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Os limites do conceito de reparação de Klein e a antropofagia lacaniana na arte contemporânea

The limits of Klein’s concept of reparation and the Lacanian anthropophagy in contemporary art

L’anthropophagie lacanienne et les limites du concept de réparation de Klein dans l’art contemporain

Los límites del concepto de reparación de Klein y la antropofagia lacaniana en el arte contemporáneo

Resumo

Este texto tem como objetivo problematizar as elaborações teóricas de Melanie Klein acerca do conceito de reparação, dando destaque a Mignon Nixon, comentadora de suas obras na interface com a arte contemporânea. Esta historiadora compreende que, na atualidade, é necessária uma antropofagia dos conceitos focados no registro simbólico de Lacan, isto é, uma crítica de sua obra por meio do retorno às teorizações de Klein no âmbito da arte. Este retorno a Klein, apoiado na crítica do que seria o ensino de Lacan, suscita questões e exige uma reflexão cuidadosa. Conforme pretendemos indicar neste artigo, tal proposta cria ruídos e um impasse no interior de seu próprio corpo teórico, sobretudo no que concerne à criação vinculada à reparação. Além disso, buscaremos indicar eixos teóricos presentes em Lacan, como o da pulsão de morte, o gozo e a lalíngua, que poderiam fazer face às questões levantadas por Nixon.

Palavras-chave:
Klein; Lacan; Nixon; arte; reparação

Abstract

This article discusses Klein’s theoretical elaborations on reparation, especially Mignon Nixon, a critique of his works in the field of contemporary art. Nixon understands that, today, an anthropophagy of the concepts focused on Lacan’s symbolic register is needed, in other words, it is a critique of his own work by returning Klein’s theorizations to the field of art. This return to Klein based on criticism of Lacan’s teaching raises questions and demands careful reflection. As we intend to indicate in this article, such a proposal creates problems and a deadlock within its own theoretical framework, especially with regard to creation linked to reparation. In addition, we try to indicate theoretical aspects present in Lacan, such as the death drive, jouissance, lalangue, that could address the issues raised by Nixon.

Keywords:
Klein; Lacan; Nixon; art; reparation

Résumé

Ce texte a pour objectif problématiser les élaborations théoriques de Klein sur la réparation, mettant en évidence Mignon Nixon, commentatrice de ses œuvres d’art dans l’interface avec l’art contemporain. Cette historienne comprend qu’actuellement, on a besoin d’une anthropophagie des concepts centrés sur le registre symbolique de Lacan, c’est-à-dire, une critique de son œuvre par le retour aux théories de Klein dans le domaine de l’art. Ce retour à Klein, basé sur la critique dirigée de ce que serait l’enseignement de Lacan, suscite de questionnements et exige une certaine réflexion. Selon ce que nous voulons montrer dans cet article, une telle proposition dérange et crée une impasse au sein de son propre corps théorique, notamment en ce qui concerne la création liée à la réparation. D’autre part, nous chercherons à indiquer des axes théoriques présents dans Lacan, tels que la pulsion de mort, la jouissance et la langue, qui pourraient faire face aux questionnements de Nixon.

Mots-clés:
Klein; Lacan; Nixon; art; réparation

Resumen

Este texto tiene como objetivo problematizar las elaboraciones teóricas de Klein sobre el concepto de reparación, destacándose a Mignon Nixon, quien comenta sus obras en el contexto del arte contemporáneo. Esta historiadora entiende que, en la actualidad, es necesaria una antropofagia de los conceptos centrados en el registro simbólico de Lacan, es decir, una crítica de su obra por medio del retorno a las teorizaciones de Klein en el contexto del arte. Este retorno a Klein, apoyado en la crítica dirigida a la enseñanza de Lacan, suscita cuestiones y exige una reflexión cuidadosa. Conforme pretendemos indicar en el presente artículo, esa propuesta crea ruidos y un impase dentro de su propio cuerpo teórico, principalmente en lo que concierne a la creación vinculada a la reparación. Además, buscaremos indicar las bases teóricas presentes en Lacan, como la pulsion de muerte, goce, lalengua, que podrían hacer frente a las cuestiones planteadas por Nixon.

Palabras clave:
Klein; Lacan; Nixon; arte; reparación

Problemáticas do retorno a Klein por Nixon

Quando eu tiver encontrado o alojamento da deusa, sem dúvida me transformarei em cervo, e vocês poderão me devorar.

(Lacan, 1964\2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964. Rio de Janeiro, RJ: Zahar ., p. 185)

Este texto busca descrever e problematizar as elaborações teóricas de Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) acerca da arte, bem como as leituras contemporâneas desenvolvidas a partir de sua obra, dando destaque a Mignon Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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). Com este intuito, retornamos às principais construções teóricas de Klein no que se refere a sua postura diante da arte, para interrogar em que medida elas poderiam funcionar como instrumento para pensar os desafios impostos pela arte contemporânea. Traçamos este caminho de ida a Klein por meio de seus conceitos principais, na medida em que a psicanalista abre possibilidades de leitura da arte por meio de seu conceito clínico de reparação, empreendimento que encontra limites, sobretudo no que tange a certas produções da arte contemporânea.

Entre os autores que propuseram fazer uma leitura do uso de Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) no âmbito da arte contemporânea está Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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). Esta historiadora da arte compreende que um recorte específico da reflexão feminista e da prática artística, inspirado na psicanálise lacaniana, no período entre 1970 a 19801 1 Nosso objetivo com a apresentação desse recorte da autora é questionar o modo como a psicanálise é introduzida no contexto empregado, e não questionar ou discutir este recorte. Importante notar que esta mudança de temática entre prazer e ódio é um delineamento sublinhado por Nixon e que, entretanto, existem outros bem diferentes, como o de Amelia Jones em Body Art: performing the subject, de 1998. , deu ensejo a uma leitura que privilegiou preponderantemente as temáticas do desejo e do prazer em detrimento de temas como o ódio e a agressão. Destacamos que a crítica dirigida a este enfoque não se restringe apenas ao pensamento da autora. Outros, como Jackeline Rose (1988Rose, J. (1988). Sexuality and vision: some questions. In H. Foster (Ed.), Vision and visuality (pp. 115-130). Seattle: Bay Press.) e Kobena Mercer (1994Mercer, K. (1994). Fear of the black penis. Artforum, 32(8), 80. Recuperado de https://bit.ly/2U12ocw
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), refletem sobre esse aspecto nos campos da psicanálise, dos estudos culturais e das artes. Citando Mercer (1994Mercer, K. (1994). Fear of the black penis. Artforum, 32(8), 80. Recuperado de https://bit.ly/2U12ocw
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), Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) escreve: “Não há escassez de estudos centrados no prazer e no desejo, mas onde estão as análises da dor e do ódio como estruturas cotidianas dos sentimentos?” (p. 72, tradução nossa). Isto é, segundo Nixon, proliferaram-se no meio da reflexão estética e das práticas artísticas da década de 1980 abordagens influenciadas pelo ensino de Lacan (1953-1954\1986Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) em decorrência das quais as leituras das obras de arte se centraram, sobretudo nas temáticas do desejo e do prazer em detrimento a questões emblemáticas como o ódio e a agressão. Esse enfoque no desejo e no prazer, apoiado em leituras lacanianas, tem sido criticado por alguns historiadores e pensadores da arte que utilizam como alternativa e ferramenta crítica o referencial teórico kleiniano: “o modelo kleiniano tem sido recentemente usado e empregado criticamente por um número de artistas em relação aos trabalhos baseados em Lacan de 1970 e 80” (Nixon, 1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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, p. 75, tradução nossa). Para poder falar do ódio, portanto, Nixon propõe um retorno a Klein, apoiado no que ela e Jacobus (1990Jacobus, M. (1990). “Tea daddy”: Poor Mrs Klein and the pencil shavings. Women: A Cultural Review, 1(2), 160-179. doi: 10.1080/09574049008578036
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) se referem a uma antropofagia de Lacan: “como melhor representar este desejo canibalístico de comer Lacan, comendo suas palavras, se não por meio do retorno a Klein?” (Nixon, 1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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, p. 72, tradução nossa). É por meio dessa estratégia que Nixon examina algumas produções artísticas feministas contemporâneas, como as de Rona Pondick, Louise Bourgeois e Janine Antoni.

Este retorno a Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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), apoiado na antropofagia crítica do que viria a ser o corpo teórico lacaniano, suscita questões e exige uma reflexão que pretendemos desenvolver neste artigo. Para autores como Jacobus (1990Jacobus, M. (1990). “Tea daddy”: Poor Mrs Klein and the pencil shavings. Women: A Cultural Review, 1(2), 160-179. doi: 10.1080/09574049008578036
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), esse retorno às teorizações de Klein poderia ser lido como uma espécie de regressão, ou seja, uma mudança das investigações pautadas nas teorias pós-estruturalistas que se assentam sobre o significante e na diferença sexual, em direção a uma concepção que seria mais essencialista do corpo. Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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), por sua vez, entende esse movimento não propriamente como uma regressão, e sim como um reposicionamento ou uma crítica às abordagens feministas de inspiração psicanalítica lacaniana que marcaram a leitura de tais trabalhos nos anos 1970 e 1980. Conforme pretendemos desenvolver apoiados em considerações recentes de Abella (2010Abella, A. (2010). Contemporary art and Hanna Segal’s thinking on aesthetics. The International Journal of Psychoanalysis, 91(1), 163-181. doi: 10.1111/j.1745-8315.2009.00203.x
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, 2016Abella, A. (2016). Psychoanalysis and the arts: the slippery ground of applied analysis. The Psychoanalytic Quarterly, 85(1), 89-119. doi: 10.1002/psaq.12059
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), este reposicionamento cria ruídos no interior do próprio corpo teórico kleiniano. Nesse sentido, este texto apontará algumas limitações quanto ao poder de leitura do conceito de reparação e frisará possíveis elementos do aparato teórico lacaniano que não foram postos em jogo no campo de questões elencadas por Nixon.

Posição depressiva e reparação

Em 1929, Klein apresenta seu artigo “Situações de ansiedade infantil refletidas numa obra de arte e no impulso criador”. A obra é lançada na International Journal of Psychoanalysis e se constitui como um prólogo às teorizações estéticas seguintes na comunidade de analistas britânicos. Por se tratar do primeiro esforço em associar o conceito de reparação às obras de arte, o artigo é considerado de valor histórico. Assim, em ordem de compreender a força desse conceito atrelado ao universo artístico, será necessária uma breve digressão a respeito da trajetória teórica anterior de Klein.

Para Glover (2009Glover, N. (2009). Psychoanalytic aesthetics: an introduction to the British school. London: Karnac Books.), o percurso de Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) pode ser dividido em três momentos: a primeira parte vai de 1921 a 1932, com a fundação da análise de crianças; a segunda parte se concentra na formulação da posição depressiva (1934 - 1940); e a terceira, na posição esquizo-paranoide (1940 em diante). No prelúdio dessas formulações teóricas, a fantasia infantil se constitui como um importante material para formular e descrever processos psíquicos profundos cuja origem remonta os primeiros meses de vida. Diferente do ego elaborado por Freud (1920), que surge como consequência do Id, Klein (1952Klein, M. (1952). La influencia mutua en el desarrollo del yo y el ello. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) formula um ego arcaico presente na criança que é capaz de experimentar o trauma do nascimento e viver a pulsão de morte:

Diferencio-me de Freud pois postulo a hipótese de que a causa primária da angustia é o medo da aniquilação, o medo da morte, que surge pela ação da pulsão de morte dentro de nós. A luta entre as pulsões de vida e de morte emana do id e envolve o ego. O temor primordial de ser aniquilado força o ego à ação e engendra as primeiras defesas. (p. 1, tradução nossa)

Esse ego viverá estas experiências de modo tão intenso, que terá de criar mecanismos para lidar com a realidade:

Tenho sustentado durante muitos anos o ponto de vista expresso em meu livro, Psicanálise de Crianças (1932), de que o ego funciona desde o começo e que entre suas primeiras atividades está a de defesa contra a angústia, a utilização de processos como a introjeção e projeção. (Klein, 1952Klein, M. (1952). La influencia mutua en el desarrollo del yo y el ello. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 1, tradução nossa)

Em outra passagem: “Tenho defendido repetidamente, além disso, que o eu estabelece relações de objeto a partir dos seus primeiros contatos com o mundo externo” (Klein, 1952Klein, M. (1952). La influencia mutua en el desarrollo del yo y el ello. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 1, tradução nossa). Quanto a essas relações, Klein postula a existência de um coeficiente de agressão provindo da pulsão de morte dirigido ao corpo da mãe e aos objetos (seio, fezes, leite, outras crianças). Por meio da projeção da agressividade, estes assumem na fantasia uma postura agressiva e se voltam contra a criança. A criança, por sua vez, fantasia que esses objetos irão destruí-la, persegui-la, engoli-la com a mesma carga de agressividade sádica com que ela se relaciona com o corpo da mãe. Essas experiências provocadas pela prevalência da pulsão de morte produzem uma ansiedade tamanha que a criança terá de recorrer a mecanismos de defesa teorizados inicialmente, como cisão (seio bom e seio mau), projeção e idealização. O uso maciço desses mecanismos de defesa é característico da posição que será chamada de esquizo-paranoide.

Em contraste, nos primeiros cinco anos de vida surge a posição depressiva, que é a reconstrução da realidade objetal em sua completude, acompanhada do sentimento de perda do objeto bom:

Disse que a criança experimenta sentimentos depressivos que chegam a sua culminação antes, durante e depois do desmame. Este é um estado mental na criança que denomino “posição depressiva” e que sugiro que seja uma melancolia em estado nascente. O objeto do duelo é o peito da mãe e tudo o que o peito e o leite chegaram a ser na mente da criança: amor, bondade e segurança. A criança sente que perdeu tudo isso e que está perdida como resultado de sua incontrolável voracidade e de suas próprias fantasias e impulsos destrutivos contra o peito da mãe. (Klein, 1940Klein, M. (1940). El duelo y su relación con los estados maníaco-depresivos. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 2, tradução nossa)

A posição depressiva coloca em marcha o desejo de restaurar, que pode se tornar criatividade e sublimação. Essa realidade ocorre com a percepção de sua própria agressão e o sentimento de remorso diante dela, algo que fundará a totalidade de seu ego. Essas formulações específicas nascem em 1935Klein, M. (1935). Contribucion a la psicogénesis de los estados maniaco-depresivos. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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com Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos e são concluídas com Notas sobre alguns mecanismos esquizoides, de 1946. Será nesse período que o conceito de reparação será desenvolvido como passagem da posição esquizo-paranoide (Ps) para a posição depressiva (D): “Eu descrevi este período primeiro como ‘fase persecutória’ e logo como ‘posição paranoide’ (posição esquizo-paranoide), e assegurei que esta precede a posição depressiva” (Klein, 1946Klein, M. (1946). Notas sobre algunos mecanismos esquizoides. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 2, tradução nossa). A partir disso, a criança começa a externalizar talento, energia, amor e criatividade para reparar o objeto vítima de seu sadismo, o que contribui para a própria integração do seu ego: “o impulso a reparar e proteger o objeto danificado prepara o caminho para relações de objeto e sublimações mais satisfatórias, aumentando por sua vez a síntese e a integração do ego” (Klein, 1946Klein, M. (1946). Notas sobre algunos mecanismos esquizoides. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 15, tradução nossa).

A reparação é o que surge da relação agressiva e do remorso subsequente entre o ego infantil e os objetos do corpo materno, aquilo que se transforma em ímpeto criativo. Em 1927, com o texto Tendências criminosas em crianças normais, há uma tentativa de descrição da reparação como tendência reativa:

Mas essa manifestação de tendências primitivas é invariavelmente seguida por angústia e por relações que mostram como a criança trata, agora, de fazer o bem e de consertar o que havia feito. Às vezes trata de reparar os mesmos homens, trens etc., que acaba de quebrar. Às vezes desenhar, construir etc. expressam as mesmas tendências reativas. (Klein, 1927Klein, M. (1927). Tendencias criminales en niños normales. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 6, tradução nossa)

Entretanto o conceito só se tornará um processo nuclear na vida psíquica a partir de 1929, com o exame de duas obras: uma ópera de Ravel, A palavra mágica, escrita como libreto por Colette, e a narrativa de Karin Michaëlis, com o caso de Ruth Kjär. Insistimos na descrição destas duas obras, pois, de acordo com Klein, elas assinalam uma angústia que é mais primitiva que a castração e que vale tanto para tensões edípicas femininas quanto para masculinas (Falbo, 2010Falbo, G. (2010). O espaço vazio: reflexões sobre a função do vazio na cura psicanalítica e na arte. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 13(1), 109-120. doi: 10.1590/s1516-14982010000100008
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).

No libreto da ópera de Ravel, lida por Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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), a história gira em torno de uma criança cansada de estudar e frustrada com a dureza de sua mãe e que é levada por um ímpeto destrutivo a quebrar objetos da sua casa. Conta-nos Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) sobre o apelo da criança:

Não quero fazer as lições estúpidas. Quero passear no parque, eu quero comer todos os bolos do mundo, ou puxar o rabo do gato ou puxar as penas do papagaio, eu gostaria de repreender todos, mais do que tudo, eu gostaria de colocar mamãe no canto dela. (p. 1, tradução nossa)

Ao que sua mãe responde: “você terá pão seco e chá sem açúcar” (Klein, 1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 1, tradução nossa). Imediatamente, a criança se enfurece e, movida por essa fúria, quebra o copo e o bule da mesa, usa a pinça como arma, tenta furar um esquilo com sua caneta, rasga o papel de parede, bagunça o fogareiro etc. A respeito disso Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) sustenta: “Destruindo coisas, rasgando-as, usando a pinça como espada, isso representa as outras armas do sadismo da criança que usa seus dentes, unhas, músculos e daí por diante” (p. 2, tradução nossa).

Na sequência, para o horror do pequeno protagonista, aquilo que ele tratou de modo sádico ganha vida e se volta contra ele. A mesa, o sofá e a cadeira da casa se recusam a deixá-lo se sentar, dizendo: “para longe com esta criatura pequena e nojenta” (Klein, 1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 2, tradução nossa), o fogareiro cospe faíscas nele, objetos entram em diálogo em chinês e etc. O menino tenta escapar para o parque, mas por onde vai há forças ameaçadoras e hostis contra ele, forças que decorrem da projeção interna de seu mundo sádico. O mundo da criança vai se tornando cada vez mais estranho e terrível, na medida em que animais da floresta brigam entre si para ver quem a morderá primeiro. O terror termina quando ela percebe um esquilo machucado e, diante do pequeno animal, se compadece e tenta curá-lo. Ao dizer “mama” (a palavra mágica), o mundo da criança se restabelece, as criaturas ameaçadoras e os animais se tornam amigáveis e gentis.

Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) nos relata essa história no intuito de mostrar que existe uma posição psíquica da criança, independentemente de seu sexo, que é anterior à fase anal, que corresponde ao tempo do Édipo e se manifesta paradigmaticamente como sádica em relação ao corpo materno:

Meus resultados me levam a concluir que a fase em que o sadismo está em seu apogeu, em todos os campos dos quais deriva, precede a primeira fase anal e adquire uma significação especial do fato de que também é neste estádio que ocorrem pela primeira vez as tendências edípicas. (p. 3, tradução nossa)

Sucedendo ao sadismo - e só por meio dele -, a criança é capaz de sentir amor, simpatia e pena em relação a si própria e ao mundo, como demonstrado pela postura da criança em relação ao esquilo. Embora ainda não haja essas formulações no texto de 1929, podemos supor que o processo completo no qual a criança passa do sadismo para uma postura de cuidado e amor em relação aos objetos seria análogo à transição da posição esquizo-paranoide (Ps) para a posição depressiva (D). A percepção interna da agressão e do ataque destrutivo contra os objetos maternos atrelados à tentativa de reparação faz que a criança ascenda à completude do mundo e do seu ego. Isto é, o desejo pela vivência positiva com a figura protetora da mãe e o desaparecimento em parte de sua agressividade faz que a criança entre em contato com sua compaixão e amor (Vieira & Cintra, 2016Vieira, M., & Cintra, E. M. (2016). O trabalho criativo: perda, luto e metáfora. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 9(1), 50-66. Recuperado de https://bit.ly/2AzAhu6
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).

Após a análise da obra de Ravel, Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) inicia a descrição do artigo de Karin Michaëlis, “O espaço vazio”, que narra o desenvolvimento da artista sueca Ruth Kjär. Vemos, pela primeira vez, um link entre o processo de reparação e a atividade criativa propriamente dita. Ruth não possuía talento artístico, não que seja mencionado. Era uma mulher que estava passando por uma fase depressiva e desesperadora na vida, que, no meio de sua felicidade, se irrompia uma melancolia profunda e suicida. Citando Karin Michaëlis, Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) descreve: “se ela pudesse se aperceber quanto a isso, ela provavelmente diria: ‘há um espaço vazio em mim, que eu nunca consigo preencher’” (p. 3, tradução nossa). Desse modo, ambas as autoras concordam que Ruth possuía um “espaço vazio” semelhante a um abismo, que ela nunca foi capaz de preencher (Falbo, 2010Falbo, G. (2010). O espaço vazio: reflexões sobre a função do vazio na cura psicanalítica e na arte. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 13(1), 109-120. doi: 10.1590/s1516-14982010000100008
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). Esse estado piora quando uma pintura é removida da sala de estar de sua casa, fazendo Ruth encarar literalmente o vazio. Um dia após a remoção do quadro, Ruth decide comprar os materiais necessários para preencher aquele espaço: pretendia pintar algo em seu lugar, embora não tivesse a menor noção dos aspectos materiais e técnicos necessários. Segundo o texto, quando o marido de Ruth chegou em casa e deparou com a pintura de uma negra nua diretamente na parede, não acreditou que a esposa o havia feito, tamanha a habilidade e sensibilidade artística. A partir daí, inicia-se a trajetória de Ruth como artista, algo que ela não abandona até o final da vida.

Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) reflete sobre o significado do vazio para Ruth, descrevendo que este se refere a “algo faltando no próprio corpo” da artista (p. 4, tradução nossa). Associa essa falta ao que ela chamou, no artigo de 1928, “Estágios iniciais do conflito edipiano”, de ansiedade mais profunda experienciada por meninas, equivalente à ansiedade de castração nos meninos:

Sente essa falta como uma nova causa de ódio contra a mãe, mas, ao mesmo tempo, seu sentimento de culpa a faz ver como um castigo. Isso torna mais aguda sua frustração e, por sua vez, exerce uma profunda influência em todo o seu complexo de castração. (Klein, 1928Klein, M. (1928). Estadios tempranos del conflicto edípico. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 8, tradução nossa)

E não é só a maior ansiedade das meninas, como a maior de todas as ansiedades experimentadas. O desejo sádico de roubar todos os objetos bons do corpo da mãe, origina a ansiedade de que a mãe irá retaliar com a destruição do seu corpo. Mais tarde, a ansiedade se modifica e se torna ansiedade de perder a mãe amorosa, ansiedade de abandono.

Mais para o final do artigo, Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) inicia uma análise dos aspectos formais das pinturas de Ruth. Duas chamam atenção em particular: a de uma idosa e a da própria mãe. A primeira representa seu desejo sádico e arcaico de destruição da mãe, a segunda é descrita como uma imagem magnífica, imperiosa, de queixo e olhar fortes. É por meio desta que Klein dirá que Ruth preencherá seu vazio, a reconstrução reparadora de sua mãe: “quando a representação de desejos destrutivos é sucedida por tendências reativas, descobrimos que o desenhar e o pintar são usados como forma de reparar as pessoas” (Klein, 1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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, p. 5, tradução nossa). Portanto a ansiedade e o desejo de reparação em relação a si e ao corpo materno estão na origem do interesse de Ruth por pintar seus quadros.

Feitas essas considerações, percebemos o modo como Klein se concentra no processo de criação dinâmico e na função da arte em dado momento, focando-se menos nos símbolos individuais do artista. Em Colette e Ravel, o libreto da ópera é utilizado como referência do que ocorre nos estados infantis primitivos, descreve o que representa a brincadeira e a fantasia no universo infantil e como as relações objetais levam a uma criatividade reparadora para o ego da criança. Ali não se tenta descobrir se isso tem ou não a ver com o inconsciente de quem o criou. Em relação a Ruth, o relato de sua história se faz na medida em que ela exemplifica a respeito da ansiedade fundamental feminina atrelada ao desejo de reparação. Klein não se debruça em análise biográfica para dizer algo específico de Ruth, como sua relação com a mãe etc., demonstra, pelo contrário, algo genérico, uma situação fundamental da nossa condição.

O retorno de Klein e a crítica a Lacan

Em sua análise dos movimentos artísticos, Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) e Walsh (2013Walsh, M. (2013). Art and psychoanalysis. London: IB Tauris.) consideram que, a partir dos anos 1970 e 1980, as artes assumiram novas posturas. Influenciadas pelo movimento feminista, as leituras que fizeram das vanguardas europeias e americanas deram grande ênfase aos temas do desejo e do prazer. No que concerne aos textos críticos elaborados em torno dessas produções, em comparação aos projetos dos anos 1990, Nixon comenta:

Isso não é para sugerir uma divisão temporal ou teórica fixa entre os projetos feministas centrados no corpo de 1970 e 1980 e os projetos de 1990; de fato, as práticas artísticas de ambos os períodos são extremamente diversas. No entanto parece haver uma larga mudança da análise semiótica do corpo baseada no prazer e no desejo para uma análise das relações objetais do corpo na agressão e na pulsão de morte em algumas obras recentes, e será este movimento que considerarei aqui. (Nixon, 1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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, p. 73, tradução nossa)

Na leitura de Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) sobre essa mudança de enfoque - dos anos 1970 e 1980, baseado no prazer e no desejo, para os anos 1990, em que o foco se torna a agressão e a pulsão de morte -, ela coloca em destaque um deslocamento que também concerne a contraposições entre as teorizações influenciadas pela obra de Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) e as marcadas pelo ensino de Lacan (1953-1954/1986Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). Para a autora, o estruturalismo e o pós-estruturalismo, como correntes de pensamento, influenciaram de modo drástico o debate intelectual da época - anos 1970 e 1980 - em decorrência de uma grande ênfase na psicanálise francesa, especialmente dos discursos de inspiração lacaniana. Parecia promissor para a arte o retorno a um Freud sob as leis da linguística, uma vez que este permitia operar através de uma perspectiva menos abstrata e representativista.

Desse modo, na perspectiva de Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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), houve no campo das artes um deslocamento da estética reparativa dos pós-kleinianos para uma estética de caráter pós-estrutural influenciada por Lacan (1953-1954/1986Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). A partir da década de 1990, contudo, acentua-se, nos discursos artísticos, uma aproximação com o aspecto mais materializado da arte, em decorrência do esvaziamento das abstrações artísticas e um enfoque maior no corpo e nas suas manifestações emocionais primitivas. O feminismo inspirado por leituras psicanalíticas começa a se aproximar mais de questões diversas às do desejo, e o corpo é lido em sua relação com as pulsões primordiais, anteriores à estruturação da linguagem. Surge uma nostalgia pelo domínio pré-edípico, uma busca por leituras alternativas para a constituição do sujeito diversas das oferecidas por Freud (1910/1996Freud, S. (1996). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 11, pp. 59-125). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1910)) e pelos textos iniciais de Lacan. Nas palavras de Scott (1990Scott, A. (1990). Melanie Klein and the questions of feminism. Women: A Cultural Review, 1(2), 127-134. doi: 10.1080/09574049008578032
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), “este é o domínio que psicanalistas feministas, na busca de uma alternativa ao complexo de Édipo freudiano ou da lei do pai lacaniano, têm por vezes invocado nostalgicamente” (p. 161, tradução nossa).

Em um recorte mais específico, como na psicanálise inglesa dessa época, discutiam-se mais as relações psicóticas que as neuróticas, o pré-Édipo em vez do Édipo, o pré-verbal em detrimento do verbal, a plenitude do corpo - plenitude da mãe, como fonte de todas as coisas boas em Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) - ao invés da falta - do falo como significante privilegiado em Lacan (1953-1954\1986Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) - (Scott, 1990Scott, A. (1990). Melanie Klein and the questions of feminism. Women: A Cultural Review, 1(2), 127-134. doi: 10.1080/09574049008578032
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). Nesse cenário, Klein surge novamente como possível chave de leitura para a arte contemporânea, uma vez que sua teoria enfatiza a vida psíquica como fantasia inconsciente moldada por experiências corporais. Essas fantasias não necessitam de regressão para serem acessadas e operam como posicionamento possível diante das contingências da vida. Basta lembrar o sujeito descrito por Klein como não linear, a-histórico, definido por relações objetais não fixas (Nixon, 1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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). É nesse contexto que deve ser lido o projeto da década de 1990 de retorno a Klein.

Esse projeto não se limita apenas a Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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), vemos o mesmo esforço em nomes de peso como Ann Scott (1990Scott, A. (1990). Melanie Klein and the questions of feminism. Women: A Cultural Review, 1(2), 127-134. doi: 10.1080/09574049008578032
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), Mary Jacobus (1990Jacobus, M. (1990). “Tea daddy”: Poor Mrs Klein and the pencil shavings. Women: A Cultural Review, 1(2), 160-179. doi: 10.1080/09574049008578036
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) e, com maior ênfase, em Kristeva (1982Kristeva, J. (1982). Pouvoirs de l’horreur. New York: Columbia University Press.). Entretanto será Nixon uma das primeiras teóricas a trazer a discussão do retorno a Klein para a arte contemporânea no contexto da década de 1990. De acordo com a autora, tal retorno seria correlato a uma mudança de ênfase do eixo das neuroses para as psicoses e da sexualidade em direção à pulsão de morte, tal como operado por Klein (1940Klein, M. (1940). El duelo y su relación con los estados maníaco-depresivos. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) nas décadas de 1940 e 1950. Assim, ao invés de interpretar essa “passagem” do significante, da dimensão temporal linguística e do Édipo, para o corpo como uma regressão, ela propõe se basear “na teoria da fantasia de Klein, produzida por movimentos corporais” (Nixon, 1940, p. 73, tradução nossa), formulação que permitiria operar no “campo atemporal da experiência infantil” (p. 73, tradução nossa), não como “um trabalho da mente inconsciente, mas como operação corporal” (p. 73, tradução nossa).

Por meio dessa abordagem, ela examinará a obra de Louise Bourgeois, The destruction of the father (1974). Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) lê a obra como referida às fantasias oral-sádicas que considerariam, assim, a posição agressiva do sujeito. Para ela, tal interpretação da obra em termos da fantasia oral-sádica de devorar o pai, de comer, tomaria o lugar de nomear “em substituição do sadismo oral por uma fala que é ao mesmo tempo kleiniana e antilacaniana” (Nixon, 1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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, p. 74, tradução nossa); e, desse modo, faz das palavras que acompanham os objetos de Bourgeois uma crítica às formulações lacanianas em torno do pai.

Remetendo-se ao caso Dick, analisado por Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) e relido por Lacan no Seminário 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954/1986Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), a autora entenderá que a solução de Bourgeois é análoga à do menino. O mesmo poderia se dizer da obra Gnaw (1992), de Janine Antoni, em que a artista morde repetidamente grandes blocos de chocolate e banha, cuspindo os bocados e coletando a gordura e o chocolate expulsos para produzir tubos de batom e caixas de doce em forma de coração. Em sua opinião, as análises de obras dessa natureza pecaram por não discutir os atos agressivos de morder e cuspir segundo uma lógica mais kleiniana, abordagem que possibilitaria examinar as obras tanto por meio do universo da agressão quanto no âmbito de sua contenção.

Por outro lado, Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) afirma que as análises de obras de arte que se baseiam em Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) são vistas muitas vezes como regressivas e essencialistas, algo que, para a autora, não é completamente verdadeiro. Tais problemáticas surgem por uma dupla via: existe em Klein uma ênfase pré-edípica nas pulsões, na experiência não verbal, uma indiferença aos efeitos das estruturas sociais; cada vez mais surgem artistas que propõem obras de arte que são hostis ao próprio significante. Em relação a esses pontos, é preciso tecer um comentário a respeito do conceito de reparação em Segal (1995Segal, H. (1995). Sueño, fantasma y arte. Buenos Aires: Nueva Visión.). Esta autora entende que a reparação é a criação do símbolo própria à posição depressiva: “o que é único na criatividade artística é que a totalidade do ato reparador reside na criação do símbolo” (p. 155, tradução nossa). Essa atividade se apoia sobretudo no acesso que o artista tem a um mundo interno perdido, no qual imperavam as forças destrutivas da posição esquizo-paranoide. O meio pelo qual o impulso criador se manifesta é a unidade entre a experiência do “belo” e do “feio”. A reparação, portanto, está ligada a uma experiência estética, e “os meios para alcançar tal intento têm a ver com o equilíbrio entre elementos ‘feios’ e ‘belos’” (Segal, 1995Segal, H. (1995). Sueño, fantasma y arte. Buenos Aires: Nueva Visión., p. 154, tradução nossa). Segal (1995Segal, H. (1995). Sueño, fantasma y arte. Buenos Aires: Nueva Visión.) descreve a tragédia grega como paradigma de tal equilíbrio:

Em meu artigo de 1952, considero como um paradigma da criatividade a tragédia clássica. Pode-se dizer que em seu conteúdo está incluído amplamente o feio. . . . a arrogância, traição, parricídio, matricídio - a destruição e a morte do protagonista. Há também um contrapeso para a violência pelo caminho oposto: o ritmo de poesia e suas unidades aristotélicas oferecem uma forma harmoniosa e, em especial, estritamente ordenada. (p. 148, tradução nossa)

Para Segal (1995Segal, H. (1995). Sueño, fantasma y arte. Buenos Aires: Nueva Visión.), os elementos destrutivos e caóticos no universo das obras de arte só são componentes necessários na medida em que coexistam aspectos formais de beleza e de vida. Entretanto, como Abella (2010Abella, A. (2010). Contemporary art and Hanna Segal’s thinking on aesthetics. The International Journal of Psychoanalysis, 91(1), 163-181. doi: 10.1111/j.1745-8315.2009.00203.x
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) aponta,

A feiura e a agressão fornecem uma enorme importância para a beleza e a vida, que são expressas na obra de arte. A arte contemporânea, pelo contrário, provê múltiplos exemplos de obras que expressam intencionalmente apenas ou preponderantemente a destruição. (p. 6, tradução nossa)

Segundo Abella (2010Abella, A. (2010). Contemporary art and Hanna Segal’s thinking on aesthetics. The International Journal of Psychoanalysis, 91(1), 163-181. doi: 10.1111/j.1745-8315.2009.00203.x
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), para Segal (1995Segal, H. (1995). Sueño, fantasma y arte. Buenos Aires: Nueva Visión.) apoiada em Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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), a experiência artística se baseia na “vitória da reparação sobre a destruição” (p. 6, tradução nossa), contudo a arte contemporânea não parece perseguir tais objetivos, “pelo contrário, pode perseguir a mais intensa, eficiente e poderosa expressão através de meios formais que frequentemente incluem a mais crua feiura, a violência e a desordem” (Abella, 2010Abella, A. (2010). Contemporary art and Hanna Segal’s thinking on aesthetics. The International Journal of Psychoanalysis, 91(1), 163-181. doi: 10.1111/j.1745-8315.2009.00203.x
https://doi.org/10.1111/j.1745-8315.2009...
, p. 6, tradução nossa). Nesse sentido, conforme estamos tentando demostrar, a arte contemporânea parece interrogar o conceito de reparação: como se valer desse conceito, tendo em vista a preponderância, em obras iconográficas, desses aspectos que, sob o prisma de Klein, são associados apenas a aspectos destrutivos?

Diante de uma arte na qual impera a exposição de elementos preponderantemente destrutivos, o conceito de reparação parece ameaçado. A arte pensada como modalidade de reparação é desafiada, uma vez que a arte contemporânea solicita outras leituras. Nesse contexto, certa porção da arte atual impõe questionamentos para aqueles que trabalham na interface da psicanálise de Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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) com a arte: até onde é possível tencionar o conceito de reparação para que este esteja mais afinado com os fenômenos da arte contemporânea? Existem alguns autores que ofereceram respostas a tais temáticas, por meio do afastamento mais ou menos intencional do conceito. Se a reparação do corpo materno foi usada até a exaustão não só como genealogia da arte, mas como a própria formação da linguagem, coube um abandono progressivo do conceito, na medida em que se privilegiam novas perspectivas no próprio corpo teórico Kleiniano.

Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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), por sua vez, não abandona completamente a temática reparativa de Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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), mas também não se detém em aspectos que perpassam o eixo da posição esquizo-paranoide. Em suas reflexões, a ênfase incide nos objetos parciais e nos aspectos agressivos que perpassam a construção das obras que, no entanto, não se dirige a um estacionamento, mesmo que pontual, em uma posição depressiva ou esquizo-paranoide. Em relação a tal postura teórica, nota-se certa dissonância com a própria teoria de Klein. Essa dissonância provém de três possíveis elementos: em Klein, há uma oscilação entre as posições depressiva e esquizo-paranoide, mas só existe oscilação na medida em que há um ponto de apoio em uma posição ou outra, conforme apresentamos anteriormente. A aproximação demasiada da posição esquizo-paranoide para analisar as obras de arte se mostra igualmente problemática para a autora, na medida em que tais análises são recebidas pelo meio acadêmico como essencialistas, isto é, privilegiam elementos fora da cultura, que hostilizam o significante que, no entanto - como Nixon mesmo aponta - é uma das posturas de Klein. Além do mais, há, mesmo que de forma tímida, uma aproximação com o conceito de reparação, que se revela problemático à luz da arte contemporânea. Desse modo, para se manter fora do essencialismo - que seria uma postura de aproximação com aspectos preponderantemente esquizo paranoides -, e não se aproximar de uma análise que utiliza demasiadamente o conceito de reparação - que seria focar-se na posição depressiva -, Nixon se afasta tanto no que se refere à posição esquizo-paranoide quanto à posição depressiva. Tal posicionamento não nos parece propriamente Kleiniano.

Como alternativa a esses impasses, Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) propõe - junto a Jacobus (1990Jacobus, M. (1990). “Tea daddy”: Poor Mrs Klein and the pencil shavings. Women: A Cultural Review, 1(2), 160-179. doi: 10.1080/09574049008578036
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) - uma espécie de antropofagia dos conceitos lacanianos associados a Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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): “o retorno atual a Klein. . . parece como comer as próprias palavras. . . ou, para colocar de outro modo, parece como comer Lacan” (Nixon, 1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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, p. 2, tradução nossa). Tal aproximação exigiria maior aprofundamento, que extrapola os objetivos deste trabalho, mas nos indica uma crítica que abre à reflexão.

Inviabilidade de um retorno e a antropofagia necessária

Por meio do percurso que fizemos neste artigo, nos foi possível situar dois pontos que gostaríamos de destacar, neste momento, a título de conclusão. A crítica que Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) dirige às reflexões teóricas acerca da arte - fundamentadas nos primeiros tempos do ensino de Lacan (1953-1954/1986Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) -, que colocam ênfase excessiva no prazer e no desejo, nos parece ser uma contribuição muito importante da autora. Isso porque há obras de artistas como Orlan, Marina Abramović, Chris Burden, entre outros, nas quais é nítida a presença de outras dimensões além daquelas que se recortam por termos como desejo e prazer. A arte, como Lacan mesmo destaca, coloca em jogo a economia do gozo e este não se satisfaz necessariamente pelas vias e contornos estabelecidos pelo prazer. Em Lacan, portanto, as obras de arte nos possibilitam adentrar o campo da Coisa freudiana e interrogar os paradoxos do desejo e das satisfações humanas dando-nos acesso à satisfação além do princípio do prazer em sua relação com a pulsão de morte. Nesse sentido, ler as obras de arte apenas pelas vias do prazer e do desejo é efetivamente uma redução que, inclusive, não faz jus ao ensino de Lacan e decorre de um uso e de leituras bastante parciais de sua obra.

Em O seminário livro 7: a ética da psicanálise, por exemplo, Lacan (1959-1960/1997Lacan, J. (1997). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) retoma a discussão sobre a sublimação usando como eixo reflexivo o próprio texto de Klein, Situações de ansiedade infantil refletidas numa obra de arte e no impulso criador, (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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). Na leitura de Lacan, Klein dá uma solução imaginária para o mistério da sublimação na arte, se trataria, na leitura da psicanalista, no artista, de uma necessidade imaginária de reparação do corpo da mãe. Toda a questão é paradoxal, na medida em que o objeto, na arte, se eleva a um patamar para além do objeto na sua dimensão imaginária ou simbólica, como função de Coisa. A sublimação concerne ao imaginário, mas visa algo que está para além dele. Isso que vai para além da dimensão imaginária, pode carregar marcas cada vez menos veladas da Coisa, sair do jogo do princípio do prazer (que coloca o significante em marcha) e se apresentar de um modo mais cru. A questão pareceria então estar para além do significante, mas o segredo, como diz Lacan, reside no modo como o homem manipula, modela, cria, na arte, o significante único e esvaziado de sentido que posteriormente, em suas construções teóricas, irá se aproximar mais do conceito de letra. O vaso modelado pelo oleiro, por exemplo, pode presentificar o vazio e seus cacos, quando encontrados nas escavações arqueológicas, indicar que ali houve a presença do humano, uma presença ausente. A modelagem empreendida pelo oleiro nos dá notícias sobre a introdução no real de um furo, uma abertura.

Se a arte concerne à Coisa, e esta nos dirige para além do prazer como princípio, a criação não necessariamente se faz em direção ao que é bom ou belo, ainda que a beleza - na dimensão do ultraje - possa funcionar como o último anteparo ao real. Como nos adverte Lacan (1959-1960/1997Lacan, J. (1997). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), “Toda obra é, por si mesma, nociva” (p. 150), em outras palavras, a questão da criação também diz respeito à pulsão de morte em seu esforço de recomeçar por novas vias. Por essa razão, Lacan (1959-1960/1997Lacan, J. (1997). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) conclui: “a sublimação . . . nem sempre se exerce obrigatoriamente no sentido do sublime” (p. 194).

Nesse sentido, destacamos que a omissão de conceitos e noções que possam circunscrever as dimensões apontadas de maneira bastante perspicaz por Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) não decorre da falta de aparato teórico fornecido pelo ensino de Lacan (1975\2007). Nota-se, contudo, que, na teorização lacaniana, a agressividade e o ódio, embora inerentes ao humano e ao processo de constituição subjetiva, não são abordados do mesmo modo nem têm o mesmo valor e sentido conferidos a eles por Klein (1929Klein, M, (1929). Situaciones infantiles de angustia reflejadas en uma obra de arte y en el impulso creador. Biblioteca Melanie Klein: Obras Completas. Recuperado de https://bit.ly/3csfCp2
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). Para Lacan (1959-1960/1997Lacan, J. (1997). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), a agressividade está estreitamente relacionada ao eixo imaginário, ou seja, aos embates da relação dual. O objeto “mau” - ou a mãe “má” - a qual Nixon enfatiza em seu artigo, sobretudo no título “Bad enough mother”, já se localiza no plano das relações de objeto, ou seja, já são predicáveis e não estão no mesmo plano do objeto no nível de das Ding. Em outras palavras, a agressividade só é correlativa à pulsão de morte pelo viés do narcisismo.

Assim, se a proposta fosse colocar o acento no ódio e na agressividade, um caminho por intermédio de Lacan seria discorrer sobre as relações imaginárias e o surgimento do real no registro do imaginário, tendo em vista que, quando o objeto não predicável - como nos ensina Lacan (1959-1960/1997Lacan, J. (1997). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) - surge no plano das predicações, ele emerge como estranho, hostil, tal como situado por Freud (1919/1996Freud, S. (1996). O estranho. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 17, pp. 275-321). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1919)). Outros conceitos centrais, para colocar em foco os temas destacados por Nixon, talvez fossem, como já dissemos, o gozo e a satisfação além do princípio do prazer, sobretudo no que concerne às fronteiras que encontram seus limites através da dor.

Além desse primeiro aspecto, Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) também nos oferece marcações de cunho clínico, na leitura que faz da obra de Louise Bourgeois por meio do Caso Dick. Tais marcações são importantes, pois apontam um caminho muito interessante a ser percorrido: empreender uma releitura do Caso Dick pelo viés do último ensino de Lacan (1975/2007Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), mas que infelizmente extrapola os limites deste artigo. É importante marcar, no entanto, que, mesmo neste primeiro seminário, no qual o psicanalista ainda não conta com um referencial teórico mais robusto para examinar as questões clínicas postas pelas psicoses - e que se sedimentarão definitivamente em O sinthoma (1975/2007) - para ele, o que está em jogo em Dick é o estabelecimento de um enodamento dos três registros que dê sustentação ao sujeito. Ali não se trata, portanto, de discutir se a criança dispõe ou não de um aparato linguístico ou que ela não possa fazer entrada na linguagem: “que eu lhes trouxe da última vez a propósito de um caso particularmente significativo, porque mostra de maneira reduzida o jogo recíproco dos três grandes termos que já tivemos ocasião de mencionar - o imaginário, o simbólico e o real” (Lacan, 1954, p. 89).

Em relação à antropofagia do pai, tal como lida por Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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), é preciso dizer que a questão do pai em Lacan (1975/2007Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) não se restringe à dimensão simbólica. O pai é também aquele de que nos fala Freud em Totem e tabu (1913-1914/2006Freud, S. (2006). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Totem e tabu e outros trabalhos (J. Salomão, trad., Vol. 13). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1913-1914)), ou seja, imperativo de gozo, estreitamente relacionado à satisfação além do prazer e diversa dos contornos estabelecidos pelo desejo. O pai, ao qual a autora se refere na análise que Lacan (1953/1986Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) faz do Caso Dick, enfoca a inscrição simbólica e está centrada em uma passagem clínica importante de Dick, o que não quer dizer que Lacan - ao longo de seu ensino - não se refira a outras dimensões do pai. Apenas com o intuito de elencar algumas, poderíamos citar aqui a pai-versão, o pai como sinthoma (1975/2007Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) ou como sublimação (1959/1997Lacan, J. (1997). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .). Essas pontuações oferecem linhas de pesquisa sobre o tema, que infelizmente não cabem dentro do recorte deste trabalho. Do mesmo modo, entendemos que seria bastante interessante que se fizessem análises das obras de arte também pelas vias destacadas por Nixon, que considerassem a relação com o corpo e que não fossem diretamente referidas ao Outro estruturado como linguagem, ou seja, ao inconsciente, e sim à lalíngua e às pulsões como ecos do dizer sobre o corpo.

Para finalizar, entendemos que, para fazer face às dificuldades enfrentadas por Nixon (1995Nixon, M. (1995). Bad enough mother. October, 71, 71-92. Recuperado de https://bit.ly/3gNyD93
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) - a dificuldade de aproximação de leituras por meio da posição esquizo-paranoide sem que se caia em um essencialismo, bem como a localização de alternativas ao conceito de reparação -, um encaminhamento possível seria a efetiva antropofagia de Lacan (1975/2007Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), mas que se valesse de seu último ensino. Consideramos que, com este, podemos dispor de recursos que não apenas a referência ao significante e ao simbólico, em abordagens que se aproximam mais da experiência da linguagem na psicose do que da neurose e que apostam em outras possibilidades de amarração para a entrada na cultura. Nota-se que há autores que são próximos de Nixon, tal como Hal Foster (1996Foster, H. (1996). The return of the real: the avant-garde at the end of the century. Cambridge, MA: Mit Press.)2 2 Hal Foster teóico da arte e editor da revista de crítica de arte October, assim como Nixon. Ambos os autores publicam periódicos na October, sendo que os textos aqui abordados fazem parte da chamada “segunda década” de publicações. , que já apostam nessa interlocução da arte contemporânea com o último ensino de Lacan. Colocá-los em diálogo textual talvez fosse um caminho possível que trouxesse um pouco de luz aos empasses aqui apresentados. Quem sabe a “antropofagia” de Lacan não seria bem-vinda?

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  • 1
    Nosso objetivo com a apresentação desse recorte da autora é questionar o modo como a psicanálise é introduzida no contexto empregado, e não questionar ou discutir este recorte. Importante notar que esta mudança de temática entre prazer e ódio é um delineamento sublinhado por Nixon e que, entretanto, existem outros bem diferentes, como o de Amelia Jones em Body Art: performing the subject, de 1998.
  • 2
    Hal Foster teóico da arte e editor da revista de crítica de arte October, assim como Nixon. Ambos os autores publicam periódicos na October, sendo que os textos aqui abordados fazem parte da chamada “segunda década” de publicações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2018
  • Revisado
    15 Set 2019
  • Aceito
    18 Maio 2020
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