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Indústria, território e meio ambiente no Brasil: perspectivas da industrialização descentralizada a partir da análise da experiência catarinense

Repensar a industrialização a partir do desenvolvimento local sustentável

Cécile RAUD. Indústria, território e meio ambiente no Brasil: perspectivas da industrialização descentralizada a partir da análise da experiência catarinense. Florianópolis, Editora da UFSC, 1999. 276 páginas.

Sergio Schneider

Os estudiosos dos processos sociais e econômicos, além de poderem comemorar a retomada dos debates acerca do desenvolvimento, também podem celebrar a renovação dos objetos de análise e os enfoques teóricos que se vêm empreendendo neste campo. Hoje o interesse na temática do desenvolvimento incorpora dimensões nunca antes mencionadas, como a da sustentabilidade ambiental, da participação política das comunidades envolvidas e da regulação institucional local destes programas.

O livro de Cécile Raud, Indústria, território e meio ambiente no Brasil, insere-se nesta perspectiva inovadora visando à discussão das possibilidades do desenvolvimento econômico de países como o Brasil em meio a um cenário internacional em mutação. A autora aborda o tema da industrialização e do desenvolvimento por um enfoque analítico muito pouco conhecido na literatura econômica e sociológica brasileira. Seu objetivo é avaliar, à luz da experiência italiana, os traços e as características da experiência de industrialização do Estado de Santa Catarina como exemplo de um processo bem-sucedido de descentralização do desenvolvimento econômico.

Talvez resida aí um dos aspectos instigantes de seu trabalho, que poderá estimular o debate em torno da viabilidade e da pertinência de um país como o Brasil passar a estimular processos de descentralização industrial que contribuam para amenizar os graves problemas sociais e ecológicos gerados pela concentração econômica e geográfica da matriz industrial. Embora Raud reconheça o papel de indução das empresas em uma sociedade capitalista, sua proposta analítica alinha-se ao lado daqueles que acreditam no papel das instituições de caráter não privado e nos mecanismos públicos de intervenção e regulação social para o planejamento e organização da economia em uma era de mudanças. Neste sentido, seu trabalho é pioneiro porque revela que os processos de desconcentração industrial não são uma panacéia das teorias heterodoxas, mas, ao contrário, como indica seu estudo sobre o caso catarinense, pode-se encontrar formas de industrialização descentralizada, de trajetória muito recente, cuja análise traz à luz resultados bastante diferenciados em relação ao modelo dominante.

O primeiro capítulo do livro compõe-se de três seções destinadas a uma revisão da experiência da Terza Italia, região central da Itália onde se verificou um processo de industrialização baseado, fundamentalmente, na combinação de sinergias da economia local com uma inserção sui generis no mercado nacional e internacional de mercadorias, processo esse descrito pela literatura recente como de industrialização difusa. No Brasil, vários pesquisadores vêm citando o caso italiano como ilustração para justificar argumentos em defesa das "formas alternativas de desenvolvimento". Por esta razão, a revisão que Raud realiza da literatura contribuirá inequivocamente para ampliar o conhecimento dos brasileiros sobre o que é, de fato, este processo de industrialização difusa.

Logo no início, a autora chama a atenção para a distinção fundamental entre os termos industrialização difusa, descentralização industrial e distritos industriais, muitas vezes confundidos. Os distritos podem ser interpretados como um projeção particular da industrialização difusa. A descentralização constitui-se em uma de suas características e, às vezes, pode ser apenas uma fase deste processo. A industrialização difusa italiana caracteriza-se, segundo Raud, por redes de pequenas e médias empresas concentradas em uma cidade ou num território, cada qual especializada em um estágio do processo de produção de um mesmo tipo de bem e ligada ao mesmo mercado.

A industrialização difusa "não é concebida como fruto do laissez-faire, nem o resultado de uma política voluntarista, mas se trata de uma construção social do mercado, de um desenvolvimento apoiado sobre e modelado pelas características sociais" (p. 27). Esta forte interação das firmas e do mercado com o ambiente onde se inserem dá-se a partir de mecanismos específicos de regulação tanto formais como latentes. Os formais são dados pelas organizações políticas locais, especialmente as agremiações de empresários e trabalhadores e o poder público. Os mais importantes, porém, são os mecanismos informais de regulação, e neste sentido a reciprocidade interfirmas assume grande importância. Em muitos casos estas relações são até mesmo mais relevantes que a troca mercantil. Segundo Raud, essa reciprocidade está assentada em relações de interconhecimento, de amizade, de confiança e de parentesco que têm como base as famílias extensas, formas sociais típicas das sociedades rurais.

Os distritos industriais italianos estão localizados no nordeste-centro do país, em regiões como Emília-Romagna, Vêneto, Trentino-Alto-Adige, Friuli-Venezia Giula, Toscana, Marche e Umbria, relativamente próximos ao triângulo industrial de Gênova, Turim e Milão, e difundiram-se rapidamente nas décadas de 1960 e 1970. Para alguns autores, como Piore e Sabel (1989), eles revelam uma nova fase do capitalismo industrial, caracterizada pela "especialização flexível". Outros, no entanto, como Bagnasco e Triglia (1993), sugerem que sua existência deve-se a um conjunto de situações favoráveis fortemente ancoradas no contexto local. Não obstante essas divergências interpretativas quanto ao significado desses distritos para a economia industrial, parece haver consenso entre os estudiosos acerca de suas características recentes e do ambiente que permitiu sua emergência.

Após analisar extensa bibliografia, Raud conclui que os distritos industriais italianos também se ressentem dos problemas que afetam outras estruturas industriais, como a concorrência estrangeira e as conseqüências da reestruturação e da modernização tecnológica, com o agravamento do desemprego, o crescimento das pressões sindicais por melhores salários e, mais recentemente, as alterações provocadas no ambiente local pela contratação crescente de trabalhadores migrantes do Magreb e da África. Em muitos casos, estes problemas modificaram significativamente as características originais do modelo italiano.

Da leitura desta excelente revisão teórica é quase inexorável que o leitor se ponha a seguinte questão: é possível reproduzir tal modelo de desenvolvimento? A resposta de Raud é de que há restrições de variadas ordens que obstaculizam as possibilidades de reprodução autônoma e independente deste modelo de industrialização, mesmo em situações em que possa contar, virtualmente, com o apoio explícito do Estado. Nesta parte vale a pena reproduzir, sinteticamente, argumentos de outros estudiosos do assunto, como Ganne (1992), que considera que a experiência italiana não pode servir de modelo para a compreensão de casos similares devido às especificidades que cada situação envolve. Para superar este e outros limites, Courlet (1994) propôs a noção de sistema produtivo localizado, mais abrangente, de modo a permitir a análise de outras situações, em outros contextos que não o italiano ou o europeu.

A partir desta moldura analítica, no segundo capítulo é abordado o processo de industrialização ocorrido em Santa Catarina, centrando-se a análise no setor têxtil de Blumenau, localizado no vale do rio Itajaí, e no pólo moveleiro de São Bento do Sul, situado no nordeste do estado. A experiência catarinense é então comparada à italiana visando uma avaliação do "potencial de uma estratégia alternativa de bioindustrialização descentralizada" no Brasil (p. 108). Aí percebe-se com clarividência a influência exercida pelo seu orientador de tese, professor Ignacy Sachs, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, pesquisador renomado e muito conhecido no ambiente acadêmico brasileiro. Esta influência se dá pela incorporação da idéia do ecodesenvolvimento, a partir da qual a autora se põe a discutir as perspectivas do desenvolvimento industrial descentralizado no Brasil nos marcos da sustentabilidade ambiental.

O livro de Cécile Raud soma-se ao esforço, do qual também compartilho (Schneider, 1999), de divulgar as possibilidades analíticas da perspectiva teórica inaugurada pelos estudiosos da industrialização difusa. Seu trabalho inova ao romper com as fronteiras disciplinares que muitas vezes asfixiam a produção do conhecimento em ciências sociais, revelando uma adequada e rigorosa combinação de conceitos da Economia, da Sociologia e da Geografia, que talvez lhe tenham sido legados por sua origem intelectual francesa.

Em Indústria, território e meio ambiente no Brasil o leitor também encontrará o justo resgate da contribuição de um geógrafo que por longos anos dedicou-se ao estudo das particularidades do processo de industrialização catarinense. A obra de Armen Mamigonian talvez esteja para os catarinenses como a de Jean Roche está para os gaúchos. Ambos os autores, geógrafos de formação e de origem estrangeira, dedicaram-se a analisar em profundidade as razões históricas e estruturais que distinguem os processos de industrialização destes dois estados do sul do restante do Brasil. Aqui o argumento é simples: no Sul, ao contrário do que ocorrera em São Paulo, o processo de acumulação de capital estaria fortemente vinculado aos mercados locais, produzindo uma dinâmica econômica específica baseada nas trocas mercantis realizadas entre os pequenos proprietários rurais de origem européia, que com a venda de seus produtos agrícolas obtinham recursos que lhes possibilitava a aquisição de mercadorias dos comerciantes locais. Muitas vezes estes donos de casas de comércio eram os compradores dos produtos dos agricultores e os revendedores de mercadorias manufaturadas ou gêneros alimentares. Com o lucro auferido, alguns desses "vendeiros" passaram a aplicar seu capital em atividades industriais, quase sempre formando sociedades com alguns artesãos que dominavam o savoir-faire.

Tanto no Rio Grande do Sul como em Santa Catarina, esse tipo de transação econômica teria favorecido a formação de um mercado local de produtos manufaturados e alimentares, permitindo a expansão de atividades industriais e a acumulação de riqueza fora do centro dinâmico da economia brasileira. Além disso, o fato de serem regiões habitadas por imigrantes de origem européia, segundo Raud, teria contribuído de modo decisivo para forjar um ambiente social, econômico e cultural muito similar ao encontrado na região da Terza Italia. Assim, a mão-de-obra qualificada, o espírito empreendedor, o papel das instituições locais e a acumulação de capital advinda do comércio dos produtos primários constituíram-se nos requisitos fundamentais para fazer deslanchar o processo de industrialização. Mas o estudo de Raud também contempla a importância dos aspectos exógenos que contribuíram para a industrialização catarinense, como é o caso do apoio do Estado e das mudanças mais gerais que se processavam na economia brasileira ao longo da industrialização por substituição das importações.

Raud não realiza apenas uma abordagem interessante do processo de industrialização catarinense, como também apresenta o potencial dos seis principais pólos regionais de desenvolvimento do estado, extraindo lições comparativas dos casos do setor têxtil da região de Blumenau e do setor moveleiro de São Bento do Sul. Mais do que isto, chega a afirmar que em atividades de expansão recente no Estado de Santa Catarina, como a fruticultura (especialmente no oeste catarinense), a aqüicultura (especialmente no litoral) e a silvicultura (especialmente no planalto catarinense), talvez se encontrem formas embrionárias de um novo modelo de desenvolvimento de menor impacto ambiental e menos marcado pelos desequilíbrios demográficos e econômicos, identificadas como "experiências de bioindustrialização descentralizadas" (p. 155). Para cada uma destas iniciativas a autora vislumbra formas de organização social e produtiva como as cooperativas, as associações, as indústrias caseiras, os condomínios, as empresas comunitárias, que poderiam constituir-se em formas renovadas de garantia da sustentabilidade sem comprometer sua viabilidade econômica.

A leitura deste capítulo do livro deixa no leitor a agradável sensação de que "algo ainda pode ser feito" para reverter ou apresentar alternativas ao modelo concentracionista do desenvolvimento industrial brasileiro. A autora lista uma série de exemplos de iniciativas locais e regionais que levam à reflexão sobre a viabilidade de ampliação do modelo de descentralização industrial para outras regiões brasileiras, além de sugerir temas de pesquisa a serem aprofundados em outros trabalhos. E conclui com uma indagação fundamental: em que medida a perspectiva do ecodesenvolvimento se ajusta com a abordagem da industrialização difusa?

Mas a contribuição da autora não termina aí. O terceiro e último capítulo do livro é reservado à apreciação das perspectivas da industrialização difusa no Brasil à luz das lições extraídas do processo de industrialização de Santa Catarina. A adoção do modelo de industrialização assentado nas pequenas e médias empresas, semelhante ao italiano, é apontada como uma possibilidade remota se este for concebido desvinculado de um ambiente que permita uma interface entre empresas e setores industriais. Aos interessados no debate das políticas públicas que poderiam contribuir para a desconcentração econômica e industrial no Brasil, esta seção do livro apresenta recomendações sugestivas, especialmente àqueles que gostam de extrair das análises propostas concretas.

Em razão desta opção, o trabalho de Raud passa a perseguir respostas a questões que em certa medida até surpreendem pelo modo como são formuladas. A autora enfrenta a difícil e ousada tarefa de discutir as chances de novas estratégias de industrialização descentralizadas no contexto brasileiro a partir da redefinição (ou atuação, para sermos mais enfáticos) do papel do Estado nas políticas científica e tecnológica e industrial. Na sua opinião, caberia ao Estado, "em primeiro lugar, fornecer um ambiente que permita a emergência de uma competitividade sistêmica" (p. 255). No entanto, ela não reivindica uma atuação estatal semelhante àquela que patrocinou, "de cima para baixo", a industrialização brasileira. Ao contrário, sugere uma "reterritorialização das políticas de desenvolvimento", fortemente apoiadas na noção de "governança". Contudo, mais importante que sua incursão na análise das propostas de políticas públicas parece ser a incorporação da reflexão sobre a gestão territorial como uma variante pouco utilizada no ordenamento do desenvolvimento brasileiro recente.

Ao leitor por certo não escapará que a obra representa uma significativa contribuição ao debate sobre o desenvolvimento e os modelos de industrialização. Por estas razões, Indústria, território e meio ambiente no Brasil, de Cécile Raud, é um livro vivamente recomendável que certamente contribuirá ao debate acerca das possibilidades de descentralização da matriz econômica dominante. Se o caso de Santa Catarina é indicado como exemplo, no sentido de apontar para um outro padrão de industrialização que cresceu e se desenvolveu à sombra desse processo, talvez isto represente um convite e uma sugestão para uma agenda de pesquisas que retome a reflexão sobre a história do desenvolvimento recente do sul do Brasil a partir de um novo enfoque analítico.

Referências bibliográficas

BAGNASCO, A. e TRIGLIA, C. (1993), La construction sociale du marché. Le défi de la Troisième Italie. Paris, Cachan/Editions de I'Ens.

COULET, C. (1994), "Le systèmes productifs localisés, de quoi parle-t-on?", in C. Coulet e B. Soulange (eds.), Industrie, territoires et politiques publiques, Paris, l'Harmattan.

GANNE, B. (1992), "Place et évolution des systèmes industriels locaux en France: économie politique d'une transformation", in G. Benko e A. Lipietz (eds.), Les régions qui gagnent, Paris, PUF.

PIORE, M.J. e SABEL, C.F. (1989), Les chemins de la prospérité. De la production de masse à la spécialisation souple. Paris, Hachette.

SCHNEIDER, S. (1999), Agricultura familiar e industrialização. Pluriatividade e descentralização industrial no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Ed. da UFRGS.

SERGIO SCHNEIDER é professor

do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 2000
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