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Escutando com o corpo: sensibilidade, música e corpo numa cena local de dança do ventre

Listening with the body: sensitivity, music and body in a local belly dance scene

RESUMO

No presente artigo intento mostrar a intrínseca relação entre a percepção musical e a agência corpórea desenvolvida na prática da dança do ventre, lançando mão de instrumental teórico da etnomusicologia e da antropologia. Em seguida, procuro pensar como a experiência de escuta musical na dança do ventre, que envolve o corpo como um todo, se desenvolve e produz efeitos entre as praticantes da dança. Essas reflexões são precedidas por uma breve ponderação que situa os corpos envolvidos numa cena específica - a cidade de São Paulo - demonstrando em que medida essa localização particulariza o processo da dança em comparação a outros lugares do mundo onde é disseminada.

PALAVRAS CHAVE:
Dança do ventre; etnomusicologia; antropologia da dança; sensibilidade; incorporação

ABSTRACT

In this article, I intend to show the intrinsic relationship between musical perception and body agency developed in the practice of belly dance, using ethnomusicology and anthropology as theoretical instruments. Then, I try to think about how the experience of listening to music in belly dancing, which involves the body as a whole, develops and produces effects among dance practitioners. These reflections are preceded by a brief reflection that situates the bodies involved in a specific scene - the city of São Paulo - demonstrating the extent to which this location particularizes the dance process in comparison to other places in the world where it is disseminated.

KEYWORDS:
Belly dance; ethnomusicology; dance anthropology; sensitivity; embodyment

Há, na literatura etnomusicológica, uma vasta produção interessada nas interações entre corpo e música. Dentre as questões seminais levantadas por esses estudos, encontramos desde temas como “transcendência” (Rouget, 1987), “escuta profunda” (Becker, 2004BECKER, Judith. 2004. Deep Listeners. Bloomington, Indiana University Press.), “flow” (Csikszentmihaly, 1996), uso da música para propiciação de estados somáticos específicos (DeNora 2000DENORA, Tia. 2000. Music in Everyday Life. Cambridge, Cambridge University Press .), processos de aprendizagem de dança (Blacking, 1985BLACKING, John. 1985. “Movement, Dance, Music and the Venda girls’ initiation cycle”. In: SPENCE, Paul (org.). Society and the Dance. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 64-91.; Mckntosh, 2018), bem como os conhecimentos produzidos por esta prática (Daniel 2005). Antropólogos da dança, por sua vez, interessam-se por outras questões, tendendo a enfatizar mais precisamente o que o corpo está mobilizando enquanto dança, tanto no mundo visível quanto no invisível (Cohn & Sztutman, 2003). Isso pode estar presente nos padrões coreológicos (McNeill, 1997; Beaudet, 2013); na direção, intensidade, velocidade e intenção dos movimentos corporais (Camargo, 2014; Ascelrad, 2017); nos deslocamentos de peso, no porte dos figurinos e no emprego de força muscular (Bardet, 2015BARDET, Marie. 2015. A filosofia da dança: um encontro entre dança e filosofia. São Paulo, Martins Fortes.; Flérty, 2015); nos significados culturais da dança e no poder do corpo para movimentar o mundo (Citro, 2012; Kaeppler, 1998; Lepecki, 2013LEPECKI, André. 2013. “Planos de composição: dança, política e movimento”. In: RAPOSO et al. (orgs.) A terra do não-lugar. Diálogos entre antropologia e performance. Florianópolis, Editora UFSC, pp. 109-120.). De um modo geral, a abordagem etnomusicológica dá pouca ênfase aos aspectos mais caros aos antropólogos; tratando a música como princípio mobilizador dos seres humanos e de seus corpos, nem sempre enfatiza as ações do corpo - perceba-se que há diferença entre abordar processos fisiológicos a que o corpo está sujeito no momento da escuta ou da dança e preocupar-se com suas ações, questionando, por exemplo, qual das pernas está sustentando o peso do corpo, que parte do corpo inicia um movimento, ou se os joelhos estão voltados para dentro ou para fora enquanto se está dançando. Por outro lado, nos estudos antropológicos, raramente ouvimos música, como se o corpo prescindisse dela para se projetar no espaço.

No presente artigo, busco demonstrar como ambos os focos de análise são indispensáveis para a compreensão da dança do ventre, vez que suas praticantes atribuem tanta importância à movimentação do corpo quanto à escuta musical. Em seguida, procuro pensar sobre como essa experiência de escuta, que envolve o corpo como um todo, se desenvolve e produz efeitos entre as praticantes da dança. Essas reflexões são precedidas por uma breve ponderação que situa os corpos envolvidos numa cena específica - a cidade de São Paulo - demonstrando em que medida essa localização particulariza o processo da dança em comparação a outros lugares do mundo onde é disseminada.

Minha interação com esse campo se deu como aprendiz e como realizadora de filmagens - abordagem que não discutirei aqui, por ainda estar em processo de trabalho com as imagens produzidas ao longo da pesquisa. Detendo-me mais especificamente sobre a etnografia enquanto performer, reconheço que nesse tipo de experiência busca-se um equilíbrio entre o mergulho em outras formas de sociabilidade e as percepções subjetivas, mediados pelo corpo. Pensar nas ações do corpo enquanto sujeito não se aplica apenas aos nativos em um campo etnográfico. Pesquisadoras1 1 Muito há para ser dito em relação à minha experiência como performer na dança do ventre. Creio, no entanto, não ser este o espaço e nem um artigo científico a melhor forma. Tal experiência subjetiva, no entanto, tem sido registrada em vídeo e poderá, em momento oportuno, fazer deste um meio sensível de expressão. também têm corpo, ainda que sua posição difira da de demais performers por sua ambiguidade: ao mesmo tempo “não-performer” e “não-não-performer”, nem espectadora e nem “não-espectadora”, como ensina Richard Schechner (1985SCHECHNER, Richard. 1985. Between Theater and Anthropology. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.). O que de fato se faz durante a pesquisa é se colocar na postura das interlocutoras, na tentativa de compreendê-las. Lembrando ainda as orientações de John Blacking sobre essa forma de interação em campo “as técnicas do corpo não são inteiramente aprendidas de outros; são antes de mais nada descobertas por meio dos corpos dos outros” (1977: 4). A exemplo de muitos etnomusicólogos, fiz de minhas interlocutoras mestras. A etnografia se iniciou por meio de visitas a escolas especializadas em dança do ventre, com foco na zona sul de São Paulo2 2 É prática entre essas escolas oferecer aulas experimentais gratuitas. Assim, conheci a Al Quamar, a Luxor, o Khan el Khalili, Shangrilá, o Espaço Esmeralda, a Pandora Danças, todas na Vila Mariana e em bairros circunvizinhos, e algumas escolas fora desse eixo, como o Vale das Rainhas, no Butantã. Eu agendava, ia ao local, fazia uma dessas aulas e em seguida contava à professora, proprietária ou diretora do estabelecimento sobre minhas intenções de pesquisa. Recebi, deste modo, diversas colaborações, desde profissionais que se disponibilizavam a trocar aulas por filmagens de seus eventos, até aquelas que propunham parcerias em projetos artísticos. . Paralelamente também procurei minhas ex-professoras, além de bailarinas profissionais e alunas com as quais convivi desde quando iniciei a prática da dança em 20103 3 Um dos frutos mais importantes dessa iniciativa foi a criação do projeto VentreCine em Campinas, uma oficina de dança e vídeo que organizei em parceria com minha primeira professora de dança do ventre, Eliana Mônaco. . Aprender essa dança e desenvolver uma percepção a partir “de dentro”, foi também uma tentativa de produzir uma etnografia que fugisse da perspectiva do olhar (gaze perspective). Como aponta Banasiak (2014BANASIAK, Krista. 2014. “Dancing the East in the West: Orientalism, feminism, and belly dance”. Critical Race and Whiteness Studies, v. 10, n. 1: 6-24.), essa é uma abordagem frágil, transformando a dança num objeto que se analisa a partir do exterior. Essa crítica ela dirige diretamente às perspectivas que remetem a dança do ventre à essencialização e ao orientalismo, deixando de lado todas as experiências vividas pelas praticantes. Evocando novamente Blacking, creio que a dança demande uma abordagem que se aproxime, sobretudo, da experiência sensível dos dançarinos, desde a extenuação do corpo durante os treinos, até as mobilizações que os corpos dançantes são capazes de efetuar socialmente (Blacking 1985BLACKING, John. 1985. “Movement, Dance, Music and the Venda girls’ initiation cycle”. In: SPENCE, Paul (org.). Society and the Dance. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 64-91.).

Tais experiências me proporcionaram intenso contato com professoras e alunas. Não uso o adjetivo “intenso” como mero recurso literário aqui, mas trazendo a reflexão de Helena Wulff (2006WULFF, Helena. 2006. “Experiencing the Ballet Body: Pleasure, Pain, Power”. In: REILY, S. (orgs). The Musical Human: Rethinking John Blacking’s Ethnomusicology in the Twenty-First Century. Aldershot, Ashgate, pp.125-142.) sobre a profundidade das relações entre bailarinos. A experiência de dançar junto, aprender a partir de outros corpos, sentir seu acolhimento, dificuldades e superações cria laços de solidariedade a partir da dança.

CORPOS EM SÃO PAULO

Como dança globalmente disseminada, a dança do ventre apresenta especificidades locais (Mcdonald, 2012MCDONALD, Caitlin. 2012. Global Moves: Belly Dance as an Extra/Ordinary Space to Explore Social Paradigms in Egypt and Around the World. Londres: Leanpub.). Antes de abordar propriamente as interações entre corpo e música nesse estilo de dança, creio ser necessário tratar como algumas especificidades são inscritas, produzidas e expressas pelo corpo nessa localidade. O que faço aqui é trazer uma questão crítica ao âmbito dos debates relativos ao “musicar local”, que recentemente resultou no reconhecido compêndio “The Routledge Companiontothe Study of Local Musicking4 4 Esta obra foi laureada com o “Ellen Koskoff Prize for Edited Collections” da Society Of Ethnomusiclogy, em 2019. (Reily e Brucher, 2018REILY, Suzel e BRUCHER, Keith (orgs.). 2018. The Routledge Companion to the Study of Local Musicking. New York, Routledge.)5 5 Ver também: Villela et alii, 2019. .

Nesse campo de discussões, articulam-se as abordagens de Christopher Small sobre o “musicar”, e as de Ruth Finnegan concernentes à prática de música numa localidade. O conceito de musicar de Small amplia a ideia de produção da música para as múltiplas atividades envolvidas nessa prática social, considerando não apenas músicos, compositores, cantores, mas também audiências, produtores, pessoas adquirindo mídias ou “baixando” arquivos musicais, todos os profissionais envolvidos na produção de um evento musical (do faxineiro ao empresário), dentre outras possibilidades. A discussão de Finnegan, por sua vez, enfoca a atividade musical na articulação de contextos locais, independentemente da origem do estilo em questão. Em seu estudo, a autora demonstra como práticas musicais articulavam sociabilidades na pequena cidade de Milton Keynes (1989FINNEGAN, Ruth. 1989. The Hidden Musicians: Music-making in an English Town. Cambridge, Cambridge University Press .), evidenciando que localidades são contextos dinâmicos, pontos de convergência contínuos entre pessoas, ideias, práticas, tecnologias e objetos numa localidade durante determinado período de tempo.

Associadas, essas proposições nos levam a pensar sobre as relações entre o musicar e a localidade, questionando como o musicar constrói e é construído pela localidade, ou ainda, como as pessoas se engajam com ideias de comunidade e lugar através de seus “musicares”. Assim como nos contextos musicais, o “dançar” pode abarcar diversas pessoas e atividades que não são exatamente dança, mas contribuem para que ela ocorra e envolvem pessoas em torno de sua prática em uma localidade6 6 Sem perder de vista o fato de que dançar também pode ser compreendido como uma forma de musicar.” . Em São Paulo, praticantes da dança do ventre e outros agentes se engajam em atividades específicas (produzir show, ensinar, fazer aulas, vender figurinos, tocar instrumentos árabes, vender comida árabe) que particularizam a cena de São Paulo e que a diferem da cena da cidade do Cairo, de Istambul ou a de Los Angeles. O que queremos saber, então, é que significados, sociabilidades, afetos e sensações atravessam os corpos das praticantes da dança do ventre em São Paulo e são produzidos e expressos por eles? Ou ainda, que localidades são construídas por esses corpos e, reciprocamente, como estes são construídos por elas? No Brasil, há registros de dançarinas do ventre que alcançaram alguma notoriedade em canais midiáticos entre os anos 1950 e 1970, período em que uma representativa migração de grupos sociais árabes de diferentes nacionalidades, chegou ao país (Bencardini, 2002BENCARDINI, Patrícia. 2002. Dança do Ventre: Ciência e Arte. São Paulo, Textonovo.). Em São Paulo, até o início dos anos 2000, a performance da dança era mais restrita a cafés, restaurantes ou clubes frequentados majoritariamente por imigrantes sírios, libaneses e seus descendentes (Mattar, 2017MATTAR, Shalimar. 2017. Círculo Mulher: O Movimento Feminino ao Longo da Vida. Oficina do Livro.). A partir de então, um notório interesse teve início, quando a telenovela “O Clone”, exibida pela Rede Globo, protagonizou uma personagem marroquina que frequentemente fazia da dança do ventre um meio de expressão, como relatam alunas e profissionais.

Nos dias atuais, São Paulo é a cidade brasileira com maior oferta e demanda por cursos da dança, sediando também uma agenda ampla de shows, festivais e feiras de artefatos. A cena7 7 Admitindo o sentido proposto por Grossberg, cenas são fenômenos situacionais, apoiados especificamente pelas interações e especificidades de seus públicos (2002: 49-50). paulistana envolve centenas de alunas, professoras/bailarinas, além de uma série de outros profissionais, tais como músicos árabes, estilistas, vendedores de roupas e demais acessórios, produtores de shows, restaurantes, bares e casas de chá, dentre outros. É importante pontuar, no entanto, que se trata de uma cena que envolve centenas de pessoas numa cidade de vinte milhões de habitantes. Não se trata, portanto, de uma “febre”, como nos anos 2000, quando a telenovela “O Clone” ia ao ar. Atualmente esta é uma cena mais localizada, que conta com um público cativo e com formas bastante próprias de sustentabilidade (GIESBRECHT, 2019).

Outra especificidade em relação ao que apontam estudos da dança do ventre em outras localidades8 8 Ver: Downey et alii, 2010; Dox, 2006; Wright & Dreyfus, 1998; Shay, 2008; Shay & Sellers-Young, 2005; Moe, 2012; Macmaster & Lewis, 1998; Mcdonald & Sellers-Young, 2013; Mcdonald, 2012; Keft-Kennedy, 2013; Koritz, Amy, 1997; Krauss, 2009; Frühauf, 2009; Banasiak, 2014; Bordelon, 2011. é que na cena paulistana o investimento na identidade árabe é apenas um, dentre os vários significados negociados através de sua prática. Apesar dos nomes artísticos adotados por bailarinas brasileiras, como “Jade el Jabel”, “Nura Samah”, ou “Rubi el Suhei”, apenas uma pequena parcela dessas profissionais descende de famílias árabes. Embora no caso destas o convívio familiar tenha influenciado fortemente corporalidades e musicalidades e ainda facilitado o acesso a países do Oriente Médio, a prática da dança do ventre nem sempre é apoiada pelos familiares.

Como me contaram Cristina Antoniades9 9 Cristina Antoniades é produtora de espetáculos, professora e proprietária da escola Pandora Danças, localizada na Vila Mariana. - que descende de uma família grega e é casada com um libanês - e Giselle Kenj10 10 Gisele Kenj, famosa por dançar com suas cobras Píton, é bailarina, atriz, cantora e produtora de eventos de dança do ventre. - filha de pai sírio e mãe libanesa -, nos países árabes a dança do ventre é frequentemente associada à prostituição. Giselle, hoje na casa dos cinquenta anos, chegou a ser expulsa de casa quando decidiu se profissionalizar. Cristina, bailarina de cerca de quarenta anos, sempre sentiu reprovação por parte de seus pais. Rebeca Bayeh11 11 Além de bailarina profissional e professora, Rebeca Bayeh é Bacharela e mestra em Física pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). , bailarina com ascendência libanesa, com um pouco mais de vinte anos, diz que sua mãe a apoia, mas uma parte mais conservadora de sua família se mostra reticente. Certa vez, me contou sobre uma situação que passou quando dançou em um restaurante árabe e recebeu da plroprietária, também libanesa, um convite para dançar mais vezes. Ela teria dito a Rebeca que, se o fizesse, se tornaria conhecida na comunidade, ao que Rebeca respondeu: “Mas eu não quero me tornar conhecida na comunidade... eu já sou, mas não como bailarina”. Ao me contar o ocorrido, Rebeca queria delimitar a separação entre a artista e a integrante da comunidade libanesa em São Paulo, ciente das consequências e complicações que a associação explícita entre os dois papéis poderia lhe trazer.

Apesar das fricções familiares, as bailarinas não deixam de usar essas identidades para se destacar na cena da dança, tanto como performers quanto como professoras. Tornam-se, muitas vezes, especialistas em determinados estilos, praticados em países ou regiões geográficas de onde descendem suas famílias.

A distância cultural sentida pelas bailarinas com ou sem ascendência árabe é algo de que estão cientes em sua maioria. Quando lhes pergunto diretamente: “sua dança é árabe?”, recebo normalmente respostas que lembram muito a distinção de Thomas Turino (2008) entre práticas musicais participativas e apresentacionais. Minhas interlocutoras me explicam como a dança, em países do Oriente Médio, tem o objetivo de socialização e é performada livremente em festas de familiares, amigos, night clubs, etc. “Você nunca vai ver alguém entrando na meia ponta com os braços estendidos segurando um véu numa festa de família”, diz Cristina Antoniades a suas alunas durante uma aula.

“Eu fui conhecer escolas de dança quando visitei o Líbano... as pessoas vão para aprender como dançar nas festas para se socializar, igual aula de forró aqui. As escolas [de dança do ventre] daqui preparam as alunas para o palco”, me diz Rebeca Bayeh durante uma entrevista.

“Dança do Ventre” nas enunciações dessas bailarinas, está longe de ser uma dança “original”, “tradicional”, ou ligada a alguma cultura árabe específica. Trata-se de uma recodificação de movimentos encontrados na corporalidade de várias culturas coreológicas árabes, uma estilização modelada para o palco, mesmo quando se trata de algum estilo dito folclórico, como me explicou, certa vez, a bailarina Lulu do Brasil12 12 Lulu do Brasil é uma bailarina brasileira responsável pela expansão da dança do ventre no Brasil. Foi sócia e bailarina principal da Casa de Chá Khan el Khalili (em São Paulo) por mais de 21 anos, sendo responsável pela formação das bailarinas e professoras que hoje compõem o quadro de profissionais da Casa de Chá. Possui larga experiência como bailarina profissional em países árabes. Fonte: http://wikidanca.net/wiki/index.php/Lulu_Sabongi - Acesso em <i01/03/2019>. . As respostas de minhas interlocutoras se contrapõem diretamente a ideias de apropriação cultural por vezes encontradas em alguns trabalhos (Mcdonald & Sellers-Young, 2014; Moe, 2012MOE, Anderson. 2012. “Beyond the belly: an appraisal of Middle Eastern (aka Belly Dance) as leisure”. Journal of Leisure Research, v. 44, n. 2: 201-233.; Dox, 2006DOX, Donnalee. 2006. “Dancing Around Orientalism”. TDR: The Drama Review, v. 50, n. 4: 52-71.)13 13 De acordo com esses autores, “Dança Oriental” ou “Dança do Ventre” foram nomes ocidentalizados, criados num processo de apropriação de uma variedade de danças reconhecidas no Oriente Próximo, Ásia, partes do Mediterrâneo e norte da África. Estilizadas, especialmente pelas bailarinas modernas americanas, passaram a ser praticadas por mulheres ocidentais tendo como referência uma concepção específica sobre o Oriente, materializada em figurinos, musicalidade e corporalidade.Desde então, a dança tem sido globalmente divulgada como meio de reencontro de um feminino ancestral, de reconexão com o “sagrado feminino”, com “a Grande Deusa” e com um “passado matriarcal”, como base da organização social. . Não se está performando uma dança praticada por determinados povos do planeta, sem lhes atribuir crédito; antes é presumido que o que se está dançando não é aquela, mas outra dança, com códigos cinéticos e estéticos próprios. Tampouco se trata da “violência epistêmica” apontada por Gayatri Spivak (1985), em que a apropriação cultural chega ao ponto de apagar por completo os traços do grupamento humano criador de determinada expressão, uma vez que as praticantes da dança do ventre, ao menos em São Paulo, compreendem que há outras formas de dança em países do Oriente Médio e que, destas, apenas emprestam e recodificam certos movimentos.

A própria relação que os públicos paulistanos desenvolvem com a música ao som da qual as bailarinas dançam é muito diferente da dos públicos árabes. Como explica Candance Bordelon (2011BORDELON, Candace. 2011. “Finding the Feeling” Through Movement and Music: An Exploration of Tarab in Oriental Dance. Denton, dissertação de Mestrado, Texas Woman’s University.), entre os últimos essa música é conhecida, muitas vezes fazendo parte de antigos cancioneiros nacionais ou da trilha sonora de clássicos do cinema; a bailarina precisa estar atenta ao universo simbólico relacionado a essas canções e sua dança precisa ser fiel ao universo afetivo associado a elas. Nos palcos paulistanos, no entanto, essa música pode soar como algo completamente novo, criando possibilidades de engajamento sensório diverso daqueles do público árabe, tanto para bailarinas quanto para seus públicos. Na medida em que estes ressignificam a dança e a fruição musical, experimentam sensorialmente deslocamentos de “origem”, novas possibilidades de criação expressiva e novas formas de sociabilidade, ou seja, musicam localmente a partir de novas sensibilidades.

Se o “corpo árabe” está presente em apenas alguns casos dessa cena de dança, que outros corpos são desenvolvidos através de sua prática? Ao longo da pesquisa, tenho percebido algumas tendências nas formas de ensino. Como as bailarinas profissionais são professoras e performers, o modo de ensino da dança faz parte de uma identidade mais ampla sustentada também pela performance perante os demais integrantes dessa cena. Assim, se uma profissional defende uma dança mais técnica ou artística, ensinará dessa maneira e dançará dessa maneira; na outra ponta, há bailarinas que definem a dança como prática terapêutica. Isso também se refletirá em suas práticas de ensino e em seu modo de dançar em apresentações públicas. É claro que essa divisão não é hermética; antes são tendências porosas, havendo desde casos em que uma delas se sobrepõe às outras até aqueles em que se equilibram entre si.

Na primeira tendência há uma preocupação maior com o aperfeiçoamento técnico da dança, com a preparação cênica e até mesmo com a produção de espetáculos e inserção no mercado cultural. A dança sofre grande influência do balé clássico, especialmente no que concerne à postura do corpo e ao alongamento dos membros. Embora elementos dessa tendência estejam presentes em qualquer curso de dança do ventre, há cursos especialmente voltados para essas questões, oferecidos geralmente a bailarinas profissionais ou em nível avançado. O foco recai sobre o momento da apresentação, o virtuosismo da performance e em técnicas para cativar o público.

Já nas inclinações terapêuticas, impera a noção de “sagrado feminino”, um estado existencial que teria se perdido desde a instituição do patriarcado na evolução humana e que se quer recuperar. Em linhas gerais, esse seria um estado de conexão total entre o “eu” e o corpo feminino, com seu útero, vagina, seios, capacidade de geração e nutrição da vida. Esse corpo, além do poder de gerar a vida, tem potenciais como a intuição, ou o sexto sentido, além de outras habilidades sensórias. É sobretudo apto a se movimentar de uma maneira “própria da mulher”. A prática da dança, nessa perspectiva, é um exercício de recuperação desse aspecto sagrado através do movimento. É uma reconexão das mulheres com seus corpos, ao mesmo tempo em que reconhecem seus poderes. Professoras adeptas dessa vertente empregam uma gama de técnicas terapêuticas associadas à dança, tais como a abertura de cartas de tarô como “aquecimento para a intuição”, precedendo uma aula; as “rodas das deusas” ou “saraus das deusas”, em que se apresentam arquétipos de deusas de várias origens e se incentiva alunas a se identificarem com seus aspectos inerentes para dançar; as observações das fases da lua e as comparações com os estágios da vida de uma mulher, etc. As relações construídas durante esses processos de aprendizagem são mais importantes do que uma possível apresentação. Dá-se mais importância aos benefícios produzidos numa aula do que à formação de exímias bailarinas.

Finalmente, a orientação cultural árabe preza pelo ensino de práticas coreológicas de povos geograficamente determinados, como já foi abordado. Complementando o anteriormente exposto, ouvi de bailarinas que cultivam essa tendência que o nome “dança do ventre” é limitador, que a dança deveria na verdade se chamar “dança árabe”, ou “dança oriental”, uma vez que há uma diversidade de estilos de dança originários entre povos árabes sob esse mesmo guarda-chuva. Aqui, há uma atenção especial à relação entre estilos de dança, suas músicas e figurinos próprios. Observa-se, sobretudo, a busca pela coerência entre esses elementos e tipos de movimento “se você está dançando um baladi14 14 O termo baladi significa “minha terra” ou “popular”. Também é usado para fazer referência à cidade, ao local e ao rural. Quando aplicado à música, define um estilo folclórico urbano, que se desenvolveu a partir de estilos musicais egípcios tradicionais no início do século XX, quando um grande número de pessoas de áreas rurais migrou para o Cairo. Para se dançar baladi, emprega-se largamente o improviso: o corpo não se eleva em braços esticados ou meia ponta nos pés, o quadril se movimenta pronunciadamente para baixo, como se o corpo fosse atraído pelo chão. Fonte: http://www.lulufrombrazil.com.br/baladi-voce-sabe-o-que-e/ - Acesso em <i01/03/2019>. , não dá pra fazer uma entrada na meia ponta alongando os braços!”, diz Eliana Mônaco15 15 Eliana Mônaco é jornalista e professora de dança do ventre há 20 anos. Vem se dedicando à pesquisa da cultura e das implicações da dança do ventre na vida das mulheres, tendo lançado o vídeo-documentário “A dança oriental e seu ressurgimento na sociedade moderna” (1999), que faz uma crítica à abordagem da mídia sobre essa arte . Assim, nessa forma de valoração, quanto maior a influência de outros estilos na dança, menos “autêntica” ela é.

Como frisei anteriormente, essas tendências estão sempre presentes em todas as aulas, mas em alguns casos, uma ou outra se sobressai. Há, em cada uma delas, uma exigência específica do corpo, bem como um treino diferente de suas capacidades. Se no estilo técnico/artístico é preciso desenvolver a presença de palco ao se entrar numa sala de espetáculos ou num café, na abordagem terapêutica é necessário desenvolver improviso e intuição. Não menos complexa é a incorporação de trejeitos, gestual e posturas baseadas no referencial cultural árabe.

Os corpos criados a partir dos estilos praticados nas escolas de São Paulo não se definem apenas pela maneira como são modelados, mas também pelas aptidões que desenvolvem. Ao refletir sobre essas tendências e possibilidades de trabalho com o corpo, é necessário ter em mente que as salas de ensino da dança do ventre não são simplesmente fábricas de corpos. Como desenvolverei mais adiante, a incorporação de técnicas, de qualquer natureza, não molda os corpos de modo inflexível ou homogeneizante; é, antes, o modo como cada corpo responde à inscrição de técnicas, desenvolvendo postura e movimento próprios em contínua transformação.

Apesar de todas essas possibilidades de trabalho com o corpo, há aprendizados comuns, disseminados e cobrados de todas as praticantes, não importando que estilo sigam, assunto do qual trataremos nas próximas seções.

O DESPERTAR SENSORIAL

As situações descritas a seguir são exemplos cotidianos daquilo que se passa nas salas de aula de dança do ventre. Antes de qualquer treino, há um investimento na abertura de canais de sensibilização do corpo.

Conheci Cristina Antoniades, proprietária da escola Pandora Danças, em uma aula temática, intitulada “Sensualidade na Dança do Ventre”. Dentre as possibilidades de abordagem da dança já discutidas, Cristina dá ênfase ao aspecto cultural árabe em sua prática de ensino. Cristina iniciou sua aula falando sobre uma situação pela qual geralmente passa. Quando alguém a conhece e pergunta em que trabalha, logo se inicia o diálogo:

- Mas o que você faz?

- Sou professora...

- De que?

- De dança.

- Ah, que tipo de dança?

- Dança do ventre.

- Ah, mas é muito sensual, não é?

Seu relato provocou risos entre as alunas participantes, além de diversas reações: comentários afirmando também terem passado por situações similares, constatações de que tanto homens quanto mulheres muitas vezes confundem as praticantes com “mulheres fáceis”, dentre outras experiências.

Cristina foi buscar a definição de sensual num dicionário e a leu para a sala:

  1. Referente aos sentidos ou aos seus órgãos.

  2. Atribuição ao que permite ativar a percepção sensorial de certos fenômenos.

  3. Que tem ou revela sensualidade; que desperta o desejo.

  4. Que procura os prazeres dos sentidos.

E continuou:

Sim, toda dança é sensual, já que atinge diretamente as sensações. Não é só a dança do ventre. O corpo na dança é um corpo que se ressensibiliza. Experimenta movimento, música, temperaturas, odores, tatos de uma forma diferente do que fazemos no dia-a-dia. A dança do ventre em especial exige muito da pélvis, das articulações, pede movimentos, convida a um mergulho na música. É preciso sentir o corpo e se entregar à música. 16 16 A fala de Cristina foi adaptada por ela mesma, após leitura de versão anterior do artigo.

Sua aula se seguiu com uma série de exercícios propositais para o esquecimento da técnica. Cristina queria que suas alunas sentissem a música e se deixassem levar. Essas eram, segundo ela, as bases para a improvisação; abandonar o lado racional e deixar o corpo produzir dança. Cristina estava induzindo o que Judith Becker chamou de “escuta profunda”, um estado em que a música é capaz de liberar emoções profundas e no qual a mente silencia, levando o ouvinte a reações que vão desde o choro, ou a excitação, até o transe (2004).

Ao finalizar a aula, disse:

Pode ver, se a gente faz um show, geralmente quem mais se empolga são as mulheres e não os homens. Especialmente se a gente consegue transmitir a delícia do que estamos fazendo. E então criamos um canal de empatia, de comunicação. As mulheres na plateia se empolgam porque causamos nelas a vontade de experimentar a delícia daquele momento também. Isso é sensualidade.

Ao rever o conceito de sensualidade, Cristina buscava desfazer estigmas e prover a suas alunas subsídios para fazê-lo também. De vulgar ou sexy, a dança passa para o campo sensório; de objetificado, o corpo das bailarinas passa a ser um canal de comunicação intersubjetiva entre mulheres, por meio das enunciações não verbais emanadas pela dança.

A aula de Cristina sobre sensualidade na dança do ventre nos mostra como suas praticantes, longe de serem consumidoras passivas de visões de mundo distorcidas, são sujeitas, trazendo histórias de vida, potencialidades de transformação e constituindo-se como seres no mundo a partir de processos criativos de dança.

Em uma outra situação, a bailarina Débora Sabongi, professora e também proprietária do Khan el Khalili, um conceituado centro de ensino e apresentações de dança do ventre em São Paulo, dava uma aula de sensibilização musical. Reconhecida na cena paulistana como um nome forte na abordagem técnico/artística, Debora, nesta aula, não estava interessada na técnica.

Durante a aula, Débora propôs vários exercícios de improvisação, todos ao som da mesma canção baladi,um estilo musical que comporta muitos momentos de improviso instrumental e vocal. A repetição foi proposital. Era necessário ouvir várias vezes, para saber como improvisar. Ao final da aula, uma aluna perguntou: mas que instrumento eu devo seguir numa música como essa? A percussão? O acordeom? A voz?

Débora respondeu com uma demonstração.

“Vou seguir primeiro a percussão”.

Ela começou a dançar utilizando movimentos cadenciados, especialmente batidas e básicos17 17 O “básico egípcio” é provavelmente o movimento mais conhecido da dança do ventre. Para reformá-lo, a bailarina apoia todo o peso de seu corpo em uma das pernas, semi-flexionada. O quadril do lado oposto fica suspenso e se movimenta em quedas ritmadas, que podem ser acompanhadas pelo levantamento do pé, numa extensão do movimento ao longo dessa perna livre. Os braços se mantêm levantados, por vezes formando um “L” no ar, por vezes suportando a movimentação ritmada dos antebraços. Sobre “batidas”, ver a próxima seção. . A impressão geral das alunas que assistiam foi de que ela estava dançando conforme a música. Estava sendo guiada, não criava movimentos. Algumas alunas diziam que Débora parecia estar “dançando numa balada”.

“Agora eu vou seguir o acordeom”, disse a professora.

Débora começou a improvisar. Reproduzia no corpo precisamente toda a movimentação do acordeom, seus fraseados, suas intensidades, suas mudanças de velocidade. Ao mesmo tempo, não deixava de seguir o ritmo, marcado durante os silêncios do acordeom. Empregava movimentos sinuosos, tremidos e alguns movimentos cadenciados para fazer marcações rítmicas. A sensação geral era de que a bailarina guiava o instrumento. “Você era o próprio acordeom”, “parecia que era você guiando o acordeom, não o contrário”, diziam as alunas. Finda a demonstração, Débora deu sua explicação:

Ao ouvir a música, a bailarina precisa deixar fluir em seu corpo os movimentos sem a necessidade de controle total do que quer reproduzir. A música é uma composição de vários instrumentos, mas há sempre um (ou dois) que se destacam, e são aqueles que acabamos por seguir. A bailarina tem que ter a noção de que ela é um retrato vivo do instrumento que está tocando. E neste caso, seu corpo deverá estar disciplinado para responder a estes sons da forma mais natural possível. Na dúvida quanto ao que seguir, pergunte ao seu corpo: como a sonoridade está pulsando dentro de você? Qual instrumento está lhe sensibilizando mais? É a partir deste ponto que você começa a desenvolver sua sensibilização em relação aos humores musicais. 18 18 El “sucio” son los restos de sangre que hay después de un accidente. El “limpio” refiere al proceso de limpiar esos restos y de recurrir para ello al agua como un elemento principal.

Dentre as inúmeras lições de sensibilidade que presenciei e experimentei, escolhi esses dois exemplos para demonstrar a importância do desenvolvimento sensorial na dança do ventre, independente da abordagem estilística que se escolha. Ainda que Cristina e Débora invistam respectivamente em abordagens cultural/folclórica e técnico/artística - e não necessariamente na abordagem terapêutica -, partem da sensibilização para suas formas de ensino. Situações como esta mostram como práticas da dança do ventre valorizam a sensibilidade, não necessariamente em oposição à técnica, mas como condição primordial da dança. Tal desenvolvimento leva a caminhos inesperados, abrindo possibilidades de criação e agência, no lugar da obediência à um código de movimentos prescritos.

Ao responder à questão de sua aluna, Débora, em particular, demonstrou na prática a tese de incorporação de Thomas Csordas (1990CSORDAS, Thomas. 1990. “Embodiment as a Paradigm for Anthropology”. Ethos, Urbana, v. 18, n. 1: 5-47.): seu corpo, sujeito e unidade a partir da qual percebia a música, produzia uma dança que não obedecia ou se guiava por esquemas incorporados, mas criava a partir de modelos culturais corporizados. Longe de ser uma resposta passiva e socialmente estruturada ao estímulo musical, aproveitava aquele momento de fluidez possível em meio à percepção sonora para exercer impactantes projeções no espaço.

A noção de “incorporação” proposta por Thomas Csordas (1990CSORDAS, Thomas. 1990. “Embodiment as a Paradigm for Anthropology”. Ethos , Urbana, v. 18, n. 1: 5-47.) para se pensar a relação entre corpo e cultura é central para a compreensão dessas experiências. No pensamento de Csordas, o corpo, ainda que socialmente informado, não é objeto, mas sujeito da cultura; é um de seus agentes produtores e transformadores. Em sua construção teórica, Csordas encontra pontos de intersecção entre o entendimento da percepção em Merleau-Ponty (1999[1962])MERLEAU-PONTY. 1999. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes. e da prática em Bourdieu (2013BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Jean Claude. 2013. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. São Paulo: Vozes. [1970]).

Merleau-Ponty explora a experiência da percepção admitindo toda a sua riqueza e indeterminação, compreendendo que não há nada anterior a ela. A percepção é antes de tudo “fenômeno” fluido e instantâneo, logo se dissolvendo em elaborações. Não é o objeto em si o que nos causa a percepção, e nem é a cultura quem a determina e orienta. Existe, entre o objeto e a cultura, o corpo. Para Merleau-Ponty, os objetos, antes de serem culturalmente interpretados, são percebidos pelo corpo. Ao afirmar que a percepção é pré-objetiva, desloca-a do objeto para o corpo. A percepção termina no momento em que o objeto é apreendido. Isso não quer dizer que o corpo anteceda a cultura, mas é a partir de onde o mundo começa a ser percebido. É para o breve espaço existente entre o corpo e a significação do objeto que Merleau-Ponty direciona sua teoria da percepção.

Em paralelo, Bourdieu se move entre a estrutura e a prática na cultura: o modo como as coisas deveriam estruturalmente ser e a maneira como de fato são. Ao propor a noção de habitus, vai além de uma simples coleção de práticas, definindo-o como um sistema de disposições duradouras, que correspondem ao princípio coletivamente inculcado para a geração e estruturação de práticas e representações. Existe, em cada indivíduo, um ambiente comportamental internalizado. O habitus não gera práticas ao acaso, mas ordenadas pelo corpo socialmente informado. Pensar a relação entre indivíduo e sociedade com base na categoria de habitus implica afirmar que o individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e coletivamente orquestrados. O habitus é uma subjetividade socializada (Bourdieu, 2013BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Jean Claude. 2013. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. São Paulo: Vozes.: 101).

Csordas conclui que o paradigma da incorporação estava enunciado tanto no paradoxo sujeito-objeto de Merleau-Ponty, quanto no de estrutura e prática de Pierre Bourdieu. Enquanto essas dualidades se colapsam para os dois autores, para Csordas o corpo é a arena que as unifica, pois está entre o sujeito e o objeto, e igualmente entre a estrutura e a prática. Uma vez estabelecido o ponto de intersecção entre os dois pensamentos, Csordas constitui sua tese da incorporação: o corpo é a um só tempo socialmente informado e pré-objetivo; é o reino das possibilidades espontâneas e inesperadas ao qual as práticas são objetivamente ajustadas e socialmente estruturadas. Assim, no lugar de um ente passivo aos esquemas de aculturação, o corpo é em si sujeito e unidade a partir da qual tanto a percepção quanto os esquemas da cultura são engendrados.

É esse o corpo-sujeito que ora analisamos em sua relação com a música. Ainda que se mova de acordo com uma coreografia ou com uma sequência de movimentos prescritos num código de dança, sua ação não é uma resposta passiva e socialmente estruturada ao estímulo musical. Concordando com Csordas, partimos da premissa de que a percepção da música é sempre um ambiente de fluidez e indeterminação, no qual o corpo, como sujeito, exerce suas projeções no espaço.

Dispomos ainda de mais um referencial para refletir sobre o modo como corpos-sujeitos se apropriam de música na dança do ventre. O estudo de Tia DeNora (2000)DENORA, Tia. 2000. Music in Everyday Life. Cambridge, Cambridge University Press . propõe a música, bem como outros ambientes sonoros, como meios de auto-organização do corpo e propiciação de sua agência. Examinando as aulas de aeróbica, populares na década de 1980, e esmiuçando as fórmulas musicais produzidas especialmente para esse fim, DeNora apresenta uma gramática musical composta de fases destinadas à boa execução do exercício (warm up, pre-core, core, post-core, etc). Refletindo sobre o emprego dessa música, com suas intensificações rítmica e sons sintetizados, escreve:

O ponto aqui é que a música não age no corpo simplesmente. Seus efeitos são resultado de muito trabalho no sentido de encaixar material musical a um estilo de movimento [...] Assim, dizer que a música vai “causar” coisas, ou que faz o corpo fazer coisas, ou que suas propriedades objetivas produzirão o entrenamento19 19 A noção de entrenamento (entrainement) é um conceito teórico chave emprestado da psicologia social. Diz respeito à ordenação de comportamento corporal com base no ambiente externo. Nossos corpos se adaptam ritmicamente a esses ambientes ou estímulos, balanceando seus próprios ritmos internos. automático dos corpos de modos específicos é ignorar a dimensão colaborativa de como a efetividade da música é alcançada, uma vez que é sempre “em” e “através” dos modos como é apropriada que a música oferece recursos estruturantes - mecanismos que possibilitam compelir o corpo. A música proporciona materiais e ambientes que podem ser utilizados de modo a propiciar20 20 A palavra propiciar foi empregada livremente como tradução do verbo afford, usado no original. Affordance é um conceito chave nas proposições teóricas de DeNora, que advém da psicologia social de James J. Gibson. Affordances são propiciações de ação dadas por objetos ou pelo ambiente. Ao perceber a música como affordance de estados, comportamentos ou ações, DeNora admite a agência humana no uso dos recursos sonoros. A música não é causadora, mas é empregada pelas pessoas para prover bases para as práticas sociais. capacidades corpóreas (2000: 96)21 21 Tradução livre. .

Assim como a música de aeróbica, a música utilizada na dança do ventre provê material musical que propicia determinados estilos de movimento.22 22 Sobre o mercado de produção dessa música para a dança ver Racy, 1978. Era assim que dançava Débora, em sua demonstração para suas alunas: ela empregava aquele material musical para produzir coisas e estados, mais especificamente projetar-se através de sua dança. Tanto a ideia de sensualidade disseminada por Cristina, quanto a demonstração de Débora expressam como, na dança do ventre, há um treino contínuo de fruição sensória da música para a auto-organização do corpo e propiciação de sua agência.

A reorganização do corpo, na dança do ventre, inicia-se desde o modo de ficar em pé: quadris encaixados, tronco e pescoço alongados, joelhos e cotovelos endehors ligeiramente flexionados, abaulados. Essa postura, emprestada do balé clássico no processo de recodificação da dança no Ocidente (Dox, 2006DOX, Donnalee. 2006. “Dancing Around Orientalism”. TDR: The Drama Review, v. 50, n. 4: 52-71.), tem, no entanto, finalidades específicas na dança do ventre. A bacia encaixada, quando rotacionada, produz movimentos no ventre, dando um destaque específico para essa parte do corpo durante o movimento. Tronco, pescoço e membros, permanecem nas posições descritas apenas em momentos de repouso; não têm o papel de estabilizar o corpo, como no balé.

A escuta da música árabe, como já sabemos, também está entre as primeiras lições aprendidas em sala de aula. O termo “música árabe” é frequentemente usado no âmbito da dança do ventre unificando uma gama de estilos caracterizados por origens regionais, formas melódicas, rítmicas e instrumentais, sotaques linguísticos, etc. Somem-se a isto as inúmeras fusões com estilos pop, new age, e mesmo adaptações de músicas, originalmente compostas para o rádio ou para o cinema, para a dança, reforçando-se em especial as marcações rítmicas23 23 A extensa discografia do cantor sírio residente em São Paulo, Tony Mouzayek, é um bom exemplo disso. Tony assina a trilha a trilha sonora árabe da telenovela “O Clone”. Apesar de todas essas variações, há, segundo Márcia Dib, um elemento unificador, que é particularmente explorado por praticantes da dança. Excetuando-se as fusões, a música árabe não apresenta progressão harmônica, sendo totalmente melódica e percussiva. Ao invés de levar o ouvinte a momentos de tensão e distensão, sempre se está no mesmo lugar, no mesmo modo ou maqam, no mesmo ethos ou ta’thir (Dib, 2013). .

O entendimento sobre essa música por parte das praticantes da dança pode ou não envolver o conhecimento sobre seu sistema, compositores, performers, suas carreiras ou suas procedências. Contudo, a priori, o que mais importa são as potencialidades desses materiais musicais para produzir movimentos. É preciso diferenciar os momentos dessa música, compreender seus ciclos de repetição, reconhecer os ritmos árabes e, principalmente, fazer distinções entre “batidas”, “tremidos” e “melodias”. Do mesmo modo, aprende-se que “dança do ventre” é um termo guarda-chuva, que abarca vários estilos de dança destinadas a diferentes momentos, dentre eles o derbake, o clássico e os estilos folclóricos. Cada uma dessas modalidades é acompanhada por tipos específicos de música, aos quais se deve aprender a ouvir, sobretudo com o corpo. Os estilos folclóricos empregam ritmos mais populares (baladi, maksoum, said, malfuf) e seus temas melódicos são simples. Assim, danças como o Khaleege24 24 Trata-se de uma dança caracterizada pelo uso da galabya (túnica de tecido fino e bordado). Há quem diga que a dança é originária do Golfo Pérsico, mas sua criação por vezes também é atribuída a comunidades nômades no Saara. , Racks Al Assaya (dança da bengala) ou Raks Al Balaas (dança do jarro) são bastante desenvolvidos em propostas de orientação cultural. Vale lembrar que esses estilos não deixam de ser ensinados, ainda que superficialmente, nas demais propostas, por sua versatilidade em apresentações e por introduzirem ritmos árabes que precisarão ser reconhecidos em outros momentos.

Já os estilos derbake e o clássico recebem maior atenção em propostas de ensino voltadas para o espetáculo. A assimilação desses estilos exige tempo e treino, pois sua movimentação é bastante complexa. O estilo derbake empresta seu nome do instrumento de percussão homônimo, um tambor de louça revestido de pele tocado com as mãos. Nesse estilo, o derbake é o principal instrumento a acompanhar a bailarina, podendo, eventualmente, outros instrumentos de percussão entrarem em cena. As notas emitidas por esse instrumento,dum (som grave),tak,ka (sons agudos) e tra (fricção) são traduzidas no corpo da bailarina em batidas e shimies. Assim, notas como tak e ka, que ressoam dos golpes nas bordas pele do tambor, têm respostas como o “soldadinho” (osso da bacia movimentado alternadamente cada um de seus lados para baixo, como pistões de um automóvel), batida de peito (deslizamento horizontal ou vertical do tórax) ou break da barriga (contração forte do abdome), todos precisos, rápidos, enérgicos e curtos. A nota dum, que marca a pulsação de cada ritmo, é geralmente traduzida em movimentos de cima para baixo (peito, tórax, agachamento súbito) ou que exigem deslocamentos de peso, como a “batida lateral” (movimento pendular dos quadris em que o peso do corpo é completamente deslocado de uma perna para a outra). Sendo normalmente a nota que inicia ou finaliza frases rítmicas, não traduzi-la em marcações precisas ou fortes pode ser considerado um erro na dança. O tra, por sua vez, tem como resposta um tremor de alguma parte do corpo (quadril, tórax, ventre), o shimmie.

Não é apenas no estilo derbake que se realizam esses movimentos; antes, podem compor qualquer estilo de coreografia na dança do ventre, vez que toda música árabe sempre emprega um ou mais desses ritmos, em partes ou em sua completa duração. A escuta do derbake auxilia na compreensão de padrões rítmicos produzidos também por instrumentos melódicos. O tra, por exemplo, é uma espécie de vibrato, que também pode ser executado em instrumentos como o violino, ou o qanun (instrumento de cordas iraniano que se assemelha a uma cítara), e que são igualmente interpretados pelo corpo com os shimmies.

Finalmente, o estilo clássico reúne todos os demais já mencionados. Esse estilo utiliza peças musicais clássicas consagradas25 25 Ex. Batwans Beek de Warda; Esel Ruhek de Layali Yasmina; de Elhob Koulo Amany e The Badawist, dentre muitas outras. em países como Egito, Turquia ou Líbano por seu uso, sobretudo no cinema industrial (Racy, 1978RACY, Ali Jihad. 1978. “Arabian Music and the Effects of Commercial Recording”. The World of Music, v. 20, n. 1: 47-58.). Essas peças têm durações longas (algumas chegam a passar de 20 minutos), e são compostas por sessões musicais diferentes. Por essa razão, o estilo clássico é o preferido entre as bailarinas para performance solo, audições ou testes, vez que permite a expressão de todas as habilidades exigidas na dança.

Dentro de uma mesma peça clássica, entremeados a momentos de improvisação do derbake e algumas bases rítmicas folclóricas, há momentos lentos, executados apenas por instrumentos melódicos - como violino, alaúde, qanun ou nay (flauta) - sem acompanhamento rítmico. Essas sessões lentas, chamadas taksim, permitem os redondos (rotação do quadril ou tórax em torno de si mesmo), oitos (movimento em que quadril ou tórax simulam o desenho do número 8, nos planos transversal ou longitudinal) e outros movimentos rotacionais ou ondulatórios (nos punhos, cotovelos, ombros, pescoço), que produzem uma energia diferente das batidas e shimes, mais voltada para a introspecção. Novamente, é preciso lembrar que, assim como ritmos não são lidos pelo corpo somente no estilo derbake, movimentos sinuosos podem compor diversos momentos em uma coreografia. Redondos acelerados de quadril, por exemplo, podem marcar ostinatos rítmicos26 26 Motivo rítmico ou melódico continuamente repetido. .

Há, desse modo, um diálogo dinâmico entre o corpo da bailarina e os sons emitidos pelos instrumentos. Numa apresentação, ela catalisa as atenções da plateia, corporificando o som e tornando-o visível. Respondendo rigorosamente a cada toque, provoca reações emotivas na plateia quanto maior sua precisão. A bailarina é o meio através do qual emoções são canalizadas; a plateia se identifica com ela ao ouvir e ver a música ressoando em seu corpo.

O treino dos movimentos da dança do ventre requer, num primeiro momento, isolamento e autonomia de cada parte engajada: um shimmie de quadril não deve fazer o resto do corpo tremer; uma batida de peito não pode levar os ombros junto; uma rotação de pulso pode ou não envolver outras juntas do braço. Em termos cinéticos, a dança prescreve movimentos das pontas dos pés às pontas dos cabelos; dos dedos de uma mão aos dedos da outra. Alunas são levadas a pensar sobre a rotação de suas articulações, sobre a energia demandada em cada batida, sobre músculos que nem sabiam possuir. Considere-se ainda que em certos momentos musicais, motivos melódicos podem vir acompanhados de ritmos, exigindo que a bailarina engaje uma parte de seu corpo em movimentos rotacionais ou sinuosos (braços e tronco, por exemplo) e utilize a outra para ressoar o ritmo (geralmente o quadril). Num segundo momento, percebemos que a dança exige, para além da autonomia das partes, uma rearticulação entre elas, já que demanda uma movimentação complexa da região pélvica, ao mesmo tempo em que braços, mãos, pernas, joelhos e pés precisam estar “atentos” aos estímulos sonoros, sem contar que é deles que depende a postura da bailarina.

Ciente de que, por mais minuciosa que eu seja, jamais terei a capacidade de descrever acuradamente essa relação entre corpo e música, deixo acessível um momento privilegiado para minha câmera, em que Lulu do Brasil se dispôs a explicar, enquanto dançava, o que estava ouvindo e porque seu corpo respondia daquela maneira.

[https://youtu.be/sdaCxMvuLBw] <01/03/2019>

MOVIMENTO E EMANCIPAÇÃO

Como nos diz Lepecki, sobre a dança contemporânea,

[...] a capacidade imanente da dança de teorizar o contexto social onde emerge, de o interpelar e de revelar as linhas de força que distribuem as possibilidades (energéticas, políticas) de mobilização, de participação, de ativação, bem como de passividade traria para essa arte uma particular força crítica. Pode-se dizer assim que, para além daqueles traços que partilharia com a política (a efemeridade, a precariedade, a identificação entre produto do trabalho e ação em si, a redistribuição de hábitos e gestos, o aumento de potências), a dança operaria também como uma epistemologia ativa da política em contexto (2012LEPECKI, André. 2012. “Coreo-política e coreo-polícia”. ILHA, v. 13, n. 1: 41-60.: 46).

Em outro momento, o autor nos leva à reflexão sobre planos de composição da dança, dentre os quais alguns, em especial, ajudam-nos a pensar sobre as relações entre a dança do ventre e enunciações de emancipação realizadas por suas praticantes. Assim, o chão é apresentado pelo autor como um espaço que pode ser perfeitamente liso ou cheio de rugosidades e rachaduras. É sobre esse chão que a dança acontece e, nas reflexões de Lepecki, ele é também um plano para pensarmos histórica e politicamente: sobre que superfície se está dançando? Seria sobre um chão polido, estável, no qual conflitos, desejos de reparação e sublevações foram aplainados, ou sobre um terreno cheio dessas rupturas, que podem mesmo levar ao tropeço, este também um plano de composição (2013LEPECKI, André. 2013. “Planos de composição: dança, política e movimento”. In: RAPOSO et al. (orgs.) A terra do não-lugar. Diálogos entre antropologia e performance. Florianópolis, Editora UFSC, pp. 109-120.: 116).

As reflexões de Lepecki também nos servem para pensar sobre a dança do ventre. As questões que tenho feito a minhas interlocutoras, tanto profissionais quanto alunas, contrapõem discursos e práticas e estão longe de apresentar respostas unânimes. No entanto, certas respostas, especialmente aquelas advindas das conversas em grupo, me convencem não apenas enquanto pesquisadora, mas também como praticante da dança, cujo corpo compartilha experiências com as demais pessoas no campo. Uma dessas questões, ao final de uma aula foi: “como é que uma dança, que prescreve tão rigorosamente movimentos para cada parte do corpo, pode fazer alguém se sentir mais livre? Não parece que estamos sendo ainda mais controladas?”. Não me lembro hoje o que fazíamos naquela aula, mas aprendíamos algum movimento novo, difícil de realizar, tanto para mim quanto para minhas colegas. A frustração por não conseguir executá-lo foi provavelmente o que me trouxe a sensação de rigor, de excesso de controle. A professora silenciou; talvez aproveitando o momento para ouvir o que pensavam suas alunas. As respostas delas iam na direção de explicar que não sentiam a movimentação como uma forma de controle, mas de aprendizado, de técnica para conhecer melhor o próprio corpo. Até que uma delas respondeu “eu não sinto controle... sinto que a dança me dá autocontrole, sobre meu próprio corpo”.

Outra questão, que sempre faço a minhas interlocutoras mais próximas é se são feministas, ou se acreditam que a dança do ventre possa ser uma forma de feminismo, uma vez que enunciações de emancipação da mulher acompanham a prática da dança. As repostas variam de contundentes “sim(s)”, para ambas as perguntas, até a negação completa, seguida de concepções negativas sobre feminismo, seja como um movimento violento em que as mulheres querem se provar melhores que os homens, seja como um rótulo que abrange mulheres lésbicas ou rejeitadas pelos homens. Muito embora as percepções sobre feminismo sejam diversas, a ideia de que a dança traz emancipação a quem a pratica não é. Não foram poucos os casos em que ouvi ou testemunhei mulheres que passavam por momentos de crise em seus relacionamentos com homens e procuraram a dança para se tornarem mais atraentes para seus parceiros. Passado certo tempo, quando indagadas sobre seus relacionamentos, diziamos terem terminado elas mesmas, por compreenderem que não precisavam daquilo para se sentirem completas.

Em outras situações a aceitação do próprio corpo, em oposição a ditames estéticos, chama a atenção. Nos treinos de dança do ventre sempre está presente o espelho, do qual não há escapatória. É preciso encarar a própria imagem por horas e, muitas vezes, as alunas expressam frustração e incômodo por sentirem seus corpos “imperfeitos” executando movimentos “imperfeitos” quando ainda não os dominam. As expressões mudam completamente quando seus corpos “imperfeitos” passam finalmente a produzir movimentos com perfeição. Os quadris grandes se tornam aliados de um movimento exuberante; o volume da barriga torna a ressonância do dum explícita para quem assiste. O corpo, em gestos e formas nunca antes vistos ou experimentados pela praticante ganha sentidos de empoderamento. Uma colega de aulas, Bruna Tidori Andako gentilmente permitiu que eu reproduzisse uma postagem sua nas redes sociais, em que expressa suas percepções a esse respeito.

Pensei muito se eu postaria a foto... Pq to com a pança enorme na foto (não só na foto... Hahaha). Fiquei pensando “devia ter encolhido a barriga... “. Mas a realidade é essa. Tenho barriga e ponto. E gostei da foto 😛 Leio tanto sobre aceitar o próprio corpo, incentivo a galera a fazer isso, posto coisas sobre isso. Seria meio errado não aceitar o meu próprio corpo, né? Então... Tá postado

As dezenas de comentários sobre a foto foram de incentivo, aprovação, elogios a sua imagem e à postagem, tendo muitos desses comentários sido feitos por suas colegas da dança do ventre.

Assim como Bruna, outras praticantes, tanto alunas como professoras, fazem da aceitação de seus corpos um processo. Para além de se aceitarem, precisam externar essa aceitação. Não é fácil portar um figurino que deixa a barriga à mostra e ainda dá volume ao peito e aos quadris. Ainda mais difícil é colocar-se em movimentos que salientam essas partes do corpo em público. Desse modo, essas bailarinas se envolvem em uma prática que, independentemente da compreensão ou aceitação de propostas feministas, não deixa de ser emancipadora em suas experiências de vida.

Respostas, em um campo sensível como esse, nem sempre são verbais. Elas podem estar na ousadia de uma praticante que posta sua fotografia em suas redes sociais exibindo“uma pança enorme” e sentindo-se bela ao desafiar ditames estéticos; pode estar na sensação que as alunas experimentam quando seus quadris se soltam, como se seus músculos se libertassem pela primeira vez de opressões acumuladas ao longo de uma existência feminina; podem estar na ousadia de vestir-se de modo exuberante e dançar em público- ainda que essa experiência leve anos para acontecer.

Percebemos que, assim como Small ampliou a ideia do fazer musical criando a noção de “musicar”, a noção do dançar também pode ser ampliada para atitudes e experiências impulsionadas pela dança que extrapolam o próprio ato de dançar e moldam formas de sociabilidade, incluindo expressões de autoimagem. Na dança do ventre, esse conjunto de experiências do dançar torna visíveis desejos de transformação de mundo em mensagens não verbalizadas e direcionadas à sensibilidade dos espectadores, que vão do movimentar-se ao demonstrar a aceitação do próprio corpo.

Outra questão, que dirijo exclusivamente a bailarinas profissionais, para a qual tenho recebido respostas que vêm me ajudando a pensar as conexões entre as percepções corpóreas da música e seus usos para mover o mundo com a dança do ventre. O universo das salas de aula é muito diferente daquele do mercado de trabalho, das competições e dos festivais. O elo entre esses dois mundos são as bailarinas profissionais, que em sua grande maioria conciliam as atividades de ensino com apresentações de dança, em clubes, bares e restaurantes, bem como participações em festivais e competições, o que garante sua projeção na cena paulistana de dança do ventre (GIESBRECHT 2018). Assim, tenho perguntado a essas profissionais como conseguem induzir experiências de prazer, sensibilidade, autoconhecimento, conexão com o corpo e empoderamento para suas alunas e, ao mesmo tempo, enfrentar o áspero mercado competitivo, no qual além de todas as pressões já mencionadas, passam por rigorosos sistemas de julgamento por parte de seus próprios pares. O mundo confortável da sala de aula seria uma ilusão, ou restrito apenas àquelas que não pretendem seguir uma carreira profissional? Como poderiam enunciar tanto bem-estar enquanto professoras e simultaneamente vivenciar uma realidade tão dura enquanto bailarinas profissionais? Haveria, em seus árduos cotidianos profissionais, espaço para o prazer e o bem-estar através da dança?

As respostas que tenho recebido confirmam a dificuldade de conciliação entre os dois mundos, considerados, também por elas, muito distantes. Em especial, a resposta dada pela bailarina Ila Cassandra me leva a pensar que essa conciliação é uma busca. Disse-me Ila, durante uma entrevista no início de 2017, estar finalmente conseguindo atingir o prazer de dançar em palcos, mesmo durante as mais árduas competições. Referindo-se ao último festival no qual havia competido, dizia, satisfeita, ter dançado para si mesma. “Não me importei com a banca, com as luzes, com o figurino, mas em sentir que estava totalmente entregue àquele momento”. E quando lhe perguntei como tinha alcançado esse estágio, respondeu que havia sido através de uma escuta profunda da música. Seu corpo se entregara à música de tal forma que nada mais importava naquele momento, a não ser dançá-la, com todos os movimentos que pedia.

Podemos ir ainda mais longe. Ao longo de minha inserção etnográfica, um autoquestionamento sobre as possibilidades de emancipação entre as praticantes da dança do ventre me acompanhou; em primeiro lugar, me perguntava “emancipar-se de quê?”. Afinal, elas são, em sua maioria, mulheres brancas, de classe média, com alguma ou total independência financeira, heterossexuais, dentre outros marcadores que as tirariam do centro das discussões do feminismo de terceira onda, por exemplo. Não é possível dizer, no entanto, que seus assim chamados “privilégios” as livrem de diversas opressões que lhes são socialmente impostas pelo simples fato de serem mulheres. Para além da aceitação do corpo, ou das pressões profissionais, o que mais haveria para se conhecer sobre essas praticantes?

Até o momento, tive acesso a alguns casos de violência psicológica e discriminação por gênero; ainda não conheci nenhum caso de violência física. No ambiente em que desenvolvo a pesquisa, este não é um tema abertamente comentado, sendo antes bastante sensível. Ainda que as chances de me aprofundar estejam sujeitas à formação de laços de confiança, um tanto imprevisível, interessa-me compreender se, e de que modo a dança é empregada pelas mulheres também neste campo da emancipação.

Afora conhecer esse aspecto com maior profundidade, é de essencial importância negarmos, de antemão, alisamentos de chão na dança do ventre. A simples consideração de que, por sua posição social, as praticantes da dança não portam nenhum tipo de vulnerabilidade, ou não estão sujeitas a nenhum tipo de violência pelo fato de serem mulheres, não passa de uma camada lustrosa encobrindo rachaduras presentes também no âmbito de sua convivência social. Interessa-me compreender em que medida a prática da dança do ventre é capaz de levar suas praticantes ao tropeço, a perceber que o chão não está liso e que é necessário cair, abraçar o horizontal.

Minha etnografia deverá continuar buscando perceber de que modos a dança leva suas praticantes a reconhecer o corpo sujeito feminino, suas vulnerabilidades e suas potencialidades através de movimentos a serem dançados; tenciono perceber como a dança pode ser uma prática de emancipação partindo do conhecimento do próprio corpo para o desvencilhamento de diversas opressões sociais, permeadas por um machismo estrutural que resulta em diversas formas de abuso27 27 Comparar as condições das mulheres do campo ora etnografado com as de meu campo de pesquisa anterior, os grupos de cultura popular de matriz africana e suas diversas ramificações sociais, poderia nos levar a não reconhecer as formas de opressão do primeiro. É claro que mulheres brancas, de classe média, profissionais liberais e na maior parte das vezes empregadas, não estão nas mesmas condições de vulnerabilidade em que se encontram as mulheres negras integrantes daquelas comunidades musicais - negras, empregadas informalmente (não raro em jornadas duplas), responsáveis pelo sustento de suas famílias e ainda indispensáveis ao movimento cultural. Ambos os grupos de mulheres, no entanto, podem estar sujeitos a formas de subjugo e violência, de ordem física ou psicológica, especialmente em ambiente doméstico, para os quais não podemos fechar os olhos, ainda que os graus de vulnerabilidade sejam diferentes. Esse assunto será devidamente abordado em artigo dedicado à questão, que deverá ser publicado em momento oportuno. .

CONCLUSÃO

Pretendi, neste artigo, mostrar a indissociável relação entre a percepção musical e a agência corpórea desenvolvida na prática da dança do ventre. Durante tal processo, ainda que existam códigos coreográficos prescritos, o corpo experimenta um tempo-espaço fluido, uma dimensão na qual as possibilidades de projeção e criação são inúmeras, provavelmente uma dimensão sensorial única na vida das praticantes. Para além do ensinamento disciplinado dos movimentos, professoras investem em treinos de fluidez, para que suas alunas nunca se esqueçam da lição inicial, que é a escuta musical, com todo o corpo. Tal escuta pode ser profunda (Becker, 2004BECKER, Judith. 2004. Deep Listeners. Bloomington, Indiana University Press.) a ponto de estender o derradeiro momento da percepção encontrado por Merleau-Ponty (1999)MERLEAU-PONTY. 1999. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes.. Esse treinamento propicia formas de conhecimento do próprio corpo, ou se preferirem, de si mesma - lembrando que o corpo é sujeito, como ensina Csordas. Na dança do ventre, o chamado “autoconhecimento”, tão em voga nos dias atuais, é uma experiência que envolve o esqueleto, os músculos, os canais sensórios e os coloca em movimento, num ambiente propiciado pela música. Para além de um ambiente, a música é empregada para propelir o corpo, criando-se um código estético em que quanto maior a conexão entre os movimentos do corpo e os elementos musicais, quanto mais instrumentos musicais forem lidos e traduzidos em movimentos pelo corpo, mais acurada é a dança. Cientes de que esse código estético é também culturalmente moldável, foi-nos importante pontuar os significados locais que a dança do ventre assume, do ponto de vista de quem a pratica. O que significa praticar dança do ventre em uma cidade como São Paulo?

Perguntamo-nos, finalmente, que outros efeitos essa prática teria. Que sensações, sentimentos e pensamentos emanariam a partir de um exercício que coloca quadris, peito e barriga em evidência? O que significaria ver-se movimentando desse modo frente ao espelho e de onde viria o desejo de mostrar essa imagem ao mundo? Entre suportes visuais e transcrições de depoimentos, chegamos a expressões de emancipação experimentadas pelas praticantes, em relação a prescrições estéticas ditadas para mulheres, em relação às pressões infligidas sobre as bailarinas profissionais. Reconhecemos, nesse campo, as possibilidades de ruptura do chão estável de mulheres brancas e de classe média em sua maioria, assim como altas chances de tropeços. A dança do ventre tem sido, para as praticantes de São Paulo, meio de fruição sensória, reconhecimento do corpo e emancipação, propiciando formas de se moverem e moverem o mundo ao seu redor.

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  • 1
    Muito há para ser dito em relação à minha experiência como performer na dança do ventre. Creio, no entanto, não ser este o espaço e nem um artigo científico a melhor forma. Tal experiência subjetiva, no entanto, tem sido registrada em vídeo e poderá, em momento oportuno, fazer deste um meio sensível de expressão.
  • 2
    É prática entre essas escolas oferecer aulas experimentais gratuitas. Assim, conheci a Al Quamar, a Luxor, o Khan el Khalili, Shangrilá, o Espaço Esmeralda, a Pandora Danças, todas na Vila Mariana e em bairros circunvizinhos, e algumas escolas fora desse eixo, como o Vale das Rainhas, no Butantã. Eu agendava, ia ao local, fazia uma dessas aulas e em seguida contava à professora, proprietária ou diretora do estabelecimento sobre minhas intenções de pesquisa. Recebi, deste modo, diversas colaborações, desde profissionais que se disponibilizavam a trocar aulas por filmagens de seus eventos, até aquelas que propunham parcerias em projetos artísticos.
  • 3
    Um dos frutos mais importantes dessa iniciativa foi a criação do projeto VentreCine em Campinas, uma oficina de dança e vídeo que organizei em parceria com minha primeira professora de dança do ventre, Eliana Mônaco.
  • 4
    Esta obra foi laureada com o “Ellen Koskoff Prize for Edited Collections” da Society Of Ethnomusiclogy, em 2019.
  • 5
    Ver também: Villela et alii, 2019VILLELA, Alice; TONI, Flávia; MUNIAGURRIA, Lorena; GRUNVALD, Vitor. 2019. “O musicar como trilha para a etnomusicologia”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 73, n. 1: 17-26..
  • 6
    Sem perder de vista o fato de que dançar também pode ser compreendido como uma forma de musicar.”
  • 7
    Admitindo o sentido proposto por Grossberg, cenas são fenômenos situacionais, apoiados especificamente pelas interações e especificidades de seus públicos (2002GROSSBERG, Lawrence. 2002. “Reflections of a disappointed popular music scholar”. In: BEEBE, Roger et al. (orgs.). Rock Over the Edge: Transformations of Popular Music. Durham, Duke University Press, pp. 25-59.: 49-50).
  • 8
    Ver: Downey et alii, 2010DOWNEY, Dennis; REEL, Justine; SOOHOO, Sonya e ZERBIB, Sandrine. 2010. “Body image in belly dance: integrating alternative norms into collective identity”. Journal of Gender Studies, v. 19, n. 4: 377-393.; Dox, 2006DOX, Donnalee. 2006. “Dancing Around Orientalism”. TDR: The Drama Review, v. 50, n. 4: 52-71.; Wright & Dreyfus, 1998WRIGHT, Jan; DREYFUS, Shoshana. 1998. “Belly Dancing: A Feminist Project?”. Women in Sport and Physical Activity Journal, v. 7, n. 2: 95-114.; Shay, 2008SHAY, Anthony. 2008. Dancing Across Borders: The American Fascination with Exotic Dance Forms. Jefferson, McFarland & Company, Inc. Publishers.; Shay & Sellers-Young, 2005SHAY Anthony e SELLERS-YOUNG, Barbara (orgs.). 2005. Belly Dance: Orientalism, Transnationalism, and Harem Fantasy. Costa Mesa, Mazda Publishers .; Moe, 2012MOE, Anderson. 2012. “Beyond the belly: an appraisal of Middle Eastern (aka Belly Dance) as leisure”. Journal of Leisure Research, v. 44, n. 2: 201-233.; Macmaster & Lewis, 1998MACMASTER, Neil e LEWIS, Tony. 1998. “Orientalism: From unveiling to hyperveiling”. Journal of European Studies, v. 28, n. 1: 121-135.; Mcdonald & Sellers-Young, 2013MCDONALD, Caitlin; SELLERS-YOUNG, Barbara (orgs.). 2013. Belly Dance Around the World. New Communities, Performance and Identity. Londres: McFarland and Co.; Mcdonald, 2012MCDONALD, Caitlin. 2012. Global Moves: Belly Dance as an Extra/Ordinary Space to Explore Social Paradigms in Egypt and Around the World. Londres: Leanpub.; Keft-Kennedy, 2013KEFT-KENNEDY, Virginia. 2013. “1970s belly dance and the ‘how-to’ phenomenon: Feminism, fitness and Orientalism”. In: MCDONALD, Caitlin E. e SELLERS-YOUNG, Barbara (orgs.). Belly Dance Around the World. New Communities, Performance and Identity. Londres, McFarland and Co, pp.23.; Koritz, Amy, 1997KORITZ, Amy. 1997. “Dancing the Orient for England: Maud Allan’s The Vision of Salome”. In: DESMOND, Jane (orgs.). Meaning in Motion: New Cultural Studies of Dance. Durham, Duke University Press , pp. 133-152.; Krauss, 2009KRAUSS, Rachel. 2009. “Straddling the sacred and secular: creating a spiritual experience through belly dance”. Sociological Spectrum, v. 29, n. 5: 598-625.; Frühauf, 2009FRÜHAUf, Tina. 2009. “Decolonizing Bellydance”. Project Muse, v. 53, n. 3: 22-37.; Banasiak, 2014BANASIAK, Krista. 2014. “Dancing the East in the West: Orientalism, feminism, and belly dance”. Critical Race and Whiteness Studies, v. 10, n. 1: 6-24.; Bordelon, 2011BORDELON, Candace. 2011. “Finding the Feeling” Through Movement and Music: An Exploration of Tarab in Oriental Dance. Denton, dissertação de Mestrado, Texas Woman’s University..
  • 9
    Cristina Antoniades é produtora de espetáculos, professora e proprietária da escola Pandora Danças, localizada na Vila Mariana.
  • 10
    Gisele Kenj, famosa por dançar com suas cobras Píton, é bailarina, atriz, cantora e produtora de eventos de dança do ventre.
  • 11
    Além de bailarina profissional e professora, Rebeca Bayeh é Bacharela e mestra em Física pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP).
  • 12
    Lulu do Brasil é uma bailarina brasileira responsável pela expansão da dança do ventre no Brasil. Foi sócia e bailarina principal da Casa de Chá Khan el Khalili (em São Paulo) por mais de 21 anos, sendo responsável pela formação das bailarinas e professoras que hoje compõem o quadro de profissionais da Casa de Chá. Possui larga experiência como bailarina profissional em países árabes. Fonte: http://wikidanca.net/wiki/index.php/Lulu_Sabongi - Acesso em <i01/03/2019>.
  • 13
    De acordo com esses autores, “Dança Oriental” ou “Dança do Ventre” foram nomes ocidentalizados, criados num processo de apropriação de uma variedade de danças reconhecidas no Oriente Próximo, Ásia, partes do Mediterrâneo e norte da África. Estilizadas, especialmente pelas bailarinas modernas americanas, passaram a ser praticadas por mulheres ocidentais tendo como referência uma concepção específica sobre o Oriente, materializada em figurinos, musicalidade e corporalidade.Desde então, a dança tem sido globalmente divulgada como meio de reencontro de um feminino ancestral, de reconexão com o “sagrado feminino”, com “a Grande Deusa” e com um “passado matriarcal”, como base da organização social.
  • 14
    O termo baladi significa “minha terra” ou “popular”. Também é usado para fazer referência à cidade, ao local e ao rural. Quando aplicado à música, define um estilo folclórico urbano, que se desenvolveu a partir de estilos musicais egípcios tradicionais no início do século XX, quando um grande número de pessoas de áreas rurais migrou para o Cairo. Para se dançar baladi, emprega-se largamente o improviso: o corpo não se eleva em braços esticados ou meia ponta nos pés, o quadril se movimenta pronunciadamente para baixo, como se o corpo fosse atraído pelo chão. Fonte: http://www.lulufrombrazil.com.br/baladi-voce-sabe-o-que-e/ - Acesso em <i01/03/2019>.
  • 15
    Eliana Mônaco é jornalista e professora de dança do ventre há 20 anos. Vem se dedicando à pesquisa da cultura e das implicações da dança do ventre na vida das mulheres, tendo lançado o vídeo-documentário “A dança oriental e seu ressurgimento na sociedade moderna” (1999), que faz uma crítica à abordagem da mídia sobre essa arte
  • 16
    A fala de Cristina foi adaptada por ela mesma, após leitura de versão anterior do artigo.
  • 17
    O “básico egípcio” é provavelmente o movimento mais conhecido da dança do ventre. Para reformá-lo, a bailarina apoia todo o peso de seu corpo em uma das pernas, semi-flexionada. O quadril do lado oposto fica suspenso e se movimenta em quedas ritmadas, que podem ser acompanhadas pelo levantamento do pé, numa extensão do movimento ao longo dessa perna livre. Os braços se mantêm levantados, por vezes formando um “L” no ar, por vezes suportando a movimentação ritmada dos antebraços. Sobre “batidas”, ver a próxima seção.
  • 18
    El “sucio” son los restos de sangre que hay después de un accidente. El “limpio” refiere al proceso de limpiar esos restos y de recurrir para ello al agua como un elemento principal.
  • 19
    A noção de entrenamento (entrainement) é um conceito teórico chave emprestado da psicologia social. Diz respeito à ordenação de comportamento corporal com base no ambiente externo. Nossos corpos se adaptam ritmicamente a esses ambientes ou estímulos, balanceando seus próprios ritmos internos.
  • 20
    A palavra propiciar foi empregada livremente como tradução do verbo afford, usado no original. Affordance é um conceito chave nas proposições teóricas de DeNora, que advém da psicologia social de James J. Gibson. Affordances são propiciações de ação dadas por objetos ou pelo ambiente. Ao perceber a música como affordance de estados, comportamentos ou ações, DeNora admite a agência humana no uso dos recursos sonoros. A música não é causadora, mas é empregada pelas pessoas para prover bases para as práticas sociais.
  • 21
    Tradução livre.
  • 22
    Sobre o mercado de produção dessa música para a dança ver Racy, 1978RACY, Ali Jihad. 1978. “Arabian Music and the Effects of Commercial Recording”. The World of Music, v. 20, n. 1: 47-58..
  • 23
    A extensa discografia do cantor sírio residente em São Paulo, Tony Mouzayek, é um bom exemplo disso. Tony assina a trilha a trilha sonora árabe da telenovela “O Clone”. Apesar de todas essas variações, há, segundo Márcia Dib, um elemento unificador, que é particularmente explorado por praticantes da dança. Excetuando-se as fusões, a música árabe não apresenta progressão harmônica, sendo totalmente melódica e percussiva. Ao invés de levar o ouvinte a momentos de tensão e distensão, sempre se está no mesmo lugar, no mesmo modo ou maqam, no mesmo ethos ou ta’thir (Dib, 2013DIB, Márcia Camasmie. 2013. Música Árabe, expressividade e sutileza. Edição da autora.).
  • 24
    Trata-se de uma dança caracterizada pelo uso da galabya (túnica de tecido fino e bordado). Há quem diga que a dança é originária do Golfo Pérsico, mas sua criação por vezes também é atribuída a comunidades nômades no Saara.
  • 25
    Ex. Batwans Beek de Warda; Esel Ruhek de Layali Yasmina; de Elhob Koulo Amany e The Badawist, dentre muitas outras.
  • 26
    Motivo rítmico ou melódico continuamente repetido.
  • 27
    Comparar as condições das mulheres do campo ora etnografado com as de meu campo de pesquisa anterior, os grupos de cultura popular de matriz africana e suas diversas ramificações sociais, poderia nos levar a não reconhecer as formas de opressão do primeiro. É claro que mulheres brancas, de classe média, profissionais liberais e na maior parte das vezes empregadas, não estão nas mesmas condições de vulnerabilidade em que se encontram as mulheres negras integrantes daquelas comunidades musicais - negras, empregadas informalmente (não raro em jornadas duplas), responsáveis pelo sustento de suas famílias e ainda indispensáveis ao movimento cultural. Ambos os grupos de mulheres, no entanto, podem estar sujeitos a formas de subjugo e violência, de ordem física ou psicológica, especialmente em ambiente doméstico, para os quais não podemos fechar os olhos, ainda que os graus de vulnerabilidade sejam diferentes. Esse assunto será devidamente abordado em artigo dedicado à questão, que deverá ser publicado em momento oportuno.
  • FINANCIAMENTO:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2020
  • Aceito
    03 Fev 2022
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