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Existe possibilidade de uma nova guerra civil nos EUA?

Can a new civil war happen in the U.S.?

Resenha: WALTER, Barbara F.. Como as guerras civis começam: e como impedi-las. Tradução de Vargas, Berilo. . Rio de Janeiro: Zahar, 2022. 320p.

Não só é possível, como as condições estão postas. Esta é a resposta de Barbara Walter para o questionamento que abre esta resenha dedicada a seu último livro. Cabe-me, então, apresentar as razões que a autora destaca como fundamentais para a eclosão de uma nova guerra civil nos EUA para, em seguida, discuti-las brevemente.

Barbara F. Walter, professora de Assuntos Internacionais na School of Global Policy and Strategy da University of California, San Diego, é uma das principais referências em discussões envolvendo guerras civis. Dentre suas principais contribuições, chamo a atenção para sua obra sobre o término de guerras civis (Walter, 2002WALTER, B. Committing to peace. Princeton: Princeton University Press, 2002. 216 p.), importante referência na área. Para além, Walter apresenta contribuições significativas em periódicos especializados da área de Ciência Política e Relações Internacionais. Em seu novo livro, Walter aponta que a possibilidade de uma nova guerra civil nos EUA é real e afirma que eventuais céticos só duvidam pois não sabem como este tipo de conflito começa. Para a autora, “guerras civis explodem e se intensificam de maneira previsível; seguem um roteiro. Os mesmos padrões podem ser observados, quer olhemos para a Bósnia, para a Ucrânia, para o Iraque, para a Síria, para a Irlanda do Norte ou para Israel” (Walter, 2022, p. 17). Qual é, então, o script para a eclosão de guerras civis?

Mediante entrevistas e explorações empíricas de abordagens teóricas importantes na literatura sobre guerras civis, Walter (2022) discute três dimensões do debate contemporâneo: (1) oportunidade para guerra civil, (2) motivos e (3) meios para organização. Isto é desenvolvido ao longo de oito capítulos, em que os cinco primeiros discutem os eixos analíticos supracitados, enquanto os três últimos avaliam o quanto os EUA estão próximos de uma guerra civil (capítulo 6), como se desenrolaria um conflito no país (capítulo 7) e como evitá-lo (capítulo 8).

Sobre o primeiro eixo, Walter tem como referência o paradigma das oportunidades sobre emergência de guerras civis, inicialmente desenvolvido por Fearon e Laitin (2003)FEARON, J.; LAITIN, D. Ethnicity, insurgency, and civil war. American Political Science Review, v. 97, n. 1, p. 75-90, 2003.. Distanciando-se de abordagens que enfatizam frustrações socioeconômicas e/ou injustiças políticas como causa dos conflitos ou que apontam guerras civis como resultado do desejo individual de indivíduos em maximizar seus interesses, os autores mudam o enquadramento das motivações dos rebeldes para fatores que favorecem insurgência. Dentre os principais fatores, Fearon e Laitin apontam pobreza, instabilidade política, terreno montanhoso e grande população.

Jack Goldstone e colegas acrescentam à tese da oportunidade e, particularmente, à dimensão da instabilidade política, a importância de considerarmos a combinação institucional de democracias parciais e faccionalismo, este último entendido como padrão de competição fortemente polarizado e intransigente entre grupos que perseguem interesses paroquiais em nível nacional. Estes dois elementos, de acordo com Goldstone et al. (2010)GOLDSTONE, J.; BATES, R.; EPSTEIN, D.; GURR, T.; LUSTIK, M.; MARSHALL, M.; ULFELDER, J.; WOODWARD, M. A global model for forecasting political instability. American Journal of Political Science, v. 54, n. 1, p. 190-208, 2010., fazem com que a possibilidade de instabilidade política aumente três vezes mais.

Com base nessa discussão, Walter assume que os EUA seriam hoje uma anocracia, isto é, não seriam uma autocracia absoluta, tampouco uma democracia plena, mas algo no meio desses polos (Walter, 2022, p. 30). Em anocracias, os cidadãos têm acesso a elementos de governos democráticos, tal como direitos políticos, porém são governados por lideranças autoritárias, cujo exercício do poder enfrenta poucos contrapesos. Ademais, a faccionalização seria característica presente nos EUA, sobretudo no Partido Republicano, cada vez mais assumindo uma base identitária intransigente e inflexível.

Com relação aos motivos, Walter (2022) volta suas atenções para a perda de status e ressentimento de lideranças políticas. Em linhas gerais, a discussão sobre perda de status envolve grupos políticos que se identificam como os herdeiros de determinado território e, consequentemente, merecedores de benefícios e privilégios. Suas atitudes envolvem a ideia de que dado espaço lhes pertence e de que membros de outros grupos possuem status inferior e, por conseguinte, menos direitos. Segundo essa abordagem, as pessoas tornam-se propensas a lutar se outrora tinham status diferenciado na sociedade, porém o perderam ao longo do tempo. Este tipo de nacionalismo étnico e sua expressão em facções, contudo, não necessariamente se desenvolve por geração espontânea; é necessário, conforme Walter (2022), que lideranças estejam dispostas a apelar para tais grupos. Aqui teríamos a figura do empreendedor étnico, que busca transformar em agenda política e base de suas ações, inclusive violentas, a posição e o status de dado grupo na sociedade. A ação de um empreendedor étnico é de suma importância para compreendermos não apenas os motivos, mas também os meios para organização dos grupos.

Com isso, temos o roteiro minimamente construído: guerras civis tendem a começar pela ação de grupos rebaixados inseridos em anocracias dominadas por facções étnicas. Todavia, questiona Walter (2022), o que finalmente empurra o país para o conflito, dado que as pessoas são capazes de absorver muita dor? Com base na literatura especializada e em seus próprios trabalhos, Walter argumenta que os indivíduos são capazes de aquiescer frente à discriminação e à pobreza, porém não conseguem tolerar a perda da esperança. Conforme a autora, “[é] quando um grupo olha para o futuro e não enxerga nada além de mais dor que ele começa a ver a violência como o único jeito de avançar” (Walter, 2022, p. 110). Não à toa, guerras civis costumam ser precedidas por anos de manifestações pacíficas e, quando os membros mais combativos de grupos insatisfeitos chegam à conclusão, por vezes incentivada por empreendedores étnicos, de que suas ações são ineficazes, é que a insurgência armada passa a ser cogitada como factível.

Somado a este cenário, construído ao longo dos quatro primeiros capítulos, temos a discussão sobre redes sociais, introduzida no quinto capítulo, que dá pistas importantes para compreender os meios para organização dos grupos rebeldes e, salvo melhor juízo, ponto alto do livro. Para Walter (2022), as redes sociais servem como aceleradores do conflito, pois permitem meios para organização e aproximação de grupos ideologicamente semelhantes, mas que outrora se encontravam espacialmente distantes, assim como permite a transmissão de narrativas falsas e violentas. Alguns dados arrolados no capítulo chamam a atenção. Por exemplo, segundo a autora, o acesso à internet começou a melhorar no continente africano em 2014 e, a partir do momento que Facebook, YouTube e Twitter começaram a penetrar na África subsaariana em 2015, o nível de conflitos subiu. Isto, como a própria autora destaca, não é exclusividade do continente africano, mas ocorre no mundo todo. Consequentemente, Walter (2022) afirma, a desinformação desacredita manifestantes pacíficos, produz a ideia de que grupos de oposição irão contra-atacar e que moderados estão inertes ou mesmo fracos em comparação aos demais polos.

O trabalho de Walter (2022) tem o grande mérito de apresentar de forma didática, acessível e recheada de exemplos empíricos, algumas das teorias e abordagens sobre guerras civis mais conhecidas na literatura. Considerando o debate no Brasil, isto é relevante, pois, à exceção de Zimerman (2008)ZIMERMAN, A. Peguem a foice e vamos à luta: determinantes agrários da guerra civil. São Paulo: Humanitas, 2008. 266 p. e Freire (2014)FREIRE, D. Between ballots and bullets: Executive competitiveness and civil war incidence, 1946-2000. Revista Española de Ciencia Política, n. 36, p. 35-62, 2014., o tema no país ainda é pouco explorado. Contudo, a despeito dos méritos, ao não explorar determinados pontos e adotar tom alarmista em demasia, sobretudo em seus capítulos finais, a resposta positiva sobre a possibilidade de uma nova guerra civil nos EUA, salvo melhor juízo, ainda não é convincente. Apresento esta avaliação ancorada em quatro comentários sobre a obra.

Em primeiro lugar, uma discussão mais refinada sobre a definição do que seria uma guerra civil, tema caro à literatura, está ausente do trabalho. Por exemplo, Sambanis (2004)SAMBANIS, N. What is a civil war? Journal of Conflict Resolution, v. 48, n. 6, p. 814-858, 2004. introduz nove critérios para enquadrar um evento como guerra civil, incluindo a controversa discussão sobre o limiar de mortes em um conflito. Este tipo de discussão é fundamental, pois enfrenta o seguinte questionamento: como diferenciar a guerra civil de tipos distintos de violência política? Não à toa, Kalyvas (2003KALYVAS, S. The ontology of political violence. Perspective on Politics, v. 1, n. 3, p. 475-494, 2003.; 2019)KALYVAS, S. The landscape of political violence. In: CHENOWETH, E.; ENGLISH, R.; GOFAS, A.; KALYVAS, S. (orgs.). The Oxford handbook of terrorism. Oxford: OUP, 2019. p. 11-33. acertadamente afirma que a dificuldade na caracterização de uma guerra civil é conceitual, não apenas de mensuração, e que pesquisadores, por vezes, esquecem-se que tipos de violência política coexistem em um continuum, podendo um ser alternativa não pacífica ao outro. Em suma, a ausência de guerra civil pode levar ao terrorismo, ou ainda, a presença de terrorismo pode ser explicada pela impossibilidade de se iniciar uma guerra civil (Kalyvas, 2019KALYVAS, S. The landscape of political violence. In: CHENOWETH, E.; ENGLISH, R.; GOFAS, A.; KALYVAS, S. (orgs.). The Oxford handbook of terrorism. Oxford: OUP, 2019. p. 11-33., p. 12). Com isso, meu questionamento é que o roteiro de Walter pode ser indicativo de outros tipos de violência política, além da guerra civil.

Um segundo ponto é que Walter parecem endossar a controversa tese do ineditismo das “novas” guerras civis. Em determinado momento, a autora (Walter, 2022, p. 15) afirma que a guerra civil no século XXI é nitidamente diferente das guerras civis do passado. Esta tese é discutível pois, conforme Kalyvas (2001)KALYVAS, S. ‘New’ and ‘old’ civil wars: a valid distinction? World Politics, v. 54, n. 1, p. 99-118, 2001., a ideia de que as guerras civis do passado eram informadas por objetivos político-ideológicos e não em interesses paroquiais, como as de agora, negligencia não apenas a história dos conflitos ditos antigos, mas também traz problemas conceituais e metodológicos significativos. Por exemplo, sobre a pilhagem de recursos, algo dito como comum nas “novas” guerras civis, grupos combatem para pilhar recursos ou pilham para se tornarem capazes de combater (Kalyvas, 2001KALYVAS, S. ‘New’ and ‘old’ civil wars: a valid distinction? World Politics, v. 54, n. 1, p. 99-118, 2001., p. 104)? Essa discussão sobre ineditismo é complexa e Walter a assume de forma acrítica, à exceção do momento em que discute redes sociais, que parece ser elemento novo, porém que não necessariamente muda a natureza das guerras civis.

Como terceiro comentário, endosso a avaliação que Kaufman (2022)KAUFMAN, S. Is the U.S. heading for a civil war? Scenarios for 2024-25. Studies in Conflict & Terrorism. 2022. DOI: https://doi.org/10.1080/1057610X.2022.2137892 Acesso em: 8 jan. 2023.
https://doi.org/: https://doi.org/10.108...
sustenta sobre a discussão de informações falsas e narrativas de ódio. Para o autor, é necessário suplementar este aspecto da obra de Walter (2022), pois é preciso análise mais acurada para o conteúdo das narrativas que circulam, examinando a seguinte pergunta: qualquer tipo de conteúdo falso produz polarização e extremismo? Kaufman apresenta possibilidade analítica para essa suplementação mediante o que chama de teoria política simbólica (simbolics politics theory) e alcança conclusão semelhante: os EUA apresentam condições para uma nova guerra civil.2 2 Em minha avaliação, a resposta de Kaufman não é convincente, pois também não explora as demais questões ora direcionadas à obra de Walter. Alternativamente, o exame do conteúdo dos discursos de ódio pode ser realizado mediante instrumentais da análise de discurso (Hansen, 2006HANSEN, L. Security as practice: discourse analysis and the Bosnian war. London: Routledge, 2006. 288 p.) ou da análise de narrativa (Cobb, 2013COBB, S. Speaking of violence: the politics and poetics of narrative in conflict resolution. Oxford: OUP, 2013. 320 p.).

Finalmente, uma perspectiva sobre a economia política do conflito violento seria bem-vinda à discussão. À guisa de ilustração, Walter (2022) elenca uma série de grupos extremistas em atuação no país, porém pouco é dito sobre, por exemplo, seus financiamentos. Como nos recorda Kalyvas (2006)KALYVAS, S. The logic of violence in civil wars. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 510 p., guerra civil é violência organizada em massa, e a organização deste tipo de violência demanda recursos substantivos. Consequentemente, uma análise sobre possibilidade de guerra civil nos EUA passa por uma discussão sobre o capitalismo no país e as relações sociais que este sistema produz.

Referências

  • COBB, S. Speaking of violence: the politics and poetics of narrative in conflict resolution. Oxford: OUP, 2013. 320 p.
  • FEARON, J.; LAITIN, D. Ethnicity, insurgency, and civil war. American Political Science Review, v. 97, n. 1, p. 75-90, 2003.
  • FREIRE, D. Between ballots and bullets: Executive competitiveness and civil war incidence, 1946-2000. Revista Española de Ciencia Política, n. 36, p. 35-62, 2014.
  • GOLDSTONE, J.; BATES, R.; EPSTEIN, D.; GURR, T.; LUSTIK, M.; MARSHALL, M.; ULFELDER, J.; WOODWARD, M. A global model for forecasting political instability. American Journal of Political Science, v. 54, n. 1, p. 190-208, 2010.
  • HANSEN, L. Security as practice: discourse analysis and the Bosnian war. London: Routledge, 2006. 288 p.
  • KALYVAS, S. ‘New’ and ‘old’ civil wars: a valid distinction? World Politics, v. 54, n. 1, p. 99-118, 2001.
  • KALYVAS, S. The ontology of political violence. Perspective on Politics, v. 1, n. 3, p. 475-494, 2003.
  • KALYVAS, S. The logic of violence in civil wars. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 510 p.
  • KALYVAS, S. The landscape of political violence. In: CHENOWETH, E.; ENGLISH, R.; GOFAS, A.; KALYVAS, S. (orgs.). The Oxford handbook of terrorism. Oxford: OUP, 2019. p. 11-33.
  • KAUFMAN, S. Is the U.S. heading for a civil war? Scenarios for 2024-25. Studies in Conflict & Terrorism 2022. DOI: https://doi.org/10.1080/1057610X.2022.2137892 Acesso em: 8 jan. 2023.
    » https://doi.org/: https://doi.org/10.1080/1057610X.2022.2137892
  • SAMBANIS, N. What is a civil war? Journal of Conflict Resolution, v. 48, n. 6, p. 814-858, 2004.
  • WALTER, B. Committing to peace. Princeton: Princeton University Press, 2002. 216 p.
  • ZIMERMAN, A. Peguem a foice e vamos à luta: determinantes agrários da guerra civil. São Paulo: Humanitas, 2008. 266 p.
  • 2
    Em minha avaliação, a resposta de Kaufman não é convincente, pois também não explora as demais questões ora direcionadas à obra de Walter.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2023
  • Aceito
    16 Out 2023
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