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Dante Moreira Leite: ciência psicológica, interdisciplinaridade e diferença

Dante Moreira Leite: psychological science, interdisciplinarity and difference

Resumos

Este artigo tem como objetivo apresentar alguns aspectos da vida e obra de Dante Moreira Leite através da análise de suas principais obras e de manuscritos inéditos, complementada pela coleta de depoimentos de seus contemporâneos. A apresentação organiza-se em torno da construção de uma imagem do autor como intelectual, destacando seu papel na constituição de padrões científicos de ensino e pesquisa em Psicologia Social em nosso meio acadêmico e busca compreender as concepções da ciência psicológica, a prática da interdisciplinaridade e o tema da diferença tal como se constelam nas obras.

Leite, Dante Moreira; Psicólogos; Biografia; Psicologia social; Pesquisa interdisciplinar; Literatura


The purpose of this paper is to present some aspects of Dante Moreira Leite’s life and work, by the analysis of his main books and manuscripts, complemented through his colleagues and students’ testimonies. It attempts to build up the author’s intellectual image, stressing mainly his role in constituting teaching and research scientific patterns to Social Psychology in Brazil. It also seeks to understand his psychological science conceptions, interdisciplinary practices and the issue of difference as it appears in his work.

Leite, Dante Moreira; Psychologists; Biography; Social psychology; Interdisciplinary research; Literature


DANTE MOREIRA LEITE: CIÊNCIA PSICOLÓGICA, INTERDISCIPLINARIDADE E DIFERENÇA

Maria Luisa Sandoval Schmidt e Tatiana Freitas Stockler das Neves1 1 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP – CEP 05508-900. E-mail: malu@usp.br

Instituto de Psicologia - USP

Laboratório de Estudos do Imaginário - Labi

Este artigo tem como objetivo apresentar alguns aspectos da vida e obra de Dante Moreira Leite através da análise de suas principais obras e de manuscritos inéditos, complementada pela coleta de depoimentos de seus contemporâneos. A apresentação organiza-se em torno da construção de uma imagem do autor como intelectual, destacando seu papel na constituição de padrões científicos de ensino e pesquisa em Psicologia Social em nosso meio acadêmico e busca compreender as concepções da ciência psicológica, a prática da interdisciplinaridade e o tema da diferença tal como se constelam nas obras.

Descritores: Leite, Dante Moreira. Psicólogos. Biografia. Psicologia social. Pesquisa interdisciplinar. Literatura.

Este artigo é resultado de pesquisa realizada junto ao Arquivo Dante Moreira Leite2 2 O Arquivo encontra-se no Centro de Apoio à Pesquisa em História (CAPH) da Universidade de São Paulo e reúne material referente à produção intelectual de Dante Moreira Leite, escritos literários, documentos pessoais, fotografias, entre outros. , complementada pela coleta de depoimentos de seus contemporâneos. O estudo do material constante do arquivo parte de uma prévia compreensão sobre o lugar configurado pela sua obra: um lugar de intersecção entre a Psicologia e a Literatura, entre o discurso racional-científico e o artístico, remetendo a uma certa interdisciplinaridade. Parte-se, ainda, de uma hipótese geral, norteadora, sobre a inserção de Dante Moreira Leite na esfera das investigações e do ensino de Psicologia, qual seja: a de que ele praticou um pensamento original com relação à Psicologia Social nascente em nosso meio, através de articulações interdisciplinares, constituindo-se tanto como contraponto às tendências experimentalistas hegemônicas na época, quanto de inspiração para a continui-dade de uma Psicologia do existente ou do vivido.

Os depoimentos, por sua vez, buscam recuperar algumas facetas exemplares de Dante, retomando aspectos da história do Instituto de Psicologia, da Universidade de São Paulo (IPUSP) e da Psicologia praticada e pensada no Brasil.

Debruçar-se sobre a obra e a vida de Dante Moreira Leite é deparar-se com o tempo e o lugar em que viveu, sua história nesse mundo, suas relações com outros, e dialogar com ele, desvelando faces que foram esquecidas e que podem contribuir para a reflexão e a transformação de situações presentes. Esse diálogo é sustentado pelo desejo de revitalizar modos de sentir e de pensar próprios ao Dante, interrompidos por sua morte prematura.

Resgate e prenúncio, raiz e vento ...

Com a coleta e análise do conjunto de depoimentos procuraram-se elementos que não são suficientemente contemplados nos documentos do Arquivo Dante Moreira Leite: sua história ligada às instituições, seu perfil como intelectual, aspectos da convivência cotidiana, o modo como marcou seus colegas e alunos, entre outros.3 3 Foram colhidos seis depoimentos: Arrigo Leonardo Angelini, Geraldo José de Paiva, Maria Helena Souza Patto, Maria Margarida Moreira Jorge de Carvalho, Miriam Lifchitz Moreira Leite, Sylvia Leser de Mello.

Os depoimentos trouxeram lembranças vivamente habitadas, iluminando uma certa compreensão de Dante. Alguns deles se contrapõem, outros se complementam, sendo que, nesse jogo, foi-se tecendo uma imagem de Dante.

Atitudes cotidianas

Um tema ressaltado pelos depoentes foi o das atitudes públicas de Dante.

Trazendo o modo como se relacionava com as pessoas, Maria Helena Souza Patto e Sylvia Leser narraram as seguintes características:

Convivi muito pouco com Dante Moreira Leite, mas a lembrança que tenho dele é forte: muito simpático, afável, discreto. Não era de muitas palavras, embora fosse eloqüente na maneira como se relacionava com as pessoas: atento ao interlocutor, olhava nos olhos, mostrava interesse genuíno pelo que estava sendo dito. Como diretor do Instituto, marcou-me pela relação igualitária que estabeleceu com os funcionários.

(Maria Helena)

o Dante sempre foi uma pessoa muito íntegra. Eu acho que essa integridade transparecia muito na maneira como ele tratava as pessoas, quer fossem colegas, quer estivessem situados lá em cima, quer fosse a faxineira, o homem que serve o café e isso era um traço encantador do Dante. E esta face pública dele era muito agradável. Ele era muito honesto e respeitoso. O Dante era muito dinâmico: uma pessoa infatigável, que trabalhava demais, tinha múltiplas atividades, uma pessoa versada em um monte de coisas, mas, ao mesmo tempo, muito acessível, disposta a conversar, jamais encastoada numa sabedoria. Ele nunca olhou para alguém com desprezo, não tinha pose, não tinha nada de artificial na relação com as pessoas. Até pelo contrário, às vezes era direto demais. (Sylvia)

Essa proximidade também foi recuperada por Maria Margarida Carvalho, ao contar que, na elaboração de sua tese, Dante participou efetivamente como orientador: foi um momento de trabalho conjunto. Além disso, destacou seu envolvimento como diretor do IPUSP: um diretor interessado e preocupado com os professores e o curso de Psicologia.

Dante parece ter estabelecido nessas relações uma posição de quem buscava dialogar?

... alguém que discutia naquelas épocas algumas vertentes de Psicologia que, para ele, eram não apenas teóricas mas vitais. Então, eu me lembro de várias discussões nas aulas (de pós-graduação) com pessoas mais enfronhadas na Psicanálise, eu nunca me lembro do Dante ter dito : "Não! Não é isso!" Esse não era o feitio dele. Ele dizia: "É! É isso, é isso, mas também veja ..." E ele acrescentava. (Geraldo)

A essa abertura para o debate somava-se sua disponibilidade para a aprendizagem, ilustrada por seus apontamentos como membro de uma banca examinadora:

Mas a tradição dos exames de doutoramento exige que o examinador - ainda que ignorante confesso do assunto - proponha algumas perguntas ao candidato. E é isso que pretendo fazer agora, não com a intenção de um exame em seu sentido mais (?) do termo, mas apenas como forma de um debate. Sei, desde o início, que o exame tem muito mais o caráter de perguntas de um aprendiz - que depois de ler o seu trabalho - deseja algum esclarecimento, do que o do professor que do alto de sua sabedoria, pretenda argüir o candidato. Fica entendido, desde logo, que você deve sentir-se à vontade para escolher apenas algumas dessas perguntas, e considerar as outras como impertinentes

. (Leite, s.d.a, P22 E26)

Como quem considera importante dialogar, nas situações de embate, Dante apareceu como um conciliador. Miriam Moreira Leite reportou o papel de intermediário desempenhado por ele na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo e na de Araraquara, relembrando os momentos em que ele mediou, com sucesso, desavenças ocorridas nessas faculdades.

De um modo geral a trama que parece enredar as atitudes e características do Dante é o que Maria Helena Souza Patto denominou "espírito democrático."

Então, essas características e atitudes revelam, também uma posição política.

A dimensão política das atitudes cotidianas de Dante foi trazida por Maria Luisa Schmidt, num aparte à entrevista concedida por Miriam Moreira Leite?

... nesse tempo da repressão, para a gente que era estudante, a presença do Dante foi marcante. Até então eu nunca tinha visto o diretor da faculdade, jamais você encontrava o diretor nos corredores ou sentado conversando. E o Dante tinha essa coisa de estar sempre por ali, naquela passarela, sentado num banco, conversando. Se os alunos tinham alguma reivindicação para fazer ou precisavam falar alguma coisa, ele ... ouvia, recebia, conversava, onde estivesse. Isso, eu me lembro que era malvisto. Como se o pessoal do

staff

não pudesse se misturar com o alunado. Essa atitude, esse modo de estar e se relacionar com as pessoas tinha essa dimensão política mesmo. Então, o fato de ele acolher, ouvir, já era, politicamente, bem diferente do que se praticava por ali.

Miriam Moreira Leite completou: "Ele rompeu um padrão."

Contextualizando o momento político em que Dante foi diretor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Sylvia Leser narrou o que enfrentou, sua postura política, o que representava e, por tudo isso, as perdas sofridas com sua morte?

Como diretor, o Dante era uma pessoa querida e respeitada intelectualmente pela comunidade. A USP era muito menor. E a gente estava vivendo muito fortemente a repressão. Em 70, grande parte da Faculdade de Filosofia havia sido destruída com toda a cassação, com as aposentadorias forçadas. E havia um controle ideológico na Reitoria. Então, nós precisávamos de alguém na direção que fosse capaz de enfrentar esta repressão ideológica que estava ocorrendo na reitoria. Eles haviam cassado o Reitor, que era o Lólio Lourenço de Oliveira, enfim, a situação não era das mais fáceis. E o Dante era uma pessoa de esquerda, ele tinha uma posição política avançada e não uma posição de retaguarda, de comodismo ou de submissão diante do governo militar. Nesse sentido foi muito triste (a sua morte). Também politicamente nós perdemos. Nós tivemos episódios de violência dentro do Instituto, de alunos nossos que foram mortos e professores que não conseguiram ser contratados, professores que foram presos. Não foi uma experiência da qual a Psicologia saiu impune. Nós tivemos essa experiência aqui dentro. E o Dante representava uma esperança de você ter alguém na Reitoria que estivesse contrário ao governo militar, que fosse um defensor da democracia.

Miriam Moreira Leite acrescentou que Dante, nesse período político "pesado," buscando ajudar alunos perseguidos, depôs várias vezes a favor deles.

É interessante ressaltar que José Geraldo de Paiva e Miriam Moreira Leite referiram-se à tarefa de diretor exercida por ele como algo penoso:

Eu acredito que o Dante não era uma pessoa feita para ... comandar esse tipo de agrupamento.( ) Porque, de fato, a diretoria tem muitos problemas. Então eu acredito que tudo isso para ele deve ter sido pesado também. Ele não tinha o jeito, em absoluto, de alguém que estivesse apegado ao poder. Eu me lembro que foi como diretor do Instituto que eu o convidei para ir a Bauru fazer uma palestra e estávamos esperando lá e, de repente, chega o carro oficial, mas quem dirigia era o próprio Dante ... e com toda a modéstia ... pelos trajes.

(Geraldo)

... ele ficou diretor e a parte administrativa era uma tragédia para ele, porque ... talvez ele fosse um pouco criativo demais para uma tarefa sedentária. Era muito penosa para ele. E ele se sentia muito mal com algumas pessoas em determinados grupos, as panelinhas de dentro, era uma coisa que fazia muito mal a ele. (Miriam)

Miriam enfatizou a ida de Dante para o Instituto - ele estava voltando de Araraquara onde viveu por treze anos - como algo marcado por "uma atividade febril" que impossibilitou uma maior produção e por "desajustamentos trazidos pela cidade e pela ocupação de diretor."

Segundo ela, ainda, Dante fez o concurso de titular no IPUSP "de certa forma obrigado até. Ele não tinha o menor interesse em fazer esse concurso. Ele fez para poder assumir a diretoria. E era uma coisa mais ou menos obrigatória."

Um modo de articular esses dois aspectos apontados pelos depoentes - sua atitude democrática e as dificuldades do cargo de diretor - é pensar que, apesar desta ter sido uma tarefa desgastante, Dante manteve sua postura política.

Desenhando um campo mais amplo para a Psicologia

Destacando três de suas obras - O Caráter Nacional Brasileiro, Psicologia e Literatura e O Amor Romântico e outros Temas - e tomando-as como exemplares, pode-se visualizar a disposição de Dante em se aproximar de outras áreas do conhecimento - como a Literatura, a Antropologia, a História, a Sociologia - com a intenção clara de desenclausurar a Psicologia. Dante pareceu ver, no estabelecimento de um diálogo entre elas, a possibilidade de contextualizar alguns fenômenos com os quais a Psicologia se deparava. O que esses campos podem oferecer como elementos de compreensão dos fenômenos humanos e sociais? Este parecia ser um norte presente em suas produções.

Para Geraldo José de Paiva: "... o Dante foi dois tipos de escritor: de ensaios literários - ele tem alguns contos muitos bonitos, muito interessantes, gostosos; e de livros."

Referindo-se a seu amor pela Literatura, afirmaram Maria Helena Souza Patto e Sylvia Leser:

Ele tem um livro chamado Psicologia e Literatura que mostra um amor, um interesse dele pela literatura que não é comum entre os professores do Instituto, principalmente naquela época. O corpo docente era menor e não se notava isso. Os psicólogos vinham de uma tradição na qual psicólogo é técnico.

(Maria Helena)

O Dante trouxe a relação entre Psicologia e Literatura - mesmo quando ele escreveu O Caráter Nacional ele estava também trabalhando com literatura - e trabalhou a literatura como um auxiliar, não para fazer interpretação da obra, mas para a compreensão da dimensão humana, das relações do homem na sociedade. Eu acho que o Dante foi um pioneiro. (Sylvia)

Nesse sentido, é interessante destacar o final do artigo A Psicologia Social de "Os Sertões" escrito por Dante:

Por isso, se abandonamos o intuito de construir uma Psicologia do povo brasileiro, se ampliamos nossa compreensão do messianismo, se podemos reinterpretar a campanha de Canudos - não podemos superar a interpretação de Euclides. É que ela recria a realidade - e, a rigor, não tem sentido perguntar se seu livro é de história ou de ficção. O importante é lembrar que nos revela aspectos significativos da vida e do sofrimento dos homens.

A Jerusalém de Taipa, os jagunços, Antonio Conselheiro, as velhas beatas, as crianças feridas, os soldados - com Euclides ganharam a dimensão ambígua e reveladora da obra de arte. (Leite, 1966, p. 7)

O amor de Dante pela Literatura parece marcar inclusive a maneira como ele traduziu livros de Psicologia. Segundo Miriam Moreira Leite, ele o fazia como se se tratasse de romances.

Mas como trabalhou a interface Literatura / Psicologia?

De acordo com Geraldo José de Paiva, um modo que foi articulando certos conceitos propostos por Heider:

E eu acredito que Dante ficou muito impressionado com a teoria de Heider, em parte porque Heider prolongava a teoria da Gestalt, e até pelas ligações do Dante com a dra. Annita Cabral que introduziu a teoria da Gestalt aqui. O Heider, porém, não era um gestaltista muito ortodoxo. Mas como ele se interessava muito pela Psicologia do homem comum e o Dante vibrava com a literatura, então, ele encontrou, provavelmente, em Heider, a forma de estudar a literatura de um ponto de vista psicológico organizador. (Um exemplo é)

O Amor Romântico e Outros Temas

, em que ele analisa diversas passagens da literatura brasileira com o auxílio do princípio do equilíbrio.

A respeito do entrecruzamento com a História e a Antropologia, Maria Helena Souza Patto destacou o livro O Caráter Nacional Brasileiro, dizendo:

... sua maior contribuição foi sem dúvida seu livro

O Caráter Nacional Brasileiro

, até hoje referência aos que estudam a história das idéias no Brasil. É uma história de idéias imprescindível à compreensão da própria história da Psicologia em nosso meio. É uma contribuição sem par à Psicologia Social brasileira. Aliás, foi ele um dos primeiros pesquisadores, se não o primeiro, a prestar atenção em Manuel Bomfim, intelectual da Primeira República que interpretou o Brasil em chave teórica mais crítica do que a que predominava então.

Este livro revela um professor e pesquisador da Psicologia interessado pelas coisas da cultura, voltado para a realidade social brasileira numa época em que praticamente ninguém fazia isso, fato que nos traz elementos para pensar sobre a natureza dos cursos de Psicologia. Neles ainda predominam concepções de sociedade e de homem abstratas, que dispensam a História e conhecimentos gerados em outras áreas das ciências humanas.

Quando foi em busca da história das concepções dominantes sobre o homem brasileiro, ele certamente sabia que não basta importar resultados de pesquisas estrangeiras sobre a realidade humana e social de outros países e aplicá-los ao Brasil, na tentativa de entendê-lo. Nos anos sessenta e setenta, Dante já estava atento à importância da História e da especificidade da história local, já estava ciente da importância da Sociologia, da Filosofia, da Antropologia para a formação de psicólogos e para a constituição da Psicologia. Numa tentativa de reestruturação curricular que ele coordenou como diretor, havia a preocupação de resgatar o contato com estas áreas de fronteira, de tirar a Psicologia do espaço fechado da especialização.

É elucidativo como ele relaciona a idéia de vida social, um conceito de História e as características psicológicas num trecho desse livro?

as características psicológicas não poderão ser entendidas como fonte de desenvolvimento histórico e social. Ao contrário, as condições da vida social é que determinam as características psicológicas, embora estas, depois, passam também a influir na vida social. E ainda aqui será preciso distinguir? o passado atua no presente e pode ser uma força determinante da ação, mas isso só ocorre quando forças do passado continuam no presente. Não existe a "misteriosa comunicação" do passado com o presente, a não ser que aquele continue a atuar diretamente neste? ou, em outras palavras, quando se transforma a situação, o que continua a influir é apenas o que, na situação nova, restou da anterior. (Leite, 1969, pp. 328-329)

Comparando O Caráter Nacional Brasileiro e Psicologia e Literatura, Geraldo José de Paiva apontou o primeiro como uma obra pioneira, de referência constante, mas considerou o segundo uma obra mais madura, ampla e bem acabada por trabalhar "com conceitos psicológicos de uma forma muito mais exaustiva quando ele estuda a criação, o texto e a leitura literária."

O interesse de Dante por outros campos do saber e o modo como ele os trabalhou para entender as relações humanas parecem estar relacionados com sua compreensão de ser humano, o qual não pode ser pensado de uma maneira fragmentada. Essa concepção tem origem na sua formação.

Sobre o colégio que Dante freqüentou, contou Miriam Moreira Leite:

... ele, o Lólio Lourenço de Oliveira e o Oliveiros da Silva Ferreira eram um grupo que tinha vindo do Colégio São Joaquim, um colégio do Estado, eles eram muito amigos, estudavam juntos e tinham uma atitude muito séria diante do que eles estavam fazendo. O que me impressionou foi a quantidade de leitura que ele tinha e a quantidade de poesias que ele sabia de cor. E ... ele praticamente conhecia todos os românticos, os parnasianos ... tinha uma porção de expressões que usava correntemente e que eram da obra de Machado de Assis. Quer dizer, era uma pessoa completamente imbuída da literatura e adorava aquilo, e vivia em função, e conhecia muito. O colégio lhes deu uma formação em Filosofia, Psicologia, Literatura. Um colégio muito bom, com professores excelentes, que lhes conferiu uma formação e uma seriedade no trabalho intelectual.

Trabalho este que, de acordo com ela, não era algo separado da vida? o Dante "vivia (o estudo e a pesquisa) o tempo inteiro," com "seriedade, empenho e dedicação completa."

Além disso, como aluno de Filosofia das primeiras gerações da antiga FFCL (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo), Dante, segundo Ecléa Bosi, recorreu à

sociologia do conhecimento que marcou profundamente as primeiras gerações da nossa Escola, as quais foram educadas no espírito de crítica e de livre-exame, espírito cujo principal fruto é relativizar os valores, mostrar a sua gênese social e o seu caráter muitas vezes convencional e sempre histórico. (Bosi, 1976, p. 34)

Assim, por ter integrado essas gerações, ainda de acordo com Ecléa, Dante "era cheio de dúvidas, de ironias, e até de auto-ironias" (Bosi, 1976, p. 36).

Outras contribuições

Além de trazerem a importância dessas obras, os depoentes apontaram para outras contribuições do autor para o IPUSP, por exemplo, como professor e chefe de departamento?

O Dante como professor foi muito importante na história do Instituto, na área de pós-graduação e na minha formação pessoal, e foi uma pessoa com uma certa sensibilidade para o futuro dos estudos de Psicologia Social. Porque, embora fosse uma pessoa informada em várias áreas da Psicologia, ele introduziu aqui no Instituto os estudos da Psicologia ingênua, isto é, da Psicologia cotidiana. Os cursos de pós-graduação dele eram sobre Heider. Ele tinha um certo faro para onde a Psicologia Social ia se desenvolver. É claro que ele não tinha uma espécie de antecipação do que ela seria daí a cinqüenta anos e de toda a complexidade que ela pode adquirir. Mas ele viu claramente que uma das formas como ela ia se desenvolver mesmo seria elaborando a Psicologia ingênua. Ele levava em conta as correntes culturais e científicas da sua época e anteviu vários desdobramentos.

(Geraldo)

o departamento de Psicologia Social era um departamento que não tinha titulados para poder se organizar. Então ele se organizou porque o Dante veio de Araraquara para cá. Ele se transferiu para cá e aqui criamos o departamento. Essa ata é muito interessante, porque estava eu, ele e a Ecléa. (Sylvia)

Além disso, a maioria deles referiu-se às traduções feitas por ele como sendo bastante relevantes para a Psicologia.

Para Sylvia Leser, Dante traduziu obras importantes, "livros do cotidiano da gente," como, por exemplo, Manicômios, Prisões e Conventos de Goffman (1987) e o Manual de Psicologia Social de Asch (1966). Colocou-as, ainda, como um "ponto de mudança," pois facilitaram ao aluno de graduação o acesso a bibliografias que até então não eram traduzidas? "... ele foi um pioneiro nesse sentido. E trouxe para o Brasil esse tipo de pensamento."

Geraldo José de Paiva relatou o trabalho conjunto de Miriam e Dante na execução dessas traduções:

... eles tomaram para si uma espécie de missão que era a de dotar a Psicologia no Brasil de textos sólidos, contemporâneos e ... dotados de uma linguagem correta. Eles pretendiam colaborar para criar uma linguagem correta, científica, em Psicologia, porque naquela época, realmente, a Psicologia científica estava começando no Brasil.

A respeito do caráter controvertido dessas traduções, Miriam Moreira Leite contou que: "... houve várias críticas às traduções do Dante de pessoas que consideraram que ele não usava uma linguagem técnica. Para eles, uma tradução era o jargão científico."

Sobre as dificuldades enfrentadas por Dante e Miriam, Geraldo José de Paiva acrescentou que:

... nem sempre o esforço deles, em particular do Dante, foi bem sucedido. Por quê? Isso a Miriam me contou. Havia editoras que forçavam o emprego de um decalque do inglês, porque diziam: se não houver uma palavra decalcada no inglês, o livro não pega. O livro não se apresenta como científico. Então eu imagino a dor e a decepção do Dante e da Miriam, quando o livro saía com o que eles, certamente, consideravam anglicismos, inexatidões vernáculas, pelas quais eles trabalhavam.

Nos depoimentos sobre as traduções feitas por Dante, pelo menos dois propósitos parecem presentes: o de compartilhar o conhecimento, que se articula com sua atitude democrática, e o de dar instrumentos para a Psicologia brasileira firmar-se como uma ciência.

Outra contribuição de Dante foi ressaltada por Maria Margarida Carvalho: a pesquisa. Enfatizou seu engajamento em pesquisas enraizadas na realidade social brasileira como sendo aspecto significativo para a Psicologia:

Ele queria fazer uma Psicologia Social ativa, que fosse pesquisar a realidade social. Ele pegou temas sociais vivos naquele momento. E essa seria a linha que ele teria levado em frente em termos de pesquisa, em termos do departamento. A idéia era fazer pesquisas com a comunidade, trabalhar essa ligação comunidade-USP que, que eu saiba, parou depois por muito tempo. A contribuição dele seria essa: numa linha da Psicologia Social, ativa e não de uma Psicologia teórica; uma Psicologia comunitária, que sairia em campo estudando, pesquisando, atendendo. ( ) eu acredito que a contribuição dele começou a ser, foi e seria nesta área de uma Psicologia social humanitária, realista e não de elite, de gabinete.

É interessante notar que nessa época, havia no Brasil e em outros países latino-americanos movimentos que questionavam não só o papel social das ciências (especialmente as humanas), mas, inclusive, das universidades e o compromisso de seus integrantes em relação à população, como nos apontam Lane (1996) e Sawaia (1996).

Geraldo José de Paiva situou o tipo de pesquisa feito por Dante como diferente das pesquisas tradicionais da época e comentou o seu pouco impacto nesse período:

Acredito que as pesquisas do Dante eram do tipo conceitual. E, nesse ponto, penso que ele foi influenciado por Heider, porque Heider sempre foi um tanto desconfiado de pesquisas com base estatística, porque ele julgava que essa pesquisa só teria sentido depois que os conceitos estivessem bem claros e que ainda seria necessária uma articulação bastante longa, conceitual, analítica da própria pesquisa. O que o Dante fez foram pesquisas (análises conceituais) de textos literários ou sobre situações cotidianas, bem ao gosto do que o próprio Heider fez. O impacto científico do Dante não foi muito grande não porque o trabalho dele não tenha sido muito bem feito, mas talvez por duas razões: primeiro porque não acompanhava o que mais em geral se considerava Psicologia Social e, em segundo lugar, porque não chegou a ser conhecido por pesquisadores de potencial.

Morte e perdas

Os depoentes contaram que a morte de Dante, em 1976, foi um momento de grande tristeza para muitas pessoas. Encarada como prematura, é interpretada como a perda não só da pessoa querida que ele era, mas também daquilo que representava - uma concepção de Psicologia mais abrangente, uma posição e uma atitude democráticas - e do que ele ainda poderia produzir e fazer pela Psicologia e pelo Instituto:

Eu acho que nós perdemos demais com a morte do Dante, acho que foi uma coisa irreparável para a Psicologia Social: ele tinha uma visão ampla do que era Psicologia. Infelizmente a morte dele foi absolutamente trágica. Ele morreu muito cedo, com muita coisa por fazer e, num certo sentido, muitas pessoas ficaram órfãs.

(Sylvia)

a vinda do Rodolfo (Bohoslavsky) e de uma porção de coisas que foram muito importantes para o crescimento da Psicologia realmente foram com a ajuda, com o empenho dele. E eu tenho certeza que a Psicologia estaria num outro patamar hoje. Na ação social, por exemplo, que ele era muito preocupado e fazia pesquisas nessa área, tudo isso ficou parado. Depois a Psicologia ficou muito na "torrinha de marfim" da USP, praticamente sem nenhuma ação social durante muitos anos. Eu chorei muito no enterro dele, muito por ele, que era uma pessoa muito querida e chorei muito pela Psicologia. Eu dizia para as pessoas: "A Psicologia acabou, o Instituto acabou." Porque a sensação que eu tinha é que não tinha ninguém que fosse continuar no ritmo dele o que ele queria, o que ele amava na Psicologia. Tanto assim que os projetos que ele estava começando, ficaram parados por muito tempo. Agora a gente vê os laboratórios começando. Quantos anos depois? O quê? Vinte e tantos anos? ( ) No enterro dele foi um sofrimento muito grande. (Maria Margarida)

Trinta e três anos após, circulando pelo IPUSP, pode-se perceber as extensões dessas perdas. As gerações que não o conheceram pessoalmente pouco ou nada sabem sobre ele?

... eu acho muito importante que essas pessoas que de alguma forma criaram tudo isso aqui, e não apenas administrativamente, mas intelectualmente, sejam preservadas. Eu procuro, nas aulas, sempre me referir ao Dante, à dra. Annita. Mas às vezes é como se eu estivesse falando de um autor estrangeiro, de tão desconhecidos que eles são. Porque (o Dante) é um autor que não é sequer lido.

(Geraldo)

Para Maria Helena Souza Patto esse desconhecimento revela, por um lado, a instituição – a natureza do curso atual de Psicologia dado no IPUSP - e, por outro, a forma como as pessoas e os grupos têm lidado com sua própria história:

Considero Dante absolutamente atual. O que acontece na história da Psicologia recente? Desenvolve-se toda uma Psicologia crítica, que está tentando resgatar o contato com essas áreas de fronteira, tirar a Psicologia do espaço muito restrito da especialização. Nesse sentido ele é atualíssimo, pois sempre transitou nessas áreas vizinhas da Psicologia. É uma pena que a memória de pessoas e grupos esteja cada vez mais curta. São raras as práticas coletivas de preservação do passado. Hoje as coisas e as pessoas são rapidamente consumidas, descartadas e esquecidas. Daí a importância desta iniciativa de manter vivo um colega cuja contribuição continua atual.

Imagem perspectivada

Da imagem de Dante Moreira Leite, configurada pelos fragmentos de relatos, alguns traços destacam-se com mais força. Entre eles uma concepção de Psicologia que leva em consideração a realidade social e a história brasileiras, estabelecendo interlocução com diversos campos do conhecimento e com outros saberes que vão além da ciência - os saberes cotidianos -, e que visa uma prática voltada para a comunidade - saindo de seus muros tão altos! Uma concepção de Psicologia, portanto, engajada em nosso mundo e em nosso tempo e que, para isso, não deveria prescindir da própria história.

Seu engajamento, todavia, não era uma bandeira através da qual ele acenava suas intenções: é bom lembrar o momento político vivido naquela época! Estas são reveladas ao serem lidas suas produções e na escuta dos depoimentos de seus contemporâneos.

Em Dante, obra, discurso e atitude parecem e aparecem entrelaçados por um estar no mundo democraticamente, por um "espírito democrático," como disse Maria Helena Souza Patto.

Ele indica, ainda hoje, possíveis passos e respostas para profundas inquietações vividas nas universidades públicas, na ciência e nas relações interpessoais: militou pela transposição dos muros da academia; praticou o diálogo com áreas das ciências humanas; criticou a insuficiência das especializações.

Nas relações humanas - tão marcadas, escancaradamente ou implicitamente, pela hierarquização, pela extrema valorização e disputa por lugares de poder, pela intolerância às diferenças cada vez mais e mais acentuada - Dante legou um outro estar no mundo, estimando a atenção, o contato e a generosidade.

Da imagem à obra

Os depoimentos assinalam a intensa dedicação de Dante Moreira Leite à pesquisa, ao ensino e à escrita, bem como a originalidade de sua produção acadêmica.

O exame dos títulos e natureza de suas publicações permite um primeiro delineamento da extensão de sua produção, bem como do panorama de seus temas.

Os livros publicados são sete: Psicologia e Literatura e O Caráter Nacional Brasileiro: História de uma Ideologia, respectivamente adaptações das teses de livre-docência e doutorado; O Amor Romântico e Outros Temas, coletânea de artigos sobre Psicologia e literatura; Personalidade e O Desenvolvimento da Criança: Leituras Básicas, ambos livros de textos básicos; Psicologia Diferencial e as notas de rodapé de Nossa Vida Mental de Wells e Huxley (1941).

Paralelamente, sua produção como articulista de periódicos e jornais chega a 58 artigos. Naqueles publicados em periódicos e livros destacam-se os temas: educação; tradução e linguagem; literatura e educação; caráter nacional; preconceito racial, entre outros. Nos publicados em jornais: ofício do tradutor; educação; ficção; biografia e auto-biografia; a ficção de Guimarães Rosa; Psicologia ingênua de Fritz Heider, entre outros.

Dante Moreira Leite foi muito ativo como tradutor, aliando seu conhecimento de línguas à sua formação psicológica ampla. São 47 livros traduzidos, abarcando um largo espectro de temas psicológicos, tais como: Psicologia social, educacional, da personalidade, do desenvolvimento, da aprendizagem; Psicologia clínica; dinâmica de grupo; inteligência; percepção, entre outros. Livros fundamentais para o estudo básico de Psicologia tornaram-se disponíveis em língua portuguesa através de seu trabalho de tradução e caberia citar alguns: Testes Psicológicos, de Anastasi (1977); Personalidade, de Allport (1966); Psicologia das Relações Interpessoais, de Heider (1970); Teorias do Desenvolvimento da Criança, de Baldwin (1973); Da Psicologia da Criança à do Adolescente, de Piaget e Inhelder; Psicologia Social, de Asch (1966); Elementos de Psicologia, de Krech e Crufchfield (1963); De Pessoa para Pessoa, de Rogers (1978). Atribuía à tradução destes livros um caráter didático, pois considerava fundamental, para a formação de seus alunos, o acesso à literatura de qualidade em versões bem cuidadas. Ao lado de livros básicos de Psicologia, traduziu, também, livros que poderiam ser considerados "de vanguarda," por seu caráter inovador e crítico com relação a teorias e práticas hegemônicas no circuito universitário brasileiro, como por exemplo Manicômios, Prisões e Conventos de Goffman (1987) ou A Fabricação da Loucura de Szasz (1978).

A esfera de seus interesses de investigação e o modo como buscou responder a esses interesses configurou um campo de exploração original. Alfredo Bosi, no prefácio do livro O Amor Romântico e Outros Temas, salienta o respeito de Dante Moreira Leite pela literatura como um "além" da interpretação psicológica: a dignidade da literatura se apresenta como limite à interpretação psicológica e desta atitude nasce o campo no qual se moveu. Ainda de acordo com Bosi, não há neste campo tentativa de redução da arte à Psicologia, mas tentativa de explicitar "o que se pode dizer" e "o que se pode estudar." Por outro lado, as teorias psicológicas das quais se serviu para a análise de fenômenos psicossociais ou de textos literários têm forte raiz na experiência, no vivido: a Gestalt, especialmente a de Heider; a Psicanálise, de Freud e de Jung. Neste interjogo das duas áreas, a inclinação por uma Psicologia do existente encontrou eco na inclinação pela Literatura: a Psicologia, com sua pretensão científica, move-se no eixo das explicações racionais; a literatura convida à empatia com o vivido e o existente. Nesse sentido, não só a literatura colocou limites à "onipotência" explicativa da ciência psicológica, mas indicou outros caminhos pelos quais é possível conhecer, principalmente aqueles que advêm da sensibilidade. Este espaço de intersecção configurou-se pela prática da análise, ora de temas psicológicos que "aprendem" com a literatura, ora de textos literários, servindo-se de hipóteses advindas de uma compreensão psicológica dos fenômenos humanos.

A prática interdisciplinar de Dante Moreira Leite ajuda a definir o psicólogo social como mediador, tanto do ponto de vista teórico-conceitual, quanto do ponto de vista de suas intervenções.4 4 A seguinte citação retirada de um manuscrito do autor explicita um dos sentidos desta mediação: “... O que mais se salienta no domínio que denominamos Psicologia Social é o fato de estudar, não o indivíduo ou o grupo, mas o que ocorre ao indivíduo na situação de grupo ou o que leva para a vida de grupo. Esses dois polos - indivíduo e grupo - são muitas vezes considerados como antagônicos, outras vezes como complementares. É evidente que o ideal seria que o psicólogo social tivesse conceitos específicos para lidar com os fenômenos que estuda, e parece que alguns conceitos como percepção social, atitude, preconceito, já podem ser considerados como constituintes de uma ordem peculiar de fenômenos estudados pelo psicólogo social, pois não se referem nem ao indivíduo isolado e nem à cultura, mas ao ponto em que indíviduo e cultura ou indivíduo e grupo constituem uma área de superposição ou região em que não há propriamente grupo e nem propriamente indivíduo, mas indivíduo no grupo ou grupo no indivíduo.” (Leite, s.d.b, P37E41) A sua colocação, como pesquisador, num lugar de tensão entre o discurso científico e o poético remete, também, a uma constante reflexão sobre o estatuto das chamadas ciências humanas, e o autor enfrenta esta discussão buscando conferir à Psicologia o rigor e a especificidade requeridas de uma ciência, tal como estes requisitos apresentavam-se em sua época, evitando, contudo, os dogmatismos e as reduções cientificistas. É, também, possível identificar um fio condutor no percurso deste intelectual: a atenção à diferença, tanto no âmbito das relações interpessoais, quanto no da criatividade, quanto, ainda, no das relações e práticas sociais.

Desta forma, apresentam-se os três eixos em torno dos quais articula-se uma interpretação de cunho geral das principais obras de Dante Moreira Leite: a) as concepções sobre a ciência psicológica; b) a prática da interdisciplinaridade entre Psicologia, Sociologia, Antropologia, Filosofia e Literatura; c) a diferença como tema privilegiado pelo autor.

A ciência psicológica: ideologia, quantificação e compreensão

Em O Caráter Nacional Brasileiro: História de uma Ideologia abre-se, com relativa clareza, o compromisso de Dante Moreira Leite com um princípio que milita contra o preconceito, a intolerância, a dominação e a ignorância. Um compromisso que, contudo, busca um ancoradouro científico. Para tanto, deve passar pela discussão em torno da distinção entre as ciências humanas e a ideologia.

A explicitação das bases "pseudocientíficas" das teses sobre o caráter nacional é um modo privilegiado de denunciar seu conteúdo ideológico. A afirmação do estatuto ideológico das teorias do caráter nacional implica, no entanto, uma reflexão sobre em que medida é possível distinguir, no estudo do homem, as esferas científicas daquelas propriamente ideológicas. Nessa reflexão, Dante parte da clarificação de duas formas de classificação de uma teoria como ideológica: a) o confronto com uma ciência que já possui conhecimento objetivo capaz de superar o nível das racionalizações e b) a suposição de que todo conhecimento humano é ideológico, pois depende da posição e dos interesses dos teóricos (Leite, 1992).

O autor analisa tanto o relativismo quanto o ceticismo que colocam em cheque a cientificidade do conhecimento das chamadas ciências humanas e acredita ser possível uma distinção de níveis ideológicos, bem como de níveis de comprovação para teorias sobre a vida social, desde que se leve em conta três aspectos fundamentais do homem como objeto de estudo, ou seja, a sua historicidade, a sua capacidade de reagir ao destino e a ficção da neutralidade científica. Em suas palavras:

Isso deve permitir a superação de uma suspeita indiscriminada de contaminação ideológica em qualquer teoria, isto é, deve permitir não uma verdade - a história na vida social, pois ainda que conheçamos o passado não podemos predizer o futuro, a não ser com hipóteses mais ou menos plausíveis -, mas verdades superiores ao relativismo, que, muitas vezes, se transforma em simples oportunismo. Em outras palavras, reconhecer que as teorias estão relacionadas se não com todos, ao menos com vários aspectos da vida social, não significa que todas tenham uma origem espúria ou não possam ser analisadas segundo critérios racionais ou, finalmente, sejam equivalentes. O fato de uma teoria estar enraizada em certa situação não significa que seja necessariamente falsa; pode ser, ao contrário, a teoria mais correta em determinado momento histórico. (Leite, 1992, p. 139)

A apreciação das teorias em seu enraizamento histórico-social faz, justamente, emergir a sua condição de teorias-em-situação que se apresentam como uma pluralidade de versões em conflito. Neste panorama situa-se o intelectual ou o cientista dos assuntos humanos como, a um só tempo, produtor e crítico das diferentes versões.

Sem pretender indicar uma solução para a questão da ideologia nas ciências humanas, Dante acolhe as diferentes versões sobre o caráter nacional brasileiro como "interpretações que revelam diferentes etapas na maneira dos intelectuais brasileiros verem o Brasil e as características psicológicas do povo brasileiro" (Leite, 1992, p. 140). Sua compreensão como ideologia demanda, segundo o autor, "análise objetiva e minuciosa." Dois dispositivos parecem cruciais para a metodologia proposta por Dante Moreira Leite: uma apresentação dos conteúdos das teorias a mais fiel possível, incluindo uma quantificação de traços psicológicos presentes em cada escritor estudado e a explicitação dos estratos "pseudocientíficos" que sustentam as argumentações. Reconhece-se, assim, um modo de aproximação do fenômeno ideológico que corresponde a duas tarefas complementares do pesquisador: mostrar o que as idéias querem dizer ao se articularem e fundamentarem com uma certa coerência e desocultar aquilo que, ao se apresentarem em sua coerência lógica, encobrem.

Dante defende, ainda, a quantificação como recurso capaz de legitimar cientificamente o discurso que interpreta o matiz ideológico de uma teoria. Faz o elogio à quantificação, ao confrontar a análise quantitativa e a intuitiva. Ele afirma que:

... o ideal seria conseguir uma apresentação quantitativa. As vantagens são evidentes. Em primeiro lugar, só assim podemos ter a certeza de que o pesquisador não foi dominado pelo subjetivismo, isto é, por suas impressões ou opiniões pessoais, nem foi traído por sua memória ou por limitações de sua compreensão. (Leite, 1992, p. 144)

Porém, o elogio à quantificação é seguido de uma série de considerações sobre suas limitações, especialmente da chamada análise de conteúdo, quando o objeto de estudo é complexo. Nas suas palavras: "No caso de comunicação mais complexa, pelo menos até que se desenvolvam técnicas mais adequadas, a quantificação da análise representa um trabalho muito grande para resultados pouco compensadores, quando não falsos" (Leite, 1992, p. 145).

Relativizando o valor da quantificação sem, no entanto, descartá-la, Dante opta por uma metodologia que combina a categorização e a análise compreensiva que viria atenuar-lhe os possíveis esquematismos estéreis. Esta combinação metodológica é de especial interesse, pois esclarece o modo como ele encaminha sua pesquisa, teórica e praticamente, para um cenário híbrido onde, ao mesmo tempo, relativiza os "poderes" da ciência positivista na esfera dos assuntos humanos sem, contudo, descartá-los totalmente, e aceita a vocação hermenêutica das ciências humanas.

Em Psicologia e Literatura a questão da quantificação é abordada em várias ocasiões e a busca de uma conciliação de métodos mantém-se como proposição aceita pelo autor.

Há, no entanto, um conjunto de apreciações sobre ciência e arte que acrescentam novos entretons à concepção de ciência psicológica.

Na abordagem do processo criador, Dante aponta para a necessidade de diferençar e comparar o pensamento produtivo (ou criativo) na ciência e na arte. O cunho expressivo, e não utilitário, da arte estabelece um diferencial fundamental em relação ao processo criativo na ciência e na técnica. Para o autor, as diferenças entre o pensamento produtivo na ciência e na arte devem ser tomadas como objeto de investigação pela Psicologia, pois ajudam a esclarecer o processo criador. Coerente com esta posição, sua abordagem do pensamento produtivo transcorre num constante cotejamento da ciência e da arte. Dessas comparações, Dante conclui que as teorias científicas seriam pautadas por uma noção de progresso que permitiria uma ordenação de inovações e superações das mesmas numa espécie de continuum de aperfeiçoamento. O mesmo não é verdadeiro para a filosofia, cujo processo não está ligado à idéia de superação de uma teoria mais antiga pelas mais recentes. Neste esquema, as ciências humanas ocupariam uma posição intermediária entre as ciências naturais e a filosofia. A arte, por seu turno, estaria muito mais próxima da filosofia do que das ciências naturais, pois, "a rigor nada pode ser ultrapassado ou superado na arte" (Leite, 1987, p. 50).

Esta inesgotabilidade da arte requer da ciência psicológica que pretende interpretá-la um posicionamento claro quanto à relatividade e especificidade de sua contribuição. E Dante não se esquiva de dar indicações sobre sua opinião quanto ao empreendimento de interpretação psicológica da literatura. Partindo do modelo de equílibrio, tensão e desequilíbrio, tomado à Gestalt e central nessa obra, compara a ciência e a literatura, nos seguintes termos:

... enquanto a solução produtiva na ciência tende ao estabelecimento do equilíbrio, a situação na literatura não é tão clara. Uma solução de problema científico permite explicar um fenômeno até então ignorado. Evidentemente, esse equilíbrio não é definitivo, e a proposição inovadora cria uma nova situação de desequilíbrio; assim, esta passa a ser o problema científico que deve ser solucionado. Por isso mesmo, pode haver continuidade nas sucessivas teorias, e sempre podemos dizer que uma é mais completa do que a outra. No caso da literatura, ao contrário, é impossível pensar nessa continuidade linear, em parte porque a obra literária não supõe o desaparecimento do sistema de tensões, mas a sua expressão. Portanto, enquanto a ciência pretende solucionar um conflito, a literatura procura exprimi-lo. (Leite, 1987, p. 243)

A interpretação psicológica da literatura, especialmente aquela que se dirige ao texto, só pode se apresentar como uma perspectiva entre outras, "como forma de revelar algumas das virtualidades" da obra. Concomitantemente, Dante não descarta, ao contrário, valoriza, a contribuição que a literatura pode oferecer à Psicologia. Considera, então, que:

A análise psicológica do texto apresenta ainda um outro desafio ao psicólogo, sobretudo ao teórico da personalidade: embora a personagem seja criada pelo ficcionista, nela percebemos uma realidade indiscutível, freqüentemente mais completa que a percebida na descrição do psicólogo. Neste caso, não é a Psicologia que esclarece a literatura, mas a literatura que pode auxiliar a Psicologia, em busca de critérios para descrever a individualidade. (Leite, 1987, p. 244)

Esta inversão é significativa pois, embora Dante não avance na discussão de seus desdobramentos - ele está terminando sua pesquisa -, ela remete ao próprio estatuto da Psicologia como ciência. Entre o fascínio da descrição literária que, como a vida humana, dá suporte a uma produção inesgotável de interpretações, e a descrição psicológica que busca concluir, Dante parece deixar uma brecha por onde caminha, oscilando entre a visão científica e a poética.

Estas observações sobre a relação entre Psicologia e Literatura introduzem, de certa maneira, o tema da interdisciplinaridade.

Visão e prática da interdisciplinaridade

É importante destacar, antes de apresentar uma síntese das idéias de Dante sobre a questão, o fato dele ter sido um intelectual nascido, ainda, no espírito de uma formação humanística que não dispensava o conhecimento de filosofia, antropologia, história e sociologia em favor da especialização técnica. Está-se, portanto, diante de um psicólogo, pois era assim que ele se reconhecia enquanto pesquisador e teórico, que transita com competência e rigor pelas áreas do conhecimento que ora contextuam, ora criticam, ora complementam os conhecimentos psicológicos. A interdisciplinaridade que praticou é filha, talvez, de seu apreço igualmente grande pela Psicologia e pela literatura e pode ser lida como fruto de uma conciliação prazenteira entre "dois amores," mas também de uma visão aguda dos limites de cada disciplina, aliada ao conhecimento amplo dos desenvolvimentos científicos nas áreas "irmãs."

Dante faz apelo a uma interdisciplinaridade entendida como cooperação entre áreas do saber, centrada em fenômenos específicos. Esta cooperação, por sua vez, só é possível a partir de uma maturidade que se espelha num dimensionamento modesto e relativo das perspectivas, bem como num abandono de aspirações totalizadoras de cada disciplina. Em Psicologia e literatura, ao criticar os psicologismos e os sociologismos na análise de obras literárias, traça o âmbito em que acredita ser pertinente uma contribuição da Psicologia para a compreensão dos processos criativos que ocorrem na literatura referentes ao pensamento criador, ao texto e à recepção pelo leitor. Restringindo os objetivos de uma abordagem psicológica da literatura, indica, também, sua posição com relação à interdisciplinaridade. Ele afirma:

O fato desta perspectiva não apresentar uma solução geral ou total para a análise da obra literária não deve ser muito frustrador para o psicólogo ou para o crítico. Afinal, se a psicologia ainda não atingiu a consagração provecta das ciências mais antigas - como a física, a química, a biologia - já ultrapassou a crise adolescente de ambição desmedida e já tem, pelo menos, a modéstia da maturidade. Por seu lado, o crítico já aprendeu a não esperar soluções definitivas ou geométricas para os problemas da análise literária e parece admitir a cooperação de outras ciências e de outras perspectivas. (Leite, 1987, p. 17)

Dante delineia seu comentário sobre a interpretação da obra de arte, articulando-a a uma visão do tempo histórico e à diversidade dos modos de perspectivar próprios de diferentes disciplinas. Em suas palavras:

Na realidade, se nenhum objeto do mundo físico pode ser inteiramente descrito, é fácil compreender que não temos recursos para esgotar a significação de uma obra de arte. Neste caso, podemos dizer, apenas, que nossas interpretações são mais ricas ou mais pobres, mais amplas ou mais limitadas do que outras. Além disso, talvez não seja errado dizer que, no caso da literatura, tal como ocorre na História e na Filosofia, cada época é obrigada a encontrar uma interpretação mais adequada ou satisfatória para os problemas que enfrenta, ainda que estes não tenham sido os da época ou do artista. As paixões, as angústias e as alegrias do passado desapareceram com os homens que as sentiram; ainda que fosse possível tentar reconstruí-las, esta reconstrução não teria caráter estético. Para que permaneçam como obras de arte, os produtos do passado precisam ser vistos pelo presente. Ainda que essa atualização seja uma das ambigüidades da arte, e ainda que a realidade artística seja, reconhecidamente, uma forma equívoca ou ilusória do real, só através dela a obra de arte pode ser refeita por sucessivos espectadores; por isso, cada época e, até certo ponto, cada leitor devem refazer a obra de arte, para que esta adquira plenitude estética. Assim podemos compreender a significação de diferentes perspectivas de análise. Cada uma delas pode apresentar uma contribuição para o leitor ... (Leite, 1987, pp. 116-117)

A clareza de um recorte psicológico torna-o disponível como interpretação válida sobre a obra de arte e esta mesma visão pode ser transposta para os fenômenos da vida sobre os quais a Psicologia Social se debruça.

No interior da Psicologia, Dante defende o enfrentamento da pluralidade de teorias psicológicas através de um exame daquilo com que cada uma pode contribuir para iluminar um determinado objeto de pesquisa. A busca de articulação de conceitos de diferentes correntes psicológicas tem como pano de fundo duas preocupações básicas: a aproximação entre teoria e fenômeno e a evitação de um "ecletismo oportunista." Segundo o autor:

... devemos dirigir nosso esforço, não para a formulação de pesquisas onde os conceitos possam ser utilizados de forma imprecisa e, na realidade, cheguem a perder sua conotação original, mas para a tentativa de aplicar os conceitos a determinado problema, e neste avaliar as suas possibilidades de explicação. Somente assim podemos confirmar uma teoria, rejeitá-la ou verificar a necessidade de novos conceitos; dessa maneira, recusamos, tanto a aceitação sistemática de uma teoria, que obriga o pesquisador a deformar os fatos para que se submetam, de qualquer maneira, à teoria, quanto um ecletismo oportunista, que tenta acomodar teorias contraditórias, a fim de dar conta dos fatos encontrados. (Leite, 1987, p. 23)

Na pesquisa sobre o processo criador, Dante Moreira Leite combina conceitos da psicanálise e da gestalt de modo exemplar, explorando a complexidade do fenômeno: sua ligação com a percepção e com o inconsciente; seus aspectos formais e de conteúdo; seu enraizamento na fantasia, no sonho, na cultura e seu embate com a realidade; suas relações com os processos de equilibração e com a ambigüidade.

Diferença e pesquisa engajada

A análise de três obras de Dante Moreira Leite - O Caráter Nacional Brasileiro, Psicologia e Literatura e Psicologia Diferencial - revela um forte interesse deste autor pela questão das diferenças. O tema da diferença apresenta-se como uma espécie de fio que perpassa as obras, aparentemente tão distantes, tematicamente, umas das outras.

Em O Caráter Nacional Brasileiro: História de uma Ideologia a questão da diferença entre povos e grupos sociais é motivo para uma incursão teórica e uma pesquisa sobre material literário em cujo centro fulgura o desejo de desvendar e, até certo ponto, desmascarar o uso ideológico das diferenças. No livro Psicologia e Literatura, Dante empreende uma minuciosa interrogação em torno daquilo que marca e distingue o indivíduo criativo, bem como o pensamento criador e suas produções. Já em Psicologia Diferencial, trata-se das contribuições que a Psicologia trouxe e poderia vir a trazer para a compreensão das diferenças entre indivíduos, grupos e gêneros. Num certo sentido, este último livro congrega e concentra esta preocupação com a diferença, retomando e expondo de modo mais didático, como num manual, perguntas e modos de tratar o assunto que aparecem nos outros dois livros.

Não sem ricas ambigüidades, Dante projeta o saber produzido no rigor científico como um forte antídoto contra os preconceitos, os conflitos e a intolerância que surgem das relações humanas em vários níveis - interpessoal, inter-grupo, entre povos. Então, por exemplo, em Psicologia Diferencial, mostra as limitações da quantificação de características psicológicas e suas apropriações ideológicas ligadas ao preconceito e à discriminação, ao mesmo tempo em que define e defende a área de Psicologia diferencial como ciência capaz de denunciar "falsas razões" para a discriminação contra loucos, deficientes, mulheres, raças etc.

Vê-se, portanto, nessas obras de Dante uma dupla preocupação em relação às ciências humanas, dentre elas, especialmente, a Psicologia: por um lado, garantir o estatuto científico destes saberes e, por outro, colocá-los a serviço de um "uso" democrático, ético, igualitário e solidário. Enquanto aspira à quantificação de certas variáveis que permitiria comprovar hipóteses, mantém lucidez quanto aos resultados pobres, e mesmo distorcidos, a que ela pode levar. Uma citação exprime, fazendo apelo à ironia a que tantas vezes recorre, os termos desta tensão. Explicando o sentido do termo teste, o autor conclui com as seguintes palavras:

Embora em português o verbo testar signifique fazer testamento, os estudantes de psicologia e psicólogos tendem, cada vez mais, a empregar o verbo testar com o sentido de verificar, - por exemplo, testar uma hipótese; ou, então, com o sentido de aplicar teste, - por exemplo, testar a criança. É provável que o neologismo permaneça; afinal, os testamentos são cada vez mais raros, e os testes cada vez mais freqüentes. (Leite, 1966, p. 40)

O testamento, também como testemunho, está inscrito na literatura que, para Dante, tem valor universal e fala por si mesma a todos os homens, em qualquer tempo. Em relação à literatura a mesma tensão se apresenta: tomá-la como objeto para o saber científico pode significar um empobrecimento ou redução de seu poder e valor como testemunho da existência humana e, por outro lado, ela própria é portadora de um saber que pode apresentar-se superior àquele representado pela Psicologia científica.

É importante, mais uma vez, destacar que o pensamento do autor, ao longo das três obras, é capaz de sustentar estas tensões, oscilando entre posições mais claramente cientificistas e outras que, a certa distância, permitem enxergar a ciência como ideologia ou como possibilidade de interpretação entre outras. Estas oscilações parecem, no entanto, ter, quase sempre, como origem e fundamento, a busca de um conhecimento comprometido com a constituição de uma comunidade humana capaz de conviver, tolerar e aprender com a diferença. E, pode-se arriscar dizer que seu interesse pelo tema da diferença está voltado mais para a afirmação de uma comunalidade entre os homens do que para a afirmação de suas diferenças. Um argumento desta comunalidade a que, reiteradamente, recorre em suas obras é sintetizado no livro Psicologia Diferencial nos seguintes termos:

... e não se deve esquecer que aquilo que os homens têm em comum, qualquer que seja a região em que vivem, é bem mais significativo do que as diferenças que os separam. Se não fosse assim, não seríamos capazes de aceitar o cinema japonês, a literatura russa, as invenções tecnológicas americanas, compreender a arte dos primitivos. Se somos capazes de aceitar criações tão diversas, e incorporá-las à nossa maneira de viver, isso prova que não existe incompatibilidade entre nacionalidades, nem entre indivíduos de regiões muito distantes. (Leite, 1966, pp. 125-126)

Schmidt, M. L. S.; Neves, T. F. S. (2000). Dante Moreira Leite: Psychological Science, Interdisciplinarity and Difference. Psicologia USP, 11 (2), 59-88.

Abstract: The purpose of this paper is to present some aspects of Dante Moreira Leite’s life and work, by the analysis of his main books and manuscripts, complemented through his colleagues and students’ testimonies. It attempts to build up the author’s intellectual image, stressing mainly his role in constituting teaching and research scientific patterns to Social Psychology in Brazil. It also seeks to understand his psychological science conceptions, interdisciplinary practices and the issue of difference as it appears in his work.

Index terms: Leite, Dante Moreira. Psychologists. Biography. Social psychology. Interdisciplinary research. Literature.

  • Allport, G. W. (1966). Personalidade: Padrőes e desenvolvimento (D. M. Leite, trad.). Săo Paulo: Helder.
  • Anastasi, A. (1977). Testes psicológicos (D. M. Leite, trad.) (2a ed.). Săo Paulo: Epu.
  • Asch, S. E. (1966). Psicologia social (D. M. Leite, trad.) (4a ed.). Săo Paulo: Nacional.
  • Baldwin, A. L. (1973). Teorias do desenvolvimento da criança Săo Paulo: Pioneira.
  • Bosi, A. (1979). Prefácio. In D. M. Leite, O amor romântico e outros temas (2a ed. ampl., pp. xiii-xix). Săo Paulo: Nacional / Ed. da Universidade de Săo Paulo.
  • Bosi, E. (1976). Dante Moreira Leite. Cadernos de Pesquisa: Revista de Estudos e Pesquisas em Educaçăo, (17), 33-36. Săo Paulo: Fundaçăo Carlos Chagas.
  • Goffman, E. (1987). Manicômios, prisőes e conventos (D. M. Leite, trad.) (7a ed.). Săo Paulo: Perspectiva.
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  • Leite, D. M. (1966). Psicologia diferencial Săo Paulo: Buriti.
  • Leite, D. M. (1969). O caráter nacional brasileiro: História de uma ideologia (2a ed.). Săo Paulo: Pioneira.
  • Leite, D. M. (1979). O amor romântico e outros temas (2a ed. ampl.). Săo Paulo: Ed. Nacional / Ed. da Universidade de Săo Paulo. (Originalmente publicado em 1969 pela editora Pioneira)
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  • Leite, D. M. (s.d.b). A Psicologia social no Brasil. Arquivo Dante Moreira Leite, Araraquara, SP. Arquivo Dante Moreira Leite, Centro de Apoio ŕ Pesquisa em História da Universidade de Săo Paulo, P37 E41. (Estudo năo concluído)
  • Piaget, J., & Inhelder, B. (s.d.). Da psicologia da criança ŕ do adolescente Săo Paulo: Pioneira.
  • Rogers, C. R. (1978). De pessoa para pessoa: O problema do ser humano, uma nova tendęncia na psicologia (2a ed.). Săo Paulo: Pioneira.
  • Sawaia, B. B. (1996). Comunidade: A apropriaçăo científica de um conceito tăo antigo quanto a humanidade. In R. H. F. Campos (Org.), Psicologia social comunitária: Da solidariedade ŕ autonomia (pp. 35-53). Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Szasz, T. S. (1978). Fabricaçăo da loucura: Um estudo comparativo entre a aquisiçăo e o movimento de saúde mental (D. M. Leite, trad.) (3a ed.). Rio de Janeiro: Zahar.
  • 1
    Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP – CEP 05508-900. E-mail:
  • 2
    O Arquivo encontra-se no Centro de Apoio à Pesquisa em História (CAPH) da Universidade de São Paulo e reúne material referente à produção intelectual de Dante Moreira Leite, escritos literários, documentos pessoais, fotografias, entre outros.
  • 3
    Foram colhidos seis depoimentos: Arrigo Leonardo Angelini, Geraldo José de Paiva, Maria Helena Souza Patto, Maria Margarida Moreira Jorge de Carvalho, Miriam Lifchitz Moreira Leite, Sylvia Leser de Mello.
  • 4
    A seguinte citação retirada de um manuscrito do autor explicita um dos sentidos desta mediação: “... O que mais se salienta no domínio que denominamos Psicologia Social é o fato de estudar, não o indivíduo ou o grupo, mas o que ocorre ao indivíduo na situação de grupo ou o que leva para a vida de grupo. Esses dois polos - indivíduo e grupo - são muitas vezes considerados como antagônicos, outras vezes como complementares. É evidente que o ideal seria que o psicólogo social tivesse conceitos específicos para lidar com os fenômenos que estuda, e parece que alguns conceitos como percepção social, atitude, preconceito, já podem ser considerados como constituintes de uma ordem peculiar de fenômenos estudados pelo psicólogo social, pois não se referem nem ao indivíduo isolado e nem à cultura, mas ao ponto em que indíviduo e cultura ou indivíduo e grupo constituem uma área de superposição ou região em que não há propriamente grupo e nem propriamente indivíduo, mas indivíduo no grupo ou grupo no indivíduo.” (Leite, s.d.b, P37E41)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2001
    • Data do Fascículo
      2000
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