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O judeu imaginário do bolsonarismo

The imaginary jew of bolsonarism

Resenha: GHERMAN, Michel. . O não judeu judeu: a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo . São Paulo: Fósforo, 2022.

espreitei o que virá, e daqui não preciso de nada. László Kraznahorkai

Referência nos estudos judaicos no Brasil, Michel Gherman, professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem se dedicado mais recentemente ao bolsonarismo. Na verdade, não somente ao bolsonarismo, mas à relação (e apropriação) do movimento com a comunidade judaica. Eis o tema de seu novo livro, O não judeu judeu: a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo.

O título já define o caráter da obra: estudar o processo de desjudeização que o bolsonarismo, incluindo os judeus bolsonaristas, aplicou sobre os judeus antibolsonaro. E indo além, analisar o processo de apropriação que Jair Bolsonaro lançou sobre a comunidade judaica, criando a ilusão de que os judeus brasileiros o apoiavam maciçamente, quando foram cerca de sessenta por cento deles, segundo o Datafolha de 2018DATAFOLHA. Eleições 2018. Disponível em: Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2018/10/26/3416374d208f7def05d1476d05ede73e.pdf . Acesso em: 12 mai. 2022.
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- a maioria, mas longe de absoluta. Quando enxergamos, na maior parte das manifestações de extrema direita, símbolos como a bandeira de Israel, cabe-nos perguntar o que explica essa aproximação.

A história é conhecida, e começa antes da eleição de Bolsonaro. Em 2017, o então candidato foi convidado para palestrar em um clube judaico, o Hebraica do Rio de Janeiro, em Laranjeiras, bairro tradicionalmente progressista (o único do Rio em que Fernando Haddad venceu no segundo turno de 2018). O candidato já era nacionalmente conhecido por suas diversas polêmicas, incluindo episódios de antissemitismo e aproximação com nazismo, como quando posou para uma foto com um homem vestido de Adolf Hitler em 2015 ou quando defendeu, em 1995, que o ditador alemão era exemplo de ordem e moral (Lago; Sardinha; Lippelt, 2022LAGO, Rudolfo; SARDINHA, Edson; LIPPELT, Vanessa. Onze vezes em que o Bolsonarismo flertou com o nazismo. Congresso em Foco. Disponível em: Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/onze-vezes-em-que-o-bolsonarismo-flertou-com-o-nazismo/ . Acesso em: 12 jan. 2023.
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). Ainda assim, encontrou refúgio no clube, que estava lotado de apoiadores judeus e góis. Do lado de fora, outros tantos judeus e góis protestavam contra o político. Uma cisão que o próprio Bolsonaro soube explorar, atacando, em seu discurso, os que estavam do lado de fora. Os judeus não judeus, como determina Gherman.

Qualquer comunidade é plural e heterogênea em suas características internas. Identidades mesclam-se ad infinitum em diversas camadas que se sobrepõem. Uma pessoa não é só judia: é judia, liberal ou socialista, branca ou negra, pobre ou rica. No caso do judaísmo, em particular, pela diáspora e por processos de assimilação milenares, isso se torna ainda mais acentuado, a tal ponto que se torna complexo até falar em uma identidade judaica hermética. É preciso lembrar que o judaísmo não é apenas uma religião, mas uma origem e identidade cultural comuns, isso para além da controversa e amplamente discutida existência ou não de uma etnia judaica. Não é simples definir judaísmo, muito menos o que significa ser um judeu brasileiro, ponto central de outro livro de Gherman, Identidades ambivalentes. O estereótipo do judeu, a ideia de um judeu padrão e cristalizado, acaba por somente existir no imaginário do antissemita.

Vale ressaltar também, como Gherman (2022, p. 58) chama atenção, que, embora a imigração judaica para o Brasil sempre tenha existido (como, por exemplo, no caso dos fugitivos da Inquisição, tema de Os judeus no Brasil colonial, de Arnold WiznitzerWIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Pioneira, 1960.), a formação de uma comunidade de fato se dá apenas mais recentemente. Assim, diferente de outras etnias e culturas que imigraram para o Brasil, os judeus, por também se ligarem a outras nacionalidades, são um grupo particularmente heterogêneo. Para ilustrar este ponto, Gherman (2022, p. 58-59) traz o exemplo da imigração marroquina e alsaciana, o que entende por origem da comunidade judaica brasileira, a despeito das radicais diferenças entre ambos os grupos - os alsacianos eram mais secularizados e assimilados.

Se a comunidade começa a se formar no século XIX, é somente nas primeiras décadas do século XX que ela passa a ter uma forma mais sólida. Embora, por razões óbvias, o período da Segunda Guerra tenha visto a maior parte da vinda desse grupo, o entreguerras já começa a receber números imigratórios em progressão aritmética. Como diz Grin e Gherman (2016, p. 103)GRIN, Monica; GHERMAN, Michel. Identidades ambivalentes: desafios aos estudos judaicos no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016., isso ocorre por razões pragmáticas: 1) a instabilidade política e econômica da Europa; 2) a então prosperidade econômica do Brasil, que deixa de ser visto como uma “grande selva”; 3) a facilidade de imigrar para o país e a proximidade geográfica com outras alternativas atraentes, como Argentina, Estados Unidos ou Canadá; 4) a raridade de conflitos religiosos. Surgem, assim, os primeiros grandes polos e bairros judaicos, como a Praça XI no Rio de Janeiro e Higienópolis em São Paulo. Na cidade do Rio, a população judaica passa de 0 habitantes em 1900 para 25222 em 1950, enquanto, na cidade de São Paulo, vai de 26 para 26443 (Grin; Gherman, 2016GRIN, Monica; GHERMAN, Michel. Identidades ambivalentes: desafios aos estudos judaicos no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016., p. 105). Os 15 mil judeus no Brasil de 1920 viraram 60 mil em 1940.

Com a conivência de algumas entidades judaicas, a começar pelo próprio clube Hebraica, o apoio ao bolsonarismo cristalizou-se como elemento do judeu imaginário para o antissemita. Não somente para os bolsonaristas, que passaram a interpretar o judaísmo como associado intrinsecamente ao seu movimento - quando, na prática, nem os neopentecostais o são, mesmo com uma proporção maior de apoio -, mas também para parcelas de progressistas, principalmente antissionistas, que passaram a ver nisso uma muleta à sua intolerância. Isto é, com uma mescla de antissionismo, antibolsonarismo e antissemitismo, torna-se palatável à esquerda antissemita juntar tudo sob o mesmo balaio. O judeu - todo judeu - é bolsonarista porque, afinal, os judeus praticam sobre a Palestina o mesmo tipo de violência que sofreram com o Holocausto (c.f. Dimenstein, 2003DIMENSTEIN, Gilberto. Escritor diz que judeu não é digno de simpatia. Folha de S.Paulo. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/noticias/gd141003i.htm . Acesso em: 12 jan. 2023.
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). O judeu imaginário e sua vinculação ao bolsonarismo são nocivos em diversas frentes, pois criam uma homogeneidade que, na prática, inexiste.

É explícito um gigantesco racha na população brasileira. A disputa no segundo turno entre Lula e Bolsonaro, como sabemos, foi a mais acirrada da história do país. Uma divisão que perpassa todos os setores e esferas sociais, e que remonta, em crescente, de uma década. Como os demais, a comunidade judaica também não escapou dessa rachadura, que já era perceptível em 2017 e se intensificou desde então. E o ponto de inflexão foi a palestra do Hebraica, com os protestos do lado externo do clube.

A comunidade judaica, baseada e unida por elementos como ancestralidade, cultura ou religião comuns, tornou-se secundária frente a uma nova comunidade que surgiu naquela noite: uma comunidade político-ideológica. Os judeus do lado de fora e do lado de dentro não mais pertenciam a um mesmo grupo em comum, um único homem fora capaz de fazer com que o corpo interno rejeitasse qualquer semelhança com o externo. De um lado, o interno não consegue compreender a rejeição a um político pró-Israel, negando, no processo, toda sua história de vinculação nazifascista e antissemita. Do outro, o externo não aceita o mea culpa do bolsonarismo, não esquece suas simpatias pró-nazifascismo e não coloca isso em segundo plano em função apenas do sionismo.

A aproximação de Bolsonaro com a comunidade judaica, bem como a utilização e apropriação de seus símbolos, adota dupla função: por um lado promove uma catarse sobre a sua imagem, inevitavelmente ligada a episódios passados de antissemitismo e até nazismo; por outro, enseja um flerte com uma comunidade muito maior e politicamente mais poderosa do que a judaica: os neopentecostais. O flerte dos neopentecostais com Israel, fruto da crença que o Estado Judeu é necessário à segunda vinda de Cristo, faz com que surja um curioso sionismo cristão, bem como a absorção de símbolos judaicos - basta lembrar, por exemplo, das imagens do Bispo Edir Macedo de quipá, ou dos filhos do Bolsonaro utilizando indumentárias judaicas. Não é coincidência que Bolsonaro por vezes use o pronome possessivo nosso quando se refere a Israel: “na criação do nosso Estado de Israel. Eu disse nosso” (Toniol, 2021TONIOL, Rodrigo. O judeu imaginário do bolsonarismo. Revista Serrote, São Paulo, n. 39, p. 85-95, nov. 2021., p. 94, grifos meus).

As posições sionistas de Bolsonaro, ainda que não tenham como principal foco a comunidade judaica, acabam por ser úteis para acenar a dois grupos. Promovem, então, uma aproximação curiosa, e cooptam uma parcela dos judeus brasileiros, principalmente os sionistas de direita. Ademais, como discutido antes, um indivíduo não é apenas judeu - identidades sobrepõem-se em fluxo. Mesmo que um indivíduo judeu rejeite posições e discursos antissemitas de Bolsonaro, por exemplo, pode tomá-los de forma leviana frente a outras posições que enxerga como favoráveis, como medidas econômicas liberais. Nesse sentido, como ressalta Gherman, parecia até estranho aos judeus pró-Bolsonaro que seus pares de esquerda ou de centro fizessem oposição a um “aliado de Israel”, afinal “Tendo se constituído como uma perspectiva de minoria populacional no Brasil, os judeus brasileiros finalmente viam seus símbolos usados no espaço público” (Gherman, 2022, p. 78).

Gherman levanta com sucesso todos esses pontos, mas sem perder de vista uma escrita pessoal. A maior parte dos ensaios de O não judeu judeu contém relatos próprios, desde a origem de sua família e sua infância, até sua participação nos protestos contra a palestra de 2017. Uma pessoalidade que concede relatos reveladores e uma narrativa quase em prosa sobre o crescimento do bolsonarismo. Sintomática, por exemplo, a afirmativa que um dos policiais deu ao próprio Gherman (2022, p. 26) no dia da palestra: “os judeus estão brigando”. Afirmação talvez simplória, mas não de todo descolada da realidade.

Nesse ponto, também se destaca a atuação de Gherman como historiador. Isto porque ele não trata o bolsonarismo como um fenômeno único, limitado, hermético, mas múltiplo que contempla diversas frentes, em permanente diálogo com antecessores. Um diálogo que se reflete, assim, na própria relação com a comunidade judaica. Ao contrário do que se pode pensar, o processo de desjudeização dos judeus progressistas não é novo, mas tem suas origens na Ditadura Militar. Como lembra Gherman, judeus não podem ser enterrados como suicidas.2 2 Sobre esse aspecto, vale lembrar o romance de Bernardo Kucinski, K., que retrata, com sutileza, a busca de um pai, escritor em iídiche, por sua filha desaparecida na Ditadura. Seu pai queria enterrar Ana Rosa Kucinski, professora de Química da Universidade de São Paulo, mas o rabino a quem procurou recusou-se a “colocar uma lápide sem que exista o corpo” (Kucinski, 2016, p. 73). Além do fato de que a lei judaica torna complicada, por si só, a definição de suicídio - computado como tal apenas quando há absoluta certeza, já que o ato é intolerável. A Ditadura Militar, nesse sentido, desjudeiza os judeus que faz como vítimas, forçando-os ao limbo da classificação de suicidas.3 3 Por sinal, como recorda Gherman (2022, p. 29-30), de todas as ditaduras latino-americanas, o Brasil foi a única que enterrou suas vítimas judias como suicidas. Nas leis judaicas, o suicida não pode ascender a outro plano, de forma que o regime, de uma só vez, conseguia eliminar o indivíduo fisicamente e espiritualmente, mesmo que essa não fosse, talvez, diretamente a sua intenção (Gherman, 2022, p. 28). Uma morte literal e simbólica.

O livro de Gherman se mostra imprescindível para quem quiser aprofundar-se nos estudos a respeito do bolsonarismo por responder algumas das maiores perguntas que ainda restam sobre o movimento. Qual a relação da comunidade judaica com Jair Bolsonaro? Por que uma parcela da comunidade aderiu a um movimento que, em larga medida, aproxima-se do nazifascismo? São perguntas contempladas no livro, questões complexas, que não se esgotam em uma obra. Mas Gherman consegue, com sucesso, lançar luz sobre alguns pontos obscuros de um movimento que surpreendeu o Brasil e o planeta. Para isso, utiliza bem pontes com o passado, mostrando que, ainda que seja seu próprio movimento, o bolsonarismo não está por completo dissociado de seus antecessores.

Referências

  • DATAFOLHA. Eleições 2018. Disponível em: Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2018/10/26/3416374d208f7def05d1476d05ede73e.pdf Acesso em: 12 mai. 2022.
    » http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2018/10/26/3416374d208f7def05d1476d05ede73e.pdf
  • DIMENSTEIN, Gilberto. Escritor diz que judeu não é digno de simpatia. Folha de S.Paulo. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/noticias/gd141003i.htm Acesso em: 12 jan. 2023.
    » https://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/noticias/gd141003i.htm
  • LAGO, Rudolfo; SARDINHA, Edson; LIPPELT, Vanessa. Onze vezes em que o Bolsonarismo flertou com o nazismo. Congresso em Foco. Disponível em: Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/onze-vezes-em-que-o-bolsonarismo-flertou-com-o-nazismo/ Acesso em: 12 jan. 2023.
    » https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/onze-vezes-em-que-o-bolsonarismo-flertou-com-o-nazismo/
  • GRIN, Monica; GHERMAN, Michel. Identidades ambivalentes: desafios aos estudos judaicos no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
  • KRASZNAHORKAI, László. Daqui, eu não preciso de nada. Tradução de. Paulo Schiller. In: LAUB, Michel (ed.). Anuário Todavia 2018/2019: Apocalipse? São Paulo: Todavia, 2018. p. 7.
  • KUCINSKI, Bernardo. K.: relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  • TONIOL, Rodrigo. O judeu imaginário do bolsonarismo. Revista Serrote, São Paulo, n. 39, p. 85-95, nov. 2021.
  • WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Pioneira, 1960.
  • 2
    Sobre esse aspecto, vale lembrar o romance de Bernardo Kucinski, K., que retrata, com sutileza, a busca de um pai, escritor em iídiche, por sua filha desaparecida na Ditadura. Seu pai queria enterrar Ana Rosa Kucinski, professora de Química da Universidade de São Paulo, mas o rabino a quem procurou recusou-se a “colocar uma lápide sem que exista o corpo” (Kucinski, 2016KUCINSKI, Bernardo. K.: relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 73).
  • 3
    Por sinal, como recorda Gherman (2022, p. 29-30), de todas as ditaduras latino-americanas, o Brasil foi a única que enterrou suas vítimas judias como suicidas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2023
  • Aceito
    28 Jul 2023
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