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A presença de obras1 1 Este artigo assume a forma “freireano”, por ser essa a grafia adotada no grupo de estudo do qual as autoras fazem parte e por conta do campo da Educação em Ciências que tem aderido a essa denominação. freireanas nos cursos de Pedagogia do Rio Grande do Sul: um olhar exploratório 2 2 Editor responsável: Adriana Varani. https://orcid.org/0000-0002-7480-4998 3 3 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha - verah.bonilha@gmail.com 4 4 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

Resumo

O presente estudo busca investigar e discutir a presença das obras freireanas nos currículos dos cursos de Pedagogia, públicos e presenciais, do Rio Grande do Sul. Esta pesquisa, de caráter quantitativo e de cunho exploratório, identificou um total de 28 obras de autoria de Paulo Freire, distribuídas em 92 disciplinas de cursos de Pedagogia presenciais de 7 instituições públicas. As disciplinas observadas são voltadas, especialmente, a discussões da Educação de Jovens e Adultos e da Educação Popular. Dentre elas, constatou-se que as obras mais utilizadas pelos cursos investigados são a Pedagogia da autonomia e a Pedagogia do oprimido, presentes, principalmente, como indicações básicas em disciplinas obrigatórias. Portanto, considera-se que as obras de autoria de Paulo Freire vêm sendo bastante indicadas pelas disciplinas dos cursos de Pedagogia analisados.

Palavras-chave
currículo; obras freireanas; Paulo Freire; Pedagogia

Abstract

The present study investigates and discusses the presence of Freirean books in the Pedagogy curricula of public in-person undergraduate degrees in Rio Grande do Sul, Brazil. From the development of the quantitative exploratory research, we identified a total of 28 works by Paulo Freire distributed in 92 subjects in the Pedagogy courses of seven public institutions. The subjects were mainly focused on Youth and Adult Education and Popular Education. The main works used are Pedagogia da Autonomia and Pedagogy of the Oppressed, indicated as basic readings in compulsory subjects. Therefore, we can state that Paulo Freire’s works have been strongly recommended in the subjects of Pedagogy undergraduate degrees.

Keywords
curriculum; Freirean works; Paulo Freire; Pedagogy

Introdução

Muito significativa foi a trajetória de vida, assim como as inúmeras lutas do educador brasileiro Paulo Reglus Neves Freire ou, simplesmente, Paulo Freire, como se tornou conhecido. O autor transformou-se em uma referência mundial para a educação, a partir do contexto em que produziu e sistematizou suas ideias. Entre as décadas de 1960 e 90 – período em que Freire escreveu diversas obras - o País vivia um quadro de profundas desigualdades e conturbações sociais5 5 Nos dias atuais, continuam existindo diversas tensões sociais marcadas, principalmente, pela desigualdade, exclusão e opressão e, por isso, Paulo Freire é atual e necessário para a repensar a educação. . Assim, é possível compreender os posicionamentos políticos e pedagógicos do autor e a sua atuação nos diferentes movimentos populares (Pereira, 2018Pereira, T.I. (2018). A atualidade do pensamento pedagógico de Paulo Freire. Cirkula.).

Ao longo de sua vida, escreveu importantes obras, nas quais expressava o desejo de uma nova educação. Buscava a valorização cultural dos sujeitos e lutava pela inclusão das camadas sociais marginalizadas e oprimidas (Paiva, 1987Paiva, V. P. (1987). Educação Popular e Educação de Adultos. Loyola.). Por isso, Paulo Freire denunciava e criticava, tenazmente, o que veio a chamar de educação bancária. Neste modelo educacional, o educador e a educadora “preenchem” os educandos e educandas com conteúdos de sua própria narração, os quais são descontextualizados da realidade de vida dos estudantes (Freire, 2018Freire, P. (2018). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.).

Assim, Freire propõe repensar a educação que se apresentava – e ainda se apresenta – como bancária, visando superá-la através de uma educação libertadora, que tem como meio – e fim– a transformação social. O pensamento freireano vem contribuindo para práticas educativas emancipatórias durante a formação de educadores e educadoras. As obras de sua autoria representam um importante referencial para o desenvolvimento de práticas educativas balizadas em princípios crítico-reflexivos (Freitas & Forster, 2016Freitas, A.L.S., & Forster, M.M.S. (2016). Paulo Freire na formação de educadores: contribuições para o desenvolvimento de práticas crítico-reflexivas. Educar em Revista, 61, 55-69.).

Daí emerge o maior legado de Freire: apresentar dialogicamente um novo olhar para educação, indubitavelmente mais amoroso, ético e comprometido, sem ausentar-se de sua essência política e de aprendizagem. Portanto, torna-se extremamente relevante abordar tais pressupostos freireanos durante a formação inicial de professores e professoras, incluindo os pedagogos e as pedagogas, tendo em vista uma práxis educativa coerente a estes ideários, a qual se inicie desde os Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

Ao considerar a importância destes pressupostos estarem presentes durante a formação inicial, busca-se investigar neste estudo a presença freireana no currículo de cursos de Pedagogia. Sendo assim, esta pesquisa pretende: i) mapear os cursos presenciais de Pedagogia de instituições públicas do Rio Grande do Sul (RS) que apresentam elementos freireanos em seu currículo; ii) analisar a presença das obras freireanas nos cursos; iii) discutir algumas implicações da utilização dos pressupostos freireanos durante a formação inicial de pedagogos e pedagogas no que tange à superação do paradigma da educação bancária.

Trajetórias, lutas e outro olhar educacional: o pensamento freireano para além do paradigma da educação bancária

Na década de 1960, Freire engajou-se em diversos movimentos de educação, sendo um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular, em Recife, no nordeste brasileiro (Freire, A.M, 1996Freire, A.M.A. (1996). A trajetória de Paulo Freire. In M. Gadotti (Org.), Paulo Freire, uma bibliografia (pp. 27-64). Cortez.). O movimento teve início em 1962, período em que a região se caracterizava como uma das mais pobres e com um dos maiores índices de analfabetismo (Freire, 1980Freire, P. (1980). Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Cortez & Moraes.). Deste movimento, nasceu o projeto de alfabetização de jovens e adultos em Recife, o qual foi ampliado para outras regiões brasileiras, como foi o caso de Angicos, Mossoró e em João Pessoa (Brandão, 1985Brandão, C. R. (1985). O que é método Paulo Freire. Brasiliense.). Em Angicos, Freire propôs um processo de alfabetização, baseado nas experiências de vida de cortadores de cana-de-açúcar. Em seguida, foi convidado a desenvolver uma campanha nacional de alfabetização, o que contribuiu para o seu reconhecimento mundial.

O processo de alfabetização, na perspectiva freireana, consiste em apreender a palavra para compreender o mundo, fazendo despertar a consciência das situações de injustiça, opressão e de exclusão. Além disso, nesta concepção de alfabetização, “a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescreve-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente [ênfases no original]” (Freire, 1989Freire, P. (1989). A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. Autores Associados; Cortez., p.13). O autor criticava, profundamente, processos de alfabetização em que o educador ou educadora ensinava mecanicamente através da repetição de palavras, as quais, normalmente, se apresentavam distantes do contexto de vida do sujeito. Julgava esse processo como autoritário, pois estava centrado na compreensão “mágica” de palavras aleatórias e isso, ao invés de favorecer o desvelamento crítico da realidade, a escondia ainda mais.

Em 1964, instalou-se a ditatura militar no Brasil, marcada pela violação de parte dos direitos humanos, incluindo os civis/políticos (Sousa Junior & Carneiro, 2019Sousa Junior, M. A., & Carneiro, M.I.L. (2019). Reflexões e legado de Paulo Freire no contexto da ditadura militar do Brasil. In P. R. Padilha, & J. Abreu (Org.), Paulo Freire em tempos de Fake News (pp. 358-364). Instituto Paulo Freire.) e por diversas tensões sociais, geradas a partir da opressão, censura e perseguição. Tudo como tentativa de silenciar quem não era conivente com a política antidemocrática liderada pelo Regime Militar. Por isso, Paulo Freire, neste período, teve de buscar asilo político na Bolívia e pouco tempo depois foi para o Chile. Neste país, deu continuidade aos seus projetos, trabalhou e escreveu importantes obras. No tempo fora do Brasil – devido à permanência da ditadura militar –, Freire “andarilhou” o mundo, desenvolvendo importantes ações (Freire, A.M., 1996Freire, A.M.A. (1996). A trajetória de Paulo Freire. In M. Gadotti (Org.), Paulo Freire, uma bibliografia (pp. 27-64). Cortez.).

Em 1980, retornou ao Brasil, e alguns anos depois foi empossado no cargo de Secretário de Educação do Munícipio de São Paulo, sendo um dos responsáveis pelo desenvolvimento do Projeto Interdisciplinar, denominado de “Interdisciplinaridade via Tema Gerador”, implementado na capital paulista (Movimento de reorientação curricular do município de São Paulo, 1992)Secretaria Municipal de Educação (1992). Movimento de reorientação curricular do município de São Paulo. DOT-2 & NAEs.. O projeto buscava reformular o currículo escolar e superar o paradigma da educação bancária, mediante processos de formações permanentes (Torres et al., 2002Torres, C. A., O' Cadiz, M. P., & Wong, P. L. (2002). Educação e Democracia - a práxis de Paulo Freire em São Paulo. Cortez.).

Mesmo após 20 anos da morte do autor, ele ainda é tido como um dos nomes de maior reconhecimento mundial (Freitas & Forster, 2016Freitas, A.L.S., & Forster, M.M.S. (2016). Paulo Freire na formação de educadores: contribuições para o desenvolvimento de práticas crítico-reflexivas. Educar em Revista, 61, 55-69.), devido às suas importantes contribuições à educação. Em vida, Freire escreveu muitas obras tais como Pedagogia do oprimido (Freire, 2018Freire, P. (2018). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.), Pedagogia da autonomia (Freire, 1996Freire, A.M.A. (1996). A trajetória de Paulo Freire. In M. Gadotti (Org.), Paulo Freire, uma bibliografia (pp. 27-64). Cortez.), Pedagogia da esperança (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.), Educação como prática de liberdade (Freire, 1967Freire, P. (1967). Educação como prática de liberdade. Paz e Terra.), Política e Educação (Freire, 2001Freire, P. (2001). Política e Educação. Cortez.) etc.

Dentre os seus escritos, a Pedagogia do oprimido ocupa lugar de destaque no campo educacional. Nela, Paulo Freire critica a desigualdade que provoca a desumanização e a exclusão de tantos. Essa obra possibilita repensar a educação e a própria sociedade, a partir do ponto de vista do oprimido, abarcando as relações entre opressores e oprimidos, colonizadores e colonizados e globalizadores e globalizados (Freire, A.M., 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra.).

Uma das mais importantes contribuições da perspectiva freireana está na educação como prática de liberdade, a qual pressupõe a tomada de consciência do ser humano em relação à sua própria existência e ao mundo circundante. Para Lima (2014, p.70)Lima, P. G. (2014). Uma leitura sobre Paulo Freire em três eixos articulados: o homem, a educação e uma janela para o mundo. Pro-Posições, 25(3), 63-81., a consciência é “como mola propulsora da realidade social, da realidade do ato de ensinar-aprender e intercambiar conhecimentos da vida e para a vida”. Por todas as discussões tecidas, percebe-se a relevância do referencial freireano na construção de uma nova educação.

Há diversas possibilidades de intervenções que podem ser utilizadas no contexto escolar, fundamentadas em pressupostos freireanos. Exemplo disso é a utilização de aulas dialógicas, problematizadoras e interdisciplinares, ou ainda, a adoção dos princípios da amorosidade, da conscientização e da emancipação.

Ao ingressarem no Ensino Fundamental, as crianças já possuem vivências, apresentam diversas curiosidades e inquietações e, por isso, a aprendizagem de conhecimentos científicos contribui na construção de compreensão acerca do ambiente natural, social, político que as cercam (Souza et al. 2011Souza, A.L.S., Luz, C.F. S., Oliveira, D.B.G., & Chapani, D.T. (2011). A formação do pedagogo na UESB de Jequié-BA e o Ensino de Ciências nas Séries Iniciais. In Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências – ENPEC, Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Campinas.). O referencial freireano pode favorecer não só a construção de um olhar crítico voltado para a realidade, como também uma aprendizagem dos conhecimentos científicos, por utilizar as experiências de vida como objeto de ensino. Para tanto, cabe a educadores e educadoras conhecer as obras e o próprio referencial freireano como possibilidade para embasar suas práticas docentes. Para Martins Filho (2019)Martins Filho, L. J. M. (2019). Anos Iniciais do Ensino Fundamental e Paulo Freire: docentes em diálogo. CAMINE: Caminhos da Educação, 11(1), 80-93., refletir acerca da docência dos Anos Iniciais, atravessada pelos pressupostos freireanos, é um exercício de autonomia, a qual perpassa educadores(as), estudantes e gestão escolar. Mas será que esse referencial está presente nos cursos de formação de professores e professoras, como nos cursos de Pedagogia? Afinal por que utilizar o referencial freireano na educação básica? Quais são as possíveis intervenções educativas que podem ser utilizadas? No intuito de explorar questões como essas, especialmente, a primeira, é que foi produzido o presente artigo.

Metodologia

Este estudo, de caráter quantitativo e exploratório (Gil, 2002Gil, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa. Atlas.), pretende investigar a presença das obras de Paulo Freire nos cursos presenciais e públicos de Pedagogia do estado do Rio Grande do Sul. Em um primeiro momento, foi realizado um levantamento das instituições de Ensino Superior públicas do RS. Nesta busca, foram identificadas 11 instituições, conforme pode ser visto no Quadro 1:

Quadro 1
Relação das instituições públicas presentes no RS, números de campus e cursos ofertados de Pedagogia

Após, foi realizado um processo de investigação para verificar quais das instituições possuíam cursos de Pedagogia presenciais. Nesta etapa, utilizou-se o site do Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior (e-MEC)6 6 “Regulamentado pela Portaria Normativa n.º 21, de 21/12/2017, base de dados oficial dos cursos e Instituições de Educação Superior - IES, independentemente de Sistema de Ensino”. . Na presente análise, obteve-se um total de oito instituições que apresentavam os cursos nesta modalidade, dentre elas algumas ofertavam os cursos em mais de um campus, sendo ainda, nos turnos diurnos e/ou noturnos, conforme pode ser visualizado no Quadro 2:

Quadro 2
Relação das instituições públicas, campus e turnos em que os cursos de Pedagogia são ofertados

Em seguida, buscou-se pelas ementas dos cursos, por meio do comando CTRL + F, usando o termo “Freire”. Como resultado, a maioria fazia referência ao termo, com exceção da instituição FURG, a qual, como não possuía nenhuma menção foi, portanto, descartada da análise. Foram criados fichamentos para cada uma das instituições, nos quais foram introduzidas as disciplinas que apresentavam como referência obras freireanas. Posteriormente, foi feita a contagem do número de disciplinas e de obras, bem como a sua frequência em cada uma das instituições. As ementas que referenciavam duas ou mais vezes a mesma obra (na mesma disciplina) foram desconsideradas, contabilizando-as somente uma única vez.

Constatou-se que todos os cursos da UERGS compartilhavam o mesmo Projeto Pedagógico de Curso (PPC) e, portanto, as mesmas disciplinas e ementas, como também foi o caso do curso diurno e noturno da UFPEL. Já no IFRS, cada campus possuía um PPC próprio, assim como o curso diurno e noturno da UFSM, e, por isso, foram analisados isoladamente.

Na sequência serão apresentados os resultados obtidos a partir deste estudo, assim como algumas reflexões e discussões tecidas a partir deles.

Resultados e discussões

Da análise das ementas e dos PPC dos cursos de Pedagogia, identificou-se a presença de diversas obras de autoria de Freire. A Figura 1 apresenta um gráfico, representando as obras mais indicadas nas referências dos documentos, bem como a frequência com que elas aparecem.

Figura 1
Frequência das obras freireanas distribuídas nas disciplinas dos cursos de Pedagogia presenciais e públicos do RS

Ao total foram identificadas 28 obras nas ementas das disciplinas. Destas, 11 foram recomendadas somente uma única vez e, por isso, foram classificadas como “outras”, conforme visto na Figura 1.

A presente análise indica que a obra mais referenciada pelas ementas foi a Pedagogia da autonomia, aparecendo em 50 disciplinas diferentes de um total de 927 7 Desse total, foram descartadas as disciplinas do curso diurno e noturno da UFSM que eram comuns aos dois cursos, tendo em vista que apresentavam a mesma ementa. com obras freireanas (considerando todas as instituições). As discussões relacionadas à formação de professores e professoras se fazem presentes em diversas obras de Paulo Freire, mas, sobretudo, de maneira mais explícita em Pedagogia da autonomia (Freitas & Forster, 2016Freitas, A.L.S., & Forster, M.M.S. (2016). Paulo Freire na formação de educadores: contribuições para o desenvolvimento de práticas crítico-reflexivas. Educar em Revista, 61, 55-69.). A partir desta publicação, Paulo Freire adentrou mais profundamente no campo da formação de educadores e educadoras, desafiando os leitores ‒ educadores ‒ para recriarem suas práticas educativas (Freitas & Forster, 2016Freitas, A.L.S., & Forster, M.M.S. (2016). Paulo Freire na formação de educadores: contribuições para o desenvolvimento de práticas crítico-reflexivas. Educar em Revista, 61, 55-69.), contribuindo, assim, para uma formação crítico-reflexiva. Uma vez que o curso de Pedagogia é voltado para formar professores e professoras, a referida obra tem muito a favorecer, justamente por discutir os saberes necessários â prática educativa.

A segunda obra mais indicada nas referências foi a Pedagogia do oprimido, totalizando um número de 29. Embora ocupe a segunda posição, aparece na maioria das vezes como indicação básica, tendo uma relação de 21 menções como básica e apenas 8 como complementar. Se comparada com a Pedagogia da autonomia, embora essa apresente uma frequência maior do que a Pedagogia do oprimido, ainda há uma aproximação no número de indicações como básica e complementar (26B / 24C)8 8 Relação da frequência das obras, sendo “26 B” o número em que a obra foi indicada como básica e “24C” o número de vezes que a obra foi indicada como complementar. . Isto é, a Pedagogia do oprimido aparece predominantemente como indicação básica. Essa obra tem grande relevância para o meio acadêmico – e para além dele ‒, sendo a terceira publicação mais citada em trabalhos pertencentes a área das humanas em todo o mundo, segundo uma pesquisa conduzida por Green (2016)Green, E. (2016). What are the most-cited publications in the social sciences (according to Google Scholar)? Impact of social sciences. Blog, London School of Economics..

O livro Pedagogia do oprimido é, antes de tudo, um projeto humanizador (Santana & Souza, 2019Santana, O.A., & Souza, S.C. (2019). Pedagogia do Oprimido como referência: 50 anos de dados geohistóricos (1968-2017) e o perfil de seu leitor. Revista História da Educação, 23, 1-31.), que denuncia a existência de realidades negadas, mascaradas e exploradas pelos “colonizadores” – opressores. Desvela o mundo – condição – de opressão e tenciona superar as desigualdades e a dependência opressor-oprimido (Santana & Souza, 2019Santana, O.A., & Souza, S.C. (2019). Pedagogia do Oprimido como referência: 50 anos de dados geohistóricos (1968-2017) e o perfil de seu leitor. Revista História da Educação, 23, 1-31.), por meio de um ato rebelde e revolucionário que é a libertação. Denuncia um sistema educacional bancário, permeado pela reprodução, e tece considerações essenciais para se assumir (fazer) uma educação problematizadora e dialógica. No entanto, mesmo que a obra abarque discussões importantes para gerar profundas mudanças em prol de uma sociedade menos desigual, foi vista por parte da população ‒ opressores ‒ como desnecessária e ultrapassada, o que demonstra o desconhecimento de muitos sujeitos acerca da obra dele (Pereira, 2018Pereira, T.I. (2018). A atualidade do pensamento pedagógico de Paulo Freire. Cirkula.).

O discurso freireano provocou, e ainda provoca, a ira dos opositores, que passaram a vê-lo como uma ameaça ao modelo de sociedade defendido por eles. Por este e outros motivos, nas décadas de 1970 e 80, tomou forma um movimento contrário ao autor, cujo objetivo era banir suas obras, especialmente, a Pedagogia do oprimido, das matrizes curriculares e da livre circulação mundial (Santana & Souza, 2019Santana, O.A., & Souza, S.C. (2019). Pedagogia do Oprimido como referência: 50 anos de dados geohistóricos (1968-2017) e o perfil de seu leitor. Revista História da Educação, 23, 1-31.). Nos últimos anos, novamente, se formou uma nova onda de oposição à figura Paulo Freire marcada, principalmente, por um ruptura político-social entre os movimentos de esquerda e de direita. Uma hipótese para essa resistência pode ser resultado da posição político-partidária do autor, pois Freire defendia um combate às estruturais sociais injustas e desiguais, tendo sintonia com “partidos de esquerda e centro-esquerda movimentos sociais populares do campo e da cidade, sindicatos e demais organizações do chamado campo democrático e popular” (Pereira, 2018Pereira, T.I. (2018). A atualidade do pensamento pedagógico de Paulo Freire. Cirkula., p. 32). Já os grupos contrários ao pensamento freireano se aproximam mais da direita do espectro político.

Talvez isso explique o porquê, em meio a um cenário de conturbação social, a figura Paulo Freire voltou a ser objeto de distorção, inclusive, alguns sujeitos consideram, equivocadamente, que ele foi responsável por gerar um movimento antipatriota (Lima, 2014Lima, P. G. (2014). Uma leitura sobre Paulo Freire em três eixos articulados: o homem, a educação e uma janela para o mundo. Pro-Posições, 25(3), 63-81.). Como resultado da polarização do País, movimentos hegemônicos responsabilizam ilegitimamente a educação, como fruto da doutrinação influenciada por Freire (Macedo & Carvalho, 2017Macedo, E., & Carvalho, A. (2017). Um diálogo epistemológico com Freire: palavra, práxis e educação. E-mosaico - Revista multidisciplinar de Ensino, Pesquisa, Extensão e Cultura do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, 6(13), 29 - 37.). Consequência destas alegações foi a tentativa de ser revogada a lei n.º 12 612/2012 (que declara Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira), por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) (Macedo, 2017Macedo, E. (2017). As demandas conservadoras do Movimento Escola sem Partido e a Base Nacional Curricular Comum. Educação e Sociedade, 38(139), 507-524.). Igualmente o movimento da “Escola sem Partido” levanta uma bandeira contra o pensamento pedagógico freireano (Pereira, 2018Pereira, T.I. (2018). A atualidade do pensamento pedagógico de Paulo Freire. Cirkula.).

Em Pedagogia do oprimido, Freire (2018)Freire, P. (2018). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra. defendeu a trajetória/história dos sujeitos e acreditou no potencial da educação a fim de tornar a sociedade mais justa. Nesta obra, também demonstrou caminhos para se pensar uma nova educação, sugeriu propostas e defendeu que ela fosse reinventada. A análise aqui realizada demonstrou que a Pedagogia do oprimido é a segunda mais presente nas ementas dos cursos, o que corrobora a essencialidade e a atualidade das discussões trazidas em uma das obras mais ousadas do autor. Mesmo tendo se passado mais de 20 anos da morte de Paulo Freire, o seu legado (pensamento) continua vivo, atual e necessário, pois seu pensamento vislumbra inúmeros horizontes relacionados aos processos educativos, não servindo apenas como respostas/soluções aos problemas educacionais (Pereira, 2018Pereira, T.I. (2018). A atualidade do pensamento pedagógico de Paulo Freire. Cirkula.).

Pereira (2018)Pereira, T.I. (2018). A atualidade do pensamento pedagógico de Paulo Freire. Cirkula. salienta que, ao considerar um cenário brasileiro imerso na profunda disparidade entre as classes sociais, coexistem diferentes possibilidades de compreensões sobre o mundo. Com isso, para que Paulo Freire possa ser efetivamente superado, haveria de serem suprimidas as estruturas sociais, políticas e econômicas que influenciaram as suas reflexões, em dado período. Contudo, para o autor, ao invés de estar ocorrendo este movimento de minimização das desigualdades, há um aumento ainda maior.

A análise também verificou que a terceira obra mais referenciada foi Que fazer: teoria e prática em Educação Popular, de autoria conjunta de Paulo Freire e Adriano Nogueira (1993), aparecendo em dez disciplinas, conforme a Figura 1. Trata-se de um diálogo entre os autores, em que ambos discutem a essência política da educação. Pensar a Educação Popular em Freire, inclui a consciência e o mundo, a palavra e o poder, o conhecimento e a política, a teoria e a prática, como expresso por Boff (Freire & Nogueira, 1993Freire, P., & Nogueira, A. (1993). Que fazer: teoria e prática da educação popular. Vozes.) na apresentação do livro.

A maioria dos livros de Freire aborda direta ou indiretamente o tema, mas esse, em especial, evidencia como o autor percebia a Educação Popular. Embora a obra não tenha como intuito ser um manual de Educação Popular, sinaliza horizontes possíveis para “fazê-la”, problematiza questões históricas, sociais e políticas e reflete sobre o porquê da necessidade de uma educação verdadeiramente inclusiva. Talvez, por estes motivos, a obra seja um referencial importante para os cursos de Pedagogia, tendo em vista que parte das disciplinas dos cursos busca discutir sobre questões referentes à Educação Popular. Tal é a importância da obra como referencial para discutir os movimentos de Educação Popular, que ela aparece predominantemente como indicação básica numa relação de 7B / 3C.

A quarta obra mais citada foi a Política e Educação, em nove disciplinas diferentes, no entanto, predominantemente como obra complementar, em uma relação de 2B / 7C. A partir desta obra, as outras também apresentam uma frequência menor de indicações como básicas, com exceção da Pedagogia da esperança (4B / 3C) e da Pedagogia da indignação (3B / 2C).

Algumas das obras que apresentaram frequência menor de indicações como básicas em relação as complementares, foram: a) Medo e ousadia (3B / 4C); b) A importância do ato de ler (2B / 5C); c) Ação cultural para liberdade (1B / 6C); d) Educação como prática de liberdade (1B / 5C); e) Conscientização: teoria e prática da libertação (1 B / 4 C); f) Extensão ou comunicação? (0B / 3C) e g) Professora sim, tia não! (1B / 2C), etc.

Outras obras apresentam a mesma frequência de indicação como básica e complementar, como foram os casos de: i) Educação e mudança (4B / 4C); ii) Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra (3B / 3C); iii) Educação na cidade (1B / 1C) e vi) Cartas a Guiné Bissau (1B / 1C).

Em síntese, este estudo averiguou que as obras de Freire constam, frequentemente, como referências tanto básicas, quanto complementares, nas disciplinas dos cursos de Pedagogia do Rio Grande do Sul, conforme pôde ser visto na Figura 2. Ademais, outro resultado apontou a indicação, como básicas, inclusive, de obras freireanas (28) pouco conhecidas.

Figura 2
Gráfico da relação entre obras indicadas como básicas e complementares nos cursos de Pedagogia presenciais e públicos do RS

A despeito de haver uma supremacia das obras indicadas como complementares, de acordo com o visto na Figura 2, essa diferença é pouco expressiva. Além disso, muitas outras obras estavam relacionadas a Freire, no entanto, como não eram de sua autoria, não foram computadas. Em suma, constatou-se ser grande a indicação da obra de Paulo Freire, donde se conclui que suas ideias são muito estudadas nos cursos de Pedagogia do RS.

Gatti (2010)Gatti, B. (2010). Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educ. Soc., 31 (113), 1355-1379. analisou a estrutura curricular de cursos de Pedagogia e classificou as disciplinas nas seguintes categorias: i) fundamentos teóricos da educação; ii) conhecimentos relativos aos sistemas educacionais; iii) conhecimentos relativos à formação profissional específica; iv) conhecimentos relativos às modalidades e nível de ensino. Tendo em vista tal análise, este estudo focou os itens iii e iv para observar quais assuntos embasam as disciplinas das quais constam as obras freireanas como referência.

Na pesquisa conduzida pela autora (Gatti, 2010Gatti, B. (2010). Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educ. Soc., 31 (113), 1355-1379.), ela subdividiu cada um dos itens, por exemplo, o item iii – conhecimentos relativos à formação profissional específica – foi dividido em: a) conteúdos do currículo da educação básica (infantil e fundamental); b) didáticas específicas, metodologias e práticas de ensino; c) tecnologias. Já o item iv – conhecimentos relativos às modalidades e nível de ensino – foi dividido: a) Educação Especial; b) Educação de Jovens e Adultos; c) Educação Infantil; d) Contextos não escolares. Este estudo aqui analisou, no item iii, apenas os conteúdos do currículo da educação básica (infantil e fundamental) e já, no item iv, foi analisada a ocorrência de todas as subdivisões, ou seja, Educação Especial; Educação de Jovens e Adultos; Educação Infantil e Contextos não escolares.

Da análise, identificou-se que de 92 disciplinas diferentes que abarcavam referenciais freireanos, havia apenas 6 relacionadas aos conhecimentos específicos das áreas (português, educação física, ciências, etc.). Enquanto as disciplinas voltadas às modalidades de ensino, estavam contempladas em 43. O restante, isto é, as 43 outras disciplinas constituíam as outras categorias, embasando aspectos acerca dos fundamentos teóricos da educação, conhecimentos relativos aos sistemas educacionais e algumas, ainda, sobre os estágios e Trabalhos de Conclusão de Curso. Como já mencionado, será feita somente a análise de parte dos itens iii e o iv, os demais não serão objeto de estudo desta pesquisa, tendo-se em vista a necessidade de maiores aprofundamentos para poder classificar as disciplinas conforme respectivas categorias.

A fim de demonstrar melhor os resultados obtidos na análise, a Figura 3 delimita o percentual de disciplinas, que tratam sobre as áreas disciplinares, o que Gatti (2010)Gatti, B. (2010). Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educ. Soc., 31 (113), 1355-1379. denominou de “conteúdos do currículo da educação básica (Educação Infantil e Anos Iniciais)”.

Figura 3
Gráfico com as disciplinas que tratam sobre os conteúdos do currículo da educação básica (as áreas disciplinares)

O gráfico indica que dentro das disciplinas analisadas, uma pequena parcela (6 disciplinas, somando todas) abarca os conteúdos do currículo da educação básica – da categoria conhecimentos relativos à formação profissional específica (Gatti, 2010Gatti, B. (2010). Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educ. Soc., 31 (113), 1355-1379.). A disciplina que mais apresenta indicações de obras é a de Educação Física (50%). Também foram encontradas indicações de obras freireanas nas disciplinas de ciências, português e naquelas chamadas de “integradoras”, as quais envolviam mais de uma área disciplinar ao mesmo tempo.

Gatti (2010)Gatti, B. (2010). Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educ. Soc., 31 (113), 1355-1379. identificou a presença de 28,9% de disciplinas nos cursos analisados que pertenciam a esta categoria iii (conhecimentos relativos à formação profissional específica). Contudo, no subitem da categoria ‒ conteúdos do currículo da educação básica (infantil e fundamental) ‒ havia uma porcentagem de apenas 7,5% de disciplinas. Assim, verifica-se que Freire não está muito presente nestas disciplinas, mas pode ser consequência de justamente haver uma pequena porcentagem de disciplinas que tratam sobre as áreas disciplinares. De qualquer modo, a presença freireana nestas disciplinas se mostra relevante, pois pode favorecer a utilização pelos educadores e educadoras de práticas embasadas em tal referencial.

Libâneo (2010)Libâneo, J.C. (2010). O ensino da didática, das metodologias específicas e dos conteúdos específicos do ensino fundamental nos currículos dos cursos de Pedagogia. Revista Brasileira de Pedagogia, 91(229), 562-583., ao realizar as mesmas observações, sinaliza para uma falha na estrutura curricular dos cursos de Pedagogia, quanto à formação profissional específica, visto que, segundo as pesquisas, há menos de um terço da carga horária voltada para essa categoria. Outra crítica feita pelo autor, reiterando o mencionado, é que as ementas dessas disciplinas não evidenciam haver articulação com os fundamentos, os conteúdos e a metodologias de ensino. Importante sinalizar que Libâneo (2010)Libâneo, J.C. (2010). O ensino da didática, das metodologias específicas e dos conteúdos específicos do ensino fundamental nos currículos dos cursos de Pedagogia. Revista Brasileira de Pedagogia, 91(229), 562-583. não defende que haja uma predominância destas disciplinas em oposição aos fundamentos teóricos da educação, por exemplo, mas sim, que os profissionais estejam preparados teórico e metodologicamente para atenderem as demandas dos contextos reais da educação, o que perpassa as diferentes categorias e sua melhor distribuição.

Em continuidade, na Figura 4 é feita a análise das disciplinas, delimitando quais são as modalidades contempladas por elas.

Figura 4
Gráfico da relação das modalidades contempladas pelas disciplinas com obras freireanas

Das 92 disciplinas que apresentavam indicações de obras freireanas, 43 delas estavam relacionadas às modalidades e ou nível de ensino, ou seja, quase metade das disciplinas. Assim, esse resultado indica que, nos cursos de Pedagogia, há uma predominância significativa nesta categoria de disciplinas. A presente hipótese torna-se mais evidente, e talvez mais sustentada, quando comparada ao estudo conduzido pela Gatti (2010)Gatti, B. (2010). Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educ. Soc., 31 (113), 1355-1379., em que, ao analisar 71 cursos de Pedagogia, encontrou um percentual de apenas 11,2% de disciplinas que abordam modalidades e níveis de ensino. Isso significa que disciplinas, cujo objetivo é focar as diferentes modalidades e níveis de ensino, não são majoritárias nos cursos. Contudo, nesta análise, as indicações de obras freireanas se fazem presentes, principalmente, nesta categoria, o que representa o importante papel que o autor ocupa para embasar essas modalidades e níveis.

O gráfico da Figura 4 indica que, dessas 43 disciplinas, predominam aquelas voltadas à EJA (55,8 %), ou seja, mais da metade das disciplinas classificadas nesta categoria referem-se a esta modalidade. A segunda modalidade que mais apareceu nesta pesquisa foi a da Educação Popular com um percentual de 18,6%, seguido dos espaços não formais com 14%. As disciplinas classificadas nesta categoria que menos contemplavam obras freireanas indicadas nas ementas eram sobre Educação Infantil (9,3%) e Educação do Campo (2,3%).

A predominância de disciplinas encontradas sobre a EJA e Educação Popular era esperada, visto que, no cenário brasileiro, elas (as modalidades) se fortaleceram graças aos movimentos sociais liderados por Paulo Freire. Essas modalidades têm proximidade, pois falar sobre a EJA é, sobretudo, referir-se à Educação Popular, que prioriza jovens e adultos não escolarizados ou que, por algum motivo, foram evadidos da escola.

A união e o compromisso com a alfabetização dos grupos sociais desfavorecidos se materializavam nestes movimentos de Educação Popular. As propostas fundamentavam-se nos ideários freireanos e visavam, principalmente, servir como instrumento de emancipação e libertação para os sujeitos marginalizados, excluídos, cuja dignidade humana era negada (Freitas, 2007Freitas, M.F.Q. (2007). Educação de Jovens e Adultos, Educação Popular e processos de conscientização: intersecções na vida cotidiana. Revista Educar, 29, 47-62.). As práticas de alfabetização buscavam ainda denunciar o “caráter reprodutivista e classista da ideologia dominante, que estava presente nas diretrizes educacionais oficiais e que visava à continuidade das condições de exploração e a submissão pacífica dos setores populares a esse status quo” (p. 50).

Por tudo isso, percebe-se que, ao falar sobre Educação Popular e EJA, tem-se Paulo Freire como um dos nomes mais importantes, tendo visto as suas inúmeras contribuições para essas modalidades ao longo da história, tanto para dar o “pontapé inicial” quanto para dar a visibilidade necessária a estes grupos. Não ao acaso, os cursos de Pedagogia analisados têm se embasado teoricamente no autor, considerando a essencialidade do referencial nestas discussões.

Outra questão que pode ser observada na Figura 4 diz respeito ao fato de a modalidade de Educação Infantil ter apresentado um dos percentuais mais baixos (quando comparado as outras modalidades). Embora o foco das discussões de Freire, fosse a Educação Popular, o educador certamente impulsionou um movimento de reflexão nos diferentes espaços-tempos de aprendizagem, tal como no âmbito da Educação Infantil. Para Saul e Silva (2011)Saul, A., & Silva, C.G. (2011). Contribuições de Paulo Freire para a Educação Infantil: implicações para as políticas públicas. In 5.º Simpósio Brasileiro e 2.º Congresso Ibero-Americano – Associação Nacional de Política e Administração da Educação -ANPAE, São Paulo., Freire se faz presente na Educação Infantil, pela articulação da sua matriz fundamental – o diálogo – como elemento norteador das práticas educativas das crianças pequenas. No âmbito desta discussão, Angelo (2006)Angelo, A.A. (2006). Pedagogia de Paulo Freire nos quatro cantos da educação da infância. In Congresso Internacional de Pedagogia Social. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. também indica a importância do diálogo nos processos educativos, partindo das contribuições de Paulo Freire.

Em consonância às discussões sobre Educação Infantil, Angelo (2006)Angelo, A.A. (2006). Pedagogia de Paulo Freire nos quatro cantos da educação da infância. In Congresso Internacional de Pedagogia Social. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. investigou, nas obras freireanas, a frequência e em quais momentos é feita referência às crianças, à infância e à Educação Infantil. Tal estudo auxilia compreender a relação de Paulo Freire com as crianças, sejam elas da educação formal, ou aquelas que cruzaram os seus caminhos. O autor identificou dois momentos cruciais nas obras – verdadeiros encontros com as realidades –- os quais influenciaram na consolidação do que mais tarde ficou conhecido como Educação Popular. O primeiro deles, relatado por Freire, faz parte das lembranças de quando ainda era adolescente, com outros meninos, filhos de operários, os quais moravam em córregos e morros. Outro momento importante foi quando Freire dirigia o setor de educação do SESI, atuando como coordenador do trabalho, realizado pelos educadores e educadoras com as crianças. Além disso, Freire pode experienciar possibilidades, práticas e metodologias. Para Angelo (2006)Angelo, A.A. (2006). Pedagogia de Paulo Freire nos quatro cantos da educação da infância. In Congresso Internacional de Pedagogia Social. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo., esses momentos da vida de Paulo Freire foram encontros com o universo infantil, que influenciaram sua trajetória de vida, preparando-o para ser o grande educador que foi.

Portanto, independentemente da faixa etária, do nível escolar, se for gente “miúda, jovem ou adulta” (Freire, M., 2002Freire, M. (2002). A paixão de conhecer o mundo. Paz e Terra.), a educação deve atuar como um permanente processo de busca por ser mais. O olhar de Freire sobre a educação contribuiu para pensar nela como um ato problematizador numa perspectiva de educação libertadora (Angelo, 2006Angelo, A.A. (2006). Pedagogia de Paulo Freire nos quatro cantos da educação da infância. In Congresso Internacional de Pedagogia Social. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Em vista disso, há de existir um trabalho que se estenda por todos os níveis e modalidades de ensino, incluindo as crianças pequenas, fundamentado em pressupostos freireanos.

Considerações finais

Como consideração geral acerca dos achados, destaca-se a diversidade de obras freireanas indicadas pelas disciplinas, sendo, muitas delas, desconhecidas da maior parte da população. Porém, embora diversas, há uma predominância expressiva das obras da Pedagogia da autonomia e Pedagogia do Oprimido.

Além disso, observou-se que as obras freireanas vêm sendo indicadas, principalmente, nas disciplinas que abordam áreas em que Paulo Freire dedicou mais profundamente o seu olhar. A raiz do pensamento freireano sustenta-se na ideia de que a educação deve fazer a leitura crítica da realidade. Freire defendia uma educação para a práxis, na qual ocorre constante e mutuamente processos de ação-reflexão-ação, como elementos constitutivos do diálogo pelos educadores e educadoras. Por isso, é importante que a formação de educadores e educadoras esteja voltada à articulação entre o saber teórico e prático da realidade concreta em que os professores e professoras trabalham.

De todo modo, a formação profissional de educadores e educadoras para os anos iniciais carece de mudanças curriculares, para garantir-lhes uma densidade de conhecimentos teóricos e metodológicos imprescindíveis para ensinar as crianças, o que inclui os saberes próprios das disciplinas que irão ensinar. Daí a relevância do referencial freireano nas diferentes disciplinas do curso de Pedagogia para sustentar o processo de formação de futuros educadores e educadoras, tanto nos aspectos teóricos, quanto práticos.

De um modo geral, este estudo não teve a pretensão de dimensionar o alcance ou o impacto da incorporação dos pressupostos freireanos nos cursos de Pedagogia, mas averiguar a indicação das obras freireanas como referencial teórico nas suas disciplinas. Concluiu-se que o referencial freireano está fortemente presente na estrutura curricular dos cursos, porém, caberia investigar se tais obras vêm sendo realmente abordadas e trabalhadas e de que maneira podem contribuir para os processos de ensino e aprendizagem das crianças dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Assim, a perspectiva com que foi realizada esta análise visou, sobretudo, apresentar um panorama que possa contribuir para novas reflexões.

  • 1
    Este artigo assume a forma “freireano”, por ser essa a grafia adotada no grupo de estudo do qual as autoras fazem parte e por conta do campo da Educação em Ciências que tem aderido a essa denominação.
  • 3
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha - verah.bonilha@gmail.com
  • 4
    Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
  • 5
    Nos dias atuais, continuam existindo diversas tensões sociais marcadas, principalmente, pela desigualdade, exclusão e opressão e, por isso, Paulo Freire é atual e necessário para a repensar a educação.
  • 6
    “Regulamentado pela Portaria Normativa n.º 21, de 21/12/2017, base de dados oficial dos cursos e Instituições de Educação Superior - IES, independentemente de Sistema de Ensino”.
  • 7
    Desse total, foram descartadas as disciplinas do curso diurno e noturno da UFSM que eram comuns aos dois cursos, tendo em vista que apresentavam a mesma ementa.
  • 8
    Relação da frequência das obras, sendo “26 B” o número em que a obra foi indicada como básica e “24C” o número de vezes que a obra foi indicada como complementar.

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Editado por

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Editor responsável: Adriana Varani. https://orcid.org/0000-0002-7480-4998

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2020
  • Revisado
    23 Jan 2021
  • Aceito
    08 Maio 2021
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