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Encontro com diários visuais e/ou textuais: espaço disparador do pensar na experiência educativa1 1 Normalização, preparação e revisão textual: Andressa Picosque (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

Resumo

Este texto, recorte de pesquisa de doutorado, intenciona discutir como ocorre em uma experiência educativa o encontro com diários de aula, oferecendo um sobrevoo sobre eles, com eles e para além deles. Dessa forma, buscando atender aos anseios desta investigação, optou-se pela perspectiva narrativa, presentificada na problematização dos diários (visuais e textuais) produzidos pelos acadêmicos do curso de graduação em artes visuais da Universidade Federal de Santa Maria e nas redes de afetos que potencializaram ou não o pensar da experiência docente. Assim, com o intento de dar conta das exigências suscitadas pelas narrativas produzidas nos diários, passou-se a dialogar com o conceito de acontecimento. Neste tangenciar de narrativas próprias e alheias, foi possível desenhar outras paisagens e pensar na docência como um processo em constante renovação e invenção.

Palavras-chave
diário de aula; experiência educativa; problematização; acontecimento

Abstract

This paper, originated from a doctoral research, aims to discuss how the encounter with classroom diaries happens in an educational experience, offering an overview of them, with them, and beyond them. Thus, seeking to achieve these research’s objectives, the narrative perspective was chosen. This perspective is materialized in the problematization of the visual and textual diaries produced by the students of the Visual Arts degree at Federal University of Santa Maria and in the networks of affection which have or have not potentialized the thought about the teaching experience. Therefore, intending to meet the demands raised by the narratives produced in the diaries, the research proposes a dialogue with the concept of event. In this approximation of one’s own narratives to others’,, it was possible to draw new perspectives and to think teaching as a process in constant renovation and invention.

Keywords
classroom diary; educational experience; problematization; event

Um breve sobrevoo…

Este texto, que é um recorte de pesquisa de doutorado, intenciona apresentar a investigação realizada com os diários visuais e textuais produzidos pelos acadêmicos e pelas professoras2 2 No primeiro semestre de 2013, durante a docência orientada no doutorado em educação, a primeira autora partilhou experiências educativas com os sete acadêmicos, juntamente com a segunda autora, regente das disciplinas de Estágio Supervisionado III e IV. A pesquisa realizada no decorrer desse período passou a fazer parte da tese de doutorado da primeira autora. das disciplinas de Estágio Supervisionado III (três estudantes) e de Estágio Supervisionado IV (quatro estudantes) do curso de graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

O estágio é mais que uma disciplina, é também um momento importante da formação, pois propicia aos acadêmicos da licenciatura o contato com instrumentos teórico-metodológicos e a oportunidade de atuar no ambiente escolar. O estágio é o tempo de aprendizagem em que, durante certo período, alguém se demora em algum lugar ou ofício para experimentar a profissão. No caso da profissão docente, o estágio supõe uma relação pedagógica entre alguém mais experiente (professor da escola) e alguém que está iniciando no ofício de ensinar e aprender.

Além das aulas de estudo, na UFSM também se oferecia aos estagiários orientação para o desenvolvimento do Projeto de Ensino e Pesquisa com seus respectivos planos de aula, acompanhamento e visitas à instituição escolar com o intuito de observar suas atuações em sala de aula e reuniões individuais, quando necessário.

A maioria dos estagiários incluídos na pesquisa também participava do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) Artes Visuais, e por isso já tinha alguma vivência em escolas. Esta particularidade contribuiu para a potência das problematizações do grupo e também para o compartilhamento de experiências.

Nas aulas eram relatadas as pesquisas e experiências que estavam sendo desenvolvidas na escola, textos eram estudados e imagens e filmes eram visualizados, tudo com o intuito de forçar a reflexão sobre a experiência docente. Como asseveram Deleuze e Guattari (2005)Deleuze, G., & Guattari, F. (2005). O que é a filosofia? (B. Prado Júnior, & A. A. Munhoz, trad., 2a ed., 4a reimp.). Rio de Janeiro: Editora 34., o pensar não é algo inerente ou adquirido; o pensamento precisa ser provocado, pois somente pensamos quando o pensamento é coagido, forçado, violentado.

A partir de um acordo entre os envolvidos, um diário foi individualmente produzido no decorrer do semestre pelos acadêmicos e também por nós, professoras da disciplina. Optamos por esse método por acreditar que o diário poderia ser um espaço narrativo dos pensamentos, expressando textual e/ou visualmente as impressões que havíamos tido das intervenções, tanto no trabalho realizado na escola como nos encontros de estudo na universidade. Este ambiente narrativo poderia permitir que pensássemos as atividades, ampliando discussões e produzindo outras ressonâncias a partir dos encontros com a docência.

É nesse sentido que buscamos problematizar, neste artigo, as narrativas e sensações partilhadas que brotaram do estudo, do processo de produção e da apresentação dos diários visuais e textuais, explorando as próprias redes de afetos que potencializaram ou não o pensar da experiência docente. Em vista disso, algumas questões acompanharam esse processo investigativo: o que os diários nos impeliam a pensar? Que aproximações e estranhamentos os diários nos provocaram? Que construções de sentidos foram impulsionadas pelos diários? Que impacto os diários elaborados pelos acadêmicos e por nós tiveram no grupo e o que eles foram capazes de provocar? Que ressonâncias foram propagadas nessa construção coletiva?

Assim, com a intenção de atender aos anseios desta investigação, optamos pela perspectiva narrativa, presentificada na produção dos diários visuais e escritos. Conforme Martins e Tourinho (2009)Martins, R., & Tourinho, I. (2009). Pesquisa narrativa: concepções, práticas e indagações. In Anais do II Congresso de Educação, Arte e Cultura. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria., aquele que narra revisita sua experiência, de forma que ela produz novos sentidos às situações apresentadas. O narrador passa a escutar a si mesmo, fazendo relações que talvez não estivessem tão claras. Essa imersão pode propiciar um momento de contato com eventos e coisas construídas durante sua vida e um olhar demorado sobre determinados momentos, possibilitando outros arranjos.

Quando estudamos as narrativas de um coletivo, passamos a transitar em mundos desconhecidos, pois se entrelaçam pensamentos e impressões diferenciadas. Essa multiplicidade contribui para que novas composições sejam acionadas.

A importância das narrativas está naquilo que elas nos provocam a pensar e nas outras conexões que elas nos desafiam a realizar. Por isso, poderíamos dizer que, ao optar por uma investigação de caráter narrativo, também estamos levando em consideração o cruzamento e o compartilhamento, pois tanto os colaboradores como os investigadores estão envolvidos neste processo.

Cada metodologia vai abraçando o pesquisador, acolhendo-o e capturando-o. O método vai se construindo durante a pesquisa, tomando parte desse processo a partir de uma experiência que se desloca. Concomitantemente, o pesquisador também passa a se constituir nessa investigação.

Experiência educativa: horizonte em que os diários se atravessam

A investigação da experiência educativa busca dar atenção ao “campo empírico de la experiencia vivida de forma cotidiana” (Van Manen, 2003Van Manen, M. (2003). Investigación educativa y experiencia vivida. Barcelona: Idea., p. 9). As vivências do dia a dia do investigador passam a ser o corpus da pesquisa, oferecendo um material frutífero para pensar a educação. É uma pesquisa singular, oportunizando que cada um apresente o que construiu a partir da sua própria experiência, seja no ambiente acadêmico (como docente, discente e pesquisador) ou pessoal.

Nesse estudo são levadas em consideração as vivências e os indivíduos, as problematizações fomentadas, as narrativas realizadas, a relação com os materiais visuais e textuais e o que foi possível produzir com tudo isso. É neste campo intenso que múltiplas vozes são atravessadas, que conhecimentos são compartilhados e que outras cenas para a educação são inauguradas.

Quando estamos à espreita dos encontros, passamos a ser “un observador sensible de las sutilezas de la vida cotidiana” (Van Manen, 2003Van Manen, M. (2003). Investigación educativa y experiencia vivida. Barcelona: Idea., p. 47). O desafio talvez esteja em descansar o olhar em cada um dos encontros para que possamos nos colocar em posição de aprender com eles, deixando-nos inundar pelas ocorrências que não conhecemos, que nos causam temor, que nos desafiam a pensar diferente e que fazem tombar nossas certezas e dogmas. Esse é o preço de viver intensamente o vivido.

A pesquisa da experiência educativa traz para a discussão a capacidade de visualizarmos e de pensarmos as possíveis paisagens que podemos compor com os incidentes comuns, com o ínfimo, com aquilo que por vezes é desprezado e descartado no nosso cotidiano. Esse pouso demorado faz com que venhamos a entrar em contato com as forças que nos instigam a perpetuar o que fazemos, colocando-nos frente a frente com nossos entraves e limitações.

Embrenhar-nos na própria experiência educativa permite que pensemos sobre a nossa atuação no espaço pedagógico, passando a dar atenção às nossas escolhas, ao que deixamos de trazer para a discussão, ao que salientamos, ao que camuflamos e ao que maquiamos. Sempre nos interessou dar atenção ao que, no primeiro momento, tínhamos vontade de ocultar nos diários pessoais, pois intuíamos que ali havia material potente para ser investigado. Mesmo que, ao escrevermos nossos diários, muitas vezes tenhamos nos esforçado para encobrir nossos estranhamentos, nossas vulnerabilidades e nossos receios, eram esses pontos nevrálgicos que mais ressoavam e nos afetavam, incitando-nos a adentrar demoradamente em cada um deles e a pensar para além deles.

Passamos, deste modo, a estar atentas aos ecos que os diários produziram nos acadêmicos e também em nós mesmas. Procuramos pensar sobre o que aprendemos neste processo, sobre como fomos nos movimentando neste tangenciar de narrativas próprias e alheias. A potência deflagradora das narrativas visuais e textuais dos diários passou a nos capturar e habitar em nós, instigando-nos a pensar na experiência educativa e a rever as nossas convicções predefinidas e conformadoras, passando a problematizá-las.

Foucault (2012b, p. 227) coloca que a problematização necessita ser compreendida “não como um ajustamento de representações, mas como trabalho do pensamento”. Ao problematizar, estamos movimentando e provocando o pensamento, desafiando-o a questionar as significações hegemônicas e as certezas que nos acompanham. Para ele, a problematização

não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem tampouco a criação pelo discurso de um objeto que não existe. É o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política, etc.).

(Foucault, 2012aFoucault, M. (2012a). O cuidado com a verdade. In Ditos e escritos (E. Monteiro, & I. A. D. Barbosa, trad., Vol. 5, pp. 234-245). Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 236)

A verdade está imbricada em jogos de poder e interesse, ela é uma verdade do tempo e é “a força pura do tempo que põe a verdade em crise” (Deleuze, 1990Deleuze, G. (1990). Cinema 2: a imagem-tempo (E. A. Ribeiro, trad.). São Paulo: Brasiliense., p. 159). Produzimos e somos produzidos por essas “verdades do tempo”, nas quais cremos e as quais assumimos como modelo. Todavia, isso também nos leva a pensar que verdades únicas e eternas não existem, pois elas podem ser rompidas, revistas e atualizadas. Na problematização, o desprendimento do que se acredita como verdade e o distanciamento do problema podem abrir diferentes perspectivas e sentidos.

A potência da problematização está na sua capacidade de expandir o espectro do que pode ser interrogado e problematizado, e está, também, na ampliação do número de possibilidades que podem ser invencionadas a partir de um problema ou de um conjunto de problemas. Ao vislumbrar outras facetas daquilo que foi apresentado sempre da mesma maneira, passamos a desenhar outras paisagens de vida e a conceber o mundo como um processo de criação.

Neste campo de convergência, em que visualizamos e ao mesmo tempo somos vistos, em que afetamos e também somos afetados, convido você, leitor, a fazer conjuntamente um sobrevoo sobre os diários, com os diários e para além dos diários. Quiçá possamos dialogar com essa produção de narrativas, fazendo relações que não percebemos e que para você fizeram sentido, que dispararam algumas questões ainda não discutidas ou, quem sabe, não tão bem exploradas.

Um sobrevoo sobre os diários

Isabel Carrillo (2001, p. 51)Carrillo, I. (2001). Dibujar espacios de pensamiento y diálogo. Cuadernos de Pedagogía, (305), 50-54. expressa que a escrita do diário pode ser vista como

un espacio de silencio para recordar el camino y vislumbrar has huellas dejadas, pero, al mismo tiempo, nos lleva a proyectar nuevos imaginarios a la luz de aquello que ya fue, de lo que es y del futuro que aún es incierto porque no es.

Por meio do diário, os indivíduos passam a se ver na sua própria narrativa, possibilitando-lhes recriar os acontecimentos que narram. Ao se permitir olhar para os acontecimentos passados, deslocados do espaço/tempo e, também, envolvidos em outras forças em exercício, passam a ser impulsionados a fazer diferentes relações, debruçando-se em singulares problematizações.

Dessa forma, outra relação com o diário é inaugurada, pois ele passa a ser visto como local de intercâmbio, em que as pessoas, ao narrar, vão “travando uma ‘conversa’ consigo mesmo[as] e com os virtuais destinatários do relato” (Zabalza, 2004Zabalza, M. A. (2004). Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional (E. Rosa, trad.). Porto Alegre: Armed., p. 49). É um espaço de encontro, com o “eu que narra”, com o “eu que é narrado”, com “os envolvidos na narrativa” e com “aqueles a quem a narrativa foi endereçada”. Com os diários, é possível colocar em perspectiva nossa maneira singular de experienciar a docência, ensejando a negociação.

O diário oportuniza vermos de fora como se constrói o nosso pensamento em relação ao objeto de investigação. Zabalza (2004, p. 136)Zabalza, M. A. (2004). Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional (E. Rosa, trad.). Porto Alegre: Armed. expõe que “tanto escrever sobre o que fazemos como ler sobre o que fizemos nos permite alcançar uma certa distância da ação e ver as coisas e a nós mesmos em perspectiva”. Estamos tão embrenhados em nossas investigações que, muitas vezes, não conseguimos tomar distância do que fazemos. Este distanciamento pode propiciar o conhecimento de nós mesmos e de nossas ações, pois passamos a constatar problemas e prováveis causas.

Pelo cenário ampliado que o diário possibilita, os elementos das circunstâncias em que se produziram as ações narradas são todos levados em consideração, vislumbrando hipóteses e possíveis respostas para as dificuldades encontradas. Este deslocamento incorpora uma dinâmica de reavaliação e potencializa o enriquecimento de nossa experiência como docentes.

As experiências acumulam importância quando narradas no diário, pois, ao expressarmos de forma escrita e/ou visual os pensamentos, desafios, desejos, enfrentamentos, as decepções e angústias que nos acompanham durante todo o processo, passamos a nos inteirar mais e a ter mais clareza quanto a nossa própria atuação. O diário, desse modo, pode ser um instrumento para que possamos esboçar outras possibilidades de atuar, simulando diferentes modos de ser e ficcionando singulares formas de vivenciar a docência.

Um sobrevoo com os diários

As problematizações disparadas nos diários se mostraram entrelaçadas com os projetos e as pesquisas que os acadêmicos do Estágio Supervisionado III e IV estavam desenvolvendo, com as repercussões dos estudos elaborados durante a disciplina, com suas intervenções como docentes na escola e com o compartilhamento de experiências entre o grupo. Essa ligação pôde ser vislumbrada tanto na produção como na apresentação dos diários.

A partir de um acordo entre os envolvidos na disciplina, alguns aspectos foram levados em consideração no momento de confeccionar os diários e, por isso, algumas questões estiveram enredadas em sua criação. Ficou acertado que o diário seria produzido individualmente no decorrer do semestre, e que no mínimo seis itens deveriam ser contemplados. Partindo de estudos de Oliveira (2009Oliveira, M. O. (2009). O papel da cultura visual na formação inicial em artes visuais. In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Educação da cultura visual: narrativas de ensino e pesquisa (pp. 213-223). Santa Maria: Editora UFSM., 2011Oliveira, M. O. (2011). Por uma abordagem narrativa e autobiográfica: os diários de aula como foco de investigação. In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Educação da cultura visual: conceitos e contextos (pp. 175-190). Santa Maria: Editora UFSM., 2013Oliveira, M. O. (2013). O que pode um diário de aula? In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Processos e práticas de pesquisa em cultura visual e educação (pp. 225-236). Santa Maria: Editora UFSM., 2014)Oliveira, M. O. (2014). Diário de aula como instrumento metodológico da prática educativa. Revista Lusófona de Educação, 27(27), 111-126. e Zabalza (2004)Zabalza, M. A. (2004). Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional (E. Rosa, trad.). Porto Alegre: Armed., os diários criados passaram a comportar as seguintes dimensões:

  1. os “dilemas” das aulas apresentados no decorrer do processo, entendendo “dilema” como “todo o conjunto de aspectos que o professor apresenta como problemáticos e que constroem para ele um foco constante de preocupação, incerteza ou reflexão” (Zabalza, 2004Zabalza, M. A. (2004). Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional (E. Rosa, trad.). Porto Alegre: Armed., p. 59);

  2. as problematizações do “eu docente em formação” e as construções de sentido elaboradas a partir dos estudos e das experiências educativas no estágio – a produção de sentidos se refere a algo criado no percurso e que não existe a priori, diferentemente do significado, que já existe;

  3. os colaboradores do processo – as falas e/ou imagens dos estudantes da escola e as ressonâncias propagadas a partir delas;

  4. os conceitos-chave dos projetos de ensino e pesquisa (elaborados pelos acadêmicos em disciplinas anteriores) e os autores que contribuem para pensá-los;

  5. o tensionamento e diálogo entre o texto e a imagem, observando que um não se sobreponha a outro, tampouco tenha o objetivo de representar o que foi mostrado; e

  6. os encontros de estudos nas aulas semanais, abrangendo relações possíveis de serem produzidas e problematizadas com os textos discutidos, com as visualidades mostradas, com os filmes assistidos e com o compartilhamento de experiências entre os colegas da disciplina.

A questão 5, em especial, revelou-se desafiadora para os acadêmicos, pois ainda trazem introjetada a tendência em reproduzir e ilustrar o que escrevem ou falam. Dessa forma, buscamos explorar os diários e tirar proveito da faculdade plural das imagens, pois nesta faculdade múltipla as imagens são impelidas a outras imagens, diversamente do modelo representativo, em que as imagens voltam para si mesmas.

A imagem, quando não tem o propósito de representar a narrativa textual, permite ampliar significados, sinalizando outros elementos que talvez fossem imperceptíveis se tivessem sido apresentados de outra maneira. Em vez de apenas ilustrar o texto, as imagens podem nos desafiar a estabelecer outras pontes e inúmeros liames. A imagem, neste cenário, passa a ter um papel tensor.

Também, por sua vez, o texto junto às imagens, por não primar pelo formato explicativo, “não fala sobre as imagens, mas a partir delas [e com elas e para além delas]” (Hernández, 2013Hernández, F. (2013). Pesquisar com imagens, pesquisar sobre imagens: revelar aquilo que permanece invisível nas pedagogias da cultura visual. In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Processos e práticas de pesquisa em cultura visual e educação (pp. 77-95). Santa Maria: Editora UFSM., p. 86). Como reforça Hernández (2013, p. 88)Hernández, F. (2013). Pesquisar com imagens, pesquisar sobre imagens: revelar aquilo que permanece invisível nas pedagogias da cultura visual. In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Processos e práticas de pesquisa em cultura visual e educação (pp. 77-95). Santa Maria: Editora UFSM., isto significa “relacionar as imagens e a narrativa do texto para um lugar além do comentário ou da ilustração”.

No viés do compartilhamento de experiências, explicitado na questão 6, vale pontuar que, por acontecer em um grupo de acadêmicos com alguns desejos em comum, mas também com expressivas diferenças, o partilhamento de narrativas produzidas contribuiu para o atravessamento de múltiplas experiências, facultando o conhecimento de aproximações, mas também ensejando discordâncias, fissuras e descontinuidades, potencializando o ressoar de outras possibilidades de pensar a docência.

Todos os motes listados foram levados em conta na hora de elaborar e apresentar os diários, propiciando uma visão estendida do que estávamos fazendo. O diário oferece essa visão de fora, como se pudéssemos nos ver de forma ampliada. Van Manen (2003, p. 91)Van Manen, M. (2003). Investigación educativa y experiencia vivida. Barcelona: Idea. coloca que a prática da escrita nos diários pode “contribuir al proceso de aprendizaje en la medida en que los estudiantes son alentados a continuar reflexionando sobre sus experiencias de aprendizaje y a intentar descubrir relaciones que de otro modo podrían no ver”.

Essa colocação nos faz pensar no quanto o diário se aproxima da fotografia. Podemos escolher o melhor ângulo e visualizar o que a máquina fotográfica irá captar, mas quando revemos as fotos, imagens inesperadas surgem no visor, pois elementos ou pessoas passam a ser contemplados sem que tivéssemos inicialmente a intenção de capturá-los. É um novo olhar para o que já havíamos visto. Poderíamos dizer que o diário oportuniza uma renovada experiência do que já havíamos vivenciado.

Ao elaborar o diário, não somos mais os mesmos que antes: elementos entraram em cena e intercessores nos violentaram a pensar outras coisas neste percurso. Somos atravessados e afetados a todo momento, pois vamos nos produzindo neste caminhar, fazendo com que singulares relações passem a ser imbricadas e problematizadas.

Surpresas acontecem no momento em que passamos a rever o que experienciamos, algumas agradáveis, outras nem tanto. Por vezes, deparamo-nos com nossas fragilidades e com aquilo que, com muito esforço, insistimos em esconder. Entrar em contato com cenas que nos causam desconforto e estranhamento faz parte do processo de elaboração do diário, pois ele é também um espaço de encontro com nós mesmos. É uma oportunidade para nos ouvir, para visualizar aquilo que trancamos a sete chaves e entrar em contato com os “dilemas” que nós mesmos construímos.

A presença dos “dilemas” nos diários toma outras proporções quando são expressos em palavras ou imagens, pois, de monstros grandiosos e imaginários, eles adotam outras formas e se apequenam. Os “dilemas” podem ser encarados não como adversários, mas como aliados quando nos colocamos em situação de vê-los como impulsionadores do pensar, quando empregamos energias na busca de outras produções de sentidos, potencializando o que parecia impossível.

Vale pontuar que a elaboração e a mostra do diário visual em sala de aula é prática que vem sendo empregada há alguns anos nas disciplinas de Estágio Supervisionado III e IV. Durante o tempo em que compartilhamos experiências educativas com esse grupo, percebemos que essa proposta é acolhida com expectativa e tranquilidade. Talvez isso se deva à aproximação e intimidade que o grupo tem com os materiais visuais, à visitação dos acadêmicos às exposições promovidas pelas turmas anteriores e ao compartilhamento de informações com os colegas que já experienciaram, em outros semestres, essa atividade. Os diários visuais e textuais fazem parte da proposta curricular dos estágios, contribuindo para que os acadêmicos esperem sua produção.

Figura 1
Diário do Acadêmico A da disciplina de Estágio Supervisionado IV (2013)

No decorrer da disciplina, os diários foram apresentados três vezes, duas durante o processo e outra vez no final. Expor o diário para o grande grupo contribuiu para aclarar e organizar os pensamentos. Possibilitou um cruzamento de encontros, em que uma multiplicidade de experiências foi relatada e discutida. Enxergamo-nos em muitas situações no diário do colega, colocamo-nos no lugar dele e passamos a pensar a nossa prática docente. Este ambiente narrativo dos pensamentos dos indivíduos contribui para um profícuo jogo de intercâmbios.

Ao mesmo tempo, foi um momento de retomada do trajeto percorrido, uma vez que foi possível constatar o que fez sentido para os acadêmicos, que impressões eles tiveram tanto da disciplina quanto das experiências no estágio, que diálogos conseguiram empregar entre o “eu docente em formação” e os textos, as poesias e as visualidades propostas.

Diferentes formatos de diários em versões textuais e/ou visuais foram apresentados: cartas, postais, performances, colchas de retalhos, cartazes, vídeos, histórias em quadrinhos, slides de PowerPoint, radiografias, toalhas para mesa e álbuns. A possibilidade de produzir diários com elementos visuais e performativos permitiu vislumbrar o que, talvez, em outra conformação seria inexplorado.

A pesquisa com outros materiais no diário pode levar a fazer outras relações, viabilizando um aumento de perspectivas e gerando novos matizes. O encontro com formatos diferenciados nos incita a buscar alternativas para os desafios que o material suscita. Um mesmo assunto pode ser desenvolvido de forma diversa quando explorado em outra configuração.

Sobrevoo para além dos diários

Ao sermos atravessadas e afetadas por algumas questões ensejadas pelas narrativas e apresentações dos diários, nossa potência de agir passou a ser renovada, movimentando-nos a atualizar no presente as relações com a experiência docente. Neste jogo de intercâmbios, novas imbricações entraram em cena.

As discussões, a partir dos textos e visualidades trabalhadas no semestre, respingaram nos diários, possibilitando ampliar o leque de problematizações. Isto nos desafiou a ir em busca de alguns conceitos para dar conta das exigências das narrativas dos acadêmicos, reafirmando a implicação da teoria e da prática, pois, devido à premência do momento, ora se sente a necessidade de buscar conceitos para compreender o que está ocorrendo, ora a teoria estudada faz com que o nosso olhar fique mais atento e se direcione para determinadas coisas que, talvez, ficariam imperceptíveis se não houvesse o chamamento da teoria. Teoria e prática vão se atualizando intensamente no decorrer da travessia.

Em vista disso, pretendemos nesta seção apresentar como este encontro nos impulsionou a debruçar no conceito de acontecimento e outros que se desdobraram dele – como entre-tempos, imagem-lembrança e lençóis de passado – e de que forma esses conceitos se mostraram tensionados na experiência educativa.

Diário 1

A história nos apresenta que os eventos são dispostos linearmente no tempo, um ao lado do outro, ordenados em sequência cronológica e organizados sem espaços entre eles. Entretanto, os acontecimentos não se manifestam obedecendo a uma ordem evolutiva de fatos enfileiráveis, uma vez que passado, presente e futuro coexistem.

Nem mesmo nosso pensamento funciona de forma linear, pois fazemos relações com o ontem, o hoje e o amanhã no mesmo momento. Ao pensar, rupturas, vazios e desdobramentos acontecem, pois acrescentamos, tiramos e justapomos elementos a todo instante.

Para acolher todos os acontecimentos, o tempo contínuo passa a ser limitado e insuficiente. Pelbart (2010, p. 20)Pelbart, P. P. (2010). O tempo não reconciliado: imagens de tempo em Deleuze. São Paulo: Perspectiva. consegue, em poucas palavras, expressar a teoria de Deleuze sobre o tempo:

Da linha do tempo ao emaranhado do tempo, do rio à terra, do fluxo à massa, do molde à modulação, da sucessão à coexistência, do tempo da consciência ao tempo da alucinação, da ordem à variação infinita – é nessa direção que é atraída a teorização deleuzeana do tempo, afastando-a irremediavelmente das figuras de tempo consagradas pela tradição.

O diário Postais possibilitou um espaço narrativo dos pensamentos do Acadêmico B, contribuindo para a problematização de visões que estavam naturalizadas em suas experiências educativas. Nesse viés, o ato de narrar não se limita a descrever fatos, situações ou relações. A narrativa passa a tecer sentidos, construindo verdades a partir dos fluxos de forças imbricados. Blanchot (2005, p. 8)Blanchot, M. (2005). O livro por vir (L. Perone-Moisés, trad.). São Paulo: Martins Fontes. chama-nos a atenção, colocando que a

narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso a esse acontecimento, o lugar aonde ele é chamado para acontecer, acontecimento ainda porvir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também ela, realizar-se.

A narrativa não tem a pretensão de reconstruir o que já aconteceu, mas sim ativar o que está vivo e renitente. O presente aproveita e atualiza as potencialidades do passado, intensificando-as e inventando maneiras que admitam ativar os devires. No acontecimento, os estados de disputa estão em jogo e as forças passam a obter potência quando, em um dilatado confronto de circunstâncias favoráveis e desfavoráveis, são atravessadas e afetadas por novas combinações de forças.

Figura 2
Diário Postais, do Acadêmico B da disciplina de Estágio Supervisionado IV (2013)

Deleuze e Guattari (2005, p. 202)Deleuze, G., & Guattari, F. (2005). O que é a filosofia? (B. Prado Júnior, & A. A. Munhoz, trad., 2a ed., 4a reimp.). Rio de Janeiro: Editora 34. evidenciam que o “acontecimento não é de maneira nenhuma o estado de coisas, ele se atualiza num estado de coisas, num corpo, num vivido”. Neste movimento, adquirem-se, perdem-se e se deslocam coisas, vai se constituindo um campo de incidências que abriga particularidades. No acontecimento, o instante se atualiza e acaba produzindo outro momento, pois diferentes tessituras passam a estar imbricadas e se realizam inusitadas relações.

Por isso, o acontecimento pode desacomodar o próprio pensamento, pois lida com o atravessamento de fluxos de forças que obedecem ao inesperado, inquirindo outros arranjos e provocando diferentes intensidades. O pensamento, nesse sentido, não está antecipadamente demarcado em esquemas preestabelecidos, fixos e rígidos: ele se encontra em atitude de abertura constante. Quando, na experiência educativa, não temos um roteiro que nos direciona e nos engessa, contemplamos a possibilidade de reinventá-la todos os dias.

Diário 2

Na produção dos diários, o maior desafio foi não escrever no formato linear e cronológico, mas procurar fazer relações e desdobramentos. Pensamos de forma rizomática, no entanto ainda insistimos em escrever de maneira arbórea. Buscamos estruturar nosso pensamento de forma sequencial, fragmentando-o em gavetas com data e hora marcada, esquecendo que as coisas evadem, extravasam e rompem, pois as multiplicidades não permitem ser dirigidas e conformadas por uma estrutura.

O “rizoma é precisamente um caso de sistema aberto” (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Conversações (P. P. Pelbart, trad., 2a ed.). São Paulo: Editora 34., p. 45), sempre em vias de acontecer, de escapar e de justapor. Por isso é que se abre a possibilidade de brotar pelo meio, de iniciar “entre” as coisas, em deslocamento, em oscilação. Preciosa (2010, p. 37)Preciosa, R. (2010). Rumores discretos da subjetividade: sujeito e escritura em processo. Porto Alegre: Sulina: Editora da UFRGS. infere que “brotar pelo meio é opor-se a um destino que progride em direção a algo, é acariciar riscos, acumular êxitos e retumbantes fracassos, é se infiltrar por alguma vizinhança, fazendo conexões”.

Pensar a experiência educativa “entre” exprime dar atenção ao que acontece “em meio”, em movimento, não priorizando o ponto de origem nem o de término. É no interstício que somos atravessados, tocados e produzidos. É também onde temos condições de nos inventar, abrindo possibilidades de contar e recontar a nossa história quantas vezes for necessário.

Durante a confecção do diário Colcha de Retalhos, a Acadêmica C, do Estágio Supervisionado III, utilizou pedaços de tecidos para pontuar os aspectos que para ela fizeram sentido e que foram relevantes para pensar a docência. Os retalhos foram dispostos de maneira que se afastassem do relato em cadeia, mas que dessem conta dos diálogos e alianças que tinham sido produzidos a partir das suas experiências educativas.

Figura 3
Diário Colcha de Retalhos, da Acadêmica C da disciplina de Estágio Supervisionado III (2013)

Os participantes da disciplina foram convidados a intervir na colcha, desenhando, escrevendo algumas considerações ou deixando questionamentos nos retalhos. Na apresentação do diário, dependendo de como eram dobrados os tecidos, arranjos e alianças passaram a ser engendrados, sendo disparadores de singulares relações.

Diário 3

A partir do diário Revista do Ensino, da Acadêmica D da disciplina de Estágio Supervisionado III, foi possível pensar sobre o quanto as lembranças podem se atualizar quando o passado se contrai e se distende para o presente. Dessa forma, algumas considerações merecem ser expostas e problematizadas.

Figura 4
Diário Revista do Ensino, da Acadêmica D da disciplina de Estágio Supervisionado III (2013)

A intenção da acadêmica era intervir em uma revista de educação de 1964 que pertencera à sua avó, ex-professora do estado do Rio Grande do Sul, fazendo com que o conteúdo textual e visual impulsionasse o pensar sobre sua experiência docente. Durante as aulas, relatou a relação afetiva que nutria pela revista, por conta das imagens-lembrança que ela evocava. Mencionou, também, o quanto foi custoso interferir nas páginas, por acreditar ser um “material intocável”.

Ao produzir o diário, a acadêmica discorreu sobre a dificuldade de estabelecer um diálogo entre as questões que desejava tratar e o conteúdo da revista. Ao apresentar para o grande grupo, foi possível observar o quanto o material passou a ser um limitador, pois, tentando fazer inflexões com o texto e as imagens da revista, encontrou apenas rebatimentos: as relações ficavam sempre em nível binário, de oposição. Evidenciava-se uma distância e divergência entre o seu pensar e o que o material impresso na revista apresentava e suscitava.

Esta experiência nos fez pensar nas colocações de Deleuze (1990, p. 136)Deleuze, G. (1990). Cinema 2: a imagem-tempo (E. A. Ribeiro, trad.). São Paulo: Brasiliense. quando expõe que Bergson diferencia duas situações possíveis quando acionamos nossas lembranças:

a lembrança passada ainda pode ser evocada numa imagem, mas esta não serve para mais nada, porque o presente do qual parte a evocação perdeu o prolongamento motor que tornaria a imagem utilizável; ou então a lembrança não pode mais sequer ser evocada em imagem, embora subsista numa região de passado, mas o atual presente já não pode alcançá-la.

No caso das imagens-lembrança que a revista incitava, os lençóis de passado ainda são acionáveis e acionados. Contudo, as imagens extraídas já não satisfazem os anseios do presente, ocasionando o não estiramento. A educação não é mais vista da mesma maneira, professores e estudantes não são mais os mesmos, novas necessidades e exigências surgiram e, por conta de o presente ter se modificado tão significativamente, as lembranças passaram a não ser mais úteis para o que se deseja no momento. “As lembranças caem no vazio, porque o presente se esquivou e corre noutra parte, retirando-lhes qualquer inserção possível” (Deleuze, 1990Deleuze, G. (1990). Cinema 2: a imagem-tempo (E. A. Ribeiro, trad.). São Paulo: Brasiliense., p. 137).

Ao trazermos para o ambiente escolar textos ou imagens que recaem em discussões nas quais a bipolaridade esteja presente, dificultamos as possibilidades que o “e” oferece e passamos a incidir em polêmicas com a utilização do “ou”. Na perspectiva do “ou”, o mundo se divide em vetores de opostos, ou isto ou aquilo, ou antigo ou novo, ou bom ou ruim, passando a comparar, categorizar e excluir.

Quando despendemos um tempo precioso em polêmicas que vedam possibilidades de atravessamentos, de alianças, de invenção, corre-se o risco de nos determos no reconhecimento ou na exclusão, acarretando a prerrogativa da identidade.

Inventar um mundo onde a conjunção “e” possa destronar a rigidez do verbo “ser (é)” e operar a exclusão da conjunção “ou” não significa criar um outro mundo, um mundo mais justo, perfeito e transcendente. A resistência não consiste em negar esse mundo, mas em investir nas infinitas possibilidades que “os outros” do nosso mundo podem oferecer. Em relação a esta questão, Levy (2011, p. 100)Levy, T. (2011). A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. menciona que “não se trata de um outro mundo, de um mundo além do mundo, mas deste mundo, o nosso mundo, ‘o melhor dos mundos’ (ou ainda o ‘outro do mundo’, para retomar a expressão utilizada por Blanchot)”.

Em vista disso, o desafio não está em descobrir uma única possibilidade de mundo, tampouco em substituir esse mundo por outro, mas reside em investir em quantos “e(s)” forem necessários para ensaiar possibilidades de vida no nosso mundo.

Diário pessoal

Ao pensarmos em todas as possibilidades dessa prática, nós, pesquisadoras, produzimos também diários durante o tempo que compartilhamos experiências educativas com os acadêmicos. Esta produção nos possibilitou certo distanciamento, permitindo-nos visualizar e dar atenção a outras coisas, o que contribuiu para problematizar questões que estavam naturalizadas em nossa prática docente, examinando nossas escolhas, ações e – por que não? – a nós mesmas. O exercício do afastamento consiste em termos liberdade e coragem de nos separarmos do que fazemos, daquilo em que acreditamos, do que temos como verdade, ensaiando a produção de potentes maneiras de construir a docência.

Além dos diários dos acadêmicos, a produção dos diários pessoais, um de cada professora, também contribuiu para pensar sobre alguns conceitos e a docência. Isto se presentificou com mais intensidade quando, para dar conta de elementos imprevisíveis e diferentes conexões, necessitamos fazer movimentar o conceito de acontecimento.

Figura 5
Diário da Pesquisadora 1 (2013)

Quando somos provocados por novos conceitos, diferentes relações são acionadas para um maior entendimento. No caso do diário da Pesquisadora 1, os registros textuais e visuais tiveram um papel importante para mobilizá-la a pensar sobre o que estava trabalhando, propiciando maior aproximação e envolvimento.

Levando em consideração todas estas questões e também por desejar produzir os diários em outro formato, a Pesquisadora 1 iniciou de forma tímida algumas pesquisas experimentais. Materiais diversificados fizeram parte deste processo, em que utilizou sobreposições de camadas transparentes, como oleado incolor, lâminas de retroprojetor, radiografias de exames de ressonância, tecidos em crepe e organza. Na superfície de cada camada ou lençol, narrativas visuais e textuais eram produzidas e sobrepostas, coexistindo imagens e textos passados e atuais.

Algumas camadas não se encontravam tão nítidas, por estarem encobertas por outros elementos, interferindo na visualização. Outras não eram mais possíveis de ser percebidas, pois tinham desaparecido do campo de visão. No entanto, as camadas se encontravam todas ali.

É interessante ressaltar que as narrativas visuais e textuais nas camadas anteriores sofriam mudanças quando um novo lençol era sobreposto e, devido à transparência do material, era possível perceber que elas permaneciam todas neste folheado de lençóis, mas com alterações, devido às misturas e sobreposições de componentes.

A linearidade cronológica das narrativas no diário deixou de existir quando todas as camadas passaram a estar justapostas umas sobre as outras. “Foi neste momento que compreendi que, para acolher todos os acontecimentos, o tempo contínuo, linear e evolutivo passa a ser limitado e insuficiente” (Pesquisadora 1). Passado, presente e futuro não estão organizados cronologicamente, os três tempos coexistem no acontecimento. No livro A imagem-tempo, Deleuze (1990, p. 124, grifo do autor) aclara isso citando um comentário de Santo Agostinho: “Há um presente do futuro, um presente do presente e um presente do passado, todos eles implicados e enrolados no acontecimento, portanto, simultâneos, inexplicáveis”.

No decorrer da investigação, a Pesquisadora 1 foi experimentando com diários digitais, pretendendo sobrepor narrativas visuais e textuais no programa PowerPoint. Constatou que, ao fazer isso, a camada anterior era vedada devido à saturação de elementos. Foi necessário inventar vazios, brechas e lacunas entre as imagens e textos das camadas recentes, com intuito de haver respiros e diálogos entre os lençóis. Quando tudo estava preenchido, alguns lençóis deixavam de ser visualizados, apesar de coexistirem neste folheado. Com isso, a Pesquisadora 1 passou a entender que os espaços vazios são fecundos para que atravessamentos e alianças aconteçam, permitindo brechas para a interferência e a invenção.

Ao apresentarmos nossos diários para os acadêmicos das disciplinas do Estágio Supervisionado III e IV, tivemos que organizar nosso pensamento, e esse exercício também fez com que pensássemos sobre os conceitos que estávamos movimentando. Quando expomos verbalmente nossos diários, fomos provocadas pelo grupo com questionamentos e considerações, e “desta forma[,] o que seria apenas uma escrita [ou uma imagem] ultrapassa o plano silencioso do textual [e visual] [e] ganha forma quando dimensionado no verbal” (Oliveira, 2010Oliveira, M. O. (2010). A experiência educativa em artes visuais como um lugar de encontro: sobre (su)postas corpografias (projeto de pesquisa). Santa Maria: UFSM., p. 17). As colocações dos componentes do grupo reverberaram outras relações, pois a partilha de experiências entre os envolvidos impulsionou o prolongamento de sentidos do que estávamos investigando.

É hora de fazer um pouso, mesmo que provisório…

A problematização dos diários pôde ser vivida como um campo amplo que acolhe todas as possibilidades que o pensamento é capaz de inventar, pois se deixou atravessar por diferentes composições, algumas inusitadas, paradoxais, realistas e ficcionais. Por se utilizar dessas outras particularidades para movimentar fluxos de pensamento e ultrapassar limites, essas experiências passaram a ser um território propício para o diálogo com a educação e a problematização da própria experiência educativa.

É nesse sentido que o compartilhamento das narrativas realizadas nos diários pelos acadêmicos e também por nós professoras pode ser visto como um espaço disparador do pensar, não com a intenção de incitar um pensamento único e homogeneizador, mas um pensamento que tenha a potência de se dispersar. Cada um dos envolvidos teve sua maneira peculiar de se afetar e de se enredar neste emaranhado de relações.

Pensamos que mais importante do que se fixar nas diferenças que cada um teve condições de pontuar foi perceber o quanto o tangenciar de narrativas próprias e estrangeiras reverberou e o que foi possível ser pensado a partir deste compartilhamento, que ressonâncias deste coletivo ecoaram, como afetaram e como tiveram potência de produzir coisas que não imaginávamos.

Foi neste cenário plural e inquieto que nos sentimos provocadas a compor, ainda que timidamente, algumas tessituras. Pensamos que houve contágio, afetação e mistura de corpos. A multiplicidade não seria justamente isso? Uma composição de dimensões que se deslocam, se prolongam e se relacionam umas com as outras com intuito de gerar força? Cada uma incorporando todas as outras em uma outra condição, em outro grau?

É pensando nisso, caro leitor, que depois de termos sobrevoado sobre os diários, com os diários e para além dos diários, o convidamos a sobrevoar um pouco mais adiante, fazendo brotar outros pensamentos e outros campos de sentido, inventando outras vidas e produzindo-se a cada uma delas.

  • 1
    Normalização, preparação e revisão textual: Andressa Picosque (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 2
    No primeiro semestre de 2013, durante a docência orientada no doutorado em educação, a primeira autora partilhou experiências educativas com os sete acadêmicos, juntamente com a segunda autora, regente das disciplinas de Estágio Supervisionado III e IV. A pesquisa realizada no decorrer desse período passou a fazer parte da tese de doutorado da primeira autora.

Referências

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  • Deleuze, G., & Guattari, F. (2005). O que é a filosofia? (B. Prado Júnior, & A. A. Munhoz, trad., 2a ed., 4a reimp.). Rio de Janeiro: Editora 34.
  • Foucault, M. (2012a). O cuidado com a verdade. In Ditos e escritos (E. Monteiro, & I. A. D. Barbosa, trad., Vol. 5, pp. 234-245). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
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  • Hernández, F. (2013). Pesquisar com imagens, pesquisar sobre imagens: revelar aquilo que permanece invisível nas pedagogias da cultura visual. In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Processos e práticas de pesquisa em cultura visual e educação (pp. 77-95). Santa Maria: Editora UFSM.
  • Levy, T. (2011). A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • Martins, R., & Tourinho, I. (2009). Pesquisa narrativa: concepções, práticas e indagações. In Anais do II Congresso de Educação, Arte e Cultura Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria.
  • Oliveira, M. O. (2009). O papel da cultura visual na formação inicial em artes visuais. In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Educação da cultura visual: narrativas de ensino e pesquisa (pp. 213-223). Santa Maria: Editora UFSM.
  • Oliveira, M. O. (2010). A experiência educativa em artes visuais como um lugar de encontro: sobre (su)postas corpografias (projeto de pesquisa). Santa Maria: UFSM.
  • Oliveira, M. O. (2011). Por uma abordagem narrativa e autobiográfica: os diários de aula como foco de investigação. In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Educação da cultura visual: conceitos e contextos (pp. 175-190). Santa Maria: Editora UFSM.
  • Oliveira, M. O. (2013). O que pode um diário de aula? In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Processos e práticas de pesquisa em cultura visual e educação (pp. 225-236). Santa Maria: Editora UFSM.
  • Oliveira, M. O. (2014). Diário de aula como instrumento metodológico da prática educativa. Revista Lusófona de Educação, 27(27), 111-126.
  • Pelbart, P. P. (2010). O tempo não reconciliado: imagens de tempo em Deleuze São Paulo: Perspectiva.
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  • Van Manen, M. (2003). Investigación educativa y experiencia vivida Barcelona: Idea.
  • Zabalza, M. A. (2004). Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional (E. Rosa, trad.). Porto Alegre: Armed.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2017
  • Revisado
    11 Dez 2017
  • Aceito
    26 Jul 2018
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