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A construção do consentimento: corporativismo e trabalhadores nos anos trinta

O making of da implantação do projeto corporativo no Brasil

Angela ARAÚJO. A construção do consentimento: corporativismo e trabalhadores nos anos trinta. São Paulo, Scritta,1998. 384 páginas.

Marco Aurélio Santana

A sociedade contemporânea vive, hoje, um processo de intensas mudanças. Um dos aspectos que têm sido mais discutidos diz respeito ao lugar do trabalho no mundo atual. Isso porque os impactos dessas mudanças no chamado mundo do trabalho têm sido enormes. Dentre eles, deve-se mencionar o intenso ataque a que têm sido submetidas todas as formas de regulamentação das relações de trabalho. Em nome de uma suposta modernização dessas relações implementa-se, de forma radical, a proposta de sua desregulamentação. Nos seus diversos níveis, as regulamentações que garantiam aos trabalhadores algum tipo de segurança dentro e fora do trabalho têm sido desmontadas, uma a uma, ao redor do globo.

O Brasil não está fora deste quadro. Afoitos seguidores das vogas internacionais, nossos governos e elites têm se esmerado em dar sua cota de contribuição ao desmantelamento de todas as formas anteriores de proteção aos trabalhadores, que por aqui já não eram tão numerosas como as que desfrutaram os seus pares europeus que viveram sobre o chamado welfare state.

A montagem da estrutura de regulamentação do trabalho no Brasil ocorre com o advento da revolução de outubro de 1930, associada às formas de regulamentação da organização dos trabalhadores. Daí ter sofrido críticas severas tanto de setores do patronato, como de setores do movimento operário e sindical. Era protetora demais, na visão dos empregadores, e controladora demais na visão dos trabalhadores. Apesar de todas as críticas e ações contrárias à sua implantação, esta estrutura produziu um verdadeiro milagre de durabilidade, servindo, praticamente intacta, a democracias e ditaduras.

Hoje, no bojo de todo o processo de desmantelamento e flexibilização das regulamentações, muitos pesquisadores têm se preocupado com esta questão e seus impactos sobre a vida dos trabalhadores dentro e fora do mundo do trabalho. O livro de Angela Araújo vai na direção contrária e, retornando no tempo, analisa exatamente como se estabeleceu o projeto corporativo no Brasil. Por isso mesmo, dá uma contribuição importante ao debate. A compreensão do desmantelo não se completa sem se entender melhor o processo de montagem. E esse entendimento, algumas vezes, foi realizado com certas limitações. A construção do consentimento nutre-se de análises anteriores mas apresenta, para além delas, uma interpretação rica empírica e teoricamente, lançando luz sobre aspectos importantes de um período crucial de nossa história.

Utilizando-se da formulação teórica de Gramsci acerca da revolução passiva, a autora percorre um itinerário que a leva, e a seus leitores, para dentro das idéias, projetos e atores que auxiliaram, cada um a seu modo, na constituição e implantação do projeto autoritário-corporativo em nosso país, ou seja, de uma organização corporativa da vida política e social brasileira, significando organização e representação corporativa das classes sociais. Desta forma pensava-se poder equacionar, por exemplo, a contradição capital/trabalho, a partir do desenvolvimento de um Estado nacional que incorporasse as tensões sociais, dirimindo-as para o bem comum.

No Brasil, essa perspectiva de organização social deu-se sob uma forma inclusiva, já que "visava a incorporação política, sob controle, dos trabalhadores, e não sua exclusão" (p. xix). Assim, os trabalhadores, até então sem nenhum tipo de reconhecimento por parte do Estado que não fosse a força dos cassetetes, passam a ser pensados como co-partícipes na consolidação de um projeto social que se visava construir por dentro do Estado, transformando, "pelo alto", as antigas estruturas sociais. No que diz respeito aos trabalhadores, isso significava que, em troca do reconhecimento e inclusão nos novos moldes propostos, nos quais teriam algumas de suas históricas reivindicações atendidas, eles teriam de submeter-se às formas de controle estabelecidas. No que diz respeito ao Estado, este trocaria o controle intensificado e renovado sobre o trabalho pela inclusão dos trabalhadores e a garantia de alguns de seus direitos. Para ambas as partes este projeto significava ganhos e perdas. Segundo a autora, "a política estatal voltada para os trabalhadores continha inegável dimensão positiva, em que pesem os aspectos negativos de repressão e manipulação" (p. xix).

Apesar de levar em conta algumas das visões recorrentes na literatura sobre o tema, Angela Araújo não se prende muito a algumas das conclusões por elas defendidas. Por exemplo, mesmo reconhecendo o papel da repressão, não deixa de indicar que, para além dela, outros elementos concorreram no processo de integração do movimento operário e sindical autônomo às esferas do sindicalismo oficial introduzido no Brasil pela Lei de Sindicalização, Decreto 19.770, de 1931. Ela demonstra, de forma bastante substanciada, como algumas forças do movimento de trabalhadores, situadas à esquerda do espectro político, contribuíram, junto com o chamado sindicalismo amarelo, de cunho mais conservador, na efetivação prática de tal estrutura.

Não foi apenas a repressão, ou o desejo conciliador de determinadas lideranças do movimento dos trabalhadores, que empurraram o movimento autônomo para a oficialização e maior controle do Ministério do Trabalho. Está claro que esses fatores estiveram presentes na montagem da estrutura. Entretanto, o fator central, na visão da autora, é que com a implantação do projeto corporativo os trabalhadores, pela primeira vez na história do Brasil, passaram a ser reconhecidos como interlocutores importantes para os governantes. A cooptação assumiu aqui um destacado papel. Assim, ao mesmo tempo em que tinha interesses óbvios no controle do movimento sindical autônomo, o governo implantado no pós-1930 supria determinadas demandas já históricas dos trabalhadores. Desta forma, a regulamentação das relações de trabalho pelo governo, se por um lado permitia a este manietar, ainda que relativamente, as formas organizativas dos trabalhadores (por exemplo, com a exigência da unicidade sindical, a proibição de práticas de associativismo horizontais etc.), por outro abria para a força de trabalho novas possibilidades ante os patrões (por exemplo, a cobrança de direitos agora estabelecidos na lei).

A luta daqueles que tentaram se contrapor aos ditames da regulamentação não foi fácil. A autora demonstra, de forma detalhada, como os anarquistas, únicos a levarem até o fim seu posicionamento contra o sindicato oficial, viram minguar seu poder de inserção no movimento sindical. Mesmo forças como os comunistas e os trotskistas, inicialmente contrárias à integração, acabaram por se submeter às novas condições. Foi-lhes difícil concorrer com os sindicatos oficiais, por exemplo, após o governo definir, na Lei de Férias (1934), que só os associados aos sindicatos oficiais poderiam desfrutar de tais direitos. Além disso, pesava o fato de que, nos moldes corporativos, a nova Carta constitucional de 1934 garantia "aos sindicatos oficiais o direito à representação classista nos legislativos estaduais e federal" (p. 201).

O livro de Angela Araújo faz uma interessante reconstituição do ideário que presidiu a implantação do projeto autoritário-corporativo em nosso país. Na primeira parte a autora indica o instrumental teórico que lhe servirá de fio condutor. A obra de Gramsci aparece em primeiro plano.

A segunda parte do livro trata do processo de construção do projeto autoritário-corporativo. A idéia de que o Estado assumiu um papel preponderante nesse processo é levada em conta; porém, como indica a autora, não se poderia deixar de perceber o papel desempenhado pelos atores sociais seja no sentido da formulação de seus projetos, seja na tentativa de sua implantação. É neste aspecto que o trabalho traz uma contribuição de extrema relevância.

A autora analisa a visão de intelectuais como Oliveira Vianna, Alberto Torres, Azevedo Amaral e Francisco Campos e, sem forçar um determinismo descabido, indica as possibilidades de influência de tais idéias na conformação do projeto. Indica, também, como, apesar de suas diferenças, o tenentismo pode ter representado um chão fértil para a penetração daquele ideário nos princípios norteadores do governo, onde os tenentes tiveram, num primeiro momento, forte influência. Além disso, analisa as origens do corporativismo a partir de processos como a criação do Ministério do Trabalho e o estabelecimento da Lei de Sindicalização de 1931. Esta parte é interessante por demonstrar como o ideário corporativo já habitava o conjunto das idéias em jogo em fins dos anos 20 e que havia distintos projetos corporativos. Mesmo no interior do grupo no poder o projeto corporativo não era homogêneo. O livro tece pontual, porém fina, análise sobre as tensões entre, por exemplo, os tenentes e setores da oligarquia gaúcha representados no Governo Provisório por Lindolfo Collor. Neste sentido, são examinadas também as propostas da burguesia a respeito do projeto corporativo.

A terceira parte do livro trata da constituição e consolidação do sindicalismo corporativo, pensado como uma das peças fundamentais do projeto corporativo. Em um primeiro momento são analisadas as estratégias de cooptação implementadas pelo governo e as estratégias de resistência por parte dos trabalhadores. São examinados os processos grevistas de 1930, 1931 e 1932, movimentos liderados por setores do sindicalismo brasileiro identificados com o sindicalismo autônomo que enfrentaram o governo não só por melhorias nas condições de vida dos trabalhadores, mas também buscando escapar da oficialização. Muitos desses movimentos, embora demonstrassem o ânimo do sindicalismo livre, foram sufocados pela intransigência patronal, mas também pela ambigüidade do governo, que transitava entre a mediação e a repressão. Nesta parte encontra-se a análise das relações estabelecidas entre o movimento dos trabalhadores e a chamada Revolução Constitucionalista de 1932. Segunda a autora, os revolucionários constitucionalistas não viram com bons olhos as mobilizações dos trabalhadores e as identificaram com a "agitação comunista", o que, para os revoltosos, incluía Vargas, os tenentes e quem mais a eles se associasse.

Depois de analisar o que seriam as últimas tentativas do sindicalismo livre de se manter na ativa, a autora mostra de que forma as lideranças sindicais de então, membros de grupos militantes diferenciados — anarquistas, amarelos, socialistas, comunistas e trotskistas —, deram, cada qual à sua maneira, seu quinhão na montagem do sindicalismo corporativo.

Se pudéssemos dispor as lideranças sindicais, esquematicamente, em um eixo temporal de inserção na estrutura sindical oficial, viriam os amarelos e socialistas primeiro, depois os trotskistas e, a seguir, os comunistas. Por fora viriam os anarquistas, que não aceitaram o sindicato oficial mas também acabaram se enfraquecendo e chegando à quase extinção. Os amarelos foram os primeiros a insistir na importância desse tipo de reconhecimento. Os trotskistas, embora o questionassem duramente no início, acabaram revendo sua posição e se inserindo na estrutura oficial, para não deixar as massas sob a influência única da burguesia e do Estado. Os comunistas, apesar da resistência, acabaram cedendo, e mesmo que, como os trotskistas, dissessem que lá estavam criticamente, deram sua contribuição para a aceitação do novo tipo de sindicato que estava sendo proposto. No caso, principalmente, de trotskistas e comunistas, não deve ser esquecido o esvaziamento de seus sindicatos e de suas propostas políticas no meio operário por conta das benesses oferecidas pelo governo àqueles trabalhadores que se integrassem nas fileiras do sindicato oficial. No caso dos comunistas, pesaram também as novas orientações da Internacional Comunista, que, depois da política de classe contra classe da virada dos anos 20 para os anos 30, assumiu uma política de conciliação com os sindicalistas reformistas e socialistas.

A ação de trotskistas e comunistas, mais dos primeiros, pode, segundo a autora, ser elucidativa da relação estabelecida entre o Estado e o movimento dos trabalhadores no início dos anos 30. Para a implantação de seu projeto corporativo, o Estado e os setores à sua frente necessitavam garantir certos direitos à organização dos trabalhadores, de modo a sustentar sua política de colaboração de classes. Quem estivesse dentro destes moldes legitimava-se como interlocutor dos trabalhadores e defensor de suas demandas junto ao governo. Quem estivesse fora deles sofreria a falta de reconhecimento, a exclusão e a repressão. A entrada, porém, não era isenta de limitações. Segundo a autora, a visão de que se entrava para questionar foi se mostrando bastante difícil de se manter na prática, principalmente no caso dos trotskistas, cujo discurso e prática eram adoçados quando o grupo se colocava à frente de entidades oficiais. Desta forma, conjugando cooptação e repressão, o governo conseguiu constituir a base de sustentação onde fincaria as raízes de seu projeto corporativo. Porém, as dificuldades não se colocaram somente do lado dos trabalhadores; a implantação do projeto corporativo não seria tranqüila também para o governo.

Na última parte do livro a autora demonstra como o sindicalismo corporativo conviveu com formas de insubordinação política. Analisa o desenvolvimento hegemônico do sindicalismo oficial em seus primeiros anos de implantação e indica como, a partir da Constituição de 1934, ele começa a se projetar como liderança no ascenso dos movimentos grevistas, contidos desde 1932. Conforme assinala: "[...] a implantação do sindicalismo corporativista no período 1933/1934 foi marcada pela ambigüidade e por uma dinâmica contraditória. De um lado, as medidas adotadas pelo governo conseguiram impulsionar a implantação da estrutura sindical, trazendo para dentro dela não só os trabalhadores mas também suas principais lideranças — para não falar de segmentos importantes das classes patronais. De outro, se a adesão das lideranças sindicais independentes foi fundamental para dar vida a esta estrutura, para fazer dela um instrumento efetivo de representação dos interesses dos trabalhadores, ela colocou, ao mesmo tempo, uma dificuldade para a realização plena do projeto corporativo, na medida em que procurou transformar este sindicalismo num instrumento de luta e conflito e não de colaboração, como estava previsto na concepção governamental." (p. 293). Foi a partir deste tipo de contradição, entre o projeto e a prática de implantação do corporativismo, que as forças de esquerda conquistaram importantes postos na estrutura sindical e tentaram, ainda que com reduzido sucesso, reeditar formas de organização autônomas.

Com esta visão a autora escapa da concepção simplista, muito utilizada nas análises acerca do sindicalismo do período 1945-1964, que atribui a este uma orientação de colaboração de classes simplesmente por atuar por dentro da estrutura. Que a ação era limitada, não resta a menor dúvida. Porém, daí a reduzi-la à colaboração de classes vai uma distância enorme.

O sindicato corporativo que se desenvolveu após 1930 sob a égide do Estado tinha como orientação original manter-se como uma organização passiva, apolítica e de colaboração de classes. Contudo, após a Constituição de 1934, em um clima de intensa euforia liberalizante e com lideranças progressistas, ele não pôde cumprir tais desígnios. Ao organizar e/ou capitanear greves, não pôde ser passivo nem de colaboração. Tampouco pôde manter-se apolítico em uma conjuntura prenhe de tensão social e política.

Contudo, isso não duraria por muito tempo. Em 1935, em um crescente clima de tensão, que ameaçava não só o projeto sindical corporativo mas também o próprio arranjo no poder, o governo, lançando mão da Lei de Segurança Nacional (LSN), decide reprimir a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que catalisava os movimentos de oposição ao governo, e intervir duramente nos sindicatos. O cenário recrudesce ainda mais com a tentativa de insurreição da ANL, em novembro. Esta forneceu o álibi necessário para um maior endurecimento do regime. Como indica a autora, o governo aproveitou-se deste pretexto para "promover um verdadeiro processo de degola das lideranças sindicais independentes e combativas, aniquilar todas as agremiações políticas de esquerda e fechar todos os canais por meio dos quais os trabalhadores pudessem expressar-se autonomamente" (p. 309). Será a partir deste processo, já no Estado Novo, que o governo irá incrementar a implantação do corporativismo, derrotando o sindicalismo livre.

Apesar de um desfecho tão sombrio naquela conjuntura, a história posterior do movimento dos trabalhadores brasileiros demonstra que, apesar de todas as pressões, o sindicalismo de corte progressista continuou a se impor, por dentro da estrutura, trazendo sérios reveses à "incorporação tranqüila e pacífica dos trabalhadores". Se o sindicato livre acabou fenecendo como prática concreta, também é verdade que os trabalhadores, mesmo limitados pelas condições estabelecidas, continuaram buscando construir seus espaços de autonomia.

Resumindo, devo dizer que o livro de Angela Araújo é um trabalho essencial para a reconstituição da trajetória do movimento sindical no Brasil. Articulando rigor teórico e densidade empírica, e mantendo um distanciamento crítico tanto em relação à literatura quanto em relação ao posicionamento dos grupos militantes no sindicalismo de então, a autora fornece aos leitores um rico quadro do processo de montagem e implantação do projeto corporativo — e todo o seu conjunto de regulamentações — em nosso país, sem esquecer de destacar as práticas tanto de acomodação quanto de resistência empreendidas pelos trabalhadores e suas lideranças. Por isso, torna-se leitura indispensável para todos aqueles que desejam não só compreender um pouco melhor o passado deste movimento, como também entender o processo de desmonte ora em curso.

MARCO AURÉLIO SANTANA

é professor do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 2000
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