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O jogo na Pedagogia de Rousseau: uma leitura do episódio dos doces 1 1 Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite https://orcid.org/0000-0001-8889-750X 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah leda.farah@terra.com.br 3 3 Apoio: CAPES (Bolsa de doutoramento)

Resumo

O presente artigo busca comentar o papel do jogo na pedagogia de Rousseau. Com foco no livro Emílio ou Da Educação e enfatizando o trecho do “episódio dos doces”, o texto busca analisar o motivo pelo qual Jean-Jacques coloca o jovem Emílio em exercícios competitivos, entre os jogos, e as brincadeiras realizadas pelo preceptor. Pois, se o amor-próprio nasce da comparação e da competição, a educação natural deveria evitar esse tipo de atividade. Mal encaminhada, qualquer atividade competitiva pode resultar no desenvolvimento do amor-próprio e possibilitar a degradação humana. Por outro lado, como se constata no episódio citado, as atividades recreativas ou esportivas, bem encaminhadas, podem desenvolver as habilidades físicas e as morais. O resultado é a racionalidade sensitiva, a educação do amor-próprio e a utilização do “veneno”, a competição, como “remédio”.

Palavras-chave
jogos; atividades recreativas; formação humana; Rousseau; Emílio

Abstract

This article discusses the role of games in Rousseau’s pedagogy. Focusing on the book ‘Emile, or On Education’, the text aims to analyze why Rosseau places Emile in competitive exercises among the games and plays proposed by his tutor. If self-love emerges from comparison and competition, natural education should avoid this type of activity. On the other hand, as we can see in the episode analyzed, recreational and sporting activities, when well conducted, can develop physical and moral abilities. The result is sensitive rationality, self-love education, and the use of the “poison” (competition) as a “remedy.”

Keywords
games; recreational activities; human formation; Rousseau; Émile

Introdução

O escritor, músico e filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teve uma produção expressiva em diversos campos do conhecimento. No campo da educação, seus escritos foram tão significativos que muitos o consideram, como o faz Cambi (1999)Cambi, F. (1999). História da pedagogia. Editora da Unesp., o “pai da pedagogia moderna”. De todas, a obra mais significativa nesse contexto é o livro Emílio ou Da educação, publicado em 1762. Embora escrito em forma de um romance, esse tratado pedagógico traz profundas reflexões sobre a formação humana, introduzindo conceitos novos e perspectivas inovadoras quanto ao trato da infância. E, como afirma Scott (2020)Scott, J. (2020). Rousseau’s reader: strategies of persuasion and education. University of Chicago Press., Rousseau não pode estar falando sério quando afirma que o livro Emílio não é um tratado educacional, pois o romance, além de ser um “tratado da bondade original do homem” (O.C., I, p. 934), como Rousseau mesmo admite, traz diversas reflexões que ressaltam essa bondade e fomentam a ideia de uma infância pura e inocente, bem como situações educativas que ampliam o debate acerca da pedagogia moderna, em todos os seus campos, inclusive no campo das atividades recreativas e até físicas. Em alguns trechos da obra, é possível prospectar alguns episódios que enriquecem muitas das discussões didáticas inauguradas no século anterior, na obra Didática Magna, de Jan Amos Komenský (1592-1670), o que coloca o Emílio como uma das obras cânones da filosofia da educação, da pedagogia e mesmo da didática.

Considerado como o “pai da didática moderna”, Comenius concebeu o trabalho didático de tal modo que suas reflexões contribuíram substancialmente com as bases da escola moderna. Como “chave teórica” (Alves, 2005Alves, G. L. (2005). O trabalho didático na escola moderna. Autores Associados.) para a superação do ensino artesanal e atendimento aos impulsos de uma sociedade manufatureira, seu tratado tentava propor a economia de tempo, de fadiga, o ensino de tudo a todos, a organização das matérias e um modus operandi mais lúdico, mais informal e, portanto, mais prazeroso para as crianças. Comenius se esforça para deixar claro, em sua obra, que os estudantes deveriam ser conduzidos sem enfado ou dificuldades, sem gritos ou pancadas, mas praticamente brincando e divertindo-se com as atividades práticas que poderiam transformar a escola em um lugar mais atrativo, ou seja, em um “lugar de delícias”. Contra um ensino puramente verbal4 4 “Na escola ensinam as palavras antes das coisas” (Comenius, 2002, p. 150). e conteudista,5 5 “Portanto erram os instrutores que querem levar a cabo a formação da juventude ditando muitas coisas e obrigando decorá-las, sem uma cuidadosa explicação” (p. 156). o bispo morávio propôs um método de ensino prático6 6 “Só a prática faz o artífice” (p. 252). e voltado para o desenvolvimento do que Rousseau sinalizou depois como razão sensitiva, isto é, o pensamento racional desenvolvido em conjugação com a prática e a partir das experiências sensíveis. Como o cidadão de Genebra diz em duas passagens do Emílio: “É pelo efeito sensível dos sinais que as crianças aferem seu sentido” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 58); e: “Não deis a vosso aluno nenhuma espécie de lição verbal; só da experiência ele as deve receber” (p. 78). De fato, sua pedagogia complementa as reflexões de Comenius e amplia a questão da sensibilidade física como propulsora do conhecimento e da preparação para a convivência social (Paiva, 2021Paiva, W. A. de. (2021). O Emílio de Rousseau e a formação do cidadão do mundo moderno (2a. ed.). Dialética.), como se pode ver nas experiências do jovem Emílio, proporcionadas por seu tutor.

O Emílio é, como diz Paiva (2021)Paiva, W. A. de. (2021). O Emílio de Rousseau e a formação do cidadão do mundo moderno (2a. ed.). Dialética., um “mosaico de ideias” que oferece uma ampla visão do fenômeno educativo. Mas, para além disso, a obra traz alguns episódios, ou cenas, ignorados pela maioria dos leitores, nos quais o emprego da ficção, da brincadeira, do jogo e da imaginação tem a clara intenção de favorecer o desenvolvimento moral da criança, mas também o desenvolvimento de seu corpo e de suas capacidades recreativas e até desportivas. Tais cenas possibilitam ao Emílio assistir e vivenciar situações educativas pelas quais o trabalho do preceptor se torna mais agradável e mais eficaz no que diz respeito à lição moral que subjaz tais atividades. Uma dessas cenas é o episódio das favas, quando o preceptor leva o Emílio, ainda criança, para plantar algumas sementes desse legume em uma determinada área, que pertencia a outrem e havia sido trabalhada antes. A cena é extremamente educativa porque introduz a ideia de propriedade privada, de trabalho manual e de respeito para com os bens do próximo. Portanto, uma lição moral.7 7 Para uma análise desse episódio como a primeira lição moral de Emílio, vide: Francisco (1998). Outros episódios aparecem ao longo do texto, mas o mais significativo para o propósito da discussão que aqui empreendemos é o episódio dos doces, cuja cena, além de fazer coro a tantas outras que evocam as questões morais, pode ser vista como um incentivo à educação do corpo e à valorização das atividades recreativas, do exercício físico e da competição. Como diz Souza (2016)Souza, R. R. de. (2016). Educacão, corpo e natureza na obra "O Emílio" de Jean-Jacques Rousseau. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual de Campinas., “é uma obra que apresenta uma proposta pedagógica direcionada à educação do corpo do discípulo tanto como da mente” (p. 12).8 8 A autora identifica diversas pesquisas que colocam Rousseau como “um dos precursores da concepção de educação voltada para exercício corporal” (Souza 2016, p. 37).

Essa discussão em Rousseau reproduz, de certa forma, o dualismo platônico – corpo e alma –, mas reforça a interdependência entre as duas partes: “É preciso que o corpo tenha vigor para obedecer à alma: um bom servidor deve ser robusto. ... O corpo débil enfraquece a alma” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 31). E, como nos lembra Dalbosco (2011)Dalbosco, C. A. (2011). Educação natural em Rousseau: das necessidades da criança e dos cuidados do adulto. Cortez. que a criança “demonstra possuir mais força física que vontades em sua mente” (p. 45), a ação do preceptor de Emílio tem a intenção de educar essa força, possibilitando o desenvolvimento da sensibilidade física, a qual deve contribuir com o desenvolvimento da sensibilidade moral.

Embora Rousseau defenda uma educação natural, a qual chama de “negativa”, não quer dizer com isso a ausência de atividades propositivas e um espontaneísmo pedagógico. Como diz Dalbosco (2011)Dalbosco, C. A. (2011). Educação natural em Rousseau: das necessidades da criança e dos cuidados do adulto. Cortez., “a intervenção do adulto é decisiva no sentido de educar a liberdade desregrada da vontade da criança, indicando limites à sua ação no mundo” (p. 143). Igualmente, o afastamento do convívio social não quer dizer isolamento, pois, como questiona Paiva (2016)Paiva, W. A. de. (2016). A arte da representação cívica no Emílio de Rousseau. Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 33, 211-224. http://dx.doi.org/10.21747/21836892/fil33a13.
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, “que papel social poderia ter um homem que desde a infância fosse isolado da sociedade?” (p. 217). O próprio Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel. afirma que Emílio não deve permanecer solitário, mas “feito para viver com os homens, deve conhecê-los” (p. 379). Portanto, sua formação depende de um intenso e constante contato com a natureza, sem negligenciar as experiências pelas quais os “três mestres”9 9 Rousseau comenta, no início do Emílio, que a educação é possibilitada pela ação de três “mestres”: a natureza, a qual tem a ver com o desenvolvimento biopsíquico, isto é, das faculdades e dos órgãos do corpo humano; os homens, que remetem à ideia das ações humanas, do uso pessoal e social dessas faculdades; e as coisas, que são as experiências sensoriais, com os objetos em geral. trabalham o desenvolvimento do corpo e da alma, desde o nascimento da criança, numa interação física constante entre o corpo e a natureza.10 10 Perspectiva que influenciou a defesa da ginástica ao ar livre, encontrada nos manuais do XVIII até o XX, como o primeiro manual de ginástica: Gymnastik für die Jugend (Ginástica para a Juventude), escrito pelo educador alemão Johann Christoph Friedrich Guts Muths (1759-1839) e publicado em 1793 (Quitzau & Soares, 2019). Tal é o motivo de Rousseau ter sido radicalmente contra os cueiros que, segundo ele, serviam de cadeias que impediam o livre movimento do corpo e o gozo da liberdade: “Assim o impulso das partes internas de um corpo que tende a crescer encontra um obstáculo insuperável aos movimentos que esse impulso exige” (p. 17).

O episódio dos doces

Relatado no Livro Segundo de Emílio, o qual abrange a educação da criança dos 2 aos 12 anos. O personagem Jean-Jacques, o preceptor, complementa sua discussão sobre a importância dos sentidos para a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo, dizendo que uma tarde, em um passeio campestre com seu discípulo, resolveu utilizar os pedaços de doce que sempre carregava em seu bolso, para “exercitar na corrida um menino indolente, preguiçoso, sem inclinação para esse exercício” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 141). Ao propor uma disputa em corrida entre dois meninos, o desafio foi logo aceito, e as crianças percorreram o trajeto estabelecido a fim de atingir a pedra onde fora colocado o prêmio, isto é, o tão apreciado doce. Para tristeza do tutor, “o ganhante pegou o doce e comeu-o sem piedade aos olhos dos espectadores e do vencido” (p. 142). A fim de mostrar às crianças que o divertimento e o próprio exercício valiam muito mais que o doce, repetiu a competição várias vezes e passou a dar mais de um prêmio; passou mesmo a variar as regras; a premiar mais gente e a excitá-los ao gozo das competições: “aquilo era para eles jogos olímpicos” (p. 143). Igualmente, na Nona Caminhada, de Os devaneios do caminhante solitário, Rousseau (2017)Rousseau, J.-J. (2017). Os devaneios do caminhante solitário. (Laurent de Saes, Trad., Intr. e notas). Edipro. relata uma ocasião em Paris em que ele e sua esposa caminharam até um bosque e encontraram 20 meninas, conduzidas por uma freira, às quais ele propôs alguns jogos competitivos, com doces como prêmio, e foram aceitos prontamente. Após a longa diversão, diz Rousseau: “Minha mulher insinuou àquelas que ganhavam bons prêmios que dessem uma parte às suas camaradas, de sorte que a partilha se tornou quase igual, e a alegria geral” (p. 118).

Transcorridos alguns dias, Jean-Jacques resolveu treinar seu discípulo um pouco mais, exercitando seu físico e preparando-o para a competição. Para decepção do tutor, quando saiu vitorioso em algumas das disputas, Emílio comeu apressadamente seu doce, tal como faziam os demais vencedores. Estrategicamente, o personagem educador possibilitou repetidas disputas, de modo que, depois de acostumado à vitória, o jovem passou a ser mais generoso e começou a partilhar seu prêmio com os vencidos, demonstrando que havia aprendido a lição de que o que mais importava, além do exercício e do fortalecimento do corpo, era a interação com as outras crianças e a compreensão moral da ajuda ao próximo, do desenvolvimento da piedade e das interações humanas. O preceptor desenvolve aquilo que Neuhouser (2013)Neuhouser, F. (2013). Rousseau’s theodicy of self-love: evil, rationality, and the drive for recognition. Oxford University Press. chama de “educação do amor-próprio”, uma vez que é impossível evitar seu desenvolvimento, entendendo com isso uma ação pedagógica que se utilize dessa própria paixão para remediar os males do homem social, imunizando-o11 11 “entregue ao turbilhão social, basta que não se deixe arrastar pelas paixões” (Rousseau, 1973, p. 286). . Se, como diz Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., “a descoberta da causa do mal indica o remédio” (p. 134), ao mesmo tempo que a competição pode inflamar o orgulho e a vaidade, ela pode ser usada como uma encenação pedagógica para desenvolver a autoestima, tal como se fazia com os guerreiros na Grécia antiga.12 12 Como diz Neuhouser (2013), ao comentar o elogio de Rousseau aos guerreiros da Grécia antiga, “distinguir-se como cidadão valente e virtuoso pode oferecer aos indivíduos a oportunidade de conquistar estima, e até mesmo glória, pelas qualidades e conquistas que promovam o bem coletivo” (p. 169, tradução livre).

Portanto, há nesse episódio uma ação pedagógica em benefício do organismo da criança, ampliando não apenas sua capacidade física – contra a lentidão e a languidez –, como todos os seus sentidos:

A vivacidade da infância mal acomodada a tais lentidões; exercitaram-se portanto em ver melhor, em melhor calcular uma distância à vista. Então não tive grande dificuldade em ampliar e alimentar tal gosto. Finalmente, alguns meses de experiências e de erros corrigidos formaram de tal modo seu compasso visual, que, quando eu punha pelo pensamento um doce em algum objeto longínquo, ele tinha o golpe de vista quase tão seguro quanto a fita métrica do agrimensor.

(Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 144)

Mas há também uma ação pedagógica para o desenvolvimento social, pois a criança aprende a controlar o ímpeto e não ignora as regras também condicionadas aos demais participantes no ambiente coletivo. Como Rousseau ensina que nessa idade não se deve dar lições verbais,13 13 “Não deis a vosso aluno nenhuma espécie de lição verbal; só da experiência ele as deve receber” (Rousseau, 1973, p. 78). mas experiências práticas, então, se as brincadeiras, os jogos, os exercícios físicos e as competições forem utilizadas de modo virtuoso, servem como “remédio” para evitar um mal pior. Como diz Huizinga (2005)Huizinga, J. (2005). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Perspectiva., o jogo é mais que um fenômeno fisiológico, pois encerra sentidos e se desdobra como linguagem. Nesse caso, a competição representa algo intrinsecamente relacionado à convivência humana: saber manter o respeito, a amizade14 14 Sobre isso, diz Rousseau no Emílio (1973, p. 242): “O primeiro sentimento de que é suscetível um jovem cuidadosamente educado não é o amor, é a amizade”. Até porque “a adolescência não é a idade nem da vingança nem do ódio; é a da comiseração, da clemência, da generosidade” (p. 243). e a consideração, mesmo na disputa com outras pessoas. Por exemplo, o preceptor notou que no início houve trapaças na disputa pelo doce: “seguravam-se mutuamente ou se derrubavam”; ou ainda “punham pedras na passagem um do outro” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 143). Sua resposta foi metódica, pois passou a separar os competidores, fazendo-os partir de pontos distintos. Isto é, em vez de dar-lhes uma lição verbal ou repetir-lhes as regras, criou uma situação na qual não podiam trapacear e, com isso, permitiu que as crianças tivessem condições de, aos poucos, controlar suas nascentes paixões. De modo que a competição não tem aqui apenas a meta da vitória, ou o prazer degustativo de um doce, mas a meta de proporcionar diversão, ao mesmo tempo que promove o desenvolvimento físico e o desenvolvimento moral.

O preceptor de Emílio procurou dosar o vício, ao buscar o meio-termo entre o desinteresse e a paixão desregrada, pois, tão logo percebeu que, por um lado, alguns não se interessavam, e o que realmente importava para outros era a vitória, o prêmio, isto é, o prazer de comer o tão desejado doce, passou a explorar os diversos ângulos que a atividade poderia proporcionar. Diz ele: “Se o prêmio não era grande, os que o disputavam não eram ambiciosos” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p.142). E a solução dada foi a seguinte: “Para provocar o espírito de competição [ênfase adicionada] e dar maior interesse à coisa, eu organizava corridas mais longas e aceitava maior número de concorrentes” (p. 143). O que foi suficiente para instigar quem estava competindo, e até mesmo as pessoas que estavam ao redor, caminhantes e passageiros do local, paravam para admirar a disputa pelos doces, ou seja, o espírito de competição que se desenvolveu acabou por mobilizar os membros da comunidade e inseri-los naquela atividade desportiva:

Mal se colocavam na pista, já os transeuntes paravam para vê-los; as aclamações, os gritos, as palmas os incitavam; eu via as vezes meu rapazinho fremir, levantar-se, gritar quando um deles se achava prestes a alcançar o outro ou ultrapassá-lo.

(p. 143)

Tal cena nos remete à descrição das festas populares, tão elogiadas por Rousseau (1964)Rousseau, J.-J. (1964). Œuvres complètes. (Vol. I, II, III et IV -1959, 1961, 1964, 1969). Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade). na Carta a d’Alembert, quando os camponeses se reuniam ao ar livre para pular, dançar, cantar e, enfim, festejar sua felicidade de modo coletivo, sem o desregramento das paixões conflituosas.

Sem essa possibilidade de vivência coletiva, Emílio é submetido ao jogo.15 15 Aqui Rousseau se refere aos jogos infantis e às brincadeiras próprias à infância, e não ao jogo de azar ou outra jogatina própria de desocupados: “O jogo não é um divertimento de homem livre, é recurso de desocupado; e meus prazeres me dariam ocupações demais para me deixarem tempo a ser tão mal empregado” (Rousseau, 1973, p. 404). Embora Kishimoto (2001) afirme ser difícil definir o jogo, em Rousseau o termo parece englobar todas as atividades lúdicas nas quais haja o concurso das regras e do acordo mútuo. E como o jogo pode ajudar nesse processo? Enquanto infans (primeira fase da natureza, correspondente aos dois primeiros anos de vida), a criança necessita de plena liberdade para desenvolver seus movimentos. Como diz Sahd (2005)Sahd, L. F. N. de A. S. (2005). A noção de liberdade no Emílio de Rousseau. Trans/Form/Acão, 28(1), 109-118., “esta liberdade de movimento deve ser preservada quando a criança cresce, uma vez que os seus efeitos serão benéficos para o desenvolvimento de seu corpo” (p. 110), principalmente nessa primeira fase, quando seu temperamento e seu corpo estão em processo de enrijecimento.16 16 Essa é a primeira fase da idade da natureza na qual os três mestres dão uma certa primazia ao primeiro, a natureza: “Observai a natureza e segui o caminho que ela vos indica. Ela exercita continuamente as crianças. Ela enrijece [sic] seu temperamento mediante experiências de toda a espécie; ela ensina-lhes desde cedo o que é pena e dor” (Rousseau, 1973, p. 22). A criança dos 2 aos 12 anos, quando vive a segunda fase da idade da natureza (puer), deve passar por algumas atividades que a introduzam no mundo moral, ao mesmo tempo que continua a praticar atividades lúdicas, recreativas e físicas. Trata-se de desenvolver a sensibilidade passiva (física), sem, contudo, deixar de estimular a sensibilidade ativa (moral), pois é na conjugação das duas que a criança constrói seu mundo de significados: “É pelo efeito sensível dos sinais que as crianças aferem seu sentido” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 58). Isto é, desenvolvem sua razão e seu julgamento pela capacidade sensitiva que é estimulada por meio dessas atividades práticas. E aqui entra o papel pedagógico do jogo. Sabemos que as brincadeiras e os jogos, por mais simples que sejam, possuem regras e um conjunto de signos que podem desenvolver a capacidade representativa da criança17 17 Segundo Kishimoto (2001), “admite-se que o brinquedo represente certas realidades. Uma representação é algo presente no lugar de algo. Representar é corresponder a alguma coisa e permitir sua evocação, mesmo em sua ausência. O brinquedo coloca a criança diante de representações: tudo o que existe no cotidiano, a natureza e as construções humanas. Pode-se dizer que um dos objetivos do brinquedo é dar à criança um substituto dos objetos reais, para que possa manipulá-los” (p. 18). , o respeito aos limites e acordos, bem como ao direito dos outros, o que abre a possibilidade para atividades físicas e competitivas.

Falando desse período, Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel. comenta que é o momento de prevenir as más inclinações para bem conduzir o desenvolvimento de suas faculdades. Momento propício para fomentar a consciência de si e as noções gerais de felicidade, miséria, necessidade, utilidade e compaixão, com vistas à formação de sua conduta. Até porque, nesse período, para além de um ser físico, “importa portanto começar [ênfase adicionada] a considerá-la um ser moral” (p. 60). A criança nessa faixa etária precisa receber lições introdutórias e preparatórias como iniciação a uma forma de vida que ela deverá assumir inteiramente ao atingir a idade da razão, isto é, o mundo das relações morais, quando se torna um ser moral.

O que é um ser moral? Buscando em Milton Meira do Nascimento (2000)Nascimento, M. M. (2000). Figuras do corpo político: o último dos artefatos morais em Rousseau e Pufendorf [Tese de Livre-Docência]. Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP., que se dedicou ao tema, temos em primeiro plano que um ser moral é, sem dúvida, um artefato. Sua instauração implica o uso da razão em benefício de uma demarcação necessária entre o mundo físico e o mundo dos contatos humanos, das regras e obrigações que devem ser estabelecidas entre eles, para o melhor convívio entre os semelhantes. Rousseau (1999a)Rousseau, J.-J. (1999a). Do contrato social. (Lourdes Santos Machado, Trad., Paul Arbousse-Bastide & Lourival Gomes Machado, Introd. e notas). (Coleção Os Pensadores, I). Nova Cultural. utiliza o termo “ser moral” para definir tanto o Estado quanto o homem artificial – homem do homem – que deverá tomar parte nesse corpo político como uma unidade fracionária18 18 Como diz Rousseau (1973) no Emílio: “O homem civil não passa de uma unidade fracionária presa ao denominador e cujo valor está em relação com o todo, que é o corpo social” (p. 13). . Então a criança, como ser moral, conforme é empregado por Rousseau no trecho acima citado, corresponde ao ser que, embora em estágio pueril, deve ser, como afirmamos, introduzida no mundo das regras e normas. A idade da natureza, principalmente na primeira fase, representa o grau mínimo de artificialidade e o ponto inicial da ação educativa de preparação para a idade da razão e para a vida em sociedade. A preocupação de Rousseau é quanto à posição que Emílio vai tomar entre os homens, a forma como vai lidar com uma sociedade corrompida, perversa e cheia de influências perniciosas, sabendo resistir o suficiente para permanecer virtuoso.

Como a maioria das normas e das regras é estabelecida geralmente a partir da compreensão de mundo do adulto, e ainda de forma hierarquizada, instrumentos punitivos às vezes são necessários para garantir sua observância e o devido cumprimento. Esse tipo de relação acontece na família, na escola e na sociedade em geral, gerando um conflito não apenas entre gerações, mas também e principalmente entre a liberdade e a autoridade19 19 Para discussão em torno desse tema, sugerimos a leitura da obra Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas, organizada por Julio Groppa Aquino (1999). Dessa obra destacamos o artigo Autoridade e contrato pedagógico em Rousseau, de autoria de Maria de Fátima S. Francisco 1999), que procura refletir sobre o conflito entre a autoridade docente e a liberdade discente. . Mas Rousseau não pretende amenizar a situação pelo favorecimento da criança ou por uma valorização irrestrita da liberdade, nem tampouco pela defesa da tirania. Até porque, como fala no Livro Segundo, do Emílio, pode haver mestres autoritários e, igualmente, crianças caprichosas e mandonas. Valorizar excessivamente um ou outro seria romper com as possibilidades de um profícuo relacionamento pedagógico. A autoridade existe, como afirma Francisco (1999)Francisco, M. F. S. (1999). Autoridade e contrato pedagógico em Rousseau. In J. G. Aquino, (Org.), Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas (4a ed.). Summus.: “o exercício do poder é algo constitutivo, imanente à relação pedagógica. Resta saber, entretanto, que tipo de poder é esse. Nem todo poder é negativo, destrutivo e tirânico” (p. 105), e cumpre um direcionamento bem conduzido para evitar os perigos que rodeiam a criança sem sua formação moral. Para além de um acordo e uma aceitação entre as duas partes, vale dizer que as regras e determinações quase nunca são bem recebidas, principalmente por crianças que não conseguem ainda entender a utilidade delas, mesmo que voltadas para seu benefício e interesse. Para que sejam aceitas pelo coração, é preciso criar um clima de afetividade e promover situações nas quais as regras, as normas e os preceitos morais sejam desenvolvidos por meio de atividades sedutoras. De nada adiantam as fábulas e os sermões, se não tiverem uma ligação com a prática e o prazer da aprendizagem. Tal parece ser, precisamente, o objetivo dos jogos.

Consciente dos perigos que essa idade oferece, Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel. expressa sua preocupação, dizendo: “O mais perigoso intervalo da vida humana é o que vai do nascimento à idade de doze anos. É o momento em que germinam os erros e os vícios, sem que se tenha, ainda, algum instrumento para destruí-los” (p. 79). Na complementação da frase, o autor afirma que “quando o instrumento se apresenta afinal, as raízes são tão profundas que já se faz impossível arrancá-las” (p. 79). Por isso a primeira educação deve ser negativa, tentando “preservar o coração do vício e o espírito do erro” (p. 80).

O desenvolvimento da sensibilidade passiva, realizado através dos exercícios físicos, de jogos e brincadeiras diversas, pode ser conjugado com a estimulação da sensibilidade ativa, exercitando seu juízo:

Há um exercício puramente natural e mecânico que serve para tornar o corpo robusto, sem de modo algum apelar para o julgamento: nadar, correr, pular, chicotear um pião, jogar pedras; tudo isso está muito certo; mas teremos somente braços e pernas? Não teremos também olhos e ouvidos? E tais órgãos serão supérfluos ao uso dos primeiros? Não exerciteis portanto tão apenas as forças, exercitai todos os sentidos que as dirigem; tirai de cada um deles todo o proveito possível e verificai depois o resultado de um sobre o outro. Medi, contai, pesai, comparai. Não empregueis a força senão depois de terdes avaliado a resistência; fazei sempre de modo que a avaliação do efeito precede o emprego dos meios. Interessai a criança a nunca fazer esforços insuficientes ou supérfluos. Se a acostumais a prever assim o efeito de todos os seus movimentos, e a corrigir seus erros pela experiência, não se torna claro que quanto mais ela agir mais se fará judiciosa?

(Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 130)

Além disso, Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel. comenta sobre a importância dos jogos noturnos para o desenvolvimento da percepção e do julgamento20 20 “Observamos que os cegos têm o tato mais seguro e mais fino do que nós, porque, não sendo mais guiados pela vista, são forçados a tirar unicamente do primeiro sentido os juízos que nos fornece o outro. Por que então não nos exercitam a andarmos como eles na escuridão, a conhecermos os corpos que não podemos alcançar, a julgarmos dos objetos que nos cercam, a fazermos, em suma, à noite e sem luz, tudo o que eles fazem sem olhos?” (Rousseau, 1973, p. 131). , mas também discorre sobre os jogos diurnos, em casa ou ao ar livre, para o exercício do corpo: “Que Emílio corra todas as manhãs descalço, em qualquer estação, pelo quarto, pelas escadas, pelo jardim” (p. 139). Como ele diz, tudo isso importa para aguçar seus sentidos, para tornar sua constituição física mais resistente, pois “cumpra que aprenda a dar todos os passos que favorecem as evoluções do corpo” (p. 139). Porém, se tais exercícios e jogos forem compartilhados com outras crianças, poderão ser também eficientes no desenvolvimento dos preceitos morais. Uma lição moral que pode ser tirada dos jogos é a da generosidade21 21 Como afirma Streck (2003), “Rousseau fala na compaixão como o sentimento básico a ser cultivado pelo Emílio na medida em que conhece o mundo com as desigualdades criadas pelos homens” (p. 151). . Falando das vitórias do jovem Emílio, no Episódio dos doces, Rousseau comenta: “Quando conseguia raramente vencer, ele comia o doce quase sempre só, como o faziam seus concorrentes. Mas, acostumando-se à vitória tornou-se generoso e o partilhava muitas vezes com o vencido” (p. 143). E, compreendida a lição, Emílio passa a analisar mais de perto as delimitações, as distâncias, as medidas e as aplicações das regras. Concluindo, o preceptor se satisfaz:

Finalmente, alguns meses de experiências e de erros corrigidos formaram de tal modo seu compasso visual, que, quando eu punha pelo pensamento um doce em algum objeto longínquo, ele tinha o golpe de vista quase tão seguro quanto a fita métrica do agrimensor.

(p. 144)

Malgrado diversos benefícios pudessem ser ressaltados na prática dos jogos, tanto noturnos quanto diurnos, o mais importante deles é a retidão de espírito, ou seja, o exercício da honestidade, da sinceridade, da generosidade e, por fim, da justiça. Como diz Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., “a única lição de moral que convém à infância, e a mais importante em qualquer idade é a de não fazer mal a ninguém” (p. 94). Excelente lição para a atualidade, quando vivemos uma crise da autoridade docente e uma crise ética em geral que resultam do declínio da fundamentação religiosa (Thugendalt, 1999Tugendhat, E. (1999). Lições sobre ética (3a. ed.) (Grupo de doutorandos do curso de pós-graduação em Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, Trad.; Ernildo Stein & Ronai Rocha, rev. e org. da tradução). Vozes.). No que tange à docência, o sentido de “não fazer mal” pode ser interpretado como um respeito mútuo entre o professor e o aluno, do qual podem brotar estima e afetividade, se, primeiro, o trabalho docente for desenvolvido com competência, dinamismo e responsabilidade. Segundo, se o comportamento do aluno estiver voltado para o bom aproveitamento do conteúdo e ele mesmo engajado na metodologia como um co-agente do processo de construção do conhecimento e de sua própria formação, tomando parte de todas as iniciativas didático-pedagógicas.

É dessa perspectiva, isto é, do desenvolvimento da sensibilidade para com o outro que Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel. elabora suas “máximas”. A primeira: “Não é do coração humano pôr-se no lugar das pessoas que são mais felizes do que nós, mas tão-somente das que são mais dignas de pena” p. 246). A segunda: “Só temos piedade nos outros dos males de que não nos cremos isentos nós mesmos” (p. 247). A terceira: “A piedade que se tem do mal de outrem não se mede pela quantidade desse mal e sim pelo sentimento que se empresta a quem o sofre” (p. 248). O que se completa com a seguinte frase: “Tornando-se capaz de afeição, ele se torna sensível à dos outros e por isso mesmo atento aos sinais dessa afeição” (p. 259). Isto é, como a piedade é o primeiro sentimento relativo (p. 245), para que a criança se torne sensível e piedosa, é preciso que saiba que “há seres semelhantes a ela que sofrem o que ela sofreu, que sentem as dores que sentiu, e outras de que deve ter ideia como as podendo sentir também” (p. 245). Se tais máximas são trabalhadas pelo educador no âmbito das competições, dos jogos e das recreações de toda espécie, haverá indubitavelmente um processo de formação do corpo em total harmonia com a alma, bem nos parâmetros da paideia grega, da didática comeniana e dos princípios gerais defendidos por Rousseau.

Como diz Waksman (2016)Waksman, V. (2016). El laberinto de la libertad: política, educación y filosofia em la obra de Rousseau. Fondo de Cultura Económica., as experiências, as sensações são elementos importantes para a aprendizagem dos indivíduos, desenvolvendo características que podem ser utilizadas em momentos futuros em suas várias atividades que serão realizadas. Afinal, o sentido da vida do homem é sempre estar em contato com os outros, com seus semelhantes. Se, por um lado, o objetivo da educação negativa, defendida por Rousseau, busca um certo isolamento de Emílio, ou melhor, seu afastamento das condições sociais deturpadas, de uma vida urbana repleta de paixões inflamadas, por outro lado ela forma o caráter e a personalidade da criança para ser boa, mesmo nesse meio corrompido. Uma formação que a condicione a estabelecer relações com o que a rodeia, movendo-se por um amor-próprio bem-educado e controlado por uma vida virtuosa baseada no “silêncio das paixões”,22 22 “Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão necessários, então, tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? Teus princípios não estão gravados em todos os corações? E não bastará, para aprender tuas leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões?” (Rousseau, 1999b, p. 214). pode ser considerada como formação social, bem como preparação para as relações humanas. Razão pela qual Vargas (1995)Vargas, Y. (1995). Introduction à l’Émile de Rousseau. PUF. classifica o Emílio como um tratado de política natural, porque, em vez da defesa do estabelecimento de uma ordem política, ou de uma educação pública tout court, o que se propõe nessa obra é a formação educativa de um jovem por um movimento de reconciliação entre seu eu e o mundo ao seu redor (Paiva, 2019Paiva, W. A. de. (2019). As relações humanas como uma questão pedagógica: a conectividade humana em Rousseau. Revista Educação e Pesquisa, 45. e191470.).

O conceito de “educação negativa” é próprio de Rousseau e fortalece sua concepção de homem, pois, para o filósofo, a natureza humana é boa, sem vícios, sem preconceitos e discriminações. Portanto, a educação negativa serve para manter esse estado de espírito, conduzir o indivíduo, mediante a educação, a um caminho que não o corrompa pelos malefícios da sociedade. “Ela consiste, não em ensinar a virtude e a verdade, mas em preservar o coração do vício e o espírito do erro” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 80). Tal perspectiva alimentou as reflexões de pedagogos do século XIX, como Pestalozzi,23 23 Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), educador suíço, pioneiro da Escola Nova. Fröebel,24 24 Friedrich Fröebel (1782-1852), pedagogo alemão, discípulo de Pestalozzi, fundador do primeiro jardim da infância. e demais teóricos e defensores de movimentos como o da Escola Ativa, da Escola Progressista e da Escola Nova – sem deixar de mencionar a influência sobre a obra de Guts Muths (1803)Guts Muths, J. C. F. (1803). Gymnastics for youth or A pratical guide to health and amusing exercises. Byrne., o qual afirma, quase reproduzindo o episódio dos doces:

Quando a corrida vai depender da velocidade, o mestre coloca seus alunos, se quiser exercitá-los todos de uma vez, em linha, junto à primeira árvore. Se nem todos forem igualmente experientes, ele os organiza de acordo com suas habilidades e coloca os mais fracos alguns passos à frente, para que o forte não ganhe com facilidade. Todos ficam parados em seus lugares, enquanto ele prossegue para o final do curso, de onde ele dá o sinal indicado para começar. Todos se esforçam com incrível ansiedade para ganhar o prêmio, que consiste em um galho fino da última árvore.

(p. 229, tradução livre)

Outra característica da educação negativa é saber conhecer bem o indivíduo, a criança, o aluno, ou seja, reconhecer suas características próprias e, portanto, valorizar suas aptidões e estimular suas potencialidades, sem restrição ou cerceamento de sua liberdade, como diz Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel. na mesma página: “Deixai antes de tudo que o germe de seu caráter se revele em plena liberdade, não exerçais nenhuma coerção a fim de melhor vê-lo por inteiro” (p. 80).

Aliás, é no gozo da liberdade que a criança pode exercitar seu corpo, seja com as brincadeiras, com os jogos e/ou disputas e competições com seus colegas. Não é à toa que o autor nos lembra, no Emílio: “Platão, em sua República, que acreditam tão austera, só educa as crianças com festas, jogos, canções, passatempos: parece que fez tudo ensinando-lhes a se divertirem” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 97). Tais atividades não atrapalham as atividades intelectuais, pelo contrário. Como Rousseau diz: “É um erro lamentável imaginar que o exercício do corpo prejudique as operações do espírito: como se essas duas ações não devessem andar de acordo, e que uma não devesse sempre dirigir a outra!” (p. 112). Essa passagem elucida toda uma grande discussão que hora ou outra tende a ocorrer na área da Educação Física, o objeto de estudo e atuação do profissional de Educação Física. A dicotomia entre corpo e mente, ou corpo e alma, ultrapassou os dilemas da filosofia e arrasou as terras tranquilas desse campo. Podemos resumir que, ao longo do tempo, houve essa dualidade, mas a partir da modernidade, sobretudo, do século XVIII e século XIX, a relação corpo e mente começou a ser entendida como inseparável – elementos mutuamente relacionados na formação integral do indivíduo.

Nesse aspecto, o mestre deve atentar para as suas próprias atitudes, com o objetivo de sempre se manter cauteloso em relação às várias cenas que podem induzir o processo de ensino em grandes dramas, como castigos, grandes elogios, ou seja, algo que possa desviar a centralidade e a consciência do ato de aprender e ensinar. É necessário manter-se imune às dualidades do processo educativo – nem repreender demais, nem elogiar demais –, sobretudo a partir dos 12 anos de idade, quando, para Rousseau, ocorre o fim da infância e quando a criança está mais apta a “viver em sociedade”, ou seja, entender as demandas de uma boa convivência. Tornar-se homem significa tornar-se adulto, carregado de responsabilidades, compreensivo às regras e às leis que regem a sociedade, passível de responsabilidades e punições. E, se é como diz o filósofo, que “o homem é imitador, até o animal o é; o gosto da imitação é da natureza bem ordenada; mas degenera em vício na sociedade” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 94), a responsabilidade do mestre se amplia, pois ele deve ser um modelo, um exemplo para pensar as brincadeiras, os jogos e todas as atividades nas quais a criança se envolve, em seu processo de desenvolvimento cognitivo e motor: imita-o e obedece as regras a ela passadas pelo educador.

As crianças, grandes imitadoras, tentam todas desenhar: gostaria que a minha cultivasse essa arte, não precisamente pela própria arte e sim para tornar seu olho justo e sua mão flexível. E, em geral, pouco importa que ela saiba tal ou qual exercício, desde que adquira tal perspicácia do sentido e dos bons hábitos do corpo que se ganham com o exercício [ênfase adicionada]. Evitarei por conseguinte dar-lhe um professor de desenho, que só a levaria a imitar imitações e a desenhar segundo desenhos: quero que ela não tenha outro professor senão a natureza, nem outro modelo se não os objetos.

(Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 145)

A sensibilidade em Rousseau se apresenta como algo diferente das teorias empiristas, pois, em sua obra, o desenvolvimento da sensibilidade leva em conta a dimensão do amor de si, que é o sentimento natural de autopreservação. Mas não deixa de considerar a piedade, que é o sentimento pelo qual o ser humano se coloca no lugar do outro e procura ajudá-lo. Ademais, abre espaço para o aproveitamento do amor-próprio, que é o sentimento mais pernicioso, problemático e avassalador, pelo qual as paixões são fermentadas e facilmente conduziriam o sujeito ao egoísmo, ao hedonismo e à barbárie. No entanto, o desenvolvimento da sensibilidade se altera aos poucos e intensifica um movimento que vai da sensibilidade física à sensibilidade moral. Todas as atividades desenvolvidas, sejam físicas ou intelectuais, devem atentar para uma sensibilidade ativa, qual seja a do sentimento bondoso, amoroso e cuidadoso. Isto é, de negativa, a educação se torna positiva à medida que consegue educar o amor-próprio, fazendo silenciar as paixões e canalizando-as para o benefício de todos. É quando a sensibilidade deixa de ser passiva para se tornar ativa.

Desse modo, a sensibilidade, quando é passiva, é movida pela própria conservação; já, quando a sensibilidade é ativa, estende-se a outros. Entretanto, a sensibilidade moral ou ativa também pode ser movida pela sensibilidade física ou passiva, pelos atributos da arte. “Sendo portanto a educação uma arte” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 11), ela se reveste do artifício curativo, tomando o princípio do veneno como remédio, para usar as paixões como elementos didáticos. No momento da competição, da disputa, por exemplo, o desejo é geralmente de sempre ganhar, de ser melhor que o outro, de conseguir sobrepor os obstáculos e sair vencedor. Desse modo, podemos afirmar que, impulsionado pelo amor-próprio, o indivíduo buscará o prazer da vitória e a repulsa pela derrota e pela sensação da perda. Mas existe um elemento muito importante para a educação e a formação intelectual e ética do indivíduo, que é a capacidade de educar o amor-próprio a fim de desenvolver a sensibilidade moral, de promover no indivíduo o ímpeto pela bondade, pelo respeito e pela consideração para com os demais participantes do jogo, da brincadeira ou da competição. A “arte” do educador é fazer com que os participantes entendam que o outro não é considerado um inimigo ou alguém que deve ser superado a qualquer custo; mas sim, alguém que tem sentimentos, afetos, sensibilidades e por alguma ocasião está também em uma disputa, tal como o preceptor fez com Emílio, no episódio dos doces.

Considerações finais

Rousseau colabora de modo fundamental para a discussão sobre a formação integral do indivíduo, abordando questões que relacionam intrinsecamente corpo e mente. Suas reflexões ajudam a compreender a necessidade do homem adulto e da criança de saberem compreender e utilizar todos os seus sentidos, não somente a força e a velocidade, mas também a observação e a análise minuciosa das coisas; saberem sentir o processo de forma mais humana e saberem aproveitar os momentos de jogo e disputa para as trocas significativas e para a ampliação das relações humanas. Além de braços e pernas, mãos e pés, é necessário apropriar melhor dos olhos e ouvidos, usufruir dos sentidos que normalmente ficam em segundo plano, mas que são preponderantes para as relações sociais dos indivíduos. Assim sendo, suas reflexões também ajudam a romper as barreiras entre corpo e mente, além de colocar em xeque a supervalorização atual do apelo ao corpo, à musculação e a todo ideal estético do fisiculturismo, sem o devido desenvolvimento das capacidades psicológicas, sociais, culturais e filosóficas.

Quando Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel.afirma: “Eu prefiro que Emílio tenha olhos nas pontas dos dedos a os ter na loja de um vendedor de candelabros” (p.131), está querendo enfatizar a importância de a criança e o ser humano, independentemente da idade, saberem utilizar muito bem seus sentidos. Em vez de sobrevalorizar a mente, representada no trecho acima pela ideia de luzes de um candelabro, o educador deve primar pelo desenvolvimento dos sentidos, da sensibilidade física da criança, representada pelos dedos. Tudo começa pelo corpo, isto é, pelas atividades físicas. Quando Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel. diz: “Que Emílio corra todas as manhãs descalço, em qualquer estação, pelo quarto, pelas escadas, pelo jardim” (p. 139), está enfatizando a importância do envolvimento do corpo e, por ele, o desenvolvimento dos sentidos, da sensibilidade, do sentir a natureza. No simples fato de correr, saltar, agachar, o indivíduo está desenvolvendo suas capacidades motoras e aprimorando as práticas corporais (Darido, 2011Darido, S. C. (2011). Educação Física na escola: questões e reflexões. Guanabara Koogan.; Gallahue & Ozmun, 2013Gallahue, D. L., Ozmun, J. C., & Goodway, J. D. (2013). Compreendendo o desenvolvimento motor: bebês, crianças, adolescentes e adultos (7a. ed.). AMGH.). É daí que o trabalho pedagógico parte para um gradual desenvolvimento da sensibilidade moral. Assim, embora se possa pensar que seja uma faculdade única, a sensibilidade moral, ao contrário da física, resulta de uma evolução ou de um desenvolvimento. O eu absoluto da criança só pode se tornar, ao longo do crescimento e da convivência com os outros, um eu relativo, ou seja, um eu que se relaciona com seus pares, mesmo quando o tipo de relação que se estabelece não é fixo. A ação do tutor de Emílio intervém nesse processo que levanta todo um programa educacional.

Essa passagem também propicia uma discussão ampla sobre o contexto atual da sociedade em que as crianças estão inseridas e o papel da Educação Física. O aprimoramento das atividades físicas deve objetivar o sentido moral? Deve priorizar a saúde? a estética? o alto rendimento? ou apenas as atividades recreativas? Na questão da saúde, por exemplo, a Organização Mundial da Saúde destacou que 80% dos jovens e crianças no mundo inteiro estão obesos ou com sobrepeso. Esse é um fato que diz muito sobre o estilo de vida e a educação dos indivíduos na atualidade. Aqui talvez seja o “grande pulo do gato” de Rousseau, ou seja, a grande inovação desse filósofo em relação aos estudos do corpo e da mente. O autor genebrino, a nosso ver, elucida a questão mais profunda que implica a prática de uma atividade física, seja ela uma competição, um esporte recreativo, uma dança ou qualquer outra prática: o que está em jogo é a formação humana. Ou seja, por meio de uma atividade corporal, puramente recreativa, o autor reflete sobre a necessidade de o indivíduo ter consciência daquilo que está fazendo, dizendo, ouvindo e sentindo. Ter consciência do que está aprendendo, para saber o que quer ser. Desse modo, mais importante do que jogar, desenhar, tocar algum instrumento musical, dançar e/ou competir, é compreender qual a importância de tais atividades (práticas corporais) para si próprio e para o ambiente social em que está inserido.

Por isso é que, semelhante à injustiça sofrida durante os jogos, a situação do episódio dos doces habilita o jovem educando a se sensibilizar com os infortúnios e a procurar uma relação justa com os demais, mesmo que isso signifique prejuízo para ele mesmo. Tendo assim, tanto nesse episódio quanto no das favas, protagonizado a perda, seu senso de justiça é aguçado no sentido de reparar os danos, sem, contudo, prejudicar os demais. Colocar-se no lugar do outro e sentir sua perda é o imperativo da compaixão e o liame necessário ao estabelecimento das boas relações sociais.

De resto é preciso lembrar-se de que todos esses meios pelos quais arranco meu aluno de si mesmo têm contudo uma relação direta com ele, posto que, não somente deles resulta uma alegria interior, como também, em o tornando propenso ao bem dos outros, eu trabalho para sua própria instrução.

(Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 284)

A função da pedagogia do esporte e do profissional que trabalha com esporte, principalmente com crianças e jovens, é, segundo Santana (2005)Santana, W. C. de. (2005). Pedagogia do esporte na infância e na complexidade. In: R. R. Paes, & H. F. Balbino, Pedagogia do esporte: contextos e perspectivas. Guanabara Koogan., “cultivar um modo de pensar e agir comprometido com a condição humana das pessoas” (p. 10). Diante disso, o autor continua afirmando que essa perspectiva não exclui o desenvolvimento das capacidades, das habilidades e nem das competições. Mas vai além: “a tarefa da pedagogia é a de favorecer o bem-estar das pessoas e a sua vida social” (p. 10).

O que desponta como objeto de análise é a possibilidade de uma educação que tenha como foco o desenvolvimento biofísico atrelado ao desenvolvimento moral e social. Enfim, quando analisamos esse episódio, junto com os demais que, no Emílio, trazem outras atividades lúdicas pelas quais a criança desenvolve suas habilidades físicas e amplia sua sensibilidade, é possível dizer que Rousseau pretende desenvolver na criança uma racionalidade sensitiva, contrária à perspectiva da razão intelectiva, cartesiana e sem conexão com a realidade concreta.

Para concluir, Minerva, deusa da sabedoria, incorporada na figura de Mentor, o preceptor de Telêmaco, o filho de Ulisses, instrui o rei de Creta, dizendo que um rei precisa zelar pela educação das crianças, encaminhando-as ao encanto da música e às atividades físicas. Diz Fénelon (2006)Fénelon, F. S. M. (2006). As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses (Maria Helena C. V. Trylinski, Trad.). Madras.: “Mentor acrescentou ser sumamente importante criar escolas públicas para afazer a juventude a intensos exercícios físicos [ênfase adicionada] e evitar a indolência e a ociosidade, que corrompem as melhores naturezas” (p. 173). E ainda continua: “Ele pretendia que grande variedade de jogos atléticos fosse ensinada, não só para infundir ânimo no povo, mas, sobretudo, para tornar os corpos rápidos, leves e vigorosos. Defendia a instituição de prêmios para estimular uma disputa honrada”. E, considerando que a obra de Fénelon, As aventuras de Telêmaco, faz parte das leituras do personagem Emílio, é impossível afirmar que o pai da pedagogia moderna não tenha valorizado as atividades físicas. Mais do que isso, além de valorizá-las, deu uma outra dimensão ao sentido de competitividade, pelo qual podemos evitar os excessos e melhor compreender a condição humana.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah leda.farah@terra.com.br
  • 3
    Apoio: CAPES (Bolsa de doutoramento)
  • 4
    “Na escola ensinam as palavras antes das coisas” (Comenius, 2002Comenius. (2002). Didática Magna. Martins Fontes., p. 150).
  • 5
    “Portanto erram os instrutores que querem levar a cabo a formação da juventude ditando muitas coisas e obrigando decorá-las, sem uma cuidadosa explicação” (p. 156).
  • 6
    “Só a prática faz o artífice” (p. 252).
  • 7
    Para uma análise desse episódio como a primeira lição moral de Emílio, vide: Francisco (1998)Francisco, M. F. S. (1998). A primeira lição moral - O Episódio das Favas no Emílio de Rousseau. Cadernos de História & Filosofia da Educação, 2(4), 35-42..
  • 8
    A autora identifica diversas pesquisas que colocam Rousseau como “um dos precursores da concepção de educação voltada para exercício corporal” (Souza 2016Souza, R. R. de. (2016). Educacão, corpo e natureza na obra "O Emílio" de Jean-Jacques Rousseau. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual de Campinas., p. 37).
  • 9
    Rousseau comenta, no início do Emílio, que a educação é possibilitada pela ação de três “mestres”: a natureza, a qual tem a ver com o desenvolvimento biopsíquico, isto é, das faculdades e dos órgãos do corpo humano; os homens, que remetem à ideia das ações humanas, do uso pessoal e social dessas faculdades; e as coisas, que são as experiências sensoriais, com os objetos em geral.
  • 10
    Perspectiva que influenciou a defesa da ginástica ao ar livre, encontrada nos manuais do XVIII até o XX, como o primeiro manual de ginástica: Gymnastik für die Jugend (Ginástica para a Juventude), escrito pelo educador alemão Johann Christoph Friedrich Guts Muths (1759-1839) e publicado em 1793 (Quitzau & Soares, 2019Quitzau, E. A., & Soares, C. L. (2019). O ideário de vida ao ar livre nas sociedades ginásticas teuto-brasileiras (1880-1938). Pro-Posicões, 30, 1-27. e20170019. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2017-0019
    https://doi.org/10.1590/1980-6248-2017-0...
    ).
  • 11
    “entregue ao turbilhão social, basta que não se deixe arrastar pelas paixões” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 286).
  • 12
    Como diz Neuhouser (2013)Neuhouser, F. (2013). Rousseau’s theodicy of self-love: evil, rationality, and the drive for recognition. Oxford University Press., ao comentar o elogio de Rousseau aos guerreiros da Grécia antiga, “distinguir-se como cidadão valente e virtuoso pode oferecer aos indivíduos a oportunidade de conquistar estima, e até mesmo glória, pelas qualidades e conquistas que promovam o bem coletivo” (p. 169, tradução livre).
  • 13
    “Não deis a vosso aluno nenhuma espécie de lição verbal; só da experiência ele as deve receber” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 78).
  • 14
    Sobre isso, diz Rousseau no Emílio (1973, p. 242): “O primeiro sentimento de que é suscetível um jovem cuidadosamente educado não é o amor, é a amizade”. Até porque “a adolescência não é a idade nem da vingança nem do ódio; é a da comiseração, da clemência, da generosidade” (p. 243).
  • 15
    Aqui Rousseau se refere aos jogos infantis e às brincadeiras próprias à infância, e não ao jogo de azar ou outra jogatina própria de desocupados: “O jogo não é um divertimento de homem livre, é recurso de desocupado; e meus prazeres me dariam ocupações demais para me deixarem tempo a ser tão mal empregado” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 404). Embora Kishimoto (2001)Kishimoto, T. M. (Org.). (2001). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação (5a. ed.). Cortez. afirme ser difícil definir o jogo, em Rousseau o termo parece englobar todas as atividades lúdicas nas quais haja o concurso das regras e do acordo mútuo.
  • 16
    Essa é a primeira fase da idade da natureza na qual os três mestres dão uma certa primazia ao primeiro, a natureza: “Observai a natureza e segui o caminho que ela vos indica. Ela exercita continuamente as crianças. Ela enrijece [sic] seu temperamento mediante experiências de toda a espécie; ela ensina-lhes desde cedo o que é pena e dor” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 22).
  • 17
    Segundo Kishimoto (2001)Kishimoto, T. M. (Org.). (2001). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação (5a. ed.). Cortez., “admite-se que o brinquedo represente certas realidades. Uma representação é algo presente no lugar de algo. Representar é corresponder a alguma coisa e permitir sua evocação, mesmo em sua ausência. O brinquedo coloca a criança diante de representações: tudo o que existe no cotidiano, a natureza e as construções humanas. Pode-se dizer que um dos objetivos do brinquedo é dar à criança um substituto dos objetos reais, para que possa manipulá-los” (p. 18).
  • 18
    Como diz Rousseau (1973)Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel. no Emílio: “O homem civil não passa de uma unidade fracionária presa ao denominador e cujo valor está em relação com o todo, que é o corpo social” (p. 13).
  • 19
    Para discussão em torno desse tema, sugerimos a leitura da obra Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas, organizada por Julio Groppa Aquino (1999)Aquino, J. G. (Org.). (1999). Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas (4a ed.). Summus.. Dessa obra destacamos o artigo Autoridade e contrato pedagógico em Rousseau, de autoria de Maria de Fátima S. Francisco 1999Francisco, M. F. S. (1999). Autoridade e contrato pedagógico em Rousseau. In J. G. Aquino, (Org.), Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas (4a ed.). Summus.), que procura refletir sobre o conflito entre a autoridade docente e a liberdade discente.
  • 20
    “Observamos que os cegos têm o tato mais seguro e mais fino do que nós, porque, não sendo mais guiados pela vista, são forçados a tirar unicamente do primeiro sentido os juízos que nos fornece o outro. Por que então não nos exercitam a andarmos como eles na escuridão, a conhecermos os corpos que não podemos alcançar, a julgarmos dos objetos que nos cercam, a fazermos, em suma, à noite e sem luz, tudo o que eles fazem sem olhos?” (Rousseau, 1973Rousseau, J.-J. (1973). Emílio ou da Educação (2a. ed. rev.). Difel., p. 131).
  • 21
    Como afirma Streck (2003)Streck, D. R. (2003). Educação para um novo contrato social. Vozes., “Rousseau fala na compaixão como o sentimento básico a ser cultivado pelo Emílio na medida em que conhece o mundo com as desigualdades criadas pelos homens” (p. 151).
  • 22
    “Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão necessários, então, tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? Teus princípios não estão gravados em todos os corações? E não bastará, para aprender tuas leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões?” (Rousseau, 1999bRousseau, J.-J. (1999b). Discurso sobre as ciências e as artes. (Lourdes Santos Machado, Trad., Paul Arbousse-Bastide & Lourival Gomes Machado, Introd. e notas). (Coleção Os Pensadores, III). Nova Cultural., p. 214).
  • 23
    Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), educador suíço, pioneiro da Escola Nova.
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    Friedrich Fröebel (1782-1852), pedagogo alemão, discípulo de Pestalozzi, fundador do primeiro jardim da infância.

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Editor responsável: César Donizetti Pereira Leite https://orcid.org/0000-0001-8889-750X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2021
  • Revisado
    27 Jun 2022
  • Aceito
    19 Ago 2022
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