Acessibilidade / Reportar erro

“É preciso força pra saber sonhar”: reflexões a respeito dos sonhos entre famílias tupi guarani no sudoeste do estado de São Paulo1 Este artigo originou-se da pesquisa de doutorado (2012-2016) que resultou na tese intitulada “Estar em movimento é estar vivo. Territorialidade, pessoa e sonho entre famílias tupi guarani” defendida no ano de 2016 no programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da FFLCH/USP, e que contou com a orientação da Profa. Dra. Dominique Tilkin Gallois, e com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

“É preciso força pra saber sonhar”: on dreams among tupi guarani families in south-west São Paulo

RESUMO

Pretende-se neste trabalho discutir a respeito da maneira como as famílias tupi guarani, que vivem em aldeias localizadas no sudoeste do estado de São Paulo, dissertam sobre seus sonhos e como eles estão relacionados à constituição da pessoa. Para tanto abordarei suas formulações acerca da noção de mbaraeté, que consiste no fortalecimento de seus corpos-espíritos, condição que possibilita que os sonhos sejam experienciados de maneiras distintas pelas pessoas. O que pretendo discutir a partir do contraponto trazido por meus interlocutores de pesquisa entre os sonhos experienciados pelas crianças, as quais ainda não estão fortalecidas, e aqueles que são vivenciados por pessoas que estão mbaraeté (fortes). Convém destacar que os sonhos, para essas famílias não se concluem ao acordar, de modo que seus desdobramentos na vida das pessoas dependem das ações do sonhador e de seus ouvintes, tanto ao despertar quanto nos dias subsequentes.

PALAVRAS CHAVE:
Tupi Guarani; sonhos; modos de saber; fortalecimento

ABSTRACT

The article intends to discuss how Tupi Guarani families living in villages located in the southwest of the São Paulo state, talk about their dreams and how they are related to the constitution of the personhood. For that, the article approaches their formulations about the notion of mbaraeté, which consists in the strengthening of the body-spirit, a condition that allows dreams to be experienced in different ways by people. A counterpoint is brought by my research partners when considered the dreams experienced by the children, which are not yet strengthened, and the dreams experienced by people already mbaraeté (strong). It is important to highlight that, for these families, the dreams are not completed when they wake up. Its consequences in people´s lives depend on the actions of the dreamer and his listeners, both on awakening and in subsequent days.

KEYWORDS:
Yanomami; dreams; image; nostalgia; death

CONTEXTUALIZANDO: PROBLEMAS E PERCURSOS DA PESQUISA

Este trabalho é resultado da pesquisa de campo que realizei entre os anos de 2013 e 2015 junto às famílias tupi guarani que compõem a aldeia Ywy Pyhaú, localizada no município de Barão de Antonina, no sudoeste do estado de São Paulo. Nesse período, cursando o doutorado em antropologia social, me debrucei sobre vários temas e problemas de pesquisa, dentre eles: as práticas de territorialidade e mobilidade tupi guarani, as relações tecidas entre parentes, e seus modos de saber, com especial atenção aos sonhos, cerne das discussões que apresento neste texto e sobre os quais tratarei adiante.

No ano de 2005, essas famílias tupi guarani, guiadas pelos sonhos de D. Juraci, anciã da aldeia, partiram da Terra Indígena Araribá (Avaí-SP) e retomaram o território tradicional tupi guarani, localizado na confluência dos rios Verde e Itararé, no município de Barão de Antonina. Seus parentes antigos2 2 Quando fazem referências aos parentes antigos, ou simplesmente antigos, abarcam uma multiplicidade de pessoas, desde avós, bisavós com quem convivem ou já conviveram, até pessoas que, falecidas, não chegaram a conhecer, mas das quais conhecem as histórias. E por isso, há casos de jari ou xeramoi (avós e avôs), pessoas mais velhas ainda vivas e que, em suas formulações, detém muita sabedoria, que também são considerados antigos, ainda que o uso do termo seja mais frequente ao se referirem aqueles que já faleceram. Certa vez D. Juraci, anciã da aldeia, contou-me que era comum em Laranjinha (PR), ouvir a noite, na beira do rio, o som dos antigos, os quais ela denominava na língua tupi de nhanderey’i, e que traduziu como nossos parentes denominados também, em alguns contextos, de nossos antepassados. viveram nesse local até meados de 1912, ano em que foram transferidos para a TI Araribá pelo então funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), Curt Nimuendaju. Atualmente, esse território encontra-se em processo de regularização fundiária e de acordo com primeiro Relatório de Identificação e Delimitação das Terras Indígenas Guarani de Barão de Antonina e Itaporanga, concluído no ano de 2010, possui a extensão de 4.526 hectares.

No município de Barão de Antonina vivem cerca de vinte famílias que se autodenominam Tupi Guarani, as quais estão distribuídas entre as aldeias Karugwá e Ywy Pyhaú, e juntas, em junho de 2015, somavam um total de 120 pessoas. Importante sublinhar que essas famílias eram reconhecidas e denominadas Guarani-Nhandeva. Entretanto, no ano de 2010 e somando forças ao movimento que, de acordo com Ladeira (1984), já era observado desde a década de 1980 no litoral paulista, passaram a reivindicar a autodenominação Tupi Guarani3 3 Destaco que ao me referir ao tronco linguístico Tupi-Guarani farei uso do hífen, tal qual fazem meus interlocutores, com intuito de diferenciá-lo de sua autodenominação Tupi Guarani. . Segundo explicam meus interlocutores, nhandeva é um termo inclusivo que utilizam para se referir a todos os indígenas e por isso, o traduzem como “todos nós índios”, utilizando-o, sobretudo, para marcar diferenças com os não indígenas. Já a autodenominação Tupi Guarani faz referências à mistura que ocorrera em decorrência dos casamentos realizados entre os Tupi que vivem na costa brasileira e os Guarani que vieram do Paraguai, em razão disso, afirmam que são “índios misturados”. Tal mistura, no entanto, não é oposta à noção de pureza acionada pelas famílias tupi guarani para se referir às pessoas que “vivem mesmo como índios”, ou seja, compartilham seu cotidiano com os parentes, trabalham no fábrico do artesanato, se dedicam à prática de seus cantos-reza (mborei), dentre outras coisas. Como afirma D. Juraci: “somos puros misturados!” (Almeida, 2016ALMEIDA, Lígia Rodrigues. 2016. “Os Tupi Guarani de Barão de Antonina (SP): a busca pela ‘terra boa’ e os processos de regularização fundiária”. In: DANAGA, Amanda Cristina; PEGGION, Edmundo Antônio. (Orgs). Povos Indígenas em São Paulo: novos olhares. São Carlos: Edufscar, pp.155-171a).4 4 Sobre o termo nhandeva é possível consultar os trabalhos de Nimuendaju (1987 [1914]), Schaden (1954), Mello (2006), Ladeira (2007), Macedo (2009), Almeida (2011), Danaga (2012), dentre outros. Para mais informações a respeito da noção de mistura entre os Tupi Guarani, conferir os trabalhos de Mainardi (2010; 2015); Almeida (2011; 2016) e Danaga (2012).

Na aldeia Ywy Pyhaú todos falam o português, são poucos os falantes do que denominam de tupi antigo, que segundo suas formulações, é a língua que seus antepassados falavam no tempo dos antigos, período anterior ao contato com os não indígenas. De acordo com meus interlocutores, a língua falada atualmente na maioria das aldeias guarani, consiste em uma mistura do tupi antigo com a língua guarani dos povos que vieram do Paraguai, trata-se, portanto, de uma língua diferente daquela que usavam antigamente. Além de D. Juraci, anciã da aldeia, e de outros anciões das aldeias vizinhas, apenas alguns de seus filhos mais velhos conhecem e utilizam o tupi antigo, o que ocorre, sobretudo, na presença de pessoas desconhecidas. Em razão disso, todas as conversas realizadas durante a pesquisa de campo ocorreram em língua portuguesa, por esse motivo, e com o intuito de diferenciar os conceitos utilizados pelas famílias tupi guarani, os grafei em itálico ao longo deste texto, diferente de suas falas e expressões que foram apenas aspeadas. Faço isso pelo fato de que apesar de, em muitos momentos, eu e meus interlocutores utilizarmos os mesmos termos em língua portuguesa, eventualmente nós estávamos falando de coisas distintas, caso, por exemplo, do sonho que, veremos mais adiante, utilizam para se referir à xeke rupi, aos caminhos que percorrem durante o sono.

Durante todo o trabalho de campo e apesar de ter acesso às narrativas de sonhos de quase todos os moradores da aldeia, desde aquelas que ocorriam no interior dos quartos em que dormia, até as que eram contadas nos quintais das casas, não tive permissão para gravá-las. Conforme me advertiu D. Juraci logo no início da pesquisa, “coisas da cultura”, que são enviadas ou reveladas por Nhanderu e que não podem ser aprendidas, mas apenas sentidas, como a língua, os mborei (cantos-reza) e os próprios sonhos, não devem ser retidas em gravações. Da mesma forma, não devem ser colocadas em circulação por quem não é capaz, de fato, de compreender e se relacionar de forma cuidadosa com aquilo que podem atrair, como é o caso dos anhã (espíritos ruins). Durante a reza é comum que espíritos ruins circulem no entorno das pessoas com o intuito de desconcentrá-las e por esse motivo, são capazes de fazer adoecer aqueles que se põem a realizar uma reza sem, no entanto, deter as aptidões necessárias de um(a) rezador(a), ou seja, a capacidade de afastá-los sem se deixar afetar.

Ao longo da pesquisa também fui advertida sobre o perigo de colocar tanto as rezas quanto determinadas narrativas de sonhos para circular via gravadores. Conforme as famílias tupi guarani explicam, os sonhos não se concluem ao acordar e seus desdobramentos na vida das pessoas depende, na maioria dos casos, das ações do sonhador e de seus ouvintes, tanto ao despertar quanto nos dias subsequentes. Desse modo não contar os sonhos ou, em suas palavras, “não passá-los adiante”, é uma das ações a serem tomadas a fim de desfazer um sonho considerado ruim, o que os gravadores e as escutas repetidas poderiam colocar a perder. Por essa razão, fiz uso apenas de cadernos de campo, onde anotava o que me era dito nesses contextos e em outros, nos quais se empenhavam a me ajudar a entender as vivências e ensinamentos que partilhavam comigo. Dessa forma, o que apresento neste texto são descrições e comentários a respeito dos sonhos narrados pelas famílias tupi guarani e suas reflexões sobre eles, não contando com narrativas transcritas ou explicitadas na íntegra. De modo que a metodologia de pesquisa adotada aqui, está intimamente relacionada aos modos de relação e de saber Tupi Guarani, os quais requerem cuidados específicos, como veremos mais adiante.

Convém destacar que há várias dimensões da vida tupi guarani que estão relacionadas aos sonhos: as práticas de mobilidade, as relações entre parentes, os processos de adoecimento e cura, a vivência entre os irmãos de fé5 5 As famílias tupi guarani utilizam a expressão irmãos de fé para se referirem aos indígenas e não indígenas frequentadores da Congregação Cristã no Brasil (CCB). Havendo uma igreja da CCB localizada na aldeia Karugwá. e a palavra que Deus lhes “revela em sonho”. Entretanto, dada a extensão do tema e dos problemas que o perpassam, o intuito neste artigo é discutir a respeito da importância dos sonhos no cotidiano dessas famílias, com especial atenção para a maneira como experiências vivenciadas durante o sono estão relacionadas à constituição da pessoa. Isso porque, conforme apresento mais adiante, a depender da força (mbaraeté) de cada um, tais experiências são vivenciadas de maneiras distintas. Para tanto organizei esse texto em três partes: na primeira delas apresento um panorama geral a respeito dos sonhos entre as famílias tupi guarani e da noção de mbaraeté (força/fortalecimento), acionada por elas ao tratar dessas experiências e de outros aspectos de suas vidas. Na segunda parte apresento as formulações tupi guarani acerca dos sonhos de quem tem o espiritual fortalecido, para na terceira discutir a respeito dos sonhos das crianças, as quais ainda não tem o espírito forte e, segundo meus interlocutores, necessitam de ajuda na compreensão e desenrolar de seus sonhos.

ABRINDO CAMINHOS: ALGUMAS FORMULAÇÕES A RESPEITO DOS SONHOS ENTRE AS FAMÍLIAS TUPI GUARANI E A NOÇÃO DE FORTALECIMENTO

O que acontece durante o sono é assunto constante no cotidiano das famílias tupi guarani. Experiências que no português denominam de sonhos e que, segundo suas formulações, é uma maneira simplificada de traduzir aquilo que os antigos, falantes do Tupi, denominavam xeke rupi, expressão que me traduziram como: “em meu sono...”, “enquanto eu dormia...”. Porém, esse termo também pode assumir a forma literal onde rupi denota a ideia de caminho (Xeke/ meu sono + rupi/ caminho = caminho durante o sono), uma das formas pelas quais podem receber seus cantos -reza (mborei) e as revelações de Nhanderu (habitantes do patamar celeste/divindades). O que faz com que os sonhos se configurem como um modo de saber, visto que entre as famílias tupi guarani conhecer é caminhar, seja por este mundo, seja por mundos outros, como ocorre durante os sonhos. Ressalto assim, que quando faço alusão aos sonhos estou me referindo aos caminhos que as pessoas, ou uma parcela delas, percorrem durante o sono, dado que os sonhos, conforme explicam meus interlocutores, são “viagens da alma enquanto o corpo dorme”.6 6 Sobre as viagens da alma, é corrente na literatura americanista os sonhos serem tratados como uma espécie de “vagar da alma/ espírito”, havendo vários trabalhos entre povos ameríndios distintos que discutem a esse respeito como, por exemplo, Gallois (1988) junto aos Waijãpi, Descola (1989) entre os Achuar, Fausto (2001), sobre os Parakanã e Santos-Granero (2006), entre os Yanesha. Todavia, não pretendo retomá-los aqui, nem haveria espaço para tanto, razão pela qual optei por me ater às formulações de meus interlocutores tupi guarani a respeito de seus sonhos.

Apesar de ser um modo de saber compartilhado por todos, homens, mulheres e crianças, os sonhos não estão isentos de perigos. Durante o sono, da mesma forma que em alguns contextos na vida desperta, como quando se anda sozinho pela mata, também há caminhos e encontros que devem ser evitados a fim de prevenir que seus corpos-espíritos sejam seduzidos e capturados por outros tipos de gente. Esses encontros, com figuras potentes da alteridade, fazem com que os sonhos não se constituam apenas como um modo de saber, se apresentando também como uma forma de se relacionar com os outros. Segundo contam as famílias tupi guarani, essas relações durante os sonhos, envolvendo vários tipos de gente, se tornam possíveis pelo fato de que os espíritos das pessoas, quando “livres de seus corpos” e das restrições comunicativas impostas por eles, são capazes de se reconhecer, assumir outras formas e se comunicar com os Outros (anhã, mortos, parentes antigos etc.). É justamente pela possibilidade de se encontrar e se relacionar com vários tipos de gente durante os sonhos, que essas famílias reforçam com frequência em suas falas a importância de saber sonhar, o que explicam, está associado ao fortalecimento da pessoa. Saber sonhar diz respeito à capacidade que as pessoas fortes (mbaraeté) possuem de escolher os caminhos que percorrem, de distinguir e compreender o que veem e ouvem nesses contextos, bem como de escolher com quem ou o que desejam ou não se colocar em relação. Em suma, e como destaquei anteriormente, é a força de cada um que irá determinar a forma como experienciam os sonhos e o modo de agir sobre eles, é ela também que vai permitir que tenham aquilo que consideram ser um bom sonho.

Quando as famílias tupi guarani dissertam a respeito do processo de tornar-se mbaraeté (fortes) estão, em síntese, se referindo a capacidade de manter conectados os elementos que compõem a pessoa, seus corpos-espíritos, o que na língua tupi-guarani designam de nhanderete (nosso corpo) e nhanderekuaá (nosso espírito), e que somados a outros tantos elementos e relações constituem as pessoas.7 7 As discussões referentes à composição da pessoa Guarani são extensas e não tenho aqui a pretensão de retomá-las, para uma discussão mais ampla a esse respeito consultar os trabalhos de Mello (2006), Pissolato (2007), Macedo (2009), Pierri (2013), Ramo y Affonso (2014), Testa (2014), dentre outros. Sobre as famílias tupi guarani, acerca das quais discorro neste trabalho, consultar: Almeida, 2016a. Entretanto, ainda que a conexão entre esses elementos seja importante para a manutenção da vida tupi guarani,em alguns contextos,como os adoecimentos e os sonhos,eles podem se distanciar e circular por territórios distintos. De maneira similar ao que apresenta Ramo y Affonso (2014RAMO Y AFFONSO, Ana. 2014. De pessoas e palavras entre os Guarani-Mbya. Tese, Niterói, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense.) para seus interlocutores Mbya, quando afirma que apesar da pessoa ser composta por múltiplos elementos, eles não têm, obrigatoriamente, que estar juntos ao mesmo tempo. Conforme descreve a autora, os diversos componentes da pessoa, se referindo a seus interlocutores guarani, “[...] não só se diferenciam em seus gostos, vontades, desejos e costumes, mas nos espaços que habitam e nos modos de percorrer esses espaços”, eles “[...] ocupam simultaneamente territórios diferenciados” (Ramo y Affonso 2014RAMO Y AFFONSO, Ana. 2014. De pessoas e palavras entre os Guarani-Mbya. Tese, Niterói, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense.: 255). E assim, retomando as formulações tupi guarani, compreende-se que como as pessoas circulam por entre aldeias e cidades, seja em busca de cônjuges ou de melhores condições de vida, nhanderekuaá (nosso espírito), quando encontra-se “livre”, caminha, por exemplo, entre os patamares celeste e terrestre, colocando em circulação os saberes que lhes revelam as divindades, e também pelo “mundo dos sonhos”, onde se encontram e se relacionam com outras tantas “almas-livres” (Pissolato, 2007PISSOLATO, Elizabeth de Paula. 2007. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo Mbya (Guarani). São Paulo: Editora da UNESP.). Lembrando que onde circulam os espíritos das pessoas (nhanderekuaá) não circulam, necessariamente, seus corpos (nhanderete), ainda que na condição de “corpos-afetos”8 8 Macedo (2012: 188), ao discutir a respeito do nhe’e entre alguns Guarani em São Paulo e partindo das discussões de Espinosa, define afeto como uma força de existir, uma potência de agir, “[...] dada pela configuração relacional que singulariza cada corpo”. Enquanto afecção remete ao efeito de um corpo sobre outro, que pode maximizar ou destruir essa potência de agir. E por isso, na medida em que investe cada Guarani de uma potência de agir, que autora afirma que o nhe’e se constitui como um “corpo-afeto, um afeto alegria que é também uma capacidade singular de falar, de agir e de conhecer” (Macedo, 2012: 188). Segundo Macedo, tudo que tem vida tem nhe’e, e esse, como “corpo- afeto”, é parte de “[...] uma cartografia relacional que envolve outros corpos-afetos, numa rede de afecções dentro e fora dos corpos de cada Guarani” (Macedo, 2012: 190). Onde o próprio nhe’e possui uma corporeidade imanente, “são corpos invisíveis [...] aos olhos humanos, habitando e transitando, dentro e fora dos corpos dos Guarani” (Macedo, 2012: 188). (Macedo, 2012MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo); 2013MACEDO, Valéria. 2013. De encontro nos corpos Guarani. Ilha Revista de Antropologia . Vol. 15, n.2: 181-210. DOI 10.5007/2175-8034.2013v15n1-2p180
https://doi.org/10.5007/2175-8034.2013v1...
) as relações que estes travam em outros lugares possam se interferir mutuamente.

Meus interlocutores explicam que se por algum motivo a pessoa opta por viver em um lugar onde “não alegra seu espírito”, esse há de adoecer. E se os espíritos das pessoas, enquanto circulam livres, se colocam em relação com espíritos ruins, os anhã, é em seu corpo que esse encontro irá se refletir, por ser o corpo, tal qual formula Testa (2012TESTA, Adriana. 2012. “Caminhos de Criação e Circulação de Saberes”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp. 167-185. (mimeo)), “[...] uma espécie de lugar-passagem que concentra e por onde fluem substâncias e saberes” (Testa, 2012TESTA, Adriana. 2012. “Caminhos de Criação e Circulação de Saberes”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp. 167-185. (mimeo): 168). Recordo também, que a pessoa se constitui por múltiplas relações, dessa forma, aquelas que são tecidas por seus espíritos com outros tipos de gente nos contextos em que caminha livre, ainda que não sejam visíveis em todos os momentos, as constituem e modulam tanto quanto aquelas que se têm na vida desperta. Como afirma Macedo (2012MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo)), “[...] a pessoa se constitui como uma rede de afetos e afecções, experimentando posições de sujeito e de sujeitado a desejos e efeitos de outros corpos, dentro e fora de seu próprio corpo” (Macedo, 2012MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo): 186). Por isso, pela possibilidade de ser por outro sujeitado, que assim como evitam circular pela mata durante a noite, sob o perigo de encontrar um angue (espíritos dos mortos) ou anhã, evitam durante o sonho de circular, por exemplo, nos locais onde caminham os mortos, sob o risco de viver para sempre com e como eles. Ressalto, no entanto, que as pessoas de espiritual fortalecido, como pretendo apresentar adiante, são exceções nesses casos, pois são capazes de visitar “outras Terras”9 9 Conforme me explicou Marcílio, filho de D. Juraci, há várias Terras ou vários céus, os quais são ocupados e se dividem entre os Tupi Guarani, outros indígenas e não indígenas. Dentre as mais mencionadas tem-se: Ywy Marangatu (Terra Sagrada) de onde vêm as almas das pessoas, Ywy Marãe´y, (Terra sem Males/ Terra Iluminada) para onde os antigos eram capazes de subir de corpo e alma, e as várias Terras dos mortos, para onde as pessoas que morrem vão até que optem por retornar a esse patamar terrestre. Entretanto, são mais frequentes as referências a elas de maneira genérica como “outras Terras”. e, também, os mortos, sem deixar que eles as afetem.

Ainda sobre a noção de fortalecimento das pessoas, cabe mencionar que se trata de uma condição que está intimamente relacionada à vivência entre os parentes, os quais possibilitam que os saberes e poderes enviados pelas divindades, isto é, as belas palavras de Nhanderu, os cantos-rezas, os remédios do mato, dentre outras coisas, sejam passados adiante, “fazendo crescer os que estão ao redor”. Conforme explicam meus interlocutores, é vivendo juntos aos parentes em uma “terra boa” (com mata, bichos e rios), observando e ouvindo os aconselhamentos10 10 São comuns nas conversas entre as famílias Tupi Guarani as referências à sabedoria dos mais velhos e seu poder de aconselhar (-mongeta) os mais novos. Dessa forma, os aconselhamentos costumam percorrer alguns caminhos pré-definidos, ou seja, partem habitualmente dos mais velhos e se dirigem, sobretudo, aos jovens (crianças e adolescente), ainda que os adultos também sejam aconselhados. O que varia ao logo desses caminhos são as pessoas envolvidas, visto que é a proximidade entre as pessoas que vai determinar quem emite as falas aconselhadoras e os sujeitos que as recebem. Importante destacar, da mesma forma que aponta Testa (2014) que os aconselhamentos se constituem enquanto a comunicação de “[...] modos específicos de agir e viver que consideram porã (bons, tanto em termos éticos, como estéticos)” e por isso os velhos utilizam para passá-los adiante as “ayvu porã (belas/boas palavras)” (Testa, 2014: 181). dos mais velhos, que os mais jovens vão apreendendo os modos de ser “Tupi Guarani verdadeiro”. O que está associado à maneira como se relacionam com aqueles que vivem juntos e que envolvem práticas cotidianas como: fazer o artesanato, andar no mato, conversar nos pátios das casas, o ato de alimentar e ser alimentado e, ainda, a atenção ao que se come, como e com quem. São esses e outros tantos cuidados recíprocos que possibilitam que as pessoas se desenvolvam e se tornem cada vez mais mbaraeté (fortes). Trata-se, no entanto, de um processo contínuo, dado que a pessoa nunca se encontra completa, e pode, ora ou outra, como nos momentos em que adoece, tornar-se fraca. Por essa razão é preciso que permaneçam sempre atentos, com o intuito de evitar que tal fraqueza, que pode acometer as pessoas em determinados momentos, perdure por um longo tempo.

Aprender a manter-se forte é algo extremamente importante entre as famílias tupi guarani, por isso se empenham tanto em cuidar uns dos outros. Esses cuidados, ainda que sejam estendidos a todos na aldeia, são mais centrados nas crianças, o que se explica pelo fato de os elementos responsáveis por sua constituição ainda não estarem totalmente conectados e acostumados a esta Terra. Ademais, tais cuidados, é que vão contribuir, com o passar do tempo, com seu fortalecimento, fazendo com que a alma enviada por Nhanderu se assente e se acostume ao corpo que a recebe nesta Terra. Alguns relatos apontam, inclusive, que as crianças são as pessoas que se encontram mais próximas de Nhanderu, pois acabaram de “descer para este mundo” e por essa razão, não se encontram “nem lá e nem cá”. Aliás, é essa instabilidade que faz com que as crianças sejam facilmente seduzidas pelos anhã (espíritos ruins), que com inveja de sua proximidade com os habitantes do patamar celeste, também costumam rondá-las com maior frequência. Além de ser responsável por ampliar a vulnerabilidade das crianças, tal instabilidade também impossibilita que vivenciem de maneira clara e saibam agir em determinadas circunstâncias, como por exemplo, durante os sonhos em que se encontram com os mortos ou espíritos ruins. Em situações como essas, conforme discuto mais adiante, vão depender da ajuda de alguém mais forte, que tome as medidas necessárias com o intuito de desfazer ou minimizar os efeitos desses encontros na vida do pequeno sonhador.

Segundo explicam meus interlocutores, são diversas as maneiras de agir durante e depois de vividas essas experiências e para que possam decidir sobre a melhor atitude a se tomar, as pessoas costumam prestar muita atenção em seus sonhos e nas narrativas dos sonhos daqueles que vivem juntos. Aliás, contar um sonho, escolher o momento de compartilhá-los, isso se houver o desejo de fazê-lo, bem como selecionar os ouvintes das narrativas do que fora vivenciado durante o sono, já são atitudes que podem ser consideradas precauções tomadas pelo sonhador para o desdobramento ou não de seu sonho11 11 Tal descrição vem reforçar aquilo que Shiratori (2013) já havia afirmado, de que os sonhos não se limitam às suas interpretações, revelando-se “[...] imprescindível um segundo momento centrado na ação, seja para efetivar os sonhos, seja para desfazê-los” (Shiratori, 2013: 14). Ainda de acordo com Shiratori (2013: 103) a “[...] interpretação dos sonhos não consiste em produzir a inteligibilidade de um sentido oculto”, mas corrigir deformações perceptivas dos acontecimentos a fim de desmascarar as intenções de seus interlocutores oníricos, e “uma forma de manipular a ordem dos eventos” (Shiratori, 2013: 69). . Decisões que as crianças nem sempre estão aptas a tomarem sozinhas. Ademais, as crianças são as que mais devem tomar cuidado com os sonhos enganadores, aqueles em que seres como os anhã, por exemplo, se passam por um parente enviando ao sonhador mensagens falsas a fim de enganá-lo e levá-lo por caminhos outros, os quais podem ser perigosos. O que vem reforçar, mais uma vez, a necessidade constante de fortalecerem seus corpos-espíritos, o que influencia, como dito anteriormente, na capacidade das pessoas em se “guiar pelos sonhos”, de saber sonhar, evitando enganar-se durante essas experiências. Com intuito de adensar essas reflexões, passo agora às discussões a respeito dos sonhos de quem tem o espírito forte.

RECEBENDO SABERES E PODERES: OS SONHOS DE QUEM TEM ESPÍRITO FORTE

Comumente se ouve entre os Tupi Guarani que quando estão “concentrados em Nhanderu”, isto é, à escuta do que lhes revelam e fortalecidos pelas danças, das rezas, da alimentação e da convivência entre os parentes, é possível que tenham bons sonhos, ou seja, sonhos em que recebem seus mborei (cantos-rezas), “remédios do mato”, o nome de batismo das crianças, dentre outras coisas. Por esse motivo, esses sonhos ocorrem principalmente entre os mais velhos e pessoas que têm o que denominam de espiritual desenvolvido, os únicos capazes de viajar para “outras Terras”, encontrar-se com os Nhanderu e receber deles mensagens e saberes.

Certa vez, quando conversava com D. Juraci e seu filho Marcílio acerca dos ensinamentos enviados por Nhanderu, explicaram-me que eles chegam sem avisar, o que normalmente ocorre por meio de um sonho. É por meio dos sonhos que recebem aquilo que denominam de “sabedoria individual”, pois, em suas palavras, “cada um sente de um jeito”. Foi nesse contexto e com o intuito de exemplificar o que acabara de me explicar, que Marcílio narrou um dos sonhos que teve. No sonho ele estava em meio a uma guerra onde fora atingido por uma flecha, e levantando sua camisa mostrou uma marca em suas costas dizendo: “A flecha passou bem aqui! Eu acordei sentindo dor e já estava com essa marca”. Essa flecha, D. Juraci esclareceu, era um sinal de que ele havia recebido algo de Nhanderu, um poder, que segundo Marcílio, poderia usar para ser um espiritual (rezador/xamã/pajé), mas que não usava, pois não tinha “o corpo e o espírito forte de rezar”, isso porque não há casas de rezas na aldeia. Mais tarde, discutindo novamente a respeito da marca de flechada, explicaram que para além da possibilidade de ser um espiritual, ela indicava, ainda, que Marcílio poderia ser a reencarnação de um capitão de nome Emídio, que foi morto por uma flechada quando guerreou durante a Revolução Constitucionalista de 1932. A marca seria uma forma de mostrar que se tratava de uma pessoa reencarnada e que ele, da mesma forma que o referido capitão, deveria guerrear por seu povo, sendo essa, também, uma capacidade que lhe fora enviada por Nhanderu.

Sobre a reencarnação é importante pontuar que para as famílias tupi guarani ela consiste em um “fazer corpo”, dado que, segundo suas formulações, pessoas que já faleceram e que vivem atualmente em “outras Terras” podem desejar retornar a este mundo, “fazendo corpo novamente”. No entanto, ainda que seja o mesmo espírito não se volta a mesma pessoa, visto que os caminhos que percorrem em seu retorno para esta Terra e ao longo de sua vida, são diferentes, assim como as pessoas com quem se relacionam. Sobre as marcas em seus corpos indicando uma reencarnação, destaco que algumas pessoas já nascem com elas, seja um corte na cabeça, uma pinta em determinado lugar, ou mesmo o som da voz e as expressões faciais, que são idênticas as de algum parente antigo. Outras são adquiridas ao longo da vida, em eventos ocorridos na vida desperta, quando, por exemplo, se machucam e ficam com uma cicatriz de mesma aparência e em um mesmo local, tal qual algum ente falecido. Essas marcas podem também aparecer durante o sono, quando em sonhos vivenciam a mesma experiência que, no passado, vivenciara aquele de quem hoje é a reencarnação, como é o caso de Marcílio que apresentei acima. Entretanto, apesar de serem mais frequentes os relatos relacionados às marcas nos corpos quando se recebe algum poder de Nhanderu ou quando se quer comunicar uma reencarnação, sua aparição é muito comum depois de um sonho. Isso porque os corpos das pessoas também são efeitos das relações tecidas por seus espíritos nos momentos em que caminham livres. Como afirmei anteriormente, os elementos que compõe a pessoa se afetam mutuamente, e tudo que acomete nhanderekuaá (nosso espírito) enquanto circula livre se faz visível nos corpos (nhanderete) e vice-versa.12 12 Ainda sobre as marcas e os saberes que incidem nos corpos, lembro, por exemplo, das discussões de Barcelos Neto (2008) ao tratar dos sonhos Waujá, entre os quais afirma “[...] não existe uma oposição entre corpo e alma e sim uma “composição” ou, melhor dito, uma multiplicação fractal dos pontos de vista e da consciência; há, com frequência, a possibilidade de o corpo recuperar os conhecimentos apreendidos pelas fracções-alma”. E assim, os sonhos se fazem visíveis nos corpos, e o corpo “é a matriz visual absoluta da alma” (Barcelos Neto, 2008: 82; 107). Como discute Ramo y Affonso (2014) entre alguns Guarani, em que “[...] tanto o nhe’e como o ã, replicam os seus atos nos corpos das pessoas, sendo que os corpos das pessoas são efeitos da socialidade de seus duplos, dos atos pelos quais se relacionam alhures, principalmente durante o sonho (mais uma vez, o que eles comeram, com quem andaram, com quem tiveram relações sexuais, como veremos). Em certo sentido, os corpos são também a replicação com variação, a atualização e a contra- efetuação do que os duplos fazem, daqueles atos que constituem as suas relações: o corpo como imagem de seus duplos, como ‘substantivization of theintersubjectivity’ à maneira do wakan dos Jivaro (Taylor, 1996: 206) - só que neste caso é a intersubjetividade dos duplos que substantiviza (Ramo y Affonso, 2014: 177).” Ou então, como apresenta Oakdale (2005: 170), que afirma que apesar de os xamãs Kayabi deixarem seus corpos em suas viagens realizadas para as aldeias dos espíritos durante o sonho, carregam as marcas dessas aventuras em seus corpos físicos.

Os ensinamentos sempre se mostram da mesma maneira, sendo comum, além das marcas em seus corpos, tomarem a forma de algum objeto ou material utilizado em sua confecção. Por isso, em certos momentos eles aparecem nos sonhos como flechas que os atingem, outros como machadinhas que utilizam nas atividades realizadas nesses contextos, aparecem também em forma de mbaraká (chocalho), tocados durante o sono, ou de pintura de mbaraká, que ao acordar os rezadores costumam estampar em seus chocalhos. “Cada um recebe de um jeito”, me diziam, afirmando que os cantos, por exemplo, pertencem só a seus donos e que não podem ser passados de pai para filho como fazem com as músicas na escola. Essas músicas, cantadas na escola e em apresentações, são elaboradas de acordo com o momento que estão vivenciando, cantam a história dessas famílias e os caminhos que as pessoas percorrem nesta Terra em direção da Terra Iluminada, circulando de uma localidade a outra, ou em busca de novos lugares para a constituição de aldeias. De maneira oposta ao que ocorre com os cantos-reza (mborei), os quais recebem em sonhos e não devem ser reproduzidos em qualquer contexto, sobretudo, na presença de não indígenas, dado que a reprodução desses mborei por e para pessoas de espírito fraco pode fazê-la ainda mais fraca, ao atrair olhares de espíritos ruins, cujo mal que podem lhes causar não são capazes de suportar.

Sobre as músicas cantadas nas escolas e em apresentações, e aquelas que são concebidas como cantos-rezas (mborei), Marcílio explica que o que as diferencia é a existência ou não de uma letra, uma canção em tupi-guarani que pode ser compreendida por todos os indígenas que compartilham desta língua. Os cantos-rezas (mborei) que são recebidos de Nhanderu, ao contrário das músicas cantadas em apresentações, soam como uma espécie de ladainha, um som repetitivo e contínuo acompanhado pelo chacoalhar sutil do mbaraká (chocalho) do rezador ou rezadora. Segundo Marcílio, trata-se também de uma língua, mas é a “língua de Nhanderu”, que só os rezadores e rezadoras “sabem conversar”. Esses mborei, assim como os cantos que não são enviados diretamente por Nhanderu, mas escritos pelas pessoas, narram os caminhos que percorrem na busca por sabedoria, e quando os rezadores cantam, estão percorrendo novamente esses caminhos, mas levam junto de si toda a audiência. Eles são formas de fortalecer quem os recebem e, também, aqueles que os ouvem, ajudando-os a percorrer os caminhos aqui nesta Terra, por exemplo, na luta por seu território. Assim, se os mborei narram os caminhos abertos por Nhanderu e que são percorridos pelos rezadores, as músicas escritas e cantadas na escola narram os caminhos que são percorridos aqui nesta Terra em busca da “terra boa”, como desdobramentos um do outro. 13 13 Ainda que trate de temáticas distintas lembro aqui do trabalho de Danilo Paiva Ramos (2018) sobre as interações verbais de viajantes Hupd’äh sobre os sonhos e as situações do percurso e o modo como estão emaranhadas àquelas vividas oniricamente.

Segundo explicam meus interlocutores, o rezador percorre enquanto dorme um caminho ao encontro de Nhanderu, momento em que aprende seus mborei, e ao cantá-los novamente, já em sua vida desperta, leva aqueles com quem convive a percorrê-lo também, fazendo com que se fortaleçam e assim, possam transitar por outros caminhos, os quais são narrados nas músicas que cantam e ensinam às crianças na escola.14 14 Sobre a possibilidade de refazer os caminhos percorridos pelo xamã ao escutar os mborei, e as explicações das famílias tupi guarani sobre o ato de conhecer como um caminhar, lembro-me das discussões de Lolli (2012) a respeito das narrativas míticas e sua audiência, e de suas afirmativas de que: “[...] O conhecimento que essas narrativas míticas transmitem não pode ser apenas mentalmente registrado: as pessoas devem seguir literalmente os caminhos de seus ancestrais. A memória dessas trajetórias se reaviva na medida em que as pessoas seguem os mesmos caminhos percorridos pelas narrativas. A pessoa aprende ao passo que percorre os caminhos de seus antecessores. O conhecimento encontra-se distribuído entre a narrativa mítica e o ambiente. Essa relação sugere que embora a linguagem seja condição necessária para que um conhecimento seja transmitido, não é suficiente. É viajando que as pessoas adquirem conhecimento, seja para outros planos através do pensamento, seja no plano terrestre” (Lolli, 2012: 245). De maneira similar ao que apresenta Testa (2012TESTA, Adriana. 2012. “Caminhos de Criação e Circulação de Saberes”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp. 167-185. (mimeo)) a respeito de seus interlocutores guarani ao afirmar que “[...] se você adquire algo em sonho, precisa produzir ou achá-lo também aqui; se você faz algo em sonho, precisa fazê-lo aqui” (Testa, 2012TESTA, Adriana. 2012. “Caminhos de Criação e Circulação de Saberes”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp. 167-185. (mimeo): 174 -175). Ainda de acordo com a autora: “[...] não prosseguir na tradução/transformação dos sonhos em ações específicas pode provocar a interrupção deste caminho de comunicação e práticas e, no limite, levar o sonhador a sofrer enfraquecimento e outras consequências negativas” (Testa, 2012TESTA, Adriana. 2012. “Caminhos de Criação e Circulação de Saberes”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp. 167-185. (mimeo): 174-175). No caso das famílias tupi guarani não são apenas os sonhadores que podem enfraquecer, mas todos aqueles com quem convivem, pelo fato de não ter passado adiante o que lhes foi ensinado, fortalecendo aqueles que vivem juntos. Isso porque os saberes só possuem força quando em circulação, retê-los pode fazer com que enfraqueçam. Aliás, nada mais oposto do que se espera de um parente que o ato de acumular, tanto os saberes quanto os materiais para artesanato, alimentos, dinheiro, dentre outras coisas.

Tais afirmações indicam que há uma continuidade entre “o mundo dos sonhos” e o “mundo da vigília”, assim aquilo que se aprende durante o sono tem ação contínua na vida desperta, e os cantos-rezas são exemplo disso. Apreendidos em sonhos, eles abrem os caminhos que serão percorridos aqui nesta Terra. Eles servem como guias nos processos, por exemplo, de retomadas de territórios tradicionais, como ocorrera com D. Juraci, que passou anos sonhando com o território de Barão de Antonina, momento em que apreendeu com Sr. Firmino, seu falecido avô, sobre os caminhos que percorreu no passado até chegar àquela região. Foi seu avô que lhe mostrou os caminhos pelos quais ela guiou seus parentes quando se deslocou junto deles de Araribá para a região onde vivem atualmente.

D. Juraci tem cerca de onze mborei que recebeu das divindades. Ela não tem o hábito de falar sobre eles, mas seus filhos e netos comentam das viagens que ela costuma realizar em sonhos para a “outra Terra” e sobre os mborei que aprende enquanto caminha por . Sobre a possibilidade de viajar para outros lugares durante os sonhos, Marcílio explica que isso ocorre porque quando sonham “a alma sai do corpo e vai de encontro ao outro ser sonhado”. É comum que ao sonharem com os antigos, por exemplo, atravessem para a “outra Terra” (Ywy Marangatu/ Terra Sagrada, ou Ywy Marãe’y/ Terra sem Males), mas também pode ocorrer o inverso e esses atravessarem para esse mundo e vir ao nosso encontro. Quando questionado sobre os perigos dessas experiências e se haveria o desejo do espírito de permanecer nos lugares para os quais viajam, respondeu-me que esses sonhos, de início, não se configuram como sonhos perigosos. Primeiro, porque quem vai para essas “outras Terras” normalmente são pessoas que, como disse anteriormente, possuem maior capacidade de agir, ou seja, pessoas mais velhas e que são mais fortalecidas espiritualmente. Segundo, porque sabem que ao viajar para esses lugares não poderão permanecer, têm consciência de que seu papel é apenas ouvir e contar o que lhes foi ensinado. Não se apegam com tristeza ao lugar, pois sabem que devem voltar para fortalecer os outros que permaneceram nesta Terra, e que sua força depende da manutenção das conexões entre seus corpos-espíritos. O que demonstra um controle ativo dos sonhos por essas pessoas, da habilidade do xamã, neste caso, alguém espiritualmente forte, de induzir seus sonhos e “controlar ativamente seu potencial predatório”, transformando-os em um meio para adquirir saberes (Shiratori, 2013SHIRATORI, Karen G. 2013. O acontecimento Onírico Ameríndio. O tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

Certa vez, Marcílio contou-me que havia sonhado com um amigo, já falecido. Nesse sonho ele foi até a Terra onde seu amigo vivia. Tudo lá era branco, as roupas, os móveis, o chão. A mesa estava repleta de frutas, entretanto não foi convidado a comer. Seu amigo, pelo contrário, lhe disse que não deveria sair do lugar onde estava, um quadrado bem demarcado no chão. Caso saísse dali poderia permanecer naquela Terra para sempre, o mesmo ocorreria se comesse algumas das frutas que estavam sobre a mesa. Por ser forte, ele compreendeu que deveria permanecer em seu lugar, não se deixou levar pelo cheiro e a beleza das frutas, ouviu o que seu amigo tinha para lhe dizer e voltou para contar a seus parentes, para fortalecê-los com aquelas palavras. Mais tarde, segundo conta, sua filha também sonhou com esse amigo, entretanto foi ele quem veio visitá-la. Ela não foi para a “outra Terra”, o que, em suas palavras, “foi algo muito bom”, pois por ser ainda criança talvez não resistisse ao ver a mesa farta e a beleza do lugar. Se ela circulasse por ele e se alimentasse daquela comida, “seu espírito ia querer ficar por lá”. O que a levaria a adoecer podendo, até mesmo, falecer nesta Terra, dado que “seu espírito estaria longe de seu corpo”.

Dizem que é “a pessoa que vai mesmo para outro lugar” e nos caminhos que percorre encontra-se com diversos tipos de gente que não tem a intenção apenas de ajudá-la, mas também de “fazê-la desviar”. Explicam que nesses contextos a pessoa deve se manter sempre firme e não se deixar enganar. Inclusive, caso se encontre com espíritos ruins, ela poderá reagir transformando-se em outra coisa com o intuito de enganar esses espíritos, antes que eles possam lhes fazer mal. Como certa vez me disse um velho tupi guarani,“quando alguém finge ser parente, você finge que é bicho do mato e põe ele para correr”. Entretanto, se a pessoa consegue passar por todas as provações sem que para isso tenha que mudar quem é, “seja física ou espiritualmente”, comentam que mais forte ela fica.

Importante sublinhar que a noção de provações entre as famílias tupi guarani remete muito ao contexto da Congregação Cristã no Brasil (CCB), frequentada por alguns moradores de Ywy Pyhaú, e se refere às dificuldades enfrentadas pelos fiéis até que finalmente alcancem a graça de Deus destinada a eles. Passar pelas provações sem que mudem suas formas de pensar e viver, segundo explicam, exige das pessoas muita força e fé. Entretanto, ainda que as noções de provação e estejam diretamente associadas ao cristianismo, o conceito de força não se restringe a ele. Como dito anteriormente, força se refere à capacidade de manter conectados os elementos corpóreos e espirituais que os constituem, o que, em certa medida, depende dos encontros que têm ao longo de suas vidas e da alegria que produzem. Nesse sentido as relações que estabelecem com os irmãos de fé, do ponto de vista tupi guarani, também se apresentam como fonte de alegrias e, consequentemente, de fortalecimento, somando-se a outras práticas tupi guarani, como: viver e comer juntos, ter bons sonhos, executar seus mborei (cantos-rezas), entre outras atividades cotidianas. O que justifica o uso desse conceito ao se referirem também às atividades da CCB que os alegram e, em decorrência disso, os fortalecem.

Por fim, destaco que para as famílias tupi guarani sonhos como esses são experiências comparáveis com aquelas que ocorrem durante os rituais na casa de rezas, onde escutam “como que em pensamento” o que as divindades ou antigos vêm lhes contar.Por isso, afirmam com frequência que para que possam experienciá-los é necessário que sejam mbaraeté (fortes), o que lhes permite permanecer em concentração, isto é, atentos aos caminhos que percorrem e a escuta do que lhes conta Nhanderu. Algo que ainda não ocorre entre as crianças, dado que por não terem o espíirito forte “não aprenderam a sonhar”, ou seja, não são capazes de se guiar sozinhos durante seus sonhos e por meio deles em suas vidas despertas, como veremos na sequência.

SÓ SONHOS: FORMAS DE NEUTRALIZAR OS SONHOS DAQUELES QUE AINDA “NÃO APRENDERAM A SONHAR”

As crianças são as que mais questionam as pessoas sobre os sonhos da noite anterior. Na casa em que fiquei hospedada havia duas crianças, uma menina de onze anos e um menino de seis, e logo pela manhã costumavam me perguntar com o que eu havia sonhado. Depois que eu contava meus sonhos, isso quando não os esquecia, eles costumavam contar os seus, os quais, em sua maioria, envolviam algum acidente com parente próximo, encontro com “bichos estranhos” e morte. Havia outros em que apareciam brincando com as demais crianças da aldeia e alguns em que surgiam “fantasiados de bichinhos” e aqui cito: borboletas, cigarras, formigas, dentre outros. Nos momentos em que crianças narravam seus sonhos, era comum que os adultos permanecessem em silêncio, prestando muita atenção. Todavia, quando se tratava de relatos de sonhos considerados ruins o silêncio era quebrado pelas falas dos mais velhos, que se dirigiam às crianças afirmando a elas que não precisavam se preocupar, pois o que tinham vivenciado era só sonho. Essa recorrência me intrigou, pois se para os adultos os sonhos são um modo de saber, porque os sonhos das crianças não haveriam de ser? Meus interlocutores explicaram, então, que as crianças têm espírito fraco, ainda não aprenderam sobre a “vida Tupi Guarani e não conhecem muito bem o mundo”. Dessa forma, devem evitar assustá-las fazendo comentários sobre seus sonhos ruins, fazendo com que “fiquem distantes com seu pensamento”, o que pode fazê-las adoecer. Como afirmei anteriormente, o tornar-se mbaraeté ou alcançar o que denominam de fortalecimento espiritual, está associado à manutenção da conexão entre os vários elementos corpóreos e espirituais que constituem as pessoas, e no caso das crianças essa conexão ainda é frágil, visto que seus espíritos não estão completamente acostumados a esta Terra.

Segundo as famílias tupi guarani explicam, os espíritos das crianças ainda não conhecem muito bem este mundo e os locais por onde podem circular. Eles ainda estão ligados à vida que tinham no “mundo de 15 15 De maneira similar Refatti (2015) afirma que os sonhos das crianças entre os Ava-Guarani são mais fortes que os sonhos dos adultos devido a sua conexão mais próxima as divindades. Declarações próximas ao que apresenta Mello (2006: 249) quando afirma que “[...] os sonhos das crianças despertam interesse especial. As crianças (kuringue) têm faculdades ou canais de comunicação com outros planos mais eficientes que os dos adultos. Seus nhe´e acabaram de chegar a essa terra” (Mello, 2006: 249). O que parece ocorrer entre meus interlocutores, que temem pelos sonhos das crianças e afirmam se tratar de eventos sem importância, só sonhos, justamente pelas possibilidades e perigos que eles apresentam ao sonhador que ainda, como discuti anteriormente, não tem seus espíritos acostumados completamente a este mundo. , locais de onde vêm as almas e por isso, devem tomar todos os cuidados para que não se percam pelos caminhos que percorrem. Afirmação válida tanto para o “mundo dos sonhos” quanto para o “mundo da vigília”, dado que há inúmeros encontros possíveis quando as pessoas circulam pelos lugares e que a possibilidade de serem seduzidos e enganados por gente outra está sempre presente. Disso resulta a necessidade de tomar algumas precauções para evitarem que sejam outros, que não os parentes, a seduzir os espíritos das crianças, os quais, como discuti anteriormente, deixariam de desejar permanecer nesta Terra. Dessa perspectiva, dizer que os sonhos das crianças são só sonho não é apenas uma forma de tranquilizá-las, mas de neutralizar seus efeitos na vida desperta do pequeno sonhador. Tal expressão é utilizada tanto para prevenir que tais eventos se concretizem quanto como forma de evitar que as crianças adoeçam por pensarem demais nos acontecimentos da noite anterior, fazendo com que seu “pensamento fique distante”, o que faz com que sua alma não queira demorar-se neste mundo.

Além da expressão só sonho que nesses contextos os adultos costumam direcionar às crianças, era comum ouvir comentários positivos sobre suas experiências durante o sono. Em uma ocasião, uma das crianças contou às suas tias que havia sonhado que uma grande sucuri a perseguia, no entanto não havia terra por onde pudesse correr, apenas água. A criança, assustada, questionou uma de suas tias, perguntando-lhe se de fato encontrar-se com cobras em sonho era mesmo sinal de traição. Sua tia confirmou que sim, cobras indicam uma traição, porém, por ela ser criança não haveria quem desejasse prejudicá-la e, por isso, não deveria se preocupar. Em outro momento, uma menina contou que havia sonhado com a morte de sua avó, recebendo muitos comentários que assinalavam que quando as crianças têm sonhos como esses, eles significam o contrário, ou seja, se você sonha que alguém vai morrer é possível que essa pessoa viva por um longo tempo.

Esses procedimentos reforçam as afirmações de meus interlocutores de que as crianças ainda não aprenderam a agir durante essas experiências, cabendo aos adultos ajudá-las a compreendê-las e, quando necessário, anulá-las por meio do que lhes é dito e também silenciado. Silenciar nesses contextos é igualmente um modo de ação, uma forma de operar relações, lembrando ainda, da importância e o poder da palavra nesses e em outros momentos. Entre os Guarani, de uma maneira geral, a palavra é o lugar da potência, como aponta também Ramo y Affonso (2014RAMO Y AFFONSO, Ana. 2014. De pessoas e palavras entre os Guarani-Mbya. Tese, Niterói, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense.), ela “faz fazer”, tem poder e consequências. Dessa forma, a circulação e troca de palavras, que envolve não só as pessoas, mas todos aqueles com quem se relacionam (Nhanderu, anhã, angue etc.) “[...] pode alterar e controlar em alguma medida os efeitos de dada situação relacional” (Ramo y Affonso, 2014RAMO Y AFFONSO, Ana. 2014. De pessoas e palavras entre os Guarani-Mbya. Tese, Niterói, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense.: 145). As palavras modulam e modelam relações entre os vários tipos de gente que habitam os mundos tupi guarani.

Nesse tocante é comum, por exemplo, que antes de dormir se deseje às pessoas além de “boa noite” que tenham bons sonhos. Também é comum, no momento que anoitece, que as pessoas se reúnam para contar histórias do tempo dos antigos, as quais acabam por influenciar nos caminhos tomados por elas durante o sono, da mesma forma que os locais onde as pessoas dormem. Aliás, escolher os lugares onde dormem, quem os acompanha nos quartos, se há barulho ou silêncio, o tipo de histórias (aterrorizantes, engraçadas, tristes etc.) que contam antes de irem se deitar e a quem são direcionadas (crianças, homens ou mulheres), podem ser consideradas “técnicas” que influenciam nos modos de agir durante tais experiências, e que podem contribuir para que tenham bons sonhos. Não se trata como propõe Kracke (1999KRACKE. Waud. 1999. “A language of dreaming: dreams of an Amazonian insomniac”. International Journal of Psycho-analysis, (pt 2): 257-271. DOI: 10.1516/0020757991598701
https://doi.org/10.1516/0020757991598701...
: 261) em seus diálogos com a psicanálise freudiana e ao discorrer a respeito dos sonhos entre os Parintimtin, de composições mentais a partir dos resquícios do dia a dia, mas de um contínuo entre esses dois mundos. Entretanto, mesmo que não exista uma fronteira delimitada entre vida desperta e os sonhos, é importante frisar a necessidade de haver certo controle entre esses domínios, o qual, para as famílias tupi guarani, advém da força espiritual de cada um. Isso porque, como afirmei anteriormente, os sonhos podem ser perigosos e enganadores.

Destaco que o fato de as crianças não saberem agir nesses contextos, não significa que seus sonhos sejam menos potentes ou significativos. Os sonhos das crianças, como afirma Refatti (2015REFATTI, Denise. 2015. Os sonhos e os caminhos do nhe’e: uma etnografia da experiência onírica como fonte de conhecimento entre os AvaGuarani de Ocoy. Florianópolis, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.) tem muita força e, suponho, é justamente por isso que na ausência de controle por parte do sonhador, necessitam de alguém que os direcionem, que os ajude a desfazê-los ou dar-lhes continuidades. Lembrando também, conforme aponta Shiratori (2013SHIRATORI, Karen G. 2013. O acontecimento Onírico Ameríndio. O tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 14), que os “acontecimentos oníricos transbordam para vigília”, possibilitando, assim, sua manipulação. A própria interpretação dos sonhos, como diagnósticos de possibilidades, pode ser manipulada em benefício do sonhador, que tanto pode desfazer um sonho, como dar continuidade a ele. Reafirmo assim, que dizer às crianças que aquilo que fora experienciado é só sonho, ou positivar através de belas palavras uma experiência ruim vivenciada por elas, seja uma forma de mobilizar relações, de manipular os acontecimentos em seu benefício, sendo capaz, por isso, de neutralizar, quando necessário, os efeitos dos sonhos das crianças.

Com relação aos sonhos das crianças, também chama atenção o fato de assumirem corpos diversos durante essas experiências. Algumas de suas narrativas indicam que quando estão sonhando costumam sair voando, ora como pássaros, ora como borboletas, ou então, circulam pelos lugares como formigas, cigarras e lagartinhos. Diferente, por exemplo, do que ocorre com pessoas de espiritual fortalecido, entre as quais é comum haver o controle dos sonhos, inclusive, da maneira como se apresentam a seus interlocutores nessas situações, sendo capazes de manter a aparência que possuem na vida desperta. Conforme explicou Marcílio, quando as crianças estiverem mais fortes, isto é, quando seus espíritos estiverem mais acostumados a esta Terra e assentados em seus corpos, quando apreenderem os modos de saber tupi guarani, elas também se tornarão capazes, assim como acontece com ele próprio, de “ser ver corretamente nos sonhos” e conseguir se comunicar com aqueles com quem se relacionam durante essas experiências. Dessa forma, compreende-se que a força, além de estar associada à manutenção da conexão entre seus corpos-espíritos, também está relacionada à capacidade de controlar o modo como se dão a ver e, consequentemente, à maneira como tecem relações nesses contextos. Aquele que possui o espiritual fortalecido detém maior capacidade de dominar as perspectivas em jogo, de impor sua própria perspectiva ou, como dizem meus interlocutores, de impor respeito16 16 Ainda que meus interlocutores não estejam se referindo às histórias de -jepota ao utilizarem tal expressão, a noção de impor respeito me remete aqui ao trabalho de Macedo (2009, 2012) e Heurich (2011) que a abordam como uma forma de impor uma perspectiva, um outro corpo. Segundo Macedo (2012: 199) quando alguém ojepota, explicam que um dono animal impôs respeito. Nas palavras de Heurich (2011) “[...] impor a perspectiva é, para os Mbya, uma maneira de impor respeito” (Heurich, 2011: 28) E mais adiante, ao tratar de uma sessão xamânica para trazer de volta alguém que estava jepota o autor continua “[...] Impor respeito, impor um corpo: formas de ser e agir, assim como modificação no que transparece enquanto visível dessa forma corporal” (Heurich, 2011: 50). E assim, nesse caso que fora apresentado entre essas famílias tupi guarani, suponho que impor respeito signifique conseguir manter-se, tal qual se apresenta na vida desperta, em sua perspectiva- corpo; não havendo de se transformar em outra coisa. Lembrando aqui, do que fora apresentado anteriormente, a respeito da possibilidade de uma pessoa de espiritual fortalecido ser capaz de se apresentar como se apresenta em sua vida desperta, e o fato de conseguir passar por provações dessa maneira, impondo respeito, faz dela ainda mais forte. , o que nesse caso consiste em “impor um corpo”. Lembrando, tal qual postula Viveiros de Castro (2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify , pp.345-399.), que o corpo é o que possibilita a existência de diferentes pontos de vista e nesses contextos, aquele que é capaz de “impor um corpo” é, para usar uma expressão do autor, quem “detém o ponto de vista da relação” e estabelece os paramentos pelos quais essa irá se pautar. Dessa forma, saber sonhar, além de estar relacionado ao fortalecimento da pessoa, está conectado à capacidade das pessoas fortes de impor respeito, tanto enquanto dormem quanto em sua vida desperta, direcionando os caminhos que percorrem, como e com quem se relacionam, dado que diferentes tipos de corpos implicam em distintos modos de se relacionar.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: FORTALECER PRA SABER SONHAR

Como pretendi demonstrar ao longo deste texto, os sonhos são experiências vivenciadas por todos na aldeia Ywy Pyhaú. Entretanto, apesar de se constituírem como um modo de saber e de se relacionar compartilhado por todos, é somente as pessoas de corpos-espíritos fortes que conseguem experienciar o que consideram bons sonhos, ocasiões em que, por saberem como agir, são capazes de receber saberes e poderes de Nhanderu, que consistem, principalmente, em seus mborei (cantos-rezas). Tornar-se forte (mbaraeté), ou seja, manter a conexão entre os elementos corpóreos e espirituais que constituem as pessoas, é uma condição que se alcança quando se vive como ensinavam os antigos, isto é, prestando atenção à alimentação, ao que se come, como e com quem se come, e estando sempre disponível para as atividades coletivas na aldeia. Ademais, conforme explicam meus interlocutores, é justamente no convívio com os parentes e pelos saberes que são passados dos mais velhos para os mais novos, que as crianças aprendem “os modos de ser Tupi Guarani verdadeiro”, o que, com o passar do tempo, vai possibilitar que saibam sonhar, ou seja, que saibam agir nesses contextos, permitindo que também tenham bons sonhos.

Dessa maneira, os sonhos em que recebem saberes e aqueles a respeito dos quais as pessoas dizem só sonhos, além de evidenciarem as diferenças entre as múltiplas experiências possíveis de serem vivenciadas pelas pessoas durante o sono e que são, igualmente, designadas no português pelo termo sonho, colocam em evidência a importância para as famílias tupi guarani do tornar-se mbareté (forte), bem como das relações entre parentes. Posto que são os parentes os responsáveis por fortalecer as pessoas, pela transmissão de saberes e dos cuidados que dedicam uns aos outros. Por fim, convém mencionar, que mesmo que designem como bons sonhos apenas aqueles em que, por saberem sonhar, recebem saberes e poderes de Nhanderu, há inúmeros outros que, embora não sejam assim denominados, são considerados pelas famílias tupi guarani como sonhos bons, por serem resultados dos bons encontros que se tem nesses momentos. Esses encontros costumam envolver parentes antigos ou distantes, os quais lhes indicam caminhos a serem percorridos em busca de locais onde poderão fundar novas aldeias; trazem-lhes revelações de Nhanderu de que algo benévolo que poderá acontecer; anunciam-lhes gestações em curso, dentre outras coisas. Ainda que tais experiências não resultem em saberes e poderes, é importante mencionar que pela alegria que produzem também são capazes de fazer com que as pessoas se fortaleçam. Quanto mais alegrias, mais fortes ficam e quanto mais fortes, mais capazes se tornam de se fazer durar nesta Terra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALMEIDA, Lígia Rodrigues. 2016. Estar em movimento é estar vivo. Territorialidade, pessoa e sonho entre famílias tupi guarani. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.
  • ALMEIDA, Lígia Rodrigues. 2016. “Os Tupi Guarani de Barão de Antonina (SP): a busca pela ‘terra boa’ e os processos de regularização fundiária”. In: DANAGA, Amanda Cristina; PEGGION, Edmundo Antônio. (Orgs). Povos Indígenas em São Paulo: novos olhares. São Carlos: Edufscar, pp.155-171
  • ALMEIDA, Lígia Rodrigues. 2011. Os Tupi Guarani de Barão de Antonina (SP): migração, território e identidade. São Carlos, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.
  • BARCELOS NETO, Aristóteles. 2008. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo: Edusp.
  • BILHAUT, Anne-Gaël. 2003. “...Sonãr, recordar y vivir con eso”. Estudos Atacamenõs, vol. 26: 61-70. DOI 10.4067/S0718-10432003002600007
    » https://doi.org/10.4067/S0718-10432003002600007
  • DANAGA, Amanda Cristina. 2012. Os tupi, os mbya e os outros: um estudo etnográfico da aldeia renascer Ywyty Guaçu, São Carlos, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.
  • DESCOLA, Philippe. 2006. As lanças do crepúsculo. São Paulo: Cosac & Naify.
  • DESCOLA, Philippe. 1989. Head Shrinkers Versus Shrinks: Jivaroan Dream Analysis. Man, vol. 24, n.3: 439-450. DOI 10.2307/2802700
    » https://doi.org/10.2307/2802700
  • FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp .
  • GALLOIS, Dominique Tilkin. 1996 [1988]. O Movimento na cosmologia Wajãpi: criação, expansão e transformação do universo. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.
  • GOLÇALVES, Marco Antônio. 2001. O mundo inacabado. Ação e criação em uma cosmologia amazônica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
  • HEURICH, Guilherme. 2011. Outras Alegrias: parentesco e festas mbya. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • KRACKE. Waud. 1999. “A language of dreaming: dreams of an Amazonian insomniac”. International Journal of Psycho-analysis, (pt 2): 257-271. DOI: 10.1516/0020757991598701
    » https://doi.org/10.1516/0020757991598701
  • LADEIRA, Maria Inês.2007. “O caminhar sob a Luz”: O território Mbyá à beira do oceano. São Paulo: Editora Unesp.
  • LANGDON, Jean.1999. Representações do poder xamanístico nas narrativas dos sonhos Siona. Ilha Revista de Antropologia, vol. 1, n. 1: 3556.
  • LAGROU, Elsje. 1998. Caminhos, Duplos e Corpos. Uma abordagem perspectivista da identidade e alteridade entre os Kaxinawa, São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.
  • LIMA, Tânia Stolze. 2000. Que é um corpo? In: Seminário “Sociedade Civil: O que há de novo?” ISER-30 anos, 1-11. Disponível em Disponível em https://www.academia.edu/31501521/Lima_O_que_e_ um_corpo acesso em 23 de agosto de 2021.
    » https://www.academia.edu/31501521/Lima_O_que_e_ um_corpo
  • LOLLI, Pedro. 2012. “Cada um de nós é vários, é uma prolixidade de si mesmos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n. 05), pp. 228246. (mimeo)
  • MACEDO, Valéria. 2013. De encontro nos corpos Guarani. Ilha Revista de Antropologia . Vol. 15, n.2: 181-210. DOI 10.5007/2175-8034.2013v15n1-2p180
    » https://doi.org/10.5007/2175-8034.2013v15n1-2p180
  • MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo)
  • MAINARDI, Camila. 2015. Desfazer e refazer coletivos - o movimento tupi guarani. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.
  • MAINARDI, Camila. 2010. Construindo proximidades e distanciamentos. Etnografia da Terra Indígena Tupi Guarani Piaçagüera/SP, São Carlos, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.
  • MELLO, Flavia Cristina. 2006. Aetchá Nhanderukuery Karai retarã. Entre Deuses e Animais: Xamanismo, Parentesco e Transformação entre os Chiripá e Mbyá Guarani, Florianópolis, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.
  • MONTARDO, Deise. 2009. Através do mbaraka. Música, dança e xamanismo guarani. São Paulo: Edusp .
  • NIMUENDAJU, Curt. 1987. As lendas de criação de destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani. São Paulo: Hucitec - Edusp.
  • OAKDALE, Suzanne. 2005. I foresee my life: the ritual performance of autobiography in an Amazonian community. Lincoln: The University of Nebraska Press.
  • OLIVEIRA, Vera Lúcia de. 2004. “Aecha ra’u: vi em sonho. História e Memória Guarani Mbyá”. Tellus, vol. 4, n.7: 59-72. DOI 10.20435/tellus.v0i7.86
    » https://doi.org/10.20435/tellus.v0i7.86
  • PIERRI, Daniel. 2013. O percível e o imperecível lógica do sensível e corporalidade Guarani-Mbyá. São Paulo, Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo.
  • PISSOLATO, Elizabeth de Paula. 2007. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo Mbya (Guarani). São Paulo: Editora da UNESP.
  • RAMO Y AFFONSO, Ana. 2014. De pessoas e palavras entre os Guarani-Mbya. Tese, Niterói, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense.
  • RAMOS, Danilo Paiva. 2018. “A caminho da Cidade das Onças: diálogos sobre sonhos no percurso para a Serra Grande-Metrópole dos Hupd’äh”. Revista de Antropologia, vol. 61, n. 1: 329-359. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2018.145528
    » https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2018.145528
  • REFATTI, Denise. 2015. Os sonhos e os caminhos do nhe’e: uma etnografia da experiência onírica como fonte de conhecimento entre os AvaGuarani de Ocoy. Florianópolis, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.
  • SANTOS, Júlia Otero dos. 2010. Vagares da alma: elaborações ameríndias acerca do sonhar. Brasília, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade de Brasília.
  • SANTOS-GRANERO, Fernando. 2006. Vitalidades sensuais. Modos não corpóreos de sentir e conhecer na Amazônia indígena. Revista de Antropologia , vol. 49, n.1: 93-131. DOI 10.1590/S0034-77012006000100004
    » https://doi.org/10.1590/S0034-77012006000100004
  • SCHADEN, Egon. 1954. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. Boletim 188, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Antropologia n.º 4. São Paulo: Universidade de São Paulo.
  • SHIRATORI, Karen G. 2013. O acontecimento Onírico Ameríndio. O tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • TESTA, Adriana. 2014. Caminhos de saberes Guarani-Mbya: modos de criar, crescer e comunicar. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.
  • TESTA, Adriana. 2012. “Caminhos de Criação e Circulação de Saberes”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp. 167-185. (mimeo)
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify , pp.345-399.
  • Este artigo originou-se da pesquisa de doutorado (2012-2016) que resultou na tese intitulada “Estar em movimento é estar vivo. Territorialidade, pessoa e sonho entre famílias tupi guarani” defendida no ano de 2016 no programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da FFLCH/USP, e que contou com a orientação da Profa. Dra. Dominique Tilkin Gallois, e com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
  • 2
    Quando fazem referências aos parentes antigos, ou simplesmente antigos, abarcam uma multiplicidade de pessoas, desde avós, bisavós com quem convivem ou já conviveram, até pessoas que, falecidas, não chegaram a conhecer, mas das quais conhecem as histórias. E por isso, há casos de jari ou xeramoi (avós e avôs), pessoas mais velhas ainda vivas e que, em suas formulações, detém muita sabedoria, que também são considerados antigos, ainda que o uso do termo seja mais frequente ao se referirem aqueles que já faleceram. Certa vez D. Juraci, anciã da aldeia, contou-me que era comum em Laranjinha (PR), ouvir a noite, na beira do rio, o som dos antigos, os quais ela denominava na língua tupi de nhanderey’i, e que traduziu como nossos parentes denominados também, em alguns contextos, de nossos antepassados.
  • 3
    Destaco que ao me referir ao tronco linguístico Tupi-Guarani farei uso do hífen, tal qual fazem meus interlocutores, com intuito de diferenciá-lo de sua autodenominação Tupi Guarani.
  • 4
    Sobre o termo nhandeva é possível consultar os trabalhos de Nimuendaju (1987 [1914]NIMUENDAJU, Curt. 1987. As lendas de criação de destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani. São Paulo: Hucitec - Edusp.), Schaden (1954SCHADEN, Egon. 1954. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. Boletim 188, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Antropologia n.º 4. São Paulo: Universidade de São Paulo.), Mello (2006MELLO, Flavia Cristina. 2006. Aetchá Nhanderukuery Karai retarã. Entre Deuses e Animais: Xamanismo, Parentesco e Transformação entre os Chiripá e Mbyá Guarani, Florianópolis, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.), Ladeira (2007LADEIRA, Maria Inês.2007. “O caminhar sob a Luz”: O território Mbyá à beira do oceano. São Paulo: Editora Unesp.), Macedo (2009), Almeida (2011ALMEIDA, Lígia Rodrigues. 2011. Os Tupi Guarani de Barão de Antonina (SP): migração, território e identidade. São Carlos, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.), Danaga (2012DANAGA, Amanda Cristina. 2012. Os tupi, os mbya e os outros: um estudo etnográfico da aldeia renascer Ywyty Guaçu, São Carlos, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.), dentre outros. Para mais informações a respeito da noção de mistura entre os Tupi Guarani, conferir os trabalhos de Mainardi (2010MAINARDI, Camila. 2010. Construindo proximidades e distanciamentos. Etnografia da Terra Indígena Tupi Guarani Piaçagüera/SP, São Carlos, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.; 2015MAINARDI, Camila. 2015. Desfazer e refazer coletivos - o movimento tupi guarani. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.); Almeida (2011ALMEIDA, Lígia Rodrigues. 2011. Os Tupi Guarani de Barão de Antonina (SP): migração, território e identidade. São Carlos, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.; 2016ALMEIDA, Lígia Rodrigues. 2016. “Os Tupi Guarani de Barão de Antonina (SP): a busca pela ‘terra boa’ e os processos de regularização fundiária”. In: DANAGA, Amanda Cristina; PEGGION, Edmundo Antônio. (Orgs). Povos Indígenas em São Paulo: novos olhares. São Carlos: Edufscar, pp.155-171) e Danaga (2012DANAGA, Amanda Cristina. 2012. Os tupi, os mbya e os outros: um estudo etnográfico da aldeia renascer Ywyty Guaçu, São Carlos, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos.).
  • 5
    As famílias tupi guarani utilizam a expressão irmãos de fé para se referirem aos indígenas e não indígenas frequentadores da Congregação Cristã no Brasil (CCB). Havendo uma igreja da CCB localizada na aldeia Karugwá.
  • 6
    Sobre as viagens da alma, é corrente na literatura americanista os sonhos serem tratados como uma espécie de “vagar da alma/ espírito”, havendo vários trabalhos entre povos ameríndios distintos que discutem a esse respeito como, por exemplo, Gallois (1988GALLOIS, Dominique Tilkin. 1996 [1988]. O Movimento na cosmologia Wajãpi: criação, expansão e transformação do universo. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.) junto aos Waijãpi, Descola (1989DESCOLA, Philippe. 1989. Head Shrinkers Versus Shrinks: Jivaroan Dream Analysis. Man, vol. 24, n.3: 439-450. DOI 10.2307/2802700
    https://doi.org/10.2307/2802700...
    ) entre os Achuar, Fausto (2001FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp .), sobre os Parakanã e Santos-Granero (2006SANTOS-GRANERO, Fernando. 2006. Vitalidades sensuais. Modos não corpóreos de sentir e conhecer na Amazônia indígena. Revista de Antropologia , vol. 49, n.1: 93-131. DOI 10.1590/S0034-77012006000100004
    https://doi.org/10.1590/S0034-7701200600...
    ), entre os Yanesha. Todavia, não pretendo retomá-los aqui, nem haveria espaço para tanto, razão pela qual optei por me ater às formulações de meus interlocutores tupi guarani a respeito de seus sonhos.
  • 7
    As discussões referentes à composição da pessoa Guarani são extensas e não tenho aqui a pretensão de retomá-las, para uma discussão mais ampla a esse respeito consultar os trabalhos de Mello (2006MELLO, Flavia Cristina. 2006. Aetchá Nhanderukuery Karai retarã. Entre Deuses e Animais: Xamanismo, Parentesco e Transformação entre os Chiripá e Mbyá Guarani, Florianópolis, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.), Pissolato (2007PISSOLATO, Elizabeth de Paula. 2007. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo Mbya (Guarani). São Paulo: Editora da UNESP.), Macedo (2009), Pierri (2013PIERRI, Daniel. 2013. O percível e o imperecível lógica do sensível e corporalidade Guarani-Mbyá. São Paulo, Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo.), Ramo y Affonso (2014RAMO Y AFFONSO, Ana. 2014. De pessoas e palavras entre os Guarani-Mbya. Tese, Niterói, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense.), Testa (2014TESTA, Adriana. 2014. Caminhos de saberes Guarani-Mbya: modos de criar, crescer e comunicar. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.), dentre outros. Sobre as famílias tupi guarani, acerca das quais discorro neste trabalho, consultar: Almeida, 2016aALMEIDA, Lígia Rodrigues. 2016. Estar em movimento é estar vivo. Territorialidade, pessoa e sonho entre famílias tupi guarani. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo..
  • 8
    Macedo (2012MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo): 188), ao discutir a respeito do nhe’e entre alguns Guarani em São Paulo e partindo das discussões de Espinosa, define afeto como uma força de existir, uma potência de agir, “[...] dada pela configuração relacional que singulariza cada corpo”. Enquanto afecção remete ao efeito de um corpo sobre outro, que pode maximizar ou destruir essa potência de agir. E por isso, na medida em que investe cada Guarani de uma potência de agir, que autora afirma que o nhe’e se constitui como um “corpo-afeto, um afeto alegria que é também uma capacidade singular de falar, de agir e de conhecer” (Macedo, 2012MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo): 188). Segundo Macedo, tudo que tem vida tem nhe’e, e esse, como “corpo- afeto”, é parte de “[...] uma cartografia relacional que envolve outros corpos-afetos, numa rede de afecções dentro e fora dos corpos de cada Guarani” (Macedo, 2012MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo): 190). Onde o próprio nhe’e possui uma corporeidade imanente, “são corpos invisíveis [...] aos olhos humanos, habitando e transitando, dentro e fora dos corpos dos Guarani” (Macedo, 2012MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo): 188).
  • 9
    Conforme me explicou Marcílio, filho de D. Juraci, há várias Terras ou vários céus, os quais são ocupados e se dividem entre os Tupi Guarani, outros indígenas e não indígenas. Dentre as mais mencionadas tem-se: Ywy Marangatu (Terra Sagrada) de onde vêm as almas das pessoas, Ywy Marãe´y, (Terra sem Males/ Terra Iluminada) para onde os antigos eram capazes de subir de corpo e alma, e as várias Terras dos mortos, para onde as pessoas que morrem vão até que optem por retornar a esse patamar terrestre. Entretanto, são mais frequentes as referências a elas de maneira genérica como “outras Terras”.
  • 10
    São comuns nas conversas entre as famílias Tupi Guarani as referências à sabedoria dos mais velhos e seu poder de aconselhar (-mongeta) os mais novos. Dessa forma, os aconselhamentos costumam percorrer alguns caminhos pré-definidos, ou seja, partem habitualmente dos mais velhos e se dirigem, sobretudo, aos jovens (crianças e adolescente), ainda que os adultos também sejam aconselhados. O que varia ao logo desses caminhos são as pessoas envolvidas, visto que é a proximidade entre as pessoas que vai determinar quem emite as falas aconselhadoras e os sujeitos que as recebem. Importante destacar, da mesma forma que aponta Testa (2014TESTA, Adriana. 2014. Caminhos de saberes Guarani-Mbya: modos de criar, crescer e comunicar. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.) que os aconselhamentos se constituem enquanto a comunicação de “[...] modos específicos de agir e viver que consideram porã (bons, tanto em termos éticos, como estéticos)” e por isso os velhos utilizam para passá-los adiante as “ayvu porã (belas/boas palavras)” (Testa, 2014TESTA, Adriana. 2014. Caminhos de saberes Guarani-Mbya: modos de criar, crescer e comunicar. São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.: 181).
  • 11
    Tal descrição vem reforçar aquilo que Shiratori (2013SHIRATORI, Karen G. 2013. O acontecimento Onírico Ameríndio. O tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.) já havia afirmado, de que os sonhos não se limitam às suas interpretações, revelando-se “[...] imprescindível um segundo momento centrado na ação, seja para efetivar os sonhos, seja para desfazê-los” (Shiratori, 2013SHIRATORI, Karen G. 2013. O acontecimento Onírico Ameríndio. O tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 14). Ainda de acordo com Shiratori (2013SHIRATORI, Karen G. 2013. O acontecimento Onírico Ameríndio. O tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 103) a “[...] interpretação dos sonhos não consiste em produzir a inteligibilidade de um sentido oculto”, mas corrigir deformações perceptivas dos acontecimentos a fim de desmascarar as intenções de seus interlocutores oníricos, e “uma forma de manipular a ordem dos eventos” (Shiratori, 2013SHIRATORI, Karen G. 2013. O acontecimento Onírico Ameríndio. O tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 69).
  • 12
    Ainda sobre as marcas e os saberes que incidem nos corpos, lembro, por exemplo, das discussões de Barcelos Neto (2008BARCELOS NETO, Aristóteles. 2008. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo: Edusp.) ao tratar dos sonhos Waujá, entre os quais afirma “[...] não existe uma oposição entre corpo e alma e sim uma “composição” ou, melhor dito, uma multiplicação fractal dos pontos de vista e da consciência; há, com frequência, a possibilidade de o corpo recuperar os conhecimentos apreendidos pelas fracções-alma”. E assim, os sonhos se fazem visíveis nos corpos, e o corpo “é a matriz visual absoluta da alma” (Barcelos Neto, 2008BARCELOS NETO, Aristóteles. 2008. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo: Edusp.: 82; 107). Como discute Ramo y Affonso (2014RAMO Y AFFONSO, Ana. 2014. De pessoas e palavras entre os Guarani-Mbya. Tese, Niterói, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense.) entre alguns Guarani, em que “[...] tanto o nhe’e como o ã, replicam os seus atos nos corpos das pessoas, sendo que os corpos das pessoas são efeitos da socialidade de seus duplos, dos atos pelos quais se relacionam alhures, principalmente durante o sonho (mais uma vez, o que eles comeram, com quem andaram, com quem tiveram relações sexuais, como veremos). Em certo sentido, os corpos são também a replicação com variação, a atualização e a contra- efetuação do que os duplos fazem, daqueles atos que constituem as suas relações: o corpo como imagem de seus duplos, como ‘substantivization of theintersubjectivity’ à maneira do wakan dos Jivaro (Taylor, 1996: 206) - só que neste caso é a intersubjetividade dos duplos que substantiviza (Ramo y Affonso, 2014RAMO Y AFFONSO, Ana. 2014. De pessoas e palavras entre os Guarani-Mbya. Tese, Niterói, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense.: 177).” Ou então, como apresenta Oakdale (2005OAKDALE, Suzanne. 2005. I foresee my life: the ritual performance of autobiography in an Amazonian community. Lincoln: The University of Nebraska Press.: 170), que afirma que apesar de os xamãs Kayabi deixarem seus corpos em suas viagens realizadas para as aldeias dos espíritos durante o sonho, carregam as marcas dessas aventuras em seus corpos físicos.
  • 13
    Ainda que trate de temáticas distintas lembro aqui do trabalho de Danilo Paiva Ramos (2018RAMOS, Danilo Paiva. 2018. “A caminho da Cidade das Onças: diálogos sobre sonhos no percurso para a Serra Grande-Metrópole dos Hupd’äh”. Revista de Antropologia, vol. 61, n. 1: 329-359. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2018.145528
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    ) sobre as interações verbais de viajantes Hupd’äh sobre os sonhos e as situações do percurso e o modo como estão emaranhadas àquelas vividas oniricamente.
  • 14
    Sobre a possibilidade de refazer os caminhos percorridos pelo xamã ao escutar os mborei, e as explicações das famílias tupi guarani sobre o ato de conhecer como um caminhar, lembro-me das discussões de Lolli (2012LOLLI, Pedro. 2012. “Cada um de nós é vários, é uma prolixidade de si mesmos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n. 05), pp. 228246. (mimeo)) a respeito das narrativas míticas e sua audiência, e de suas afirmativas de que: “[...] O conhecimento que essas narrativas míticas transmitem não pode ser apenas mentalmente registrado: as pessoas devem seguir literalmente os caminhos de seus ancestrais. A memória dessas trajetórias se reaviva na medida em que as pessoas seguem os mesmos caminhos percorridos pelas narrativas. A pessoa aprende ao passo que percorre os caminhos de seus antecessores. O conhecimento encontra-se distribuído entre a narrativa mítica e o ambiente. Essa relação sugere que embora a linguagem seja condição necessária para que um conhecimento seja transmitido, não é suficiente. É viajando que as pessoas adquirem conhecimento, seja para outros planos através do pensamento, seja no plano terrestre” (Lolli, 2012LOLLI, Pedro. 2012. “Cada um de nós é vários, é uma prolixidade de si mesmos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n. 05), pp. 228246. (mimeo): 245).
  • 15
    De maneira similar Refatti (2015REFATTI, Denise. 2015. Os sonhos e os caminhos do nhe’e: uma etnografia da experiência onírica como fonte de conhecimento entre os AvaGuarani de Ocoy. Florianópolis, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.) afirma que os sonhos das crianças entre os Ava-Guarani são mais fortes que os sonhos dos adultos devido a sua conexão mais próxima as divindades. Declarações próximas ao que apresenta Mello (2006MELLO, Flavia Cristina. 2006. Aetchá Nhanderukuery Karai retarã. Entre Deuses e Animais: Xamanismo, Parentesco e Transformação entre os Chiripá e Mbyá Guarani, Florianópolis, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.: 249) quando afirma que “[...] os sonhos das crianças despertam interesse especial. As crianças (kuringue) têm faculdades ou canais de comunicação com outros planos mais eficientes que os dos adultos. Seus nhe´e acabaram de chegar a essa terra” (Mello, 2006MELLO, Flavia Cristina. 2006. Aetchá Nhanderukuery Karai retarã. Entre Deuses e Animais: Xamanismo, Parentesco e Transformação entre os Chiripá e Mbyá Guarani, Florianópolis, Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.: 249). O que parece ocorrer entre meus interlocutores, que temem pelos sonhos das crianças e afirmam se tratar de eventos sem importância, só sonhos, justamente pelas possibilidades e perigos que eles apresentam ao sonhador que ainda, como discuti anteriormente, não tem seus espíritos acostumados completamente a este mundo.
  • 16
    Ainda que meus interlocutores não estejam se referindo às histórias de -jepota ao utilizarem tal expressão, a noção de impor respeito me remete aqui ao trabalho de Macedo (2009, 2012MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo)) e Heurich (2011HEURICH, Guilherme. 2011. Outras Alegrias: parentesco e festas mbya. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.) que a abordam como uma forma de impor uma perspectiva, um outro corpo. Segundo Macedo (2012MACEDO, Valéria. 2012. “Jepota entre os Guarani. Tramas de quereres e corpos”. In: PERRONE-MOISÉS, Beatriz; GALLOIS, Dominique. (Coord.) Projeto Temático Redes Ameríndias (Relatório Científico, n.05), pp.186202. (mimeo): 199) quando alguém ojepota, explicam que um dono animal impôs respeito. Nas palavras de Heurich (2011HEURICH, Guilherme. 2011. Outras Alegrias: parentesco e festas mbya. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.) “[...] impor a perspectiva é, para os Mbya, uma maneira de impor respeito” (Heurich, 2011HEURICH, Guilherme. 2011. Outras Alegrias: parentesco e festas mbya. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 28) E mais adiante, ao tratar de uma sessão xamânica para trazer de volta alguém que estava jepota o autor continua “[...] Impor respeito, impor um corpo: formas de ser e agir, assim como modificação no que transparece enquanto visível dessa forma corporal” (Heurich, 2011HEURICH, Guilherme. 2011. Outras Alegrias: parentesco e festas mbya. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 50). E assim, nesse caso que fora apresentado entre essas famílias tupi guarani, suponho que impor respeito signifique conseguir manter-se, tal qual se apresenta na vida desperta, em sua perspectiva- corpo; não havendo de se transformar em outra coisa. Lembrando aqui, do que fora apresentado anteriormente, a respeito da possibilidade de uma pessoa de espiritual fortalecido ser capaz de se apresentar como se apresenta em sua vida desperta, e o fato de conseguir passar por provações dessa maneira, impondo respeito, faz dela ainda mais forte.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica
  • FINANCIMANTO:

    CAPES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2021
  • Aceito
    17 Jun 2021
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com