do autor sobre a forma para se encontrar um “desenvolvimento equilibrado”. Para Bulhões, ainda que seja uma tarefa complexa, o “aumento dos salários, em função do acréscimo de lucros de cada empresa é o caminho mais acertado para alcançar-se um desenvolvimento equilibrado” (Bulhões, 1957, p.64). O autor apresentava, portanto, uma preocupação com a geração de um desenvolvimento equilibrado, no qual os frutos do progresso deveriam ser repartidos entre trabalhadores e empresários. Vale o registro que este tema foi abordado em outras obras do autor, especialmente em sua fase mais madura.

Em 1958, publicou em parceria com Margaret Hanson da Costa, o artigo “Pressão dos financiamentos sobre o produto nacional”. Os autores definem a pressão por financiamento como “a evolução desproporcionada da parcela do produto nacional que se destina a financiar as despesas de consumo do governo e os investimentos públicos e privados” (Costa &Bulhões, 1958Bulhões, O. G. d. (1958). Mercado e planificação. Revista Brasileira de Economia, 12(2), 29-65. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/download/1859/2620
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, p.29). A partir de um conjunto de evidências empíricas, sustentam que, entre 1950 e 1956, a pressão por financiamento foi significativa, já que seu crescimento foi superior ao do produto.

Dois aspectos se sobressaem no texto. O primeiro é que os autores identificam no crescimento dos investimentos o elemento chave para o desenvolvimento, repetindo, portanto, os argumentos apresentados nos trabalhos de 1956 e 1957. Ao comentar o crescimento dos financiamentos para os investimentos, sustentam que “sem sobra de dúvida é esse o caminho aconselhável para chegar-se ao progresso” (Costa &Bulhões, 1958Costa, M. H., Bulhões, O. G. d. (1958). Pressão dos financiamentos sobre o produto nacional. Revista Brasileira deEconomia, 12(1), 29-42. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/download/1855/2612
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, p.32). Finalmente, caberia enfatizar a preocupação com o crescimento das despesas do governo e dos déficits orçamentários, assim como sua relação com a inflação, tendo em vista que “a expansão inflacionária ... tem como causa preponderante o déficit orçamentário” (Costa & Bulhões, 1958, p.39).

Este último tema é especialmente importante da ótica da história do pensamento. Vale lembrar que neste momento, o pensamento estruturalista cepalino, como pode ser observado em trabalhos de Furtado, sustentava que a inflação brasileira era estrutural, fruto do processo de industrialização, desvinculando-a do resultado fiscal, tal como observado por Boianovsky (2012)Boianovsky, M. (2012). Celso Furtado and the structuralist-monetarist debate on economic stabilization in Latin America. History of Political Economy, 44(i2 ), 277-325.. Em outros termos, a conclusão de Costa e Bulhões (1958)Costa, M. H., Bulhões, O. G. d. (1958). Pressão dos financiamentos sobre o produto nacional. Revista Brasileira deEconomia, 12(1), 29-42. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/download/1855/2612
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é um exemplo da leitura que ajudou na construção da visão sobre as causas primárias da inflação e seus vínculos com o financiamento dos desequilíbrios fiscais.

Em 1958 Bulhões publicou mais um artigo na RBE. “Mercado e planificação” é um exemplo da produção de natureza teórica do autor. Trata-se de um longo trabalho no qual discute temas como a divergência entre “preços de mercado” e “preços de equilíbrio” e a discordância entre interesse privado e social na alocação de investimentos produtivos. Sobre este segundo ponto, chama atenção a vinculação entre a definição dos investimentos e a inflação. Em sua visão, boa parte das distorções existentes na alocação de investimentos em países subdesenvolvidos decorria de problemas inflacionários. “Em ambiente de intensa e sistemática desvalorização da moeda, os investidores passam a aplicar seus recursos em conflito com os interesses gerais” (Bulhões, 1958, p.42). A inflação e a elevação da incerteza que ela produz promoveriam uma concentração em investimentos de curto prazo, em detrimento de inversões de longo prazo.

O artigo é também um exemplo de que Bulhões se afasta de uma discussão rasa: mercado x Estado. Como ponto de partida, admite que “o afastamento dos preços do nível de equilíbrio decorre da inadequada política governamental e não do fato do Estado intervir no domínio econômico” (Bulhões, 1958, p.46). Trata-se, portanto, muito mais de um problema vinculado ao instrumento utilizado para promover a intervenção do que propriamente o ato de intervir. O autor estabelece duras críticas ao uso de instrumentos monetários e, especialmente cambiais, para promover intervenções no sistema, mas defende o uso de instrumentos fiscais de intervenção. Em sua visão, “o sistema fiscal é um excelente instrumento de intervenção do Estado no domínio econômico, porque é capaz de proporcionar incentivos à produção ou de disciplinar suas forças, bem como as tendências de consumo, sem provocar desequilíbrios no mercado de preços” (Bulhões, 1958, p.50).

O artigo “Algumas considerações sobre as fases do desenvolvimento econômico” de 1960 relata suas reflexões sobre um conjunto de trabalhos apresentados na International Economic Association Conference realizada em Konstanz, na Alemanha. O modelo de fases de desenvolvimento elaborado por Rostow no trabalho “Leading sectors and the take-off” e as críticas elaboradas por Kuznets ao trabalho foram os temas centrais do encontro acadêmico. Apesar do reconhecido valor acadêmico dos trabalhos, Bulhões critica tanto a abordagem de Rostow como as considerações de Kuznets. Sua conclusão sobre o tema está longe de ser um libelo à humildade: “Das considerações feitas por Rostow e das críticas alinhadas por Kuznets, cheguei a conclusão de que o documento que eu preparara para a Conferência continha observações mais exatas do eu mesmo supusera ao redigi-las” (Bulhões, 1960a, p.8).

Em essência, Bulhões retoma o argumento recorrentemente apresentado sobre a relevância dos investimentos para o crescimento. Há, no entanto, um elemento novo,6 6 No que tange ao conjunto de trabalhos abordados nesta seção. a separação analítica do que define como investimentos materiais e imateriais; estes últimos especialmente vinculados aos esforços educacionais. “O esforço que se desenvolve atualmente no sentido de medir os vários elementos que contribuem para a taxa de acréscimo da renda nacional, poderia, a meu ver, ter maior significação se nos orientássemos pela divisão dos investimentos em materiais e imateriais” (Bulhões, 1960a, p.14). Em algum sentido, Bulhões intuitivamente incorporou à sua análise sobre o crescimento, ainda que de forma rudimentar, o elemento educacional que, nas décadas seguintes, a partir das contribuições de Robert Lucas e Paul Romer e do desenvolvimento dos modelos de crescimento endógeno, tornar-se-ia o centro da teoria de crescimento de longo prazo.

Em 1961, a RBE publicou o artigo “Alguns aspectos da ação do mecanismo dos preços”. Trata-se de uma síntese dos pontos principais de duas palestras realizadas pelo autor na Escola de Administração de Empresas, da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo e na Escola Técnica da Aeronáutica, em São José dos Campos. Neste artigo, vários aspectos discutidos em trabalhos anteriores são novamente apresentados. Em especial, há considerável repetição de argumentos elencados em “Mercado e planificação”, publicado em 1958, como por exemplo, a crítica ao uso de instrumentos monetários e, especialmente cambiais, para promover intervenções do governo na economia e a defesa do uso de instrumentos fiscais, especialmente subsídios diretos como forma de ampliar a oferta em setores específicos.

A comparação estabelecida por Bulhões entre os problemas na alocação de investimentos na Rússia, na Polônia e no Brasil - a partir de suas observações de uma palestra de Oscar Lange em fins de 1960, no Instituto Brasileiro de Economia da FGV - é um argumento original do trabalho. Em todos estes países deu-se, de forma equivocada na visão de Lange e Bulhões, um impulso significativo às atividades industriais em detrimento da agricultura. No caso dos países comunistas, o erro era derivado diretamente das intervenções estatais. No caso brasileiro, além das questões relativas ao câmbio, o autor destaca que “enveredamos pela estrada da fixação dos preços de produtos agropecuários”, que desestimulam a produção e a exportação. Num plano mais geral, “em ambos os países se deixou de reconhecer a validade da formação de preços, como índice de orientação econômica” (Bulhões, 1961, p.7).

Em 1966, já ocupando o cargo de Ministro da Fazenda, Bulhões publicou na RBE o curto7 7 O artigo tem apenas 4 páginas. artigo “O combate à inflação e as vinculações orçamentárias”, no qual apresenta suas considerações sobre as críticas estabelecidas pelo professor Eugênio Gudin ao programa governamental de combate à inflação. É necessário lembrar que Bulhões, ao lado de Roberto de Oliveira Campos, então Ministro do Planejamento e Coordenação Econômica, foi um dos elaboradores do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), que definiu uma estratégia gradualista de combate à inflação.

Em suas memórias, Campos ressalta que “a filosofia do PAEG diferia daquela recomendada pelo FMI. Em primeiro lugar, este julgava necessário um tratamento de choque” (Campos, 1994, p.612). Gudin alinhava-se às posições do FMI e entendia que a estratégia gradualista adotada pelo PAEG dificultaria o combate à inflação. No trabalho de 1961, Bulhões apresenta dois argumentos em favor do gradualismo. Em primeiro lugar, ressaltava a existência de uma “inflação reprimida”, decorrente de uma série de congelamentos, implementados por motivos “demagógicos” no passado recente. Os desequilíbrios criados por estes congelamentos precisavam ser corrigidos através da liberalização de um conjunto de preços, o que certamente promoveria uma elevação da inflação no curto prazo. A correção destes desequilíbrios tornava inexequível a adoção de um choque anti-inflacionário. Neste contexto, “o emprego de medidas drásticas não seria compensado pela rapidez da reação econômica. Cairíamos em depressão”. (Bulhões, 1966, p.34).

O segundo argumento apresentado por Bulhões em favor do gradualismo diz respeito a dificuldade de se promover um ajuste fiscal no curto prazo, fruto da expansão das vinculações orçamentárias, que criou uma “incontrolável torrente de despesas públicas” (Bulhões, 1966, p.36). O então ministro da Fazenda apontava para a impossibilidade de promover-se, ao menos no curto prazo, o equilíbrio orçamentário. A melhora nas finanças públicas ocorreria de forma gradual. Como o controle da inflação dependia do equilíbrio fiscal, era inviável imaginar-se uma queda abrupta da inflação. Em outros termos, a profusão de vinculações orçamentárias e a dificuldade em reduzi-las no curto prazo seriam elementos adicionais na justificativa da adoção de uma política gradualista de combate à inflação.

“A Economia da Universidade ao Governo”, publicado em 1967, tem como ponto de partida a nítida insatisfação do autor com os rumos seguidos pela ciência econômica e pelos debates nacionais sobre economia. “O extraordinário, porém, é a repetição dos argumentos ilógicos, impregnados dos mesmos preconceitos, no correr dos séculos” (Bulhões, 1967Bulhões, O. G. d. (1967). A economia da universidade ao governo. Revista Brasileira de Economia, 21(3), 37-69. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/download/1739/5898
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, p.37). Para superar este impasse os formuladores de política deveriam combinar os conhecimentos obtidos nas Universidades com as evidências colhidas da realidade. Em especial, o autor apresenta três temas sobre os quais pretende contribuir, eliminando os argumentos ilógicos e os preconceitos:

i) Preços relativos e nível geral de preços; ii) Lucros em geral e lucro do investimento; e iii) taxa de juros na ascensão e no declínio da inflação.

A primeira discussão promove uma recuperação das reflexões do autor sobre o comportamento dos preços e os meios de pagamento, assim como a relação entre inflação e investimentos. Reafirma-se didaticamente que “para bem compreendermos a evolução dos preços, devemos nos empenhar em explica-la de maneira direta com as variações nos meios de pagamento, tendo em vista que o preço nada mais é do que a relação entre quantidade de mercadoria e quantidade de dinheiro” (Bulhões, 1967Bulhões, O. G. d. (1967). A economia da universidade ao governo. Revista Brasileira de Economia, 21(3), 37-69. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/download/1739/5898
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, p.39). O caráter nocivo da inflação sobre os investimentos é igualmente reafirmado.

Sobre o segundo tema, dois aspectos chamam atenção. Em primeiro lugar, o autor promove uma longa discussão sobre a fonte dos lucros, na qual se esforça para demonstrar que os lucros são derivados do aumento de produtividade decorrente dos investimentos. Associado a este primeiro elemento, argumenta que a ideia do lucro como uma transferência de renda é um equívoco, um preconceito, fruto de ideologia. Bulhões estabelece duras críticas à concepção de que existiría um inerente conflito de interesses entre trabalhadores e empresários, tal como sustentado pelos socialistas. “O lucro do investimento, pelo fato de resultar do acréscimo de produtividade, permite a obtenção de um excedente de produção que a todos favorece: consumidores, assalariados e capitalistas ... Não se retira parcela alguma de ninguém” (Bulhões, 1967, p.46).

Por fim, apresenta sua visão sobre a relação entre inflação, juros e investimentos. Numa seção na qual as referências teóricas limitam-se às contribuições de Bohm-Bawerk, conclui que “se houver estabilidade de preços em geral, a taxa de juros ... manter-se-á estável e em nível módico” (Bulhões, 1967Bulhões, O. G. d. (1967). A economia da universidade ao governo. Revista Brasileira de Economia, 21(3), 37-69. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/download/1739/5898
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, p.52). Esse resultado acaba gerando um corolário adicional: em regime de estabilidade monetária, a taxas de juros, por ser estável e muito baixa, não representaria empecilho à realização de investimentos.

O trabalho é formado ainda por dois longos anexos. No segundo, Bulhões apresenta uma discussão da sua compreensão sobre alguns elementos específicos da “Teoria Geral” de Keynes, particularmente o funcionamento do mecanismo multiplicador dos gastos. Em sua revisão sobre o ponto, concorda com Keynes que o investimento é o ponto de partida do processo de formação da renda. “O elemento importante no aumento da renda é o multiplicador, através do consumo” (Bulhões, 1967, p.68). No entanto, observa que o mecanismo multiplicador somente poderia funcionar “numa economia sob impacto da depressão”. O argumento é simples: a elevação dos gastos somente poderia ter efeitos sobre o nível de atividade se a economia operasse abaixo do pleno emprego. Caso a economia estivesse em pleno emprego o efeito multiplicador sobre a atividade, por definição, não ocorreria. A obra de Keynes era, portanto, dedicada ao estudo de uma economia que operava abaixo do pleno emprego ou “sobre o impacto da depressão”. É interessante notar como Bulhões a partir de uma singela observação chega ao resultado compartilhado pelos principais intérpretes de Keynes em sua época, especialmente as contribuições de Harrod (1937)Harrod, R. F (1937). Mr, Keynes and traditional theory. Econometrica, 5(1), 74-86. http://dx.doi.org/10.2307/1905402
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e Hicks (1937)Hicks, J. R. (1937). Mr. Keynes and the “classics”: A suggested interpretation. Econometrica, 5(2), 147-59. http://dx.doi.org/10.2307/1907242
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.

Em 1968, Bulhões publicou na RBE o artigo “Os impostos e os problemas econômicos”, no qual analisa a evolução da política tributária brasileira. O autor critica a rápida expansão da arrecadação de impostos indiretos, especialmente sobre circulação e produção, e aponta à necessidade de ampliação da arrecadação do imposto de renda. A principal crítica à expansão dos impostos indiretos refere-se ao desestímulo criado à expansão da produção, do consumo e dos investimentos. São apresentadas estimativas sobre o peso destes tributos, “a soma dos dois impostos - o de circulação e o de produtos industrializados recai sobre os bens de produção com um encargo da ordem de 30%. A percentagem é significativa, uma vez que, provavelmente representa uma tributação de 20% a 25% sobre o valor do investimento” (Bulhões, 1968, p.51).

A reduzida arrecadação do imposto de renda era fruto, na visão do autor, de uma combinação de fatores, a saber: a ampla margem de isenções, que limitava a base de arrecadação do imposto; a excessiva progressividade do tributo, que estimulava a evasão fiscal e a concessão excessiva de créditos tributários, que reduzia o volume arrecadado. Bulhões era a favor de uma ampliação da base de incidência do tributo e de uma adequação de sua progressividade. Ao contrário de Friedman, citado na discussão, não via a necessidade de uma redução radical no caráter progressivo do IR; mas sim a necessidade de promover um ajuste com intuito de reduzir a evasão fiscal.

As considerações feitas por Bulhões a respeito de Friedman são, no mínimo curiosas, e merecem o relato. De acordo com Bulhões, “Muito embora Milton Friedman seja um professor de reconhecida competência, é autoridade pouco citada e ainda menos seguida, devido ao liberalismo extremo que sustenta” (Bulhões, 1968, p.52). Como sabemos hoje, Friedman se tornaria uma referência fundamental do monetarismo, corrente que nos anos 1970 ocupou um lugar de destaque na teoria macroeconômica em nível internacional.

“Considerações adicionais sobre investimentos”, publicado em 1970 em parceira com Carlos Alberto Consenza, é um trabalho de natureza teórica dedicado ao estudo da variável investimento a partir de uma releitura da contribuições de Bohm-Bawerk, Wicksell e Keynes. Vários elementos expostos por Bulhões sobre o tema ao longo de sua trajetória são formalmente apresentados. Chama atenção o reforço da ideia do investimento como fruto de uma produção indireta, atribuída especialmente a Wicksell, e o lucro como “resultado da maior produtividade da nova escala de produção” (Bulhões & Consenza, 1970, p.15).

Não há no trabalho qualquer elemento de inovação em relação à literatura de referência, servindo o trabalho para consolidar, de uma perspectiva teórica, vários elementos da análise do autor sobre o investimento. Tal como em outros trabalhos, o autor defende que o investimento e seu efeito sobre a produtividade dos fatores era a variável chave do processo de desenvolvimento. A “novidade” do trabalho se encontra na forma de apresentação das ideias. Trata-se do primeiro (e único) artigo em que o autor utiliza a matemática de forma extensiva para a formulação de sua abordagem teórica.

Em “O Brasil e a Política Monetária Internacional”, publicado em 1972, o autor conduz uma descrição do processo de reformulação do Sistema Monetário Internacional (SMI) promovido em Bretton Woods, especialmente a constituição do FMI. A visão e os efeitos sobre o Brasil dos rumos seguidos pelo SMI são também apresentados. Bulhões compara as propostas do International Clearing Union, defendida por Keynes, e o projeto original do Fundo Monetário de Estabilização defendido por Harry White do Tesouro dos Estados Unidos. Não deixa de ser curioso que para Bulhões, “a técnica da Clearing Union era sensivelmente superior” (Bulhões, 1972, p.32). Ainda assim, Bulhões defendida a implantação da proposta de White, em função do contexto internacional de provável aceleração da inflação.

Ao longo de todo o texto, o autor se apresenta como defensor do multilate-ralismo, peça chave do espírito vigente em Bretton Woods para organização do SMI. Apesar de criticar a adoção do dólar americano como moeda de referência, especialmente no contexto de ampliação dos déficits do Balanço de Pagamentos dos Estados Unidos, Bulhões critica os países, que no final da década de 1960, agiram no sentido de colocar o sistema em xeque. Reporta, por exemplo, que “a França, em atitude das mais retrógradas, insistia em desfazer-se de suas reservas em dólares e substituí-las por ouro”. Ao mesmo tempo o autor critica as autoridades americanas e seus economistas por terem decidido em 1971 “adotar uma tese das mais prejudiciais ao espírito de Bretton Woods; os países que julgassem o dólar depreciado que valorizassem a sua moeda” (Bulhões, 1972).

Em 1976, a RBE publicou o artigo “Inflação, petróleo e crise econômica mundial” de Alexander Swoboda do Graduate Institute of International Studies (Genebra). Além do texto original, são apresentados comentários de Bulhões e dos professores Antônio Carlos Lemgruber e Paulo Lyra. Ao contrário de Lemgruber que faz uma detalhada análise técnica do trabalho, Bulhões apresenta uma discussão bastante sintética (ocupam apenas 3 páginas) na qual concorda com o argumento de Swoboda sobre as causas da aceleração da inflação nos países centrais como resultado de dois fatores: a expansão monetária decorrente da elevação das reservas cambiais em dólares e a crise do petróleo.

Bulhões retoma os argumentos expostos no trabalho publicado em 1972Bulhões, O. G. d. (1972). O Brasil e a política monetária internacional. Revista Brasileira deEconomia, 26(4), 31-44. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/download/101/2912
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na RBE, especialmente a defesa dos princípios norteadores de Bretton Woods e a crítica à utilização do dólar como moeda de referência, pois: “por maior prestígio que disponha uma moeda nacional, ela envolve fraquezas inerentes às inconsistências da política interna de cada país” (Swoboda, 1976)Swoboda, A. K. (1976). Inflação, petróleo e crise econômica mundial. Revista Brasileira de Economia, 30(1), 41-71. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/ article/download/158/6584 (Comentários de Octávio Gouvêa de Bulhões nas páginas 60-62)
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. É notório o ceticismo de Bulhões em relação a viabilidade de um sistema de taxas flutuantes “coordenado” em nível nacional.

Finalmente, apresenta uma reflexão sobre as causas para os erros sistemáticos na condução da política monetária e crediticia. Em tom quase de desabafo, questiona: “Mas serão tão distraídas as autoridades monetárias que não percebem o mal da expansão do crédito?”. Em sua resposta à indagação sugere que os gestores da política monetária/creditícia sabem os efeitos que expansões exageradas da liquidez causam sobre a inflação, mas sustenta que agem assim como forma de compensar o peso tributário do imposto de renda sobre as empresas, argumentando explicitamente que “como os governos não percebem que o exagero do imposto de renda enfraquece consideravelmente as empresas, pelo menos as autoridades monetárias procuravam suprir essa deficiência” (Swoboda, 1976Swoboda, A. K. (1976). Inflação, petróleo e crise econômica mundial. Revista Brasileira de Economia, 30(1), 41-71. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/ article/download/158/6584 (Comentários de Octávio Gouvêa de Bulhões nas páginas 60-62)
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, p.62).

“O significado de A Riqueza das Nações para o desenvolvimento da ciência econômica” publicado em 1977 é um retorno de Bulhões às discussões puramente teóricas sobre o desenvolvimento. Em homenagem aos duzentos anos da publicação de Smith, Bulhões promove um resgate das contribuições do autor para a ciência econômica, especialmente para o desenvolvimento das nações. Promove também uma interpretação do significado de liberdade em Smith a partir das contribuições de Jacob Viner, John Commons e Wesley Mitchell. Conclui finalmente que a obra de Smith “simboliza o movimento de generalização da inciativa empresarial... pleiteia a liberdade de produzir, contra as delimitações em que regulamentos e privilégios criam obstáculos à ampliação das fontes produtoras e ao mercado de produtos” (Bulhões, 1977, p.9).

Smith teria encontrado o caminho para a ampliação da produção e da riqueza, mas, ao lado desta influência positiva, existiriam também aspectos negativos, especialmente o “contraste na formação dos lucros e dos salários”. Segundo Bulhões dois tipos de resposta foram dados pela sociedade à questão. De um lado o Manifesto Comunista, de 1848, apresentaria a solução, equivocada da perspectiva de Bulhões, do comunismo e a “eliminação radical da liberdade de produzir”. A outra resposta, vista com bons olhos por Bulhões, seguia a orientação da encíclica, do papa Leão XIII, Rerum novarum: Sobre as condições dos operários de 1891, que propunha como mensagem central a necessidade de rever e reformular o liberalismo, sem abandoná-lo em seus princípios de liberdade, mas ajustando-o para diminuir as desigualdades distributivas e melhorar os padrões de vida dos operários.

Seguindo os princípios da Rerum novarum, Bulhões sustenta que “A solução consiste em fazer os empregados participarem do capital das empresas ... Somente assim, manteremos a estaca implantada por Adam Smith e eliminaremos os desajus-tamentos da liberdade de produzir” (Bulhões, 1977, p.11).

“Retrato de Eugênio Gudin”, publicado em 1986, foi o último artigo escrito por Bulhões na RBE. Trata-se de uma breve homenagem na qual ressalta a importância de Gudin na constituição do ensino de Economia no país e sua contribuição enquanto ministro da Fazenda do governo Café Filho. Reporta o entusiasmo do colega ao receber o convite de Luiz Simões Lopes para participar de uma nova instituição de educação, a Fundação Getulio Vargas, e a proposta de construir um “núcleo de economia” que, se transformaria posteriormente no Instituto Brasileiro de Economia.

Da passagem de Gudin como Ministro, destacam-se os cortes nos subsídios, especialmente o da gasolina, polêmico na época por conta dos supostos efeitos inflacionários da medida. Bulhões lamenta que as ações posteriores da política econômica tenham seguido um caminho oposto, de ampliação da gama de subsídios. “O desconhecimento do custo inflacionário dos subsídios, muito superior ao de sua supressão, conduz a insistência em mantê-los. Uma insistência ilusória porque o beneficiado acaba sendo prejudicado” (Bulhões, 1986, p.6). Em certa medida, os argumentos apresentados neste trabalho, demonstram que o autor se tornou ao longo do tempo mais cético em relação a capacidade da política fiscal em promover o crescimento da produção.

3. Considerações finais

A revisão e a análise dos trabalhos publicados por Bulhões na RBE permitem compreender sua produção acadêmica de uma forma mais precisa e justa. O amplo espectro de temas tratados, a diversidade de áreas de interesse e a utilização de diversas matrizes teóricas permitem concluir que classificar Bulhões como um “neoliberal” está longe de fornecer um retrato adequado da abrangência e complexidade de sua contribuição intelectual. Isto não significa que a classificação seja em si errônea, tendo em vista os atributos específicos estabelecidos pela literatura. Significa que ela fornece apenas um esboço, muito genérico, do pensamento do autor. Além disso é importante reconhecer que o atributo “neoliberal” ganhou no Brasil uma ampla gama de interpretações e significados em diversos campos da academia e do senso comum. Atualmente, o termo encontra-se crivado de pré-conceitos e imprecisões, o que limita sua utilidade, especialmente quando o objetivo é realizar uma análise mais acurada do pensamento econômico de um autor do porte de Bulhões.

Do ponto de vista temático, Bulhões foi muito além dos temas ligados especificamente à macroeconomia. A rigor, da amostra analisada, suas contribuições na década de 1940 e os trabalhos de 1958, 1966 e 1968 podem ser classificados como discussões com ênfase em macroeconomia, política monetária e fiscal. O autor, no entanto, foi muito além destes temas. Em 1952, apresentou suas críticas ao nacionalismo; enveredou por discussões metodológicas em 1956 e de teoria econômica, especialmente sobre a formação de preços, nos trabalhos de 1957,1967 e 1970; este último marcado pelo elevado grau de formalização. Em “Mercado e Planificação” também publicado em 1958 discutiu as vantagens da alocação privada de recursos, sem deixar de levar em conta a necessidade de intervenção, ainda que limitada, do Estado em países como o Brasil. Seu trabalho de 1960, discutiu a fronteira dos embates teóricos sobre o desenvolvimento. Em 1972, dedicou-se a descrever a evolução do SMI desde Bretton Woods. Finalmente, no contexto da análise sobre a contribuição de Smith, apresentou em 1977 uma síntese de sua visão sobre o caminho para o desenvolvimento de uma nação, uma combinação da liberdade produtiva advogada em A Riqueza das Nações com as necessárias revisões de natureza distributiva apresentadas pela Rerum novarum.

A diversidade temática observada ao longo da análise das contribuições do autor na RBE permite concluir que Bulhões ocupou-se em sua agenda de pesquisa acadêmica com conjunto de temas muito mais amplo do que aqueles abordados na “agenda neoliberal”, tal como exposto na seção 2.1 deste trabalho.

A diversidade temática foi acompanhada por um espectro igualmente amplo de referências teóricas. Para além das influências dos pensadores do liberalismo clássico inglês, Smith e Ricardo, a revisão dos trabalhos da RBE torna perceptível o vasto conhecimento e utilização da teoria econômica na construção intelectual do autor. Permite também verificar que Bulhões dedicava-se ao estudo da ciência econômica sem restrições de natureza dogmática e que, em diversos temas, encontrava-se atualizado em relação à fronteira do conhecimento. A lista de autores que influenciaram Bulhões é vasta e sua repetição é desnecessária.

Na amostra analisada, mas especialmente nos trabalhos de natureza teórica, sobressai-se a relevância das contribuições de Wicksell. Neste sentido, o resultado encontrado nesta revisão reforça a análise de Chacel (1990)Chacel, J. M. (1990). Bulhõeseseus escritos. Revista Brasileira de Economia, 44(4),493-496. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/view/7961
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, ao afirmar que “talvez a admiração maior de Bulhões, a julgar pelos excertos de sua obra, tenha recaído sobre Wicksell”. Neste sentido, destacam-se nos trabalhos teóricos publicados pelo autor na RBE a ênfase à visão, atribuída Wicksell, do investimento como derivado de uma “produção indireta”, aspecto negligenciado, novamente de acordo com Bulhões, por outros autores, como Keynes.

O autor da “Teoria Geral”, ainda que presente nos trabalhos, está longe de poder ser considerado uma influência relevante para Bulhões. Keynes não apenas teria negligenciado o investimento como fruto de uma produção indireta como, de um ponto de vista mais geral, teria construído uma obra para analisar uma situação específica do sistema econômico, a operação abaixo do pleno emprego. Os efeitos do multiplicador para a atividade econômica só fariam sentido, de acordo com o autor, se a economia operasse abaixo do pleno emprego.

A revisão dos artigos publicados na RBE permite também aprofundar o conhecimento do autor em diversos temas. Longe de dar conta de todas as discussões, apresentam-se alguns exemplos de temas nos quais esta revisão avança em relação à literatura estabelecida. Por exemplo, pode-se concluir da leitura de seus trabalhos que Bulhões é um defensor do liberalismo econômico, tal como advogado em sua essência na obra de Smith, porém entende que a adoção estrita dos princípios liberais e sua exacerbação acarretariam problemas de natureza distributiva. O “desenvolvimento equilibrado” pretendido por Bulhões seria alcançado através de uma combinação dos princípios norteadores do liberalismo, no campo da produção, com a promoção de uma distribuição mais equitativa desta produção, tal como proposto pela Rerum novarum. Há, portanto, em Bulhões uma preocupação com a promoção de um desenvolvimento equilibrado, especialmente em termos de distribuição da renda, tema até o presente praticamente ignorado pela literatura.

O mesmo pode-se dizer sobre a compreensão do investimento como fruto de uma produção indireta. A importância dada à esta discussão não foi até o presente discutida pela literatura dedicada ao estudo do autor. Em última análise, Bulhões está argumentando que a realização de um investimento só pode ocorrer a partir de uma produção anterior não consumida, ou seja, poupada. O tema é essencial para compreender a aproximação de Bulhões em relação a Wicksell e a reduzida importância atribuída a Keynes.

O papel da intervenção do Estado na economia é outro tema cuja leitura dos trabalhos da RBE permite aprofundar o conhecimento sobre o autor. Ainda que privilegie a alocação privada de recursos, a leitura dos trabalhos deixa evidente que Bulhões entende que a intervenção do Estado pode ser necessária, sob condições específicas. Sua crítica mais voraz tinha como alvo a intervenção econômica através dos regimes cambiais. As intervenções no mercado de câmbio e as distorções sobre os preços relativos eram vistos como geradores de sérios problemas alocativos. Bulhões, no entanto, defendeu, como por exemplo, em seu trabalho de Costa e Bulhões (1958)Costa, M. H., Bulhões, O. G. d. (1958). Pressão dos financiamentos sobre o produto nacional. Revista Brasileira deEconomia, 12(1), 29-42. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rbe/article/download/1855/2612
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, a utilização de políticas fiscais ativas, especialmente a concessão de subsídios para estímulo à produção.

Em síntese, a leitura dos trabalhos publicados na RBE joga luz sob uma série de temas e resultados encontrados pelo autor que, até o presente, foram praticamente negligenciados pela literatura dedicada à análise da história do pensamento econômico nacional.

À diversidade temática e de referências teóricas soma-se ainda um aspecto distintivo das contribuições de Bulhões; a importância de sua vivência como homem público na construção de sua trajetória intelectual. A relevância da interação entre academia e conhecimento prático é destacada em diversos trabalhos, mas especialmente em Bulhões (1967). Esta caraterística era compartilhada por outros expoentes intelectuais de sua época, como por exemplo Roberto Simonsen e Roberto Campos, fruto de um momento histórico no qual a separação entre academia, mercado e serviço público era muito mais tênue do que nos dias atuais. Neste contexto, não é também de se estranhar o peso da conjuntura econômica na definição dos temas tratados por Bulhões. Suas preocupações com os caminhos da política econômica, com o crescente nacionalismo no início da década de 1950 ou ainda sua análise do SMI são reveladores da influência realidade sobre a sua obra. Os elementos apresentados neste trabalho, fruto da revisão completa dos trabalhos do autor na RBE, permitem interpretar sua contribuição intelectual para além da classificação mais rudimentar, como um dos expoentes intelectuais do pensamento “neoliberal”. Permitem, em última instância, compreendê-lo como um autor interessado no estudo de diversos temas de economia, com profundo conhecimento da teoria de sua época e que utilizou de sua experiência prática como homem público na construção de sua análise econômica, elementos que o colocam entre os principais intelectuais brasileiros do século XX.

  • *
    O autor agradece ao financiamento do CNPq.
  • 1
    Bulhões graduou-se em Direito no ano de 1930.
  • 2
    Decreto-Lei n° 7.293 de fevereiro de 1945.
  • 3
    Os especialistas em história do pensamento têm ciência desta limitação. Saretta (2001), por exemplo, alerta que tais classificações sempre incorrem “na possibilidade de um reducionismo empobrecedor” (2001, p.112).
  • 4
    Bulhões faleceu em 1990.
  • 5
    Em dólares correntes, o superávit comercial brasileiro saltou de US$51,4 milhões em 1940 para US$332,6 milhões em 1945 (Abreu, 2014, anexo estatístico).
  • 6
    No que tange ao conjunto de trabalhos abordados nesta seção.
  • 7
    O artigo tem apenas 4 páginas.

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2019
  • Aceito
    11 Fev 2020
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