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De Malba Tahan a Mello e Souza: a construção de uma identidade (1923-1938) 1 1 Editor responsável: Helena Sampaio https://orcid.org/0000-0002-1759-4875 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Carneiro da Silva Junior (Tikinet) revisao@tikinet.com.br 3 3 Apoio: Pesquisa financiada pelo PNPD-CAPES. A autora agradece a Propesp - UFPA o financiamento da tradução do artigo para a língua inglesa.

De Malba Tahan a Mello e Souza: la construcción de una identidad (1923-1938)

Resumo

O objetivo deste artigo é estabelecer os paralelos existentes entre as mudanças ocorridas no final da década de 1920 concernentes ao ensino da matemática no Brasil e a produção ficcional de Júlio Cézar de Mello e Souza (Malba Tahan). O período escolhido para análise está circunscrito entre o início da década de 1920 e a publicação de O homem que calculava, em 1938. Parte-se do pressuposto de que Malba Tahan, “escritor árabe”, surge antes do escritor Mello e Souza, ou seja, como um escritor “árabe”. O processo de identificação com o pseudônimo foi gradual. Na época da publicação dos primeiros contos havia dúvidas quanto à autoria, enquanto em 1938 já era conhecido de todos que Malba Tahan era o pseudônimo de Mello e Souza. Pretende-se, portanto, trabalhar com dois aspectos. Um deles está voltado à forma como Mello e Souza se colocou como escritor de ficção ao longo dos anos. O outro condiz com a sua atividade como educador e os reflexos em sua produção ficcional, em especial, na obra O homem que calculava. Ambos partem do pressuposto de que houve um processo de construção de identidade perante o público.

Palavras-clave
Malba Tahan; historia de la educación matemática; prensa y literatura

Resumen

El objetivo de este artículo es establecer el paralelismo entre los cambios ocurridos desde lo final de la década de 1920 en la matemática en Brasil y la producción ficticia de Júlio Cézar de Mello e Souza (Malba Tahan). El período elegido para el análisis se circunscribe entre principios de la década de 1920 y la publicación de O homem que calculava, en 1938. Se supone que Malba Tahan, “escritor árabe”, aparece ante el escritor Mello e Souza, o sea, como un Escritor “árabe”. El proceso de identificación con el seudónimo fue gradual. En el momento de la publicación de los primeros relatos, existían dudas sobre la autoría, mientras que en 1938 ya era de todos conocido que Malba Tahan era el seudónimo de Mello e Souza. Por lo tanto, se pretende trabajar con dos aspectos. Uno de ellos se centra en la forma en que Mello e Souza se ha posicionado como escritor de ficción. El otro es consecuente con su actividad como educador y los reflejos en su producción ficcional, especialmente en la obra O homem que calculava. Ambos parten del supuesto de que hubo un proceso de construcción de identidad ante el público.

Palavras-chave
Malba Tahan; história da educação matemática; literatura e imprensa

Abstract

This article aims to establish the parallels between the changes that occurred at the end of the 1920s concerning teaching mathematics in Brazil and the fictional production of Júlio Cézar de Mello e Souza (Malba Tahan). The period chosen for analysis is circumscribed between the beginning of the 1920s and the publication of O homem que calculava in 1938. It is assumed that Malba Tahan appears before the writer Mello e Souza, which means an “Arab” writer. The process of identification with the pseudonym was gradual. There were doubts about the authorship at the time of the publication of the first short stories. In 1938, it was already known to everyone that Malba Tahan was the pseudonym of Mello e Souza. Therefore, we intend to work with two aspects. One focuses on how Mello e Souza has positioned himself as a fiction writer. The other consists of his activity as an educator and the reflections in his fictional production, especially in the work O homem que calculava. Both start from the assumption that there was a process of identity construction before the public.

Keywords
Malba Tahan; history of mathematics education; literature and press

Introdução

Sou o mais humilde dos seus atentos admiradores. Cada conto que a mágica pena sua grava, é, para mim, o motivo de um bem-estar extraordinário. Sinto uma felicidade estranha ao contato das suaves, carinhosas e moralizadoras prédicas, portadoras de lições de elevado valor para almas em formação e mesmo para aquelas já formadas.

Os seus livros valiosos são um tesouro que guardo com cuidado. Sinto, porém, que os seus escritos preciosos fazem-me um mal: a curiosidade de conhecer-lhe

(Fundo Malba Tahan, 02.004.0042-02Fundo Malba Tahan. Centro de Memória da Educação. Faculdade de Educação, Unicamp.).

Esta carta foi escrita por um leitor das narrativas de Malba Tahan. Não tem data, mas, de acordo com a forma de arquivamento dos cadernos de recortes do autor existentes no Fundo Malba Tahan no Centro de Memória da Educação da Faculdade de Educação da Unicamp (CME), deve ter sido escrita por volta de 1930. Chama atenção por dois motivos. O primeiro deles está na interpretação dada aos contos – até esta data, Mello e Souza4 4 Júlio César de Mello e Souza nasceu em 1895 e faleceu em 1974. Foi professor de matemática de diversas instituições, entre elas, do Colégio Pedro II, autor de diversas obras de ficção e de livros de matemática. Teve ampla publicação de seus textos na imprensa. , assinando como Malba Tahan, só havia escrito contos –, o outro está na curiosidade de conhecer o escritor.

Seria esta curiosidade derivada de uma confusão entre autor/escritor árabe ou o leitor sabia que Malba Tahan era o pseudônimo de Mello e Souza, professor de matemática? O tópico principal deste artigo está em mostrar o processo histórico que gerou a criação de Malba Tahan até a publicação de seu romance, O homem que calculava, em 1938O homem que calculava. (1938, 22 de dezembro). O Malho. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116300
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5 5 André de Faria Pereira Neto (2012) afirma que a 1ª edição é de 1937. Contudo, em reportagem de 20 de julho de 1939, a obra estaria na sua 4ª edição em menos de quatro meses, o que indica uma enorme popularidade (Tahan, 29 jul. 1939). O escritor querido de todos os leitores do Brasil. O homem que calculava). Há anúncios nos jornais da época anunciando a 2ª edição em finais de 1938, sendo que a primeira edição ainda era anunciada neste mesmo ano (O homem que calculava, 24 set. 1938, 22 dez. 1938). Possivelmente, em julho de 1939 havia quatro edições da editora Getúlio M. Costa. Em 1938, os anúncios são da Editora A.B.C. Não foram encontradas referências para o ano de 1937. , levando em consideração também os debates em torno das alterações na matemática ocorridas no final da década de 1920 no Brasil. A análise de alguns contos, as críticas feitas para as suas obras e a publicidade de seus primeiros livros (especialmente Céu de Allah e Contos de Malba Tahan) apontam para uma confusão entre pseudônimo e autor. Mello e Souza seria Malba Tahan ou não? Malba Tahan era um escritor “árabe”? Quem era o seu público? Essas questões nortearão a primeira parte do artigo, cuja conclusão apontará que Mello e Souza tinha a intenção de embaralhar as identidades. Mostraremos que Malba Tahan surge, inicialmente, como um escritor de origem árabe para, somente depois de alguns anos, tornar-se o pseudônimo de Mello e Souza para a maior parte de seu público.

Em um segundo momento, observará os debates da disciplina matemática gerados no final da década de 1920 no Colégio Pedro II e a aprovação das mudanças no período, dando especial atenção para os recortes de jornal existentes no Fundo Malba Tahan. Como será visto, Mello e Souza se inseria no movimento de debates e mudanças (em relação às aulas e ao material didático) da disciplina. Em certo sentido, esse processo é apropriado para as suas obras literárias, especialmente O homem que calculava, primeiro romance do escritor.

Na última parte do artigo, está uma pequena incursão a O homem que calculava, com o objetivo de mostrar que, em especial naquele momento, Mello e Souza, trazendo a matemática em todos os capítulos, assumia, de certa forma, o professor-literato, e identificava-se como Malba Tahan para todos os seus leitores. De fato, nesse momento, Malba Tahan, mesmo com tantas incursões pelo mundo árabe, pode assumir a sua identidade: a de Júlio César de Mello e Souza.

O método utilizado para a elaboração do artigo se pauta na análise das obras a partir do contexto de produção, levando em conta a publicação de contos na imprensa da época e também sob a forma de livro. Ainda em relação à imprensa, considera-se excertos de comentários sobre as obras e sobre o autor. Na medida do possível, também foi dada importância para o material selecionado por Júlio Cézar de Mello e Souza em seu acervo pessoal. Assim, cartas, recortes de jornais e marcações feitas em textos de outros autores que foram catalogados pelo próprio Mello e Souza ajudaram na análise do material.

Englobar as práticas de leitura e as possíveis apropriações dos textos considera a perspectiva de análise dada por Chartier em que as obras estão em diálogo com os diversos sujeitos envolvidos no processo de produção, sendo que os sentidos que os leitores empregam dependem de uma reconstrução das relações entre leitor, autor, editor e outros sujeitos envolvidos no processo de produção, ou seja, levam em conta uma contextualização no universo de produção e recepção das obras. Ainda consideram a existência de “apropriações plurais que sempre inventam, deslocam, subvertem” (Chartier, 2002Chartier, R. (2002). História e literatura. In À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude (pp. 255-272). Ed. Universidade/UFRGS., p. 259). Neste sentido, o fato de “Malba Tahan” aparecer em primeiro plano no início da carreira literária de Mello e Souza faz parte de um processo de construção de uma imagem que será reflexo daquela que Mello e Souza, enquanto professor e escritor, criava para si próprio ao longo das décadas de 1920 e 1930.

Malba Tahan construindo Mello e Souza

Com a curiosa sátira intitulada ‘O juiz’, iniciamos, dentro de alguns dias, a publicação de uma série de pequenos contos do original escritor anglo-árabe Hank Malba Tahan. Um dos nossos colaboradores vai traduzir e adaptar, especialmente para os leitores da A NOITE, todas as histórias e lendas das principais obras de Malba Tahan – ‘Rosa-el-Kali’, ‘Histórias imitadas’, ‘Tempo de guerra’, ‘Mil histórias sem fim’, etc – às quais serão por nós publicadas sob o sugestivo título de ‘Contos de mil e uma Noites

(Contos de mil e uma ‘noites’, 7 jun. 1924Contos de mil e uma ‘noites’. (1924, 7 de junho). A Noite. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=348970
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).

Desde julho de 1924, são inúmeros os contos publicados e assinados como Malba Tahan, não apenas no jornal A Noite do Rio de Janeiro. Fica nítido, desde esse momento, que há a tentativa de construir uma identidade – a do escritor Malba Tahan. Há dois movimentos de fundamental importância. Um deles está na relação direta que aparece nas folhas da época, em especial ao longo do fim da década de 1920, entre Malba Tahan e o professor Mello e Souza. O outro se refere aos textos (contos) assinados por Malba Tahan e os significados possíveis para os leitores.

Para um leitor atento, Malba Tahan era um pseudônimo e o escritor que o dava suporte era outra pessoa, um literato. A utilização de pseudônimos era comum desde o século XIX não apenas no Brasil, e a construção de identidade para o pseudônimo também não era algo inédito. Fernando Pessoa já fizera isso e criara mais de um pseudônimo com identidades diversas. No Brasil, ainda no século XIX, a série “Balas de Estalo” da Gazeta de Notícias tinha vários pseudônimos, cada um de um escritor e, como consequência, possuía narradores com identidades diversas6 6 Sobre o caso de Balas de Estalo, ver Cernic (2008). . Aluísio Azevedo, sem assinar, escreveu uma série de cartas ao jornal A semana no início de 1885 para esclarecer o caso de desaparecimento de Castro Malta. Para os leitores da época, ficção e notícia se mesclavam, tanto que, neste último caso, sem alguma explicação, as cartas se transformam em um “romance ao correr da pena”7 7 Posteriormente reunido em livro (Azevedo, 1985). .

Mas, se por um lado fazia parte de um determinado contexto cultural essas identidades para escritores-personagens e havia uma fluidez entre espaço jornalístico e espaço ficcional (Kalifa, 1995Kalifa, D. (1995). L’encre et le sang. Récits de crime et société à La Belle Époque. Librairie Arthème Fayard.; Thérenty, 2003Thérenty, M.-E. (2003). Pour une histoire littéraire de la presse au XIXe siècle. Revue d’histoire littéraire de la France, 3. http://www.cairn.info/revue-d-histoire-litteraire-de-la-france-2003-3-page-625.htm
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), isso não significa que Mello e Souza tenha apenas seguido os passos de outros escritores. Ele inovou ao apresentar um determinado “oriente” que faz com que o público leitor se identifique, passando a obter um enorme sucesso, já perceptível na segunda metade da década de 1920.

Esse processo ocorreu de forma paulatina à identificação de Malba Tahan como Mello e Souza. Havia uma intenção clara de embaralhar e criar suspense ao redor da identidade de Malba Tahan. Apenas para um leitor muito atento e para seus colegas escritores, Malba Tahan era o pseudônimo de Mello e Souza.

Fica nítido o desejo do professor Mello e Souza se lançar no terreno da ficção desde os primeiros momentos. Assim, a primeira referência ao autor Malba Tahan aparece em um concurso de contos realizado pela Revista da Semana em 1923. “O perfume indiano” foi selecionado para concorrer entre os mais diversos contos de autores brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil. Tais autores não poderiam ter livro publicado, nem a identificação de nome verdadeiro (Concurso de contos da ‘Revista da Semana’, 1923Concurso de contos da ‘Revista da Semana’. (1923, 8 de setembro). Revista da Semana. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=025909
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). O nome “Malba Tahan” surgiu imerso nesse universo de autores que desejavam algum reconhecimento e vinculado diretamente a um nome fictício.

Pouco tempo depois, diversos contos de autoria de Malba Tahan começaram a aparecer, primeiro em jornais do Rio de Janeiro, depois também de outras capitais e cidades do interior. Em 1925 surgiu a primeira obra, uma reunião de contos: Contos de Malba Tahan, referência direta aos mesmos textos publicados (ou não) nas folhas.

Aqueles que apenas liam os contos nas folhas da época, ou em livros como Contos de Malba Tahan (1925), Céu de Allah (1928) e Lendas do oásis (1933), livros que aparecem com frequência nos anúncios e nas referências da crítica, poderiam, de fato, imaginar Malba Tahan como um escritor árabe. Isso está dado pelas referências a “histórias e lendas” de origem árabe; na indicação de que fazia parte de um ou outro livro já publicado, como indica a citação inicial sobre a publicação de seus contos no jornal A Noite; na utilização de termos específicos de uma cultura outra, distinta, diferente.

No conto “A bússola” (Tahan, 1924Tahan, M. (1924, 10 de julho). A bússola. A Noite. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=348970
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) torna-se patente a ascendência anglo-árabe de Malba Tahan. A história, narrada em primeira pessoa, conta sobre uma tropa no deserto que precisava chegar a uma cidade e, para isso, tinha um guia “árabe”. Após uma tempestade, o guia que se dizia perdido volta a conhecer o caminho apenas quando o comandante lhe concede uma “bússola” que era, de fato, uma bolsa de couro com moedas de ouro. Ao chegar à cidade, o comandante considera o guia como um traidor e pretende fuzilá-lo. Ao final do conto consta o seguinte: “A voz de fogo foi dada por mim. Malba Tahan (Do livro ‘Tempo de guerra’)”.

Malba Tahan poderia ser um escritor anglo-árabe. Em Contos de Malba Tahan (1925), ele é apresentado como “famoso escritor árabe” que “viveu doze anos em Manchester. Percorreu a Rússia, a China, a Pérsia e a Índia” e “manteve correspondência literária com Anatole France, Rudyard Kipling e o notável filólogo e orientalista francês Professor Gaudefroy-Demombynes”.

No prefácio à primeira edição desse livro, há um certo mistério em torno da “personalidade e da obra” de Malba Tahan. Para fornecer um caráter verossímil, indica que transcreverá um trecho da Short Stories Magazine da Filadélfia com uma crônica sobre o escritor. Em tal crônica, explica-se que Malba Tahan teve uma passagem efêmera, mas deixou alguns escritos e era mesmo um “chefe de escola”, possuindo “vários livros de contos produzidos num estilo sui generis”, com “histórias curtas”, “very thrilling indeed” (Tahan, s.d.Tahan, M. (s.d.). Contos de Malba Tahan (2a ed.)., p. 14). Viveu uma “vida de aventuras” e consta que, estando na Rússia com uma “empresa de saltimbancos”, “perde-se o fio de sua vida (andou preso por suspeito de espião)” para, finalmente “reaparecer na Pérsia, Índia e Shangai”. De acordo com o cronista (informado por outra pessoa), pode-se concluir de seus contos a influência de “Kipling, de Doyle, de Poe, de Rosny” (Tahan, s.d.Tahan, M. (s.d.). Contos de Malba Tahan (2a ed.)., p. 15).

Se em 1925 não era evidente a relação entre Malba Tahan e Mello e Souza, a partir de 1927 escritor e pseudônimo passam a ser vinculados de forma direta. Assim, em visita à cidade de Juiz de Fora, o Diário Mercantil faz o vínculo entre ambos, chamando-o de “apreciado ‘conteur’ arabista”, “contista de assuntos orientais” e afirmando que “está chegando a esta cidade o escritor Júlio Cesar de Mello e Souza, conhecido em todo o país sob o pseudônimo de Malba Tahan” (Diário Mercantil, 1927) para realizar uma conferência sobre literatura infantil.

Exibindo de maneira clara a relação entre autor e pseudônimo, tornam-se, por outro lado, destoantes os anúncios de Contos de Malba Tahan feitos nas folhas O Tico-Tico e em O Malho entre 1925 e 1929 que relacionam Malba Tahan a um escritor árabe: “adaptação da obra do famoso escritor árabe”. Numa espécie de jogo, a identidade de Malba Tahan como Mello e Souza acontecia paulatinamente. Certamente, essa era uma forma de valorizar as diversas narrativas que apontavam para um conhecimento profundo de outra cultura.

Assim, surgiam diversas obras, das quais eram extraídos os seus contos, como: Histórias Imitadas (“O juiz”); Roba-el-Kalil (“Devoradores de reis”, “O mais honesto”, “Sassevasá”); Sorr-el-layal (“O leão”); Tempo de guerra (“A bússola”), entre outros. Indicar que um conto já estava publicado em um desses volumes ressaltava a história inventada para o pseudônimo, reafirmando a origem árabe do escritor. Contudo, nenhum desses livros existiu de fato.

Se haviam contos extraídos de livros inexistentes, outros derivavam de livros que surgiram posteriormente, como O homem que calculava. Assim, o conto “O homem que calculava” (Diário de São Paulo, 1929Diário de São Paulo. (1929). Em Fundo Malba Tahan 02.002.0101.01.) ocupou quase uma página inteira da folha paulista8 8 “Especial para O Diário de São Paulo e O Jornal do Rio”. e equivalia aos capítulos I a IV do livro. O “jovem calculista” também tinha outro nome: Mesoud ibn Haran, em vez de Beremis, e há alterações no texto. No conto publicado nas folhas, o texto é mais conciso, não há divisão entre os capítulos, nem mesmo os pequenos resumos que ocupam a parte inicial dos capítulos no livro. Nota-se uma alteração na dedicatória inicial: de “sete sábios cristãos ou ateus” (no conto - Fermat, no livro - Descartes, Newton, Pascal, Leibniz, Euler, Lagrange, Comte) passaram a ser “agnósticos” no livro.

Outra referência a O homem que calculava aparecia em 31 de março de 1931 no Diário da Noite do Rio de Janeiro na seção “Lanterna Mágica” e não se referia a nenhum dos capítulos do livro. O título é o mesmo, “O homem que calculava” e consta a referência no final da narrativa: “do livro O homem que calculava”. Pode-se concluir que o escritor já tinha em mente um projeto literário que se finaliza com a publicação de O homem que calculava em 1938? Ou essas amostras apontam para outra direção? Considerando que Mello e Souza tinha como um costume fazer referências a outras obras que nunca foram publicadas, talvez o melhor a cogitar seja que não existia nenhum projeto feito ao longo do tempo.

Em 1926, em seção “Os novos livros” da Revista da Semana, os Contos de Malba Tahan são vinculados a Mello e Souza, mas retirando a coincidência entre autor e pseudônimo:

Malba Tahan, escritor árabe desconhecido no Brasil, foi divulgado pelo sr. J.C. de Mello e Souza. Dele publicou “A Noite” muitos contos e a “Revista da Semana” também, contos pequenos, fortes, de grande fundo moral, traindo na sua fórmula de parábolas o feitio árabe

(Os novos livros, 1926Os novos livros. (1926, 30 de janeiro). Revista da Semana. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=025909
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).

Muitos contos (mas não todos) possuíam uma conclusão que se remetia a uma determinada “moral da história”. Assim, por exemplo, “O leão”, publicado em O Tico-Tico (Tahan, 19 jan. 1927Tahan, M. (1927, 19 de janeiro). O leão. O Tico-Tico. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=153079
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), conta a história de quatro irmãos jovens e viajantes que atravessavam uma floresta. Três deles haviam estudado “magias, a alquimia e as ciências ocultas” e o último deles era apenas muito inteligente, com um “bom senso e prática da vida”. Ao se depararem com os ossos de um leão, os três irmãos mágicos combinam de mostrar “o poder da ciência” ao “irmão ignorante”. Assim, o primeiro, com uma palavra mágica, reconstrói o esqueleto do leão com perfeição; o segundo fornece músculos, pele, sangue e órgãos; o terceiro diz que fará o leão ter vida e força graças a uma palavra mágica.

Neste instante, o quarto irmão diz aos outros: “- Cuidado! Não pronuncies a tal sílaba encantada! Não vês, então, se este leão recuperar a vida e a força, será capaz de nos devorar?”. Diante da negativa dos três irmãos, o quarto irmão pede para, antes de pronunciar a palavra, que o deixem subir numa árvore. O leão, assim que voltou à vida, devorou rapidamente os três mágicos. Conclusão de Malba Tahan: “Ah sábios imprudentes! Ao homem não basta só a ciência. Essa de nada vale se não for aliada à Prudência e à Moderação”. Este tipo de conclusão era comum em vários de seus contos e apontam para ensinamentos simples como este de que nada vale o conhecimento sem a prudência ou, para voltar ao início da narrativa, sem a “inteligência, bom senso e prática da vida”.

Se a perspectiva de Mello e Souza com a criação do pseudônimo Malba Tahan foi a de se consolidar como um escritor “anglo-árabe” mesmo que, de tempos em tempos, houvesse a relação entre pseudônimo e Mello e Souza, estava clara a tentativa de se inserir em um mercado já consolidado de literatura infantil9 9 Sobre o mercado de literatura infantil ver Raffaini (2016), Hansen (2016) e Leão (2007). . Neste interim, cabe mencionar a grande parte de contos publicados no semanário infantil O Tico-Tico, na seção do “Jornal das crianças” de O jornal, no Jornal do Commercio, na seção assinada pela “Associação brasileira de educação”, ou a indicação de Contos de Malba Tahan como um livro para fazer parte da “Biblioteca para crianças e adolescentes.” (Associação Brasileira de Educação, 1928Associação Brasileira de Educação. (1928, 22 de julho). Biblioteca para crianças e adolescentes. Jornal do Commercio. https://memoria.bn.br/DocReader/‌docreader.aspx?bib=364568_11
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).

O desejo de Mello e Souza como Malba Tahan estava em se inserir como alguém que dominava uma outra cultura, considerada distinta. Assim, muitos são os contos em que os subtítulos se destacam como “segundo as crenças muçulmanas”, (Tahan, 19 jan. 1927Tahan, M. (1927, 19 de janeiro). O leão. O Tico-Tico. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=153079
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), “Fábula hindu para crianças” (Tahan, 1931aTahan, M. (1931a). O eremita indu. Lanterna Mágica, Diário da Noite. Fundo Malba Tahan 02.004.0063-02.), “parábola hindu” (Tahan, 1931bTahan, M. (1931b). O nome de Deus. Lanterna Mágica, Diário da Noite. Fundo Malba Tahan 02.004.0044-02.), “lenda árabe” (Tahan, 1931cTahan, M. (1931c). Maktub! A noite ilustrada. Fundo Malba Tahan 02.006.0020-02.), “lenda oriental” (Tahan, 27 fev. 1927Tahan, M. (1927, 27 de abril). A lenda dos peixes vermelhos. O Tico-Tico. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=153079
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).

Ainda em relação à aproximação do escritor Mello e Souza com o pseudônimo Malba Tahan, uma reportagem publicada no Malho em 1933 aponta-o como o “escritor do Oriente”, mas ressalta que se trata de um “nome árabe que esconde uma das mais fulgurantes expressões da matemática no magistério nacional”. Mesmo que em nenhum momento a folha indique a relação entre Mello e Souza e Malba Tahan (nem mesmo pela fotografia), os leitores que acompanhavam de perto as obras de Malba Tahan certamente sabiam que era o pseudônimo de Mello e Souza. De qualquer forma, na fotografia da “leitura das mãos de Malba Tahan” (“De como Malba Tahan”, 18 fev. 1933De como Malba Tahan, o escritor do Oriente, encontrou-se com os professores Sana-Khan e Chacarian, a quem Alá deu o dom de ler o destino dos homens…. (1933, 18 de fevereiro). O Malho. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116300
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), o escritor não aparece:

Figura 1
18 de fevereiro de 1933

Situação bem distinta de poucos anos mais tarde, em Belo Horizonte, em que Mello e Souza, ao se dirigir ao repórter, enfatiza que em vista dos “complexos assuntos que norteavam o campo educacional”10 10 Refiro-me às reformas que ocorreram a partir de 1929. No caso da matemática, ocorreu a fusão entre os conteúdos da aritmética, álgebra e geometria, que passaram a valer oficialmente com a reforma Francisco Campos na década de 1930 e causaram diversos debates entre o professorado brasileiro. Sobre o tema ver, Valente (2004). Relacionado às reformas na área da educação na época, ver Carvalho (2000), Paulilo (2015) e Vidal (2008). , a entrevista se voltaria para o “escritor oriental”: “Malba Tahan que lhe está às ordens para qualquer pergunta sobre o Oriente”. Mello e Souza aparece no centro da fotografia e não resta a menor dúvida em torno da identidade de Malba Tahan. Agora, com toda a certeza, todos sabiam que Malba Tahan era Mello e Souza (Diário, 1936).

A matemática de Mello e Souza e o diálogo com a história da educação

Há, ao menos, duas vertentes em torno da matemática ensinada por Mello e Souza. Uma delas defende que ele foi “pioneiro e inovador” (Lorenzato, 1995Lorenzato S. (1995). Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, 3(4)., p. 101), “precursor em relação ao ensino da Matemática” (Lorenzato, 1995Lorenzato S. (1995). Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, 3(4)., p. 102), um “visionário” que “plantou as sementes da educação matemática e da interdisciplinaridade” (Faria, 2004Faria, J. (2004). A prática de Júlio César de Mello e Souza Malba Tahan: um olhar a partir da concepção de interdisciplinaridade de Ivani Fazenda [Dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo]., p. 175). Lorenzato, em mais de um artigo, não deixa de indicar a admiração pelo “mestre”11 11 Ver também Lorenzato (2015). . Juraci de Faria, de forma bastante próxima a Lorenzato, privilegia a atuação de Mello e Souza indicando sua excepcional capacidade de ensinar a matemática de forma simples, incentivando o aluno ao interesse pela disciplina.

A concepção de um educador “inovador” e “à frente de seu tempo” foi incorporada por mais de um autor, dentre os quais Sérgio Lorenzato (1995Lorenzato S. (1995). Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, 3(4)., 2005), Juraci de Faria (2004)Faria, J. (2004). A prática de Júlio César de Mello e Souza Malba Tahan: um olhar a partir da concepção de interdisciplinaridade de Ivani Fazenda [Dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo]. e Souza e Fossa (2014)Souza, E. K. V., & Fossa, J. A. (2014). O pioneirismo de Malba Tahan na educação matemática brasileira [Apresentação de trabalho]. 14º Seminário de História da Ciência e da Tecnologia, Belo Horizonte, MG, Brasil.. O pioneirismo, para esses autores, é consequência, principalmente, de um ensino da matemática de forma interdisciplinar, em que a valorização da compreensão pelo aluno ocupa lugar central. Tornar as aulas agradáveis e descomplicadas era o objetivo de Mello e Souza, que propunha “alternativas para melhorar o ensino-aprendizagem da Matemática” (Lorenzato, 1995Lorenzato S. (1995). Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, 3(4)., p. 97) em uma época em que ainda não se valorizava o aluno e não existia a concepção de Educação Matemática e Laboratório de Ensino da Matemática, algo mais comum entre os professores da atualidade (Lorenzato, 1995Lorenzato S. (1995). Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, 3(4)., p. 97-98)12 12 “Atualidade” seria 1995 pelo artigo. .

Para Lorenzato, a criação de Malba Tahan foi uma forma de tornar a Matemática acessível e descomplicada a um maior número de pessoas avessas à disciplina. Com a criação do pseudônimo oriental, Mello e Souza tinha como intenção “contribuir para a melhoria do ensino da Matemática” (Lorenzato, 1995Lorenzato S. (1995). Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, 3(4)., p. 99). De acordo com Lorenzato, isso pode ser confirmado no prefácio da 2ª edição de 1961 da Antologia da Matemática, pois nele o autor explica que o livro não foi escrito apenas para aqueles que estão próximos do “mundo matemático”, mas para todos que podem entender “de modo simples e claro, [a partir de] histórias, fantasias, biografias, curiosidades, paradoxos, erros famosos, problemas célebres, enfim, [a partir de] assuntos aplicáveis ao ensino vivo e eficiente da Matemática’” (Lorenzato, 1995Lorenzato S. (1995). Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, 3(4)., p. 99).

“Estar à frente de seu tempo” foi consequência dessas inovações e do pioneirismo em elaborar uma metodologia interdisciplinar e facilitadora da compreensão da matemática a outros professores, através dos inúmeros cursos de extensão que Mello e Souza ministrou ao longo de sua vida, entre eles os dois cursos frequentados por Lorenzato em São Carlos no ano de 195813 13 Cursos “Metodologia da Matemática na Escola Primária” e “A Arte de Contar Histórias”. Sobre o tema, ver Lorenzato (1995) e Faria (2004). . Para Lorenzato e Juraci de Faria, as obras literárias do educador refletem a preocupação em criar um movimento de incentivo ao ensino da.disciplina

Desta forma, O Homem que Calculava esteve, para Lorenzato, “fora de seu tempo”, já que foi escrito “50 anos antes do surgimento das Propostas Curriculares oficiais que recomendam o ensino de modo interdisciplinar … e mescla conhecimentos de Matemática, Geografia, História, Cultura, Arte e Língua Portuguesa” (Lorenzato, 2015Lorenzato S. (2015). 6 de maio, dia nacional da matemática. Histemat, 1(1)., p. 7), gerando o “gosto pela matemática” e sendo, ao mesmo tempo, um “marco na história da Educação Matemática brasileira” (Lorenzato, 2015Lorenzato S. (2015). 6 de maio, dia nacional da matemática. Histemat, 1(1)., p. 7). Mello e Souza foi, para esse autor, um “arauto” e um “herege”, pois esteve na contramão daquilo que era vigente na prática do ensino de sua época (Lorenzato, 2015Lorenzato S. (2015). 6 de maio, dia nacional da matemática. Histemat, 1(1)., p. 10).

Para Juraci de Faria, o papel do escritor foi paralelo ao do educador, pois ajudava a criar uma nova metodologia de ensino para a matemática (Faria, 2004Faria, J. (2004). A prática de Júlio César de Mello e Souza Malba Tahan: um olhar a partir da concepção de interdisciplinaridade de Ivani Fazenda [Dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo]., p. 114), que não foi aceita pelos “professores e educadores de seu tempo, fazendo com que Mello e Souza fosse excluído por essa concepção inovadora” (Faria, 2004Faria, J. (2004). A prática de Júlio César de Mello e Souza Malba Tahan: um olhar a partir da concepção de interdisciplinaridade de Ivani Fazenda [Dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo]., p. 177). Souza e Fossa (2014)Souza, E. K. V., & Fossa, J. A. (2014). O pioneirismo de Malba Tahan na educação matemática brasileira [Apresentação de trabalho]. 14º Seminário de História da Ciência e da Tecnologia, Belo Horizonte, MG, Brasil. reiteram, também, que Mello e Souza deu continuidade ao pensamento de importantes educadores como Euclides Roxo, Cecil Thiré e Ernesto Raja Gabaglia. Para esses autores, a produção de livros didáticos, paralelamente à elaboração de cursos para professores e a matemática recreativa inventada por Mello e Souza na revista Al Karismi14 14 Sobre a revista Al Karismi, que foi publicada entre 1946 e 1951 e a Lilaváti (1951), ver os seguintes autores: Faria (2004), Siqueira Filho (2008), Oliveira (2007). , proporcionaram uma enorme contribuição à Educação Matemática (Souza & Fossa, 2014Souza, E. K. V., & Fossa, J. A. (2014). O pioneirismo de Malba Tahan na educação matemática brasileira [Apresentação de trabalho]. 14º Seminário de História da Ciência e da Tecnologia, Belo Horizonte, MG, Brasil., p. 5-6).

Apesar desta concepção “à frente de seu tempo”, obviamente não é possível compreender as ações de um sujeito histórico considerando-se que ele não está em diálogo com outros modos de fazer de seu próprio tempo. Neste sentido, torna-se mais plausível que Mello e Souza propusesse métodos que derivavam do campo em que estava inserido: outros educadores, professores que teciam comentários acerca de suas obras e mesmo da literatura que desenvolvia, direcionada aos jovens e crianças da época.

Um contraponto às opiniões em torno do papel crucial de Mello Souza para as inovações pedagógicas referentes ao ensino da matemática está no trabalho de Wagner Valente, que mostra a participação efetiva do educador brasileiro em um contexto mais amplo de mudanças relacionadas ao ensino como um todo no Brasil. A sua análise está pautada pelas ações do professor e autor de livros didáticos em um momento histórico considerado relevante para a disciplina.

Com a tomada de poder por Getúlio Vargas, seguiu-se uma série de reformas na organização nacional da educação brasileira (Valente, 2004Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4., p. 174). A partir de então, foram produzidos livros didáticos que se tornaram “verdadeiros best-sellers”, considerando-se a quantidade de exemplares vendidos. O Colégio Pedro II, em que Mello e Souza ministrava aulas com professores como Euclides Roxo e Cecil Thiré, foi um espaço de disputa no campo da matemática, gerando inúmeros debates após a década de 1930.

A matemática foi o resultado da junção da aritmética, álgebra e geometria e passou a fazer parte dos currículos em 1929 (Valente, 2004Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4., p. 174). Euclides Roxo publicou um manual com um projeto revolucionário na época, mantendo um diálogo com os parâmetros da recém-criada disciplina (Valente, 2004Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4., p. 181). Apesar disso, como aponta Valente, entre o professorado houve intensos debates no sentido de rejeitar o manual de Roxo. Mello e Souza ganha destaque com uma posição contrária à fusão gerada com a união desses ramos distintos, (Valente, 2004Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4., p. 181), que é explicitada no calor das discussões geradas em torno dos livros didáticos e da posição de outros autores, como Jacomo Stávale (Valente, 2003Valente, W. (2003). Controvérsias sobre educação matemática no Brasil: Malba Tahan versus Jacomo Stávale. Cadernos de Pesquisa, 120.).

Mello e Souza, apesar de manter uma posição favorável aos preceitos da Escola Nova – valorização do interesse do aluno, da intuição e do raciocínio lógico em oposição à memorização (Miorim, 1998Miorim, M. Â. (1998). Introdução à história da educação matemática. Atual., p. 164) – manteve em seus argumentos com outros autores de livros didáticos, uma posição contrária às mesmas renovações. Assim, em “Um livro ridículo e errado”, artigo publicado na Nação em 1933, conclui que “a parte teórica [deveria ser] impecável do ponto de vista do rigor com que são apresentados, não só os teoremas, como também os conceitos e definições” (Miorim, 1998Miorim, M. Â. (1998). Introdução à história da educação matemática. Atual., p. 164). Portanto, para ele, a renovação demandava um “rigor matemático”, diluindo a nova proposta de unificar os ramos da matemática. Para Valente, isso está explicitado no prefácio de Mathematica: 1o ano, em que Mello e Souza traduz a “fusão da aritmética, álgebra e geometria - por ‘confusão’” (Valente, 2003Valente, W. (2003). Controvérsias sobre educação matemática no Brasil: Malba Tahan versus Jacomo Stávale. Cadernos de Pesquisa, 120., p. 165).

Valente, portanto, tem uma posição oposta aos autores citados anteriormente, que percebem Mello e Souza como um “pioneiro” e um educador “à frente de seu tempo”. Em paralelo ao debate que se travou em torno da matemática, esse autor mostra como Mello e Souza ocupou espaço preponderante na publicação de livros didáticos, sendo que Euclides Roxo, após perceber que não teria espaço na continuidade de sua coleção publicada na década de 1920, uniu-se a Cecil Thiré e Mello e Souza na publicação de outra coleção de livros didáticos de matemática, a qual se tornaria um sucesso editorial (Valente, 2004Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4., p. 164).

Essa disputa no mercado de livros é compreendida por Valente como fundamental nos debates acalorados que Mello e Souza manteve com outros educadores que também publicavam manuais didáticos. A polêmica com Jacomo Stávale (que também tem posição refratária em relação às novas propostas do ensino da matemática, assim como Mello e Souza e a maioria do professorado brasileiro)15 15 Sobre o tema, ver os artigos de Valente (2003, 2004). pode ser compreendida a partir da perspectiva de disputa em torno do mercado editorial de livros didáticos no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, que tinha na Revista Brasileira de Mathematica uma aliada de Mello e Souza.

O educador era redator-chefe da mesma Revista. Nela, encontram-se inúmeros anúncios dos livros de Mello e Souza e pode-se concebê-la como um espaço de defesa da hegemonia carioca (Valente, 2003Valente, W. (2003). Controvérsias sobre educação matemática no Brasil: Malba Tahan versus Jacomo Stávale. Cadernos de Pesquisa, 120., p. 161-162, 2004Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4., p. 181), em que se destacam os livros didáticos de Mello e Souza, que encontrava no periódico um espaço para enfraquecer a obra de seus concorrentes16 16 Sobre o tema, ver Valente (2004). .

A criação de Malba Tahan e o seu consequente sucesso editorial implicam, entre outros elementos, perceber como Mello e Souza construiu uma determinada imagem para o seu público, a qual não pode ser compreendida independentemente das polêmicas com autores de outros livros didáticos que o educador pretendia tirar do mercado editorial (Valente, 2004Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4., p. 181) em favor de seus manuais. A Revista Brasileira de Mathematica ocupou um espaço preponderante para isso, mas também os inúmeros artigos e a ficção escrita em diversas folhas da época.

As análises de Valente são fundamentais para uma compreensão da história da matemática no Brasil. A atenção para as disputas no terreno das publicações tem relações imbricadas com o mercado editorial como um todo e com a sua faceta mercadológica. Na década de 1930, especialmente entre 1930 e 1936, houve um crescimento espantoso do mercado editorial que faria nascer uma indústria do livro e as disputas no terreno das publicações matemáticas ocorrem nessa mesma época17 17 De acordo com Hallewell (1985, p. 337-338), as cifras para São Paulo indicam um crescimento de 600% e as reedições se sucediam, a ponto de um escritor como José Lins do Rego expressar que já podia viver de seus direitos autorais. . Contudo, não se pode negar a importância da interdisciplinaridade que permeia o cotidiano das atividades educativas de Mello e Souza. Lorenzato, Juraci de Faria, Souza e Fossa apontam para essa perspectiva, a qual se articulou de maneira inovadora ao ensino da matemática e tornou a disciplina interessante aos alunos. A literatura e o papel de “contador de histórias” exercido por Mello e Souza foram centrais para isso, de acordo com esses autores.

De fato, percebe-se uma preocupação do escritor com as mudanças concernentes ao ensino da matemática, tanto é que, em seu acervo pessoal, guardou diversas discussões acerca do ensino e da metodologia da matemática. Não é possível considerar que Mello e Souza estava “fora de seu tempo”. Ele dialogava com outros autores e a publicação conjunta das obras didáticas de Euclides Roxo (talvez o maior defensor das reformas ocorridas) com Cecil Thiré na década de 1930 comprovam este fato. Sim, Valente tem razão quando pontua uma acirrada disputa de obras no mercado editorial, mas não foi apenas por causa disso que Euclides Roxo, Mello e Souza e Cecil Thiré lançaram suas obras didáticas. Eles tentavam mudar a metodologia de ensino da matemática, como proposto pela reforma Francisco Campos em 1930 e dois anos antes no Colégio Pedro II, eles defendiam, de certo modo, um ideal.

Portanto, o fato de tornar a matemática mais acessível e valorizar a interdisciplinaridade caminha em paralelo às disputas no mercado de livros. Entretanto, esta perspectiva está sendo colocada pelos debates da época e não tornam o educador um homem “à frente de seu tempo”. Mello e Souza irá, no que se refere ao ensino da matemática, aproximar método e histórias ficcionais. Isso é perceptível em uma obra como Tudo é fácil (Matemática infantil) escrita em parceria com Irene de Albuquerque em 1937Tahan, M., & Albuquerque, I. (1937). Tudo é fácil (Matemática infantil). Editora A.B.C.. Os autores, a partir de curtas narrativas, vão inserindo formas de ensino da matemática ao trazê-la para situações que poderiam fazer parte do cotidiano dos alunos.

Uma abordagem da ampla e vastíssima obra de Mello e Souza e a sua relação com a criação de um arquivo pessoal (preocupação cotidiana do educador) deve considerar tanto a sua inserção no mercado editorial de livros didáticos e ficcionais, como a perspectiva interdisciplinar de suas atividades como educador. Fica nítida a preocupação com os caminhos que a matemática tomava no final da década de 1920 se considerarmos que Mello e Souza acompanhava os debates em torno das alterações da disciplina de perto. Isso está estampado na carta de Antenor Nascentes, importante filólogo, enviada ao autor em 15 de dezembro de 1930:

Júlio,

Magnífico o livro que V. fez com Thiré.

Por que não nasci eu uns trinta anos mais tarde para poder aprender por ele?

Como serão felizes os guris que vão começar a matemática em 1931!

Até parece que a matemática é a menos (sic) das disciplinas

Que mestres ilusionistas são vocês! Que taumaturgos!

(Fundo Malba Tahan, 02.007.0014-02).

Em material arquivado pelo próprio autor em seu acervo pessoal, encontra-se o debate ocorrido entre Euclides Roxo e Joaquim de Almeida Lisboa, ambos professores do Colégio Pedro II nos anos 1930. Publicado pelo Jornal do Commercio, nota-se uma preocupação, de Euclides Roxo, em tornar a matemática acessível aos alunos; quer dizer, uma perspectiva metodológica e didática do ensino eram tão importantes quanto o domínio da disciplina. Um professor que levasse em conta apenas a erudição (como cita ser o caso de Almeida Lisboa) não se encaixaria nos moldes das reformas propostas para o colégio Pedro II.

De acordo com Miorim, o movimento da Escola Nova começou a alterar a educação no país na década de 1920 e tais ideias foram adaptadas ao ensino da matemática em 1928 com a proposta de Euclides Roxo de unir as disciplinas de álgebra, aritmética e geometria em uma só matemática em oposição às “matemáticas”, e fazer o aluno perceber a conexão entre os três ramos (Miorim, 1998Miorim, M. Â. (1998). Introdução à história da educação matemática. Atual., p. 96-99). Significava, também, trazer para o campo do estudo da matemática situações reais e sintonizá-las ao cotidiano escolar do aluno (Miorim, 1998Miorim, M. Â. (1998). Introdução à história da educação matemática. Atual., p. 90).

Em 15 de janeiro de 1929, há um decreto que sanciona as reformas no ensino da, a partir de agora, “matemática”. Pouco tempo depois, o decreto passa a valer para todas as escolas (em 18 de abril de 1931 e consolidado em 4 de abril de 1932). O debate entre Almeida Lisboa e Euclides Roxo ocorre após a estruturação da reforma no colégio Pedro II, tornando-se, portanto, fundamental entendê-lo a partir de um terreno de disputas que ainda não tinham se consolidado de fato. Havia apenas um ano que a reforma fora instalada no Pedro II e os professores da casa traziam o debate ao público de maneira bastante acirrada e ainda era a única escola a funcionar a partir da nova estrutura.

Para os objetivos deste artigo, cabe perceber como Mello e Souza valorizou ou não o debate e, para isso, serão utilizadas as cópias dos jornais arquivadas pelo autor existentes no Fundo Malba Tahan do Centro de Memória da Educação. Essas cópias foram grifadas em alguns trechos e cabe notar os parágrafos ressaltados por Mello e Souza. Assim, em “Os programas de matemática do Colégio Pedro II”18 18 Provavelmente dezembro de 1930 no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro. (Fundo Malba Tahan, 02.003.0002-01Fundo Malba Tahan. Centro de Memória da Educação. Faculdade de Educação, Unicamp.), Joaquim I. de Almeida Lisboa aponta para o fato de que:

As matemáticas são o instrumento indispensável a todas as investigações que têm por objeto os fenômenos naturais e os próprios fenômenos econômicos. Seu campo econômico aumenta cada vez mais, seguindo o progresso que as ciências de observações vão continuamente operando. O ensino da matemática deve também assumir uma importância crescente nas escolas secundárias como nas superiores, e transformar-se com uma contínua adaptação às novas necessidades da humana sociedade

(Fundo Malba Tahan - 02.003.0002-01Fundo Malba Tahan. Centro de Memória da Educação. Faculdade de Educação, Unicamp.).

Almeida Lisboa era reconhecido como um professor mais “tradicional” e a forma que o debate vai assumindo, a partir do viés de Mello e Souza, acaba por proporcionar uma imagem do que este escritor e professor aceitava como relevante para o ensino da matemática e para a ciência como um todo.

Em “O ensino da matemática na escola secundária. Réplica ao sr. Professor Almeida Lisboa” escrito por Euclides Roxo19 19 Provavelmente em fins de 1930, pois Almeida Lisboa faz uma resposta no dia 4 de janeiro de 1931. , os parágrafos destacados por Mello e Souza apontam para dois caminhos:

O sr. Lisboa só tinha em mente mostrar aos espantados meninos do Pedro II a sua vasta cultura ….

Não se pode mais admitir, como processo de recrutamento de professores secundários o simples concurso … não permite julgar das capacidades metodológicas e pedagógicas do candidato … bastaria o ‘caso Lisboa’ para demonstrá-lo rigorosamente.

Dever-se-á sempre começar, na escola secundária primeiro por uma intuição viva e concreta e só pouco a pouco poderão ser trazidos ao primeiro plano os elementos lógicos [conselho de Félix Klein].

Crime de que me penitencio, perpetrei-o, sim, martirizando turmas e turmas, de meninos de 10 a 15 anos, com aulas que absolutamente não estavam ao alcance das suas inteligências tenras!

Crime de que tenho remorsos, pratiquei-o, é certo, mas quando tentava meter na cabeça daquelas pobres crianças as minhas ‘Lições de aritmética’ e as ‘Lições de álgebra’ do professor Almeida Lisboa, despertando nelas o invencível horror pela matemática

(Fundo Malba Tahan - 02.003.0003-01Fundo Malba Tahan. Centro de Memória da Educação. Faculdade de Educação, Unicamp.).

O primeiro estaria em chamar a atenção para a impraticabilidade de “meter lições de álgebra e aritmética na cabeça das crianças”; o segundo indica o que deveria ser valorizado, ou seja, uma “intuição viva e concreta”, trazendo a matemática para o cotidiano do aluno. Em paralelo, acentuava a importância do método e da didática, elementos não valorizados nos concursos para professores.

Finalmente, em 18 de janeiro de 1931, os trechos selecionados por Mello e Souza atentam para a importância da matemática no cotidiano, ainda ressaltando, mais uma vez, a perspectiva de que, de fato, o escritor estava totalmente inserido no debate e o lado que lhe cabia:

A crença, porém, de que a Matemática, porque é abstrata, porque é estática, fria e incolor, está separada da vida, é uma crença ilusória. A Matemática, mesmo no seu mais alto grau de pureza e abstração, não está apartada da vida.

Ela é justamente a maneira ideal de tratar os problemas da vida, do mesmo modo que a escultura pode idealizar uma figura humana, ou que a poesia ou a pintura podem idealizar um quadro ou uma cena.

A Matemática é precisamente o tratamento ideal dos problemas da vida (the ideal handling of the problem of life), e as ideias centrais da ciência, os grandes conceitos a respeito do que construíram as suas majestosas doutrinas, são precisamente as ideias principais com que a vida tem sempre de lidar, e que dão a esta, interesses e problemas, ordem e racionalidade

(Fundo Malba Tahan, 02.003.0011-01Fundo Malba Tahan. Centro de Memória da Educação. Faculdade de Educação, Unicamp.)20 20 “O ensino da matemática na escola secundária. Principais escopos do ensino de matemática à finalidade da escola moderna” (Euclides Roxo, 18 jan. 1931, sem indicação de jornal). .

O professor-escritor deixa clara a importância dada à matemática como algo muito mais concreto do que normalmente se pensava. Se os trechos selecionados por Mello e Souza ressaltam aquilo que considerava como relevante, não restam dúvidas sobre o lado que escolheu. Para ele, havia a importância de se compreender a matemática como algo rotineiro, em que a intuição tinha um papel preponderante. A matemática não ocupava espaço nos primeiros contos assinados como Malba Tahan, mas isso mudaria com o passar dos anos e, em O homem que calculava, assume espaço fundamental. Neste momento, o pseudônimo já estava amplamente relacionado a Mello e Souza.

Dos primeiros contos ao O Homem que calculava

O livro O homem que calculava fez um estrondoso sucesso desde a sua primeira publicação no ano de 1938, fato que leva a edições sucessivas ainda em 1938. Há alterações em relação ao que já vinha sendo publicado especialmente no que condiz ao formato, mas também ao conteúdo – esta obra é um romance centrado nas aventuras de Beremis, um exímio “calculista”.

É possível fazer um paralelo entre a perspectiva matemática de Mello e Souza e O Homem que calculava? Como entender O homem que calculava e os contos que o autor já publicara sob o pseudônimo de Malba Tahan e em outras obras, como Céu de Allah e Lendas do oásis? Nesta pequena incursão que faremos a O homem que calculava pretendemos entender alguns significados desta obra, tornando-a uma espécie de conclusão do artigo.

Os paralelos com os contos são muitos. Assim como nos contos, O homem que calculava adentra os muros de um “possível oriente”. A história se passa em Bagdá (a maior parte do tempo) e o leitor é tomado pelas descrições do narrador – o “jovem bagdali” que conhecera na estrada para Bagdá. As intervenções de um possível tradutor se fazem notar desde o princípio. Assim, para “bagdali”, há a nota de rodapé de que se trata de uma “pessoa nascida em Bagdá” (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., p. 11). Essas interferências povoam toda a obra e, em grande medida, seguem o mesmo padrão do que já vinha ocorrendo nos contos desde 1923.

O homem que calculava acabou por se tornar uma obra de fato, ao contrário de outras também citadas em seus contos, tais como - Histórias Imitadas, Sorr-el-layal, Tempo de guerra - o que poderia levar-nos a imaginar a composição de um projeto literário do escritor desde a década de 1920. Contudo, não é possível afirmar que Mello e Souza tinha mesmo um projeto traçado. O romance poderia ser consequência de suas obras anteriores já que o formato era muito similar, mas com o diferencial de se construir como uma linha narrativa que unia os diversos capítulos. De fato, tais capítulos tomados separadamente, poderiam também ser contos (como foram anos antes).

Beremis, o “homem que calculava”, não era um homem comum. Isso está presente em diversos capítulos: “inteligente Beremis” (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., p. 13), “sagacidade” (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., p. 25), “grande matemático” (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., p. 44 e 75), “habilidade matemática” (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., p. 47), mostrando erudição (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., cap. XV, cap. XX), “homem excepcional” (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., p. 111). Se, em alguns casos, há a explicação detalhada do problema – como no caso da divisão dos 35 camelos (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., capítulo III), que tem uma explicação matemática na parte final do romance (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., p. 225, “notas”) – outras vezes o “calculista” consegue chegar a determinadas conclusões de forma completamente estarrecedora – como na contagem das folhas de uma árvore, das abelhas de uma colmeia, das formigas no formigueiro (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., capítulos I e II), da quantidade de franjas no saiote das bailarinas gêmeas, nas explicações excepcionais nas aulas dadas à Telassim.

Ao mesmo tempo, “todos são bons calculistas”: “o pescador que conta os peixes levados por sua rede”, “o soldado que avalia com o olhar a distância de uma parassanga”, “o poeta que conta as sílabas e mede a cadência dos versos”, “a divisão dos compassos” feita pelo músico e mesmo um “humilde esteireiro que dispõe, um por um, os cem fios de seu trabalho” (Tahan, 1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., p. 82).

Ao longo do livro há uma tensão entre a necessidade de um “exímio calculista” para resolver variados problemas que surgem rotineiramente e a ideia de que a matemática está em todos os lugares e todos têm acesso a ela. Da mesma forma, “matemáticas”, “matemática”, “algebrista”, “geômetra” e “aritmética” surgem como sinônimos em diversas partes do romance21 21 Tahan (1938, p. 13, 68, 70, 75, 84-85, 92-93, 107, 121-122, 129). , causando a mesma impressão de Valente ao dizer que isso está explicitado no prefácio de Mathematica: 1o ano, em que Mello e Souza traduz a “fusão da aritmética, álgebra e geometria - por ‘confusão’”.

Quer dizer, ao mesmo tempo em que Mello e Souza acompanhava os debates e parecia se posicionar favorável às mudanças, na prática elas não ocorreram de forma tão evidente e isso está explicitado mesmo em um livro como O homem que calculava, que não deixa de citar a obra de Euclides Roxo mais de uma vez (A matemática na educação secundária, de 1937) em que, de acordo com Miorim (1998, p. 92)Miorim, M. Â. (1998). Introdução à história da educação matemática. Atual., “a defesa da modernização aparece em cada página”.

Parece existir um conflito nas páginas do romance tanto em relação à necessidade de um “exímio calculista” para intervir em problemas cotidianos como na definição da matemática em si. Essa variação condensa o movimento de Mello e Souza no debate que converge, ora para uma matemática intuitiva e fácil, ora para a ideia de “confusão”.

O homem que calculava revela, no terreno da ficção, a visão de Mello e Souza das disputas em torno do significado da matemática, ou das matemáticas. Ao mesmo tempo, aproxima o professor das obras ficcionais assinadas como Malba Tahan, ao ter como foco as matemáticas. Não seria à toa que viria a se tornar a sua obra de mais destaque, com edições sucessivas ao longo das décadas e traduções para diversas línguas.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Ailton Carneiro da Silva Junior (Tikinet) revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Apoio: Pesquisa financiada pelo PNPD-CAPES. A autora agradece a Propesp - UFPA o financiamento da tradução do artigo para a língua inglesa.
  • 4
    Júlio César de Mello e Souza nasceu em 1895 e faleceu em 1974. Foi professor de matemática de diversas instituições, entre elas, do Colégio Pedro II, autor de diversas obras de ficção e de livros de matemática. Teve ampla publicação de seus textos na imprensa.
  • 5
    André de Faria Pereira Neto (2012)Pereira Neto, A. F. (2012). Um árabe bem brasileiro. Revista de História da Biblioteca Nacional, 7(84). afirma que a 1ª edição é de 1937. Contudo, em reportagem de 20 de julho de 1939, a obra estaria na sua 4ª edição em menos de quatro meses, o que indica uma enorme popularidade (Tahan, 29 jul. 1939Malba Tahan. O escritor querido de todos os leitores do Brasil. O homem que calculava. (1939, 29 de julho). Careta. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=083712
    https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
    ). O escritor querido de todos os leitores do Brasil. O homem que calculava). Há anúncios nos jornais da época anunciando a 2ª edição em finais de 1938, sendo que a primeira edição ainda era anunciada neste mesmo ano (O homem que calculava, 24 set. 1938, 22 dez. 1938O homem que calculava. (1938, 24 de setembro). Careta. https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=083712
    https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
    ). Possivelmente, em julho de 1939 havia quatro edições da editora Getúlio M. Costa. Em 1938, os anúncios são da Editora A.B.C. Não foram encontradas referências para o ano de 1937.
  • 6
    Sobre o caso de Balas de Estalo, ver Cernic (2008)Cernic, A. F. (2008). Machado de Assis: humor e política no segundo reinado. Revista de Letras, 2..
  • 7
    Posteriormente reunido em livro (Azevedo, 1985Azevedo, A. (1985). Mattos, Malta ou Matta? Romance ao correr da pena. Nova Fronteira.).
  • 8
    “Especial para O Diário de São Paulo e O Jornal do Rio”.
  • 9
    Sobre o mercado de literatura infantil ver Raffaini (2016)Raffaini, P. T. (2016). A livraria Garnier e a tradução e edição de livros para a infância (1890- 1920). In A. C. Gomes, P. S. Hansen (Orgs.), Intelectuais Mediadores. Práticas culturais e ação política (pp. 66-91). Civilização Brasileira., Hansen (2016)Hansen, P. S. (2016). A literatura infantil no Brasil e em Portugal: problemas para a sua historiografia. Sarmiento, 20. e Leão (2007)Leão, A. B. (2007). A livraria Garnier e a história dos livros infantis no Brasil - gênese e formação de um campo literário (1858-1920). História da Educação, 21..
  • 10
    Refiro-me às reformas que ocorreram a partir de 1929. No caso da matemática, ocorreu a fusão entre os conteúdos da aritmética, álgebra e geometria, que passaram a valer oficialmente com a reforma Francisco Campos na década de 1930 e causaram diversos debates entre o professorado brasileiro. Sobre o tema ver, Valente (2004)Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4.. Relacionado às reformas na área da educação na época, ver Carvalho (2000)Carvalho, M. M.C. de (2000). Reformas da instrução pública na década de 1920. In E. M. T. Lopes, L. M. Farias Filho, C. G. Veiga (Orgs.), 500 anos de Educação no Brasil (pp. 225-252). Autêntica., Paulilo (2015)Paulilo, A. (2015). Políticas públicas de educação: a estratégia como invenção – Rio de Janeiro, 1922-1935. Editora da Unicamp. e Vidal (2008)Vidal, D. G. (2008). Educação e reforma: o Rio de Janeiro nos anos 1920-1930. Argvmentvm..
  • 11
    Ver também Lorenzato (2015)Lorenzato S. (2015). 6 de maio, dia nacional da matemática. Histemat, 1(1)..
  • 12
    “Atualidade” seria 1995 pelo artigo.
  • 13
    Cursos “Metodologia da Matemática na Escola Primária” e “A Arte de Contar Histórias”. Sobre o tema, ver Lorenzato (1995)Lorenzato S. (1995). Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, 3(4). e Faria (2004)Faria, J. (2004). A prática de Júlio César de Mello e Souza Malba Tahan: um olhar a partir da concepção de interdisciplinaridade de Ivani Fazenda [Dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo]..
  • 14
    Sobre a revista Al Karismi, que foi publicada entre 1946 e 1951 e a Lilaváti (1951), ver os seguintes autores: Faria (2004)Faria, J. (2004). A prática de Júlio César de Mello e Souza Malba Tahan: um olhar a partir da concepção de interdisciplinaridade de Ivani Fazenda [Dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo]., Siqueira Filho (2008)Siqueira Filho, M. G. (2008). Ali Iezid Izz-Edim Ibn Hank Malba Tahan: episódios do nascimento e manutenção de um autor-personagem [Tese de doutorado, Unicamp]. file:///C:/Users/Junior%20Silva/Downloads/SiqueiraFilho_MoysesGoncalves_D.pdf, Oliveira (2007)Oliveira, C. C. (2007). A sombra do arco-íris: um estudo histórico/mitocrítico do discurso pedagógico de Malba Tahan [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. http://www2.fe.usp.br/~etnomat/teses/sombra-arco-iris.pdf
    http://www2.fe.usp.br/~etnomat/teses/som...
    .
  • 15
    Sobre o tema, ver os artigos de Valente (2003Valente, W. (2003). Controvérsias sobre educação matemática no Brasil: Malba Tahan versus Jacomo Stávale. Cadernos de Pesquisa, 120., 2004)Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4..
  • 16
    Sobre o tema, ver Valente (2004)Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4..
  • 17
    De acordo com Hallewell (1985, p. 337-338)Hallewell (1985). O livro no Brasil. Sua história. Edusp., as cifras para São Paulo indicam um crescimento de 600% e as reedições se sucediam, a ponto de um escritor como José Lins do Rego expressar que já podia viver de seus direitos autorais.
  • 18
    Provavelmente dezembro de 1930 no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro.
  • 19
    Provavelmente em fins de 1930, pois Almeida Lisboa faz uma resposta no dia 4 de janeiro de 1931.
  • 20
    “O ensino da matemática na escola secundária. Principais escopos do ensino de matemática à finalidade da escola moderna” (Euclides Roxo, 18 jan. 1931, sem indicação de jornal).
  • 21
    Tahan (1938Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa. Editora A.B.C., p. 13, 68, 70, 75, 84-85, 92-93, 107, 121-122, 129).

Acervo

  • Fundo Malba Tahan. Centro de Memória da Educação. Faculdade de Educação, Unicamp.

Jornais

Referências

  • Azevedo, A. (1985). Mattos, Malta ou Matta? Romance ao correr da pena. Nova Fronteira.
  • Carvalho, M. M.C. de (2000). Reformas da instrução pública na década de 1920. In E. M. T. Lopes, L. M. Farias Filho, C. G. Veiga (Orgs.), 500 anos de Educação no Brasil (pp. 225-252). Autêntica.
  • Cernic, A. F. (2008). Machado de Assis: humor e política no segundo reinado. Revista de Letras, 2
  • Chartier, R. (2002). História e literatura. In À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude (pp. 255-272). Ed. Universidade/UFRGS.
  • Faria, J. (2004). A prática de Júlio César de Mello e Souza Malba Tahan: um olhar a partir da concepção de interdisciplinaridade de Ivani Fazenda [Dissertação de mestrado, Universidade Metodista de São Paulo].
  • Hallewell (1985). O livro no Brasil. Sua história Edusp.
  • Hansen, P. S. (2016). A literatura infantil no Brasil e em Portugal: problemas para a sua historiografia. Sarmiento, 20
  • Kalifa, D. (1995). L’encre et le sang. Récits de crime et société à La Belle Époque Librairie Arthème Fayard.
  • Leão, A. B. (2007). A livraria Garnier e a história dos livros infantis no Brasil - gênese e formação de um campo literário (1858-1920). História da Educação, 21
  • Lorenzato S. (1995). Um (re)encontro com Malba Tahan. Revista Zetetiké, 3(4).
  • Lorenzato S. (2015). 6 de maio, dia nacional da matemática. Histemat, 1(1).
  • Miorim, M. Â. (1998). Introdução à história da educação matemática Atual.
  • Oliveira, C. C. (2007). A sombra do arco-íris: um estudo histórico/mitocrítico do discurso pedagógico de Malba Tahan [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. http://www2.fe.usp.br/~etnomat/teses/sombra-arco-iris.pdf
    » http://www2.fe.usp.br/~etnomat/teses/sombra-arco-iris.pdf
  • Oliveira, C. C. (2017). A Revista Lilaváti (1957) de Malba Tahan: buscando situações de aprendizagem acerca da história da matemática como recurso didático. Recuperado de https://www.malbatahan.com.br/wp-content/uploads/2017/08/Cristiane-Coppe-de-Oliveira1-Sobre-a-revsista-Lilavati-ENAPHEN.pdf
    » https://www.malbatahan.com.br/wp-content/uploads/2017/08/Cristiane-Coppe-de-Oliveira1-Sobre-a-revsista-Lilavati-ENAPHEN.pdf
  • Paulilo, A. (2015). Políticas públicas de educação: a estratégia como invenção – Rio de Janeiro, 1922-1935 Editora da Unicamp.
  • Pereira Neto, A. F. (2012). Um árabe bem brasileiro. Revista de História da Biblioteca Nacional, 7(84).
  • Raffaini, P. T. (2016). A livraria Garnier e a tradução e edição de livros para a infância (1890- 1920). In A. C. Gomes, P. S. Hansen (Orgs.), Intelectuais Mediadores. Práticas culturais e ação política (pp. 66-91). Civilização Brasileira.
  • Siqueira Filho, M. G. (2008). Ali Iezid Izz-Edim Ibn Hank Malba Tahan: episódios do nascimento e manutenção de um autor-personagem [Tese de doutorado, Unicamp]. file:///C:/Users/Junior%20Silva/Downloads/SiqueiraFilho_MoysesGoncalves_D.pdf
  • Souza, E. K. V., & Fossa, J. A. (2014). O pioneirismo de Malba Tahan na educação matemática brasileira [Apresentação de trabalho]. 14º Seminário de História da Ciência e da Tecnologia, Belo Horizonte, MG, Brasil.
  • Tahan, M. (1931c). Maktub! A noite ilustrada Fundo Malba Tahan 02.006.0020-02.
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  • Tahan, M. (1927, 27 de abril). A lenda dos peixes vermelhos. O Tico-Tico https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=153079
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  • Tahan, M. (1931a). O eremita indu. Lanterna Mágica, Diário da Noite Fundo Malba Tahan 02.004.0063-02.
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  • Tahan, M. (1938). O homem que calculava. Aventuras de um singular calculista persa Editora A.B.C.
  • Tahan, M. (s.d.). Contos de Malba Tahan (2a ed.).
  • Tahan, M., & Albuquerque, I. (1937). Tudo é fácil (Matemática infantil). Editora A.B.C.
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    » http://www.cairn.info/revue-d-histoire-litteraire-de-la-france-2003-3-page-625.htm
  • Valente, W. (2003). Controvérsias sobre educação matemática no Brasil: Malba Tahan versus Jacomo Stávale. Cadernos de Pesquisa, 120
  • Valente, W. (2004). Mello e Souza e a crítica aos livros didáticos de matemática: demolindo concorrentes, construindo Malba Tahan. Revista Brasileira de História da Matemática, 4
  • Vidal, D. G. (2008). Educação e reforma: o Rio de Janeiro nos anos 1920-1930 Argvmentvm.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2021
  • Revisado
    22 Set 2022
  • Aceito
    12 Dez 2022
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