Acessibilidade / Reportar erro

Da nação ao socialismo

From the nation towards socialism

MAUSS, Marcel. A nação. Bruchard, Dorothée de. Org. e introdução. Fournier, Marcel; Terrier, Jean. São Paulo: Três Estrelas, 2017. 359 pp

A leitura de A nação confronta o leitor acostumado a clássicos como O ensaio sobre a dádiva e As técnicas do corpo com um Marcel Mauss mais datado e inconsistente em relação a suas escolhas metodológicas e teóricas. Compilado por Marcel Fournier, eminente historiador da obra e biógrafo de Mauss, e Jean Terrier, sociólogo suíço dedicado ao estudo dos nacionalismos europeus, o livro reúne uma série de fragmentos escritos por Mauss ao longo do ano de 1920, após seu retorno do serviço militar na Primeira Guerra Mundial, em que ele discute a natureza e o caráter do que chama de relações intersociais, a partir das quais observava a configuração de sociedades com determinadas características que as credenciava como nações. Embora parta de alguns parâmetros com base nos quais determinadas sociedades poderiam ser reconhecidas como nações – “sociedade material e moralmente integrada, com poder central estável, permanente, fronteiras definidas, relativa unidade moral, mental e cultural dos habitantes, os quais aderem conscientemente ao Estado e às suas leis” (p. 70) – a preocupação maior de Mauss nesse conjunto de textos é compreender e propor tendências de organização da economia política mundial, motivo pelo qual os compiladores definem A nação como “uma expedição no campo do normativo”.

Como adverte Mauss, sociedades não chegam à condição de nação unicamente através de desenvolvimentos endógenos, mas por meio das relações que estabelecem com outras, singularizando-se e reconhecendo-se em determinadas combinações de traços civilizatórios, econômicos e políticos regulados por um sistema de direito público, perfazendo um processo de “individuação da sociedade” (pp. 77-78). Nesse ponto, Mauss ensaia e retoma temas que abordou em trabalhos anteriores e posteriores, especialmente no que diz respeito à noção de civilização, que ele já havia abordado juntamente com Émile Durkheim em “Nota sobre a noção de civilização” (Mauss e Durkheim, 2007 [1913]MAUSS, Marcel & DURKHEIM, Émile. (2007 [1913]), “Nota sobre a noção de civilização”. Revista Brasileira de Sociologia das Emoções, 6 (17): 404-409.) e retomou anos depois em “Civilizações: elementos e formas” (Mauss, 1979 [1929]MAUSS, Marcel. (1979 [1929]), “Civilizações: elementos e formas”, in Roberto Cardoso de Oliveira (org.), Marcel Mauss: antropologia, São Paulo, Ática.), nos quais define a civilização como um fenômeno simultaneamente geográfico, econômico e moral, complementando um dos corolários do Ensaio sobre a dádiva, o de que a abrangência de determinadas formas de identificação étnica e cultural não coincide com a escala das relações de troca e das alianças entre grupos sociais, contrariando pressupostos difusionistas comuns na antropologia do fim do século XIX baseados em um certo determinismo da constituição racial sobre as formas de organização social. Um breve complemento intitulado “O princípio das nacionalidades”, ao final do livro, sumariza o modo como Mauss equaciona essas questões com suas premissas básicas a respeito da emergência de nações no início do século XX; recomendo-o como material didático e referência básica sobre o tema.

A primeira parte do livro, “Da nação como gênero de sociedade”, explicita a concepção de que as categorias sociedade, nação e povo devem ser utilizados para descrever diferentes estados do processo de auto-organização de coletivos humanos. Partindo da nomenclatura durkheimiana, povos seriam agrupamentos formados por laços primários, de parentesco e de afinidade, conformando grupos tendentes à homogeneidade cultural. Sociedades, por definição polissegmentares, seriam o resultado das associações entre povos ou grupos, porém com peso maior dos laços primários na definição do pertencimento dos indivíduos. Nações seriam resultantes do desenvolvimento de mecanismos de regulação das relações sociais entre os grupos que formam uma mesma sociedade ou conjunto de associações e relações de troca. Na medida em que essas regulações se tornam autônomas ou passam a se expressar na forma de instituições permanentes aplicadoras das normas sociais, a sociedade em que isso ocorre passaria a se reconhecer e ser reconhecida não por características inatas ou que exprimem sua peculiaridade, mas pela forma única como incorpora e organiza aspectos da vida social – língua, práticas religiosas, origem territorial, relações entre grupos socioculturais e étnico-raciais – de seus membros, ao mesmo tempo inserindo-se em circuitos de relações intersociais, mas diferenciando-se – individuando-se – de seus pares em função do conjunto de aspectos que apresenta.

Ao pensar a individuação da nação pelas formas de regulação e normatização da vida social, Mauss concede um papel de extrema relevância ao direito público como instância definidora do perfil de nação de uma sociedade, utilizando uma noção mais elementar de Estado: o direito teria a capacidade de codificar as relações constituintes de uma sociedade em determinado momento da história, contribuindo para a continuidade das rotinas e fórmulas políticas cerimoniais através das quais diferentes grupos estabelecem vínculos entre si. A codificação jurídica teria sido, inclusive, o passo que as sociedades do oeste europeu deram em direção a sua individuação, que outras sociedades não deram. O surgimento do Estado-nação europeu teria sido, segundo Mauss, uma consequência de essas sociedades terem “civilização e senso de direito mais plenamente desenvolvidos” (p. 71), na medida em que foi no contexto europeu ocidental em que se configuraram e concentraram mais intensamente os produtos das relações de troca entre sociedades de diversas partes do mundo moderno.

Na segunda parte, “Das relações internacionais, ou Do internacionalismo”, Mauss analisa o que chama de “vida de relação” das sociedades contemporâneas como um meio para chegar à compreensão de como nações se configuram. Mais adequado, nos diz Mauss, seria falarmos em “fenômenos nacionais”, estes mais frequentes e difusos e que se manifestariam de modo mais pronunciado em situações de empréstimos civilizatórios ou, mais especificamente, em situações de “negação de empréstimos”: “as sociedades não se definem por sua civilização, e como lembramos a propósito da formação das nações, as sociedades estão, de certa maneira, mergulhadas em um banho de civilização. Elas vivem de empréstimos; definem-se mais pela recusa do empréstimo do que pela possibilidade dele” (p. 100).

Fenômenos nacionais seriam, dessa forma, propriedades coletivas que determinados povos elegem mais ou menos conscientemente como signos de seu pertencimento a uma coletividade diferente dos povos vizinhos ou com os quais se tem contato, sem negar, no entanto, o compartilhamento de uma série de elementos civilizatórios e fundos ecológicos que os torna parte de um mesmo “ecúmeno” (p. 99). Assim, seria impossível analisar a emergência de nações sem olhar para as relações internacionais, sendo que, para Mauss, do ponto de vista etnológico seria mais adequado falarmos de relações intersociais, na medida em que determinados fenômenos nacionais podem se manifestar em algumas sociedades e não em outras, mesmo que estas estejam em constante contato.

As relações intersociais se estabelecem por meio de fenômenos de dois tipos: morfológicos e ideais. Os fenômenos morfológicos referem-se sobretudo à estrutura material por meio da qual as relações intersociais se estabelecem. Assim, a primeira e mais elementar manifestação destes fenômenos morfológicos seriam os meios de integração entre sociedades tais como rodovias, ferrovias, os próprios meios de transporte, linhas telefônicas, correios e telégrafos, através dos quais se estabelecem rotas e circuitos em que, no limite, seria possível a “troca de tudo por tudo” em “uma espécie de gigantesca vascularização de circulação intensa e forte que se estabeleceu no século passado na superfície do mundo e só tem crescido e se consolidado” (p. 124). Os fenômenos ideais, por sua vez, referem-se a valores reguladores das relações sociais convertidos em normas de convívio e conduta individual, os quais estão na raiz do direito internacional, ou seja, que regem os limites dos interesses individuais de acordo com os valores coletivos comuns de diferentes sociedades implicados em um mesmo circuito de relações.

Mauss enxergava o desenvolvimento do direito internacional como resposta à emergência de grupos profissionais especializados em comércio internacional “desenraizados”, “essas nações de forte atividade colonizadora, comercial e, sobretudo, marítima [que] constituíram autênticos meios sociais, cosmopolitas, por assim dizer, em que as pessoas são cidadãos de toda parte e da própria Terra” (p. 127). O cosmopolitismo aparece, aqui, como um problema a ser enfrentado pelas nações – e como uma questão a ser estudada pela sociologia e pela etnologia – por sua tendência ao individualismo e à redução das relações intersociais às relações comerciais capitalistas. Ao cosmopolitismo capitalista Mauss contrapõe o internacionalismo dos movimentos abarcados pelo rótulo de socialistas – o anarquismo, o sindicalismo operário, os partidos comunistas, o cooperativismo (ao qual o próprio autor era filiado), o chamado “socialismo utópico” e o marxismo, entre outros – por expressarem vinculações simultâneas às diferentes dimensões constitutivas de suas sociedades de origem – nacional, de classe econômica, étnico-cultural, civilizatória, religiosa etc. –, ensaiando com outros termos a noção de “fenômeno social total” que formulou alguns anos depois no Ensaio sobre a dádiva.

O internacionalismo socialista figura, na análise de Mauss, entre os chamados fenômenos ideais que constituem as expressões nacionais, ao lado do direito internacional e do cristianismo, tendo se manifestado concretamente através da Internacional Operária ou Segunda Internacional, fundada em 1889 em Paris como uma federação de partidos, sindicatos e movimentos com base operária de diferentes países com o objetivo de promover uma legislação trabalhista internacional atuando por meio de representações parlamentares. Em 1914, alguns desses representantes apoiaram a entrada de seus países na Primeira Guerra Mundial aprovando a transferência de créditos para as forças armadas, o que os setores não partidários da Segunda Internacional consideravam uma violação de seus programas e princípios, caracterizando-a como uma forma de alinhamento às políticas imperialistas dos governos burgueses da Europa ocidental. Para Mauss, isso teria encerrado o período em que a Segunda Internacional teve sua “verdadeira existência” (p. 170).

Ao se alinharem às posições belicistas no jogo político em seus países, as seções nacionais da Segunda Internacional nas principais potências econômicas ocidentais (Alemanha, França, Inglaterra) teriam preterido seu vínculo de classe ao vínculo nacional, caracterizando uma “negação de empréstimos” – políticos, culturais, educacionais, econômicos – dentro do internacionalismo operário. A guerra passaria a vigorar, assim, não como uma ruptura resultante da escalada dos conflitos diplomáticos entre as potências ocidentais e as pretensões expansionistas dos governos russo e alemão, mas como expressão de um “estado de crise” gerado pela diminuição de compartilhamentos intersociais sobre um mesmo pano de fundo civilizatório europeu. A própria distinção entre guerra e paz é considerada um fato recente por Mauss, atrelada à emergência do direito internacional como marco regulatório de rivalidades intersociais. Trata-se, para o autor, de algo inédito na história mundial, pois ele entendia que a guerra estava sempre a subliminar nas formas tradicionais de regulação, tais como as relações baseadas em honra e prestígio e as alianças por reciprocidade.

A análise do desenvolvimento e dos conflitos pertinentes ao internacionalismo socialista é aprofundada na terceira parte do livro, “Das nacionalizações, ou Do socialismo”. Nela, o autor aborda distinções conceituais entre a definição mais elementar de socialismo de Durkheim – “vinculação mais ou menos total entre todas as funções econômicas ou a vinculação de algumas delas, ainda difusas, com os órgãos dirigentes e conscientes da sociedade” (p. 189) – e as teorias socialistas emergentes das disputas no âmbito das Internacionais Socialistas, bem como entre o socialismo como programa de ação coletiva de movimentos sociais e o socialismo como programa de governo instaurado pela Revolução Russa.

A dissolução da Segunda Internacional em 1914 representou, para Mauss, a consolidação do marxismo como orientação hegemônica e institucional dos movimentos socialistas nas arenas políticas nacionais, representados por partidos comunistas, socialistas e social-democratas. A entrada dos movimentos socialistas na disputa pelo controle do Estado visava efetivar uma etapa do processo revolucionário preconizado por Marx e Engels no Manifesto comunista, qual seja, o de substituir os interesses da burguesia pelos do proletariado como interesses dominantes da sociedade. A tomada do Estado deveria servir, assim, para transferir gradualmente as responsabilidades das instituições estatais para conselhos e associações operárias locais e setoriais, e instâncias formadas por delegados desses conselhos seriam responsáveis pela tomada de decisões válidas para toda a sociedade.

A formação de conselhos já era objeto de debate no âmbito das duas primeiras Internacionais como instrumentos de participação das bases na direção dos movimentos socialistas, dividindo grupos favoráveis à precedência das decisões tomadas nos conselhos, de um lado, e favoráveis à supremacia de órgãos centrais na interpretação e sistematização das indicações da base, do outro. Na Primeira Internacional esse debate cindiu o movimento socialista entre anarquistas e marxistas, resultando na marginalização dos primeiros por representarem um “socialismo utópico” em oposição ao “socialismo científico” defendido por Marx. Já na Segunda Internacional as posições a respeito do papel dos conselhos de base resultou na expulsão de grupos marxistas considerados heterodoxos por defenderem os conselhos como instâncias autônomas de governo local.

Mauss sugere que a ala marxista hegemônica da Segunda Internacional, com o propósito de promover o “socialismo científico”, acabou por operacionalizar uma concepção excessivamente purista de classe operária ao partir do interesse econômico como critério determinante do pertencimento de classe. A partir da Revolução Russa de 1917 os conselhos sovietes, que já existiam desde 1905 como instâncias de articulação entre associações de trabalhadores de diferentes regiões, passaram a acumular funções políticas e administrativas como órgãos deliberativos do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) e, por extensão, do Estado revolucionário russo. Com a transferência das propriedades privadas para o Estado, os comissários das fábricas nomeados pelo Comitê Central passaram a compor os sovietes, inserindo os posicionamentos bolcheviques (ala majoritária do POSDR) nos debates e decisões da base.

Ocorre que “o capitalismo russo era um capitalismo anão, as maiores fortunas sendo as da família imperial; era não apenas frágil como 90% estrangeiro” (p. 208). A tese de Mauss a respeito da Revolução Russa era, então, a de que a “socialização” do capital na Rússia igualou-se a uma “nacionalização” massiva de títulos de propriedade, a partir da qual os bolcheviques precisaram negociar com capitalistas cosmopolitas, formando associações – ainda que efêmeras e sem estatutos jurídicos fixos – dedicadas ao ajuste de equivalências entre o capital privado controlado por investidores estrangeiros e o capital coletivo controlado pelo Estado. Com isso, a incipiente indústria de base – sobretudo metalúrgica e têxtil – dependente de tecnologias e técnicas forâneas foi destruída, mas se preservaram pequenas manufaturas e o comércio de pequena escala que continuaram a operar a partir de uma lógica individualista e de livre concorrência; as terras no vasto meio rural da Rússia pós-czarismo, por sua vez, foram apropriadas pelo campesinato conforme seu uso e trabalho. Ou seja, ainda que a organização da produção camponesa fosse gerida pelos sovietes em regimes cooperativos, a distribuição das terras seguiu uma lógica de apropriação individual e, portanto, capitalista, pois separava o valor e a função do trabalho – reservado aos sovietes – do valor e função do capital – oficialmente sob a guarda do Estado, mas administrado localmente por depositários bolcheviques que encarnavam o próprio partido único, favorecendo práticas autocráticas que levavam à alienação – no sentido marxista – dos trabalhadores em relação ao produto do trabalho.

A terceira parte do livro ainda contém um quarto capítulo, intitulado “O movimento econômico de baixo para cima”, no qual Mauss avalia, com certo otimismo, o potencial de práticas associativas e cooperativas experimentadas no interior de sindicatos e comunidades operárias emergentes em torno de centros industriais e comerciais para a superação da fase capitalista de organização dos “interesses das massas”: “De outro lado, o processo de socialização dos interesses das massas revelará ser, no fundo, mais avançado do que o do capitalismo, muito embora a grande maioria dos cidadãos ainda esteja bem distante do poder, e mesmo da independência econômica. Mas podemos ver em que medida, e em que sentido, caminham para isso” (p. 249).

Exemplos desse movimento seriam a “democracia operária” e a “democracia dos consumidores”. A primeira refere-se a associações intersindicais que, na visão de Mauss, aos poucos substituíam o princípio de organização corporativa ou por ofício pelo princípio de agrupamento de trabalhadores “englobados em uma mesma indústria que requer homens e capacidades de todo gênero” (p. 267). A segunda refere-se ao surgimento de cooperativas de crédito e dos chamados fundos ou bancos mutuais, geridos em alternância por diferentes setores de um mesmo grupo de trabalhadores (de uma mesma fábrica ou de um mesmo bairro, por exemplo) com demandas similares por produtos. Em ambas, Mauss visualiza exemplos de empreendimentos inspirados no chamado socialismo utópico “que tentam, por todos os meios, realizar um pedaço da sociedade futura na sociedade presente” (p. 274). Ou seja, enxerga nessas formas tópicas de organização econômica ensaios e possibilidades de disciplinamento – como anuncia o título do capítulo, “de baixo para cima” – dos movimentos do capital e dos mercados, com a finalidade de alterar a lógica eminentemente capitalista de que já estavam revestidos no início do século XX por lógicas calcadas sobretudo no princípio da solidariedade e da cooperação.

BIBLIOGRAFIA

  • MAUSS, Marcel & DURKHEIM, Émile. (2007 [1913]), “Nota sobre a noção de civilização”. Revista Brasileira de Sociologia das Emoções, 6 (17): 404-409.
  • MAUSS, Marcel. (1979 [1929]), “Civilizações: elementos e formas”, in Roberto Cardoso de Oliveira (org.), Marcel Mauss: antropologia, São Paulo, Ática.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - sala 116, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 3091-4664, Fax: +55 11 3091-5043 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: anpocs@anpocs.org.br