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Anísio Teixeira e o “direito à educação” – ideias que evocam Dewey e inspiram Freire 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Lara Nunes (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br.

Resumo

Este artigo trata centralmente da questão do direito à educação, tendo como autor principal Anísio Teixeira, que tomou para si o problema das desigualdades definidoras dos papéis sociais atribuídos historicamente aos brasileiros, resultando em privilégios. Nesse ordenamento fenomênico, a educação se encontra comprometida com o espelhamento desse estado de injustiça, fato que poderia ser desconstruído pelo fortalecimento da escola pública e de qualidade, promovida por uma pedagogia renovadora. A partir de John Dewey, Teixeira viu-se inspirado pelas ideias do progressivismo, animando-se para promover as transformações necessárias para a passagem de uma sociedade arcaica para outra modernizadora. Paulo Freire ocupou-se de problemas semelhantes, mas sugeriu uma pedagogia que pudesse libertar os indivíduos das condições opressivas, cujo mecanismo escolar da educação bancária contribuía para a realização da dominação. Vendo conexões entre esses autores, que pretenderam impulsionar o desenvolvimento por ações pedagógicas inovadoras, fundamentamo-nos nas obras desses intelectuais que permitiram a discussão, o aprofundamento e as conexões entre o direito à educação e a democracia.

Palavras-chave
Direito à educação; Anísio Teixeira; John Dewey; Paulo Freire; Filosofia da educação

Abstract

This article deals centrally with the issue of the right to education, with the main author Anísio Teixeira, who took on the problem of defining inequalities in the social roles historically attributed to Brazilians, resulting in privileges. In this phenomenal order, education is committed to mirroring this state of injustice, a fact that could be relaxed by strengthening the quality of public school promoted by a renewing pedagogy. In John Dewey, Teixeira was inspired by the ideas of progressivism and encouraged to promote the necessary transformations from an archaic society to another modernizer. Paulo Freire dealt with similar problems, but suggested a pedagogy that could free individuals from oppressive conditions, whose school mechanism of banking education contributed to the achievement of domination. We saw connections between these authors who intended to boost development through innovative pedagogical actions. We based on the works of these intellectuals that allowed discussion, deepening and connections between the right to education and democracy.

Keywords
Right to education; Anísio Teixeira; John Dewey; Paulo Freire; Philosophy of education

Introdução

Talvez possa parecer intrigante a proposta de recolocar a questão do “direito à educação”, defendida bravamente por um autor clássico da nossa cultura filosófico-educacional, a quem oferecemos a ponta do fio da meada, centralizando-o e ligando-o a uma discussão com as visões de outros pensadores, cujas vinculações, no entanto, nem sempre são muito evidentes. Entende-se, com efeito, que se trata de um tema a ser recuperado em nossas discussões, dado à existência de outras perspectivas em curso, sobretudo, nos debates políticos e acadêmicos. Contudo, iniciamos com os questionamentos: abordar tal tema seria insistir em uma defesa já muito explorada e, quem sabe, até mesmo esgotada em seus argumentos? Seria uma mera tentativa de refazer um caminho intelectual, seguindo os passos de alguns mestres, para o convencimento dos leitores de que ainda há direitos a serem conquistados, contrariamente àquelas pessoas que, enganosamente, pensam que essa teria sido uma etapa já vencida pelas políticas públicas e ações institucionais? Ou a justificativa para esse tratamento do tema se sustenta em razão dos riscos que esses direitos estão à mercê nos dias de hoje?

Já à primeira vista, a locução “direito à educação” nos sugere o direito de todos a uma escolarização que ofereça os recursos necessários aos imaturos para compreenderem a realidade no processo de seu desenvolvimento e, também, para se inserirem de maneira saudável no mundo. Subliminarmente, a expressão também se refere aos indivíduos que necessitam de cuidados para se desenvolver e usufruir das oportunidades que estão a seu benefício e da sociedade, não sendo adequado para o seu crescimento que sejam deixados à mercê do espontaneísmo ocasional da vida comum rotineira.

Acredito que a proposta de tratarmos do assunto não se inscreve num panorama anacrônico e que valerá a pena trazer à baila as ideias que aqui passo a apresentar, para que, ao findar o texto, possa ser reavaliada a situação em que nos encontramos e os nossos próprios argumentos, enriquecidos pelos múltiplos aspectos do problema mostrados e explorados pelos pensadores selecionados para esse fim.

A discussão sobre o “direito à educação” ganha força no contexto do pensamento de Anísio Teixeira (1968Teixeira, A. (1968). Educação é um direito. Nacional., 1969Teixeira, A. (1969). Educação no Brasil. Nacional., 1971)Teixeira, A. (1971). Educação não é privilégio (3a ed.). Nacional., que muito se alimentou dos insights intelectuais de John Dewey (1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., 1959Dewey, J. (1959). Como pensamos (3a ed.). Nacional., 1974)Dewey, J. (1974). Experiência e natureza. In W. James, J. Dewey & T. Veblen, Os pensadores (pp.159-210). Abril Cultural., mas que, por sua vez, foi um dos grandes inspiradores do grande mestre brasileiro Paulo Freire (1978Freire, P. (1978). Pedagogia do oprimido (5a ed.). Paz e Terra., 1983Freire, P. (1983). Educação e mudança (12a ed.). Paz e Terra., 1997Freire, P. (1997). Pedagogia da autonomia (58a ed.). Paz e Terra., 2000Freire, P. (2000). Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Editora Unesp., 2001)Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire.. É evidente que estes pensadores viveram momentos, tempos e espaços distintos que, por sua vez, possibilitaram tônicas, interpretações e ênfases diversas em torno de uma dada situação, com seus problemas mais gritantes cuidadosamente desenvolvidos em suas extensas obras. Nota-se que o tratamento da referida ideia se insere numa corrente de debates em que podemos observar vínculos e preocupações em relação à democracia, uma vez que a noção de “direito à educação” se apresenta, mesmo que implicitamente, como um dos elementos necessários à efetivação de tal regime político.

Mas qual educação devemos defender como um direito? Eis outra dificuldade muitas vezes pouco observada.

Dewey e Teixeira movem-se a partir do industrialismo, da ciência e da tecnologia associados a elementos como novo conhecimento, urbanização, mundo moderno e outros fatores concernentes ao espírito desenvolvimentista que rompe o modelo tradicional da época e que, num novo cenário – típico da primeira metade do século XX, principalmente –, deslancha movimentos, fazendo emergir uma nova mentalidade produtora de reivindicações, apelos de mudanças, exigências de formação, disposições mais flexíveis, dentre outros. A educação, então, é chamada a compor o novo panorama de um modo mais coetâneo com o então novo momento social, político e cultural que se instaura. Freire (2001)Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., num outro momento e contexto nacional, destaca os mesmos fatores3 3 Sobre esses fatores, tomamos como base a obra de Freire, Educação e atualidade brasileira (2001), originalmente produzida em 1959 como Tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco na então Universidade do Recife, que, desde 1965, passou a ser denominada Universidade Federal de Pernambuco. (Torres et al., 2001). , mas avança com seu criticismo aos mecanismos opressivos que podem aprofundar a desigualdade, favorecendo a manipulação e inibindo as transformações desejadas. Sua proposta educacional libertadora se reporta ao estado de dominação, que, para ele, é preciso ser superado pela conscientização, o que requer uma práxis efetivamente transformadora. Ávido por uma reação ao estado opressivo, nos diz: “A educação vem se fazendo, cada vez mais, entre nós, em quase todos os centros, uma reivindicação popular – outro sistema do antiquietismo nacional” (Freire, 2001Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., p. 41). Esse antiquietismo se refere à resistência ao impedimento da voz do povo diante das questões nacionais e às questões de cada um como indivíduo e ente social, uma vez que o roubo da palavra e seu produto imediato, o analfabetismo, inviabilizam a efetiva participação do sujeito na vida social e a sua compreensão da realidade, disso resultando sérios desdobramentos desumanizadores.

Assim, movidos por um espírito teórico analítico e de garimpagem dos escritos dos autores colocados aqui em pauta, construímos nexos, a partir da ideia de direitos humanos, com a educação pensada pelos três autores no contexto da democracia que querem conquistar, aprimorar e ver realizada.

Primeiros nexos

A obra Educação é um direito (1968), de TeixeiraTeixeira, A. (1968). Educação é um direito. Nacional., publicada primeiramente em 1967 e que, segundo o próprio autor, faz par com um outro livro, também originado de sua lavra, em1957, intitulado Educação não é privilégio (1971)Teixeira, A. (1971). Educação não é privilégio (3a ed.). Nacional., é bem conhecida. Este foi consultado por Freire, dentre outros de Teixeira, quando elaborava Educação e atualidade brasileira (2001)Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire.. Diga-se de passagem que, neste livro, Freire também recorre ao Democracia e educação (1952)Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., publicado originalmente em 1916 por Dewey, o conhecido inspirador do autor baiano.

Conforme já apontado, os autores brasileiros parecem concordar sobre os traços característicos da sociedade brasileira dos anos 1950 e 1960, haja vista as falas que se seguem. Eis o que nos diz Teixeira:

Com o avanço do conhecimento e da tecnologia, a longa revolução dos nossos tempos vem transformando radicalmente o mundo e com ele a sociedade humana. Esse novo mundo moderno, marcado por extremo dinamismo, representa a fase de intensiva industrialização. Esta revolução industrial acaba por expandir-se até as atuais formas de concentração urbana e de organização maciça do trabalho. Surge, então, a sociedade contemporânea, globalmente industrializada, a qual consiste em um complexo de sistemas altamente organizados, que funcionam na base de extrema divisão de trabalho e extrema impessoalidade. Na realidade, a sociedade adquire uma constituição altamente racionalizada, com os seus múltiplos serviços sistematizados e, por vezes, mecanizados, e o homem aparentemente fragmentado pelas múltiplas funções que tem a desempenhar. Para compreender e integrar-se nessa sociedade faz-se necessário um grande desenvolvimento da educação formal, a qual, antes somente necessária para alguns, já agora é indispensável a cada cidadão.

(Teixeira, 1969Teixeira, A. (1969). Educação no Brasil. Nacional., p. 323, grifo nosso)

Dewey (1952)Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional. dedica-se a esclarecer que a prática de uma ocupação, ou especialismo, não significa o esvaziamento do conjunto dos demais interesses resultantes da experiência do indivíduo no processo contínuo de viver. As atividades dos indivíduos correspondem aos seus diversos interesses, vinculados ao seu desempenho das várias ocupações que devem executar ao longo da vida. É na existência real que se encontra o nascedouro dos problemas que se apresentam ao sujeito, que tenta resolvê-los pela investigação, quando nutrido pela educação. Assim, a escola pode ajudá-lo a desempenhar as suas atividades com inteligência. Dewey (1952)Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional. critica a tendência que via acontecer de tornar as especialidades apartadas das outras esferas da vida, em nome de um necessário aprofundamento. Mas adverte:

Isto significa dar-se atenção à habilidade ou proficiência técnica, à custa do sentido ou significação. E por isso mesmo, não é função da educação estimular essa tendência, e sim defender-se contra ela, de modo que o investigador científico não se torne simplesmente um cientista, nem o professor simplesmente um pedagogo, nem o padre um homem que apenas usa batina, e assim por diante.

(Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., p. 403).

Dos fatores elencados até aqui, deduz-se que, apesar de um certo otimismo em relação ao progresso e à modernização, algumas preocupações quanto à necessária ampliação de uma educação popular e pública, de qualidade, humanizadora e democrática se tornam elementos defendidos pelos autores aqui em discussão. Para a dupla Dewey-Teixeira, essa escola também tem que ser diferente, nova, impregnada do espírito moderno para condizer com as expectativas e necessidades do momento. Então, Teixeira recorre ao modelo escolanovista ou progressivo, já implementado nos Estados Unidos e em outros países e que tem Dewey como um dos pilares intelectuais da proposta, visando efetuar um programa de renovação para o nosso país.

Enquanto as sugestões de Teixeira, junto a outros intelectuais brasileiros que se agruparam no famoso movimento renovador e modernizador da educação brasileira, estenderam-se por décadas do século XX, tendo sido discutidas no processo de elaboração e implementação e sofrido reveses por seus críticos, observa-se que Freire, inflamado pelas exigências de seu tempo no tocante à “[…] participação cada vez maior do povo na elaboração do desenvolvimento” (Freire, 2001Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., p. 30), posiciona-se de maneira contundente e radicalmente lúcido:

É bem verdade que a industrialização vem promovendo a sua [do povo] transformação de espectador quase incomprometido em ‘participante’ ingênuo, em grandes áreas da vida nacional. Mas o que é preciso é aumentar-lhe o grau de consciência dos problemas de seu tempo e de seu espaço. É dar-lhe uma ‘ideologia do desenvolvimento’. E o problema se faz então um problema de educação.

(Freire, 2001Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., p. 31).

Tais ideias já emergiram do pensador norte-americano em tempos mais remotos, em que se vislumbrava transformações inéditas no mundo. Então, empolgado com o desenvolvimento, Dewey também sinaliza para alguns perigos que poderiam vir embutidos no processo modernizador e nos rumos adotados pelo industrialismo, bem como as suas possíveis consequências. Assim se posicionara ainda no início do século XX:

Mesmo hoje, em nossa vida industrial, exceto quanto a algum merecimento na formação de hábitos de industriosidade e de economia, pouca atenção é dada em todo o mundo às reações intelectuais e emocionais provocadas pelas formas de associação por que se conduz o trabalho moderno, comparadas com a atenção merecida pela produção material.

(Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., p. 26)

Seria, portanto, necessário investir numa educação diferente, ampliadora e aperfeiçoadora da experiência acidental das associações comuns e rotineiras, bem como distinta das fórmulas educativas propostas pela formação tradicional previsível e controladora. Contrariamente a esses perigos, Dewey (1952)Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional. deseja ver uma educação que se proponha a ser uma experiência democrática.

No Brasil, em décadas mais avançadas do século XX, a industrialização, que estava em franco crescimento nos anos 1950 e 1960, trouxe à tona um forte impasse, na visão de Freire (2001)Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., pois revelava explicitamente uma profunda dificuldade: de um lado, a necessidade de fazer emergir o povo para melhor atuar na vida pública nacional e, de outro, a notória inexperiência democrática de nosso país. Para ele,

[…] o que vem caracterizando a nossa vida pública atual é este jogo de contradições. É o povo emergindo no cenário político, rejeitando suas velhas posições quietistas e exigindo novas posições – agora de participação, de atuação e de ingerência na vida brasileira. É o povo emergindo e exigindo soluções, mas, ao mesmo tempo, assumindo atitudes que deixam transparecer, fortemente, os sinais de sua ‘inexperiência democrática’. ‘Inexperiência democrática’ brasileira que esclarece posições tão comuns entre nós, até em centros urbanos, do todo-poderosismo policial, em desrespeito ao homem. Todo-poderosismo da autoridade firmada ainda no ‘sabe com quem está falando?’. Desrespeito aos direitos dos mais fracos pela hipertrofia dos mais fortes. ‘Inexperiência’ que explica a prática reveladora da política de clã, consubstanciada em fórmulas como: ‘aos amigos tudo – amigos são os que seguem passivamente ao chefe – aos inimigos, a lei’. Esta lei, porém, aparece apenas na fórmula, porque a tradução exata desta atitude, ou desta postura antidemocrática, seria antes esta: ‘Aos amigos, aos que seguem as linhas da política do chefe, tudo – inclusive as coisas impossíveis, para cuja solução se dá sempre um ‘jeitinho’- aos inimigos, nada, quer dizer, dificilmente o que a própria lei estabelece’.

(Freire, 2001Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., pp. 26-27)

Observamos que Freire vê se instalar no Brasil importantes mudanças no cenário político, social e econômico, mas se preocupa com o fato disso aprofundar ainda mais o regime opressivo e ampliar as suas ações de injustiças, de preconceitos e de marginalização de muitos em relação ao alcance e às garantias estabelecidas por Lei Para ele, o perigo poderia surgir pelo distanciamento de uma enorme parcela da população em relação aos direitos humanos próprios de uma sociedade desenvolvida economicamente, mas que não deveria se descuidar jamais de suas pretensões democráticas.

Não obstante, estando atento às necessárias mudanças que via acontecer em seu tempo, Freire acompanhou o dinamismo do mundo e da sociedade humana, mas sempre preocupado em defender o homem dos sistemas opressivos que poderiam ser reforçados, forjados e instalados aqui, ali ou acolá, produzindo preconceitos, exclusão e exploração, tudo em nome do desenvolvimento do chamado mundo moderno. Tais preocupações também eram compartilhadas por Dewey, salvaguardado o tempo-espaço em que transcorreu a sua vida. O autor norte-americano se afligiu, por exemplo, com as relações entre a educação liberal e a educação profissional e industrial voltada ao trabalho produtivo, cuja oferta, desde a Antiguidade, sempre se deu para classes distintas quanto ao seu direcionamento social, isto é, se existem para serem livres ou escravizados. São contextos antigos que há muito preparam os modelos a serem reproduzidos segundo mecanismos de preservação desse estado de organização e vivência social ampla. Dewey (1952)Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional. chama a atenção para esse fato, afirmando:

Será antes perda que proveito chegarmos a considerar a inteligência um meio de dominar a natureza por intermédio da ação, se nós permitirmos que perdure um estado ininteligente e de escravidão para aqueles que diretamente extraem utilidades da natureza, deixando a inteligência que os dirige ser privilégio exclusivo dos distantes cientistas e capitães da indústria. Só ficaremos em situação de honestamente criticar a divisão da vida em funções separadas e da sociedade em classes separadas, na proporção em que nos livrarmos da responsabilidade de perpetuar as práticas educativas que exercitam o maior número para ocupações que exigem unicamente habilidade produtora e poucos para adquirirem conhecimentos que são ornatos e requintes culturais.

(Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., p. 339)

Completando o seu argumento, Dewey reivindica uma única solução para tal problemática: a constituição efetiva de uma sociedade democrática, em que “[…] todos tomem parte em serviços de utilidade prática e todos desfrutem nobres ócios” (Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., p. 340). O autor situou nas raízes da cultura humana o cultivo de diversos dualismos, dentre os quais citamos aqueles responsáveis por determinar as posições que os indivíduos devem ocupar na sociedade: de um lado, o trabalho mecânico e rotineiro pautado nas finalidades externas, estabelecidas por aqueles que ordenam as atividades dos executores e os recompensam com vantagens e regalias proporcionais ao resultado produzido; de outro lado, as atividades relativas aos bens culturais, ao lazer e à fruição do espírito, somente possíveis para os que se encontram no topo social. Para Dewey, a circunstância do primeiro grupo torna seu trabalho não liberal, cuja educação a ele correspondente seria iliberal e imoral, pois destina-se a simplesmente oferecer as habilidades para a consecução das finalidades postas externamente ao executor. Assim, a educação que visa o homem livre parte do entendimento de que aquele que dirige e comanda o faz de fora do campo das atividades dos primeiros. Vemos aí condições propícias para a frutificação do autoritarismo e, nas palavras de Freire (1978)Freire, P. (1978). Pedagogia do oprimido (5a ed.). Paz e Terra., da opressão e alienação. E o que é pior, a desumanização envolve os dois grupos! Logo, a única saída seria a instalação da pedagogia humanista e conscientizadora sobre a situação em que se encontram os sujeitos, pois esta seria capaz de romper com a contradição dessa injusta organização, resultando na superação do estado de opressão e no surgimento do “homem novo”, ou seja, “[…] não mais opressor, não mais oprimido, mas homem libertando-se” (Freire, 1978Freire, P. (1978). Pedagogia do oprimido (5a ed.). Paz e Terra., p. 46). Dewey, em sua obra, também empreendeu esforços na busca pelo homem novo, educado por uma escola nova, para melhor prepará-lo para o enfrentamento da sociedade moderna: mais complexa e exigente de novas habilidades e conhecimentos, mas desafiadora e perigosa caso o sujeito não acompanhe o seu dinamismo. O autor norte-americano apela para a educação democrática para garantir a todos a reflexão, isto é, a atividade de pensamento, como guia de todas as atividades práticas, colocando as atividades lúdicas, artísticas e aquelas produzidas no ócio ou no lazer como de igual qualidade, conciliando, desse modo, os aspectos da vida humana que se mostram falsamente separados. Teixeira (1969)Teixeira, A. (1969). Educação no Brasil. Nacional., atraído pelas sugestões de Dewey, insurge-se contra os problemas com que se deparava em nosso país que impediam o impulso de mudanças e de desenvolvimento e a implantação de um efetivo modelo novo de educação, situação que, para ele, era agravada pela falta de estrutura, pela falta de um sistema público de educação, pelas dificuldades políticas centralizadoras e autoritárias e pela tradição educacional elitista e colonialista impregnada em nossa sociedade. Desse modo, “A nação […] deixara-se habituar ao desenvolvimento reflexo, passivo, por força das circunstâncias, por isso mesmo que a vida lhe fora, senão fácil, sem maiores exigências […]” (Teixeira, 1969Teixeira, A. (1969). Educação no Brasil. Nacional., p. 133). Contudo, sabemos do empenho impetrado pelo autor baiano, por toda a sua vida e em várias frentes de atuação, para a conquista dos ideais de um país diferente do que até então observava.

Com sua lupa transformadora, nosso pernambucano, todavia, insiste na educação enquanto um indispensável recurso para que homens e mulheres possam emergir do estado alienante, violento – mesmo quando a violência não se manifesta explicitamente –, manipulador e domesticador que os afastava – e tendia a afastá-los ainda mais – das possibilidades de, verdadeiramente, inserirem-se nos processos humanizadores. Freire (2000)Freire, P. (2000). Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Editora Unesp. entende que só assim essa gente poderia efetivamente participar no decurso dessas mudanças, compreendendo o seu ritmo e os fatores nelas presentes, em meio a uma situação em que concretamente se encontra e age fazendo parte ativa da história. O recurso mais apropriado, segundo ele, para que isso seja notadamente possível é a educação libertadora, pois não se trata de qualquer educação. O autor confessa o seu sonho numa sociedade verdadeiramente democrática e até mesmo utópica: uma “[…] sã insanidade é a criação de um mundo em que o poder se assente de tal maneira na ética que, sem ela, se esfacele e não sobreviva” (Freire, 2000Freire, P. (2000). Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Editora Unesp., p. 131). E, então, argumenta a favor desse sonho:

Em um tal mundo a grande tarefa do poder político é garantir as liberdades, os direitos e os deveres, a justiça, e não respaldar o arbítrio de uns poucos contra a debilidade das maiorias. Assim como não podemos aceitar o que venho chamando “fatalismo libertador”, que implica o futuro desproblematizado, o futuro inexorável, não podemos igualmente aceitar a dominação como fatalidade. Ninguém me pode afirmar categoricamente que um mundo assim, feito de utopias, jamais será construído. Este é, afinal, o sonho substantivamente democrático a que aspiramos, se coerentemente progressistas. Sonhar com este mundo, porém, não basta para que ele se concretize. Precisamos de lutar incessantemente para construí-lo.

(Freire, 2000Freire, P. (2000). Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Editora Unesp., p. 131)

Tendo observado as ideias firmadas por Freire, podemos apreender sumariamente o significado nuclear de suas preocupações pela localização da sua defesa insofismável e ilimitada em relação à dignidade humana, geral e irrestrita como centro de sua proposta humanizadora. Assim, podemos observar que Freire está sim discutindo sobre o tema educação e direitos humanos e explica: “O fundamental, se sou coerentemente progressista, é testemunhar […] o meu respeito à dignidade do outro ou da outra. Ao seu direito de ser em relação com o seu direito de ter” (Freire, 2000Freire, P. (2000). Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Editora Unesp., p. 55, grifo nosso). Por isso, afirma ainda que

[…] ninguém pode buscar [ser mais, a busca de ‘si mesmo’, buscar-se a ser o que deseja e em sua própria trajetória] na exclusividade, individualmente. Esta busca solitária poderia traduzir-se em ter mais, que é uma forma de ser menos. Esta busca deve ser feita com outros seres que também procuram ser mais e em comunhão com outras consciências, caso contrário se faria de umas consciências, objetos de outras. Seria ‘coisificar’ as consciências.

(Freire, 1983Freire, P. (1983). Educação e mudança (12a ed.). Paz e Terra., p. 28, grifo nosso)

Trata-se de um chamado de Freire para a construção de uma democracia que não significa simplesmente o destaque no indivíduo bem-sucedido, mas também o destaque em sua ação comprometida com a formação das conexões necessárias com outros em situação de libertação e com os seus interesses comuns.

Com efeito, se faltar a consciência efetiva do inacabamento – motor de desenvolvimento humano – e da força e responsabilidade da busca pela humanização, acaba-se por aprofundar o fatalismo e dar o regime de dominação por vencedor, asseverando-se, assim, o fosso entre uma legião de seres dependentes de outros afortunados e privilegiados.

Por isso a proposta de associar o tema de direitos humanos com a democracia, uma vez que se entende que tais noções são interdependentes e a possibilidade de sua realização clama pela educação democrática. Assim, se nos reportarmos aos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, junto aos princípios éticos e morais que implementam a visão humanizadora, encontraremos tais preocupações nos autores aqui apresentados.

Freire confessa ser um admirador de Teixeira, a quem se refere como “[…] um dos mais lúcidos educadores brasileiros atuais, o professor Anísio Teixeira, em quem o educador se harmoniza com o pensador e o cientista social” (Freire, 2001Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., p. 12). Seguindo a indicação de Freire sobre Teixeira e atentando aos seus textos, pode-se encontrar o inegável engajamento desse profissional com os problemas de seu tempo. Teixeira mostra-se comprometido com a democracia e, para a realização de tal regime, vê na educação “[…] a condição mesma para a sua existência […] supremo dever, a suprema função do Estado […] a única justiça que me parece suficientemente ampla e profunda para apaziguar a sede de justiça social dos homens […]” (Teixeira, 1968Teixeira, A. (1968). Educação é um direito. Nacional., p. 89). E acrescenta enfaticamente, na sequência: “A educação é, portanto, não somente a base da democracia, mas a própria justiça social” (Teixeira, 1968Teixeira, A. (1968). Educação é um direito. Nacional., p. 89). Contudo, adverte:

A democracia é o regime da mais difícil das educações, a educação pela qual o homem, todos os homens e todas as mulheres aprendem a ser livres, bons e capazes […] A educação faz-nos livres pelo conhecimento e pelo saber e iguais pela capacidade de desenvolver ao máximo os nossos poderes inatos. A justiça social, por excelência, da democracia consiste nessa conquista da igualdade de oportunidades pela educação. Democracia é, literalmente, educação.

(Teixeira, 1968Teixeira, A. (1968). Educação é um direito. Nacional., pp. 88-89)

Se pressupomos que a educação é uma necessidade insofismável que visa à sociedade inteira, cujos governos devem garantir a todos os indivíduos o direito de usufruir das condições favoráveis ao seu crescimento e a possibilidade de, ao retornarem às diversas instâncias sociais como cidadãos “formados”, serem capazes de expandir o seu desenvolvimento individual e coletivo, não vemos como não emparelhar a educação com a democracia. É claro que essa afirmação é impregnada de muitas questões que giram em torno, por exemplo, do problema das desigualdades, cujos fatores frequentemente se encontram fora da alçada da instituição educativa em si mesma. Mas temos de admitir, baseando-nos nos autores aqui enfatizados, que a própria educação muitas vezes se associa às condições que concorrem para o acirramento das desigualdades, dificultando o vicejo da democracia, haja vista as críticas à educação tradicional por Dewey, à educação brasileira atrasada e elitista por Teixeira e à educação bancária atacada por Freire. Isso reforça ainda mais o empenho desses autores em suas teses em defesa da educação, especialmente a escolar, no que diz respeito à formação dos professores, dentre outras temáticas correlatas, que poderiam ser aprofundadas em outra reflexão.

Ademais, quando apontamos a responsabilidade do Estado de garantir uma escola de qualidade para todos, trazemos à discussão o direito constitucional como baliza necessária para a consecução do direito à educação. E, então, sentimos a urgência do estofo da democracia para que, com ela, as próprias instituições educativas se instituam com seus princípios garantidores das liberdades humanas, da justiça social e da ampliação da compreensão do mundo por cada um dos seus membros.

Por outro lado, entendendo que “[…] todos os regimes dependam da educação” (Teixeira, 1968Teixeira, A. (1968). Educação é um direito. Nacional., p. 88), até mesmo os mais desumanos, Teixeira defende que a democracia é um regime muito difícil, porque “[…] depende da mais difícil das educações e da maior quantidade de educação”. Mais ainda, “[…] depende de se fazer do filho do homem – graças ao seu incomparável poder de aprendizagem – não um bicho ensinado, mas um homem” (Teixeira, 1968Teixeira, A. (1968). Educação é um direito. Nacional., p. 88).

Do que até aqui vimos, trata-se, sem dúvida, de discursos apaixonados pelos poderes da educação em ambiente democrático. Contudo, para que seja assim realizada, a educação necessita de uma estrutura de base e uma condição orgânica, própria de uma situação institucional fomentadora de ideias, valores e ações inerentes à democracia. Estaríamos, então, caindo em um círculo vicioso? Se sim, como quebrá-lo? E por onde, então, deveríamos começar para atingir tais nobres objetivos?

Algumas aproximações diante dos impasses

Freire, que se fundamenta em Zevedei Barbu, esclarece a seguinte observação a respeito do conceito de democracia:

Por isso mesmo que democracia não é especificamente uma ‘ideia’ ou uma ‘teoria’, mas um ‘clima cultural’, não será possível um trabalho educativo democrático verdadeiro a que faltem condições que constituam esse clima […] Sem este clima, de que se deixe envolver o agir educativo, se fará ele inautêntico, desaparecerá sua operosidade, porque inorgânico.

(Freire, 2001Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., p. 60)

Dewey também vê a democracia nessa direção, como um “modo de vida” muito particular. Em Democracia e educação, o autor afirma: “Uma democracia é mais do que uma forma de governo; é, primacialmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada” (Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., p. 126).

Frequentemente nos distraímos quando tratamos do tema “educação”, reduzindo-o à escolarização. É evidente que, nas sociedades modernas, às escolas foram solicitadas gradativamente a realizar o trabalho formativo das gentes da nação, não somente em se tratando de seus profissionais, mas também de seus cidadãos ou pessoas comuns. No primeiro caso, o objetivo teria sido desenvolver nos alunos as qualidades necessárias ao exercício ocupacional de cada um na coletividade, supondo fazê-lo em consonância com o bem comum, segundo os ditames das sociedades democráticas. No segundo caso, teria sido privilegiar a liberdade e as qualidades intrínsecas aos indivíduos, garantindo-lhes ao máximo a sua realização, aprimoramento e participação nas instâncias sociais. Tarefa hercúlea, é verdade, que exige apreensão e domínio conceitual profundo! Percebemos, no entanto, um certo exagero nas atribuições da escola e a necessidade do envolvimento das demais instituições que concorrem para o desenvolvimento dos mais jovens, como a família, a comunidade, o Estado etc. Daí compreendermos que a democracia seria um modo de vida sustentador do ideal de vida comum, propícia ao desenvolvimento coletivo e em cuja base as ações educativas, compromissadas com todos os cidadãos, se enraízam, constituindo a estrutura e as condições mínimas para o trabalho cooperativo e o vicejo de uma vida social promissora e acercada pela vontade de liberdade responsável e autonomia.

Freire se fez um autor reconhecido a partir das ideias geradas na década de 1950, época que lhe permitiu elaborar análises aprofundadas da situação brasileira e sul-americana. As nações da América do Sul, para ele, encontravam-se organizadas em condições típicas de sociedades fechadas, em que “[…] o ponto de decisão econômica desta sociedade está fora dela. Isto significa que este ponto está dentro de outra sociedade […], a sociedade matriz […] Esta é a que tem opções; em troca, as demais sociedades recebem ordens” (Freire, 1983Freire, P. (1983). Educação e mudança (12a ed.). Paz e Terra., p. 33). Com o passar de algumas décadas, segundo ele, iniciou-se uma “abertura” para uma positiva transição em algumas dessas sociedades, pois apareceram novos valores, bem como reivindicações para maior participação popular e exigências por parte da população “excluída” de maior voz e voto no processo de mudanças, o que permitiu uma crescente emersão das massas. Surge, como resultado desse processo, uma forte manifestação de maior apetência pela educação, antes ausente. Contudo, Freire (1983, p. 38)Freire, P. (1983). Educação e mudança (12a ed.). Paz e Terra. adverte:

As sociedades latino-americanas começam a se inscrever neste processo de abertura, umas mais que outras, mas a educação ainda permanece vertical. O professor ainda é um ser superior que ensina a ignorantes. Isto forma uma consciência bancária. O educando recebe passivamente os conhecimentos, tornando-se um depósito do educador. Educa-se para arquivar o que se deposita. Mas o curioso é que o arquivado é o próprio homem, que perde assim seu poder de criar, se faz menos homem, é uma peça. O destino do homem deve ser criar e transformar o mundo, sendo o sujeito de sua ação.

Entretanto, no enfrentamento de um forte regime ditatorial, muitas dessas ideias são ignoradas, tanto em relação a um quanto ao outro autor brasileiro mencionado. Sabemos sobre as consequências das defesas de direitos iguais e de justiça a todos, afirmados numa sociedade marcada pelas diferenças. Para Freire (1983)Freire, P. (1983). Educação e mudança (12a ed.). Paz e Terra., as implicações disso não seriam inesperadas, pois: “Começam a exigir e a criar problemas para as elites. Estas agem torpemente, esmagando as massas e acusando-as de comunismo. As massas querem participar mais na sociedade. As elites acham que isto é um absurdo e criam instituições de assistência social para domesticá-las” (Freire, 1983Freire, P. (1983). Educação e mudança (12a ed.). Paz e Terra., p. 37). Logo, não se estranha que Freire tenha sofrido as determinações do exílio – esteve exilado de 1964 a 1980 – e Teixeira, em 1964, tenha sido afastado do posto de reitor da Universidade de Brasília (UnB), criada em 1961, da qual foi um dos idealizadores, tornando-se aposentado compulsoriamente e tendo morrido em 1971 de forma trágica e misteriosa. Curiosamente, ambos assumiram funções de visiting scholars em universidades estadunidenses durante a nascente ditadura militar brasileira e foram chamados pela Unesco para desempenhar funções importantes no âmbito da educação e da cultura. Embora politicamente menos trágica, a vida de Dewey também foi marcada por críticas produzidas por parte de conservadores norte-americanos, que o qualificaram de “vermelho” ou de “bolchevique” quando ele retornou da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), na década de 1920. Dewey escreveu analisando e salientando muitos aspectos positivos extraídos dessa viagem e de sua experiência, o que provocou certo desconforto entre os mais radicais (Cunha, 1994Cunha, M. V. (1994). John Dewey: uma filosofia para educadores em sala de aula. Vozes.).

Ademais, podemos acrescentar que os autores aqui na berlinda pertenceram a organizações ligadas a interesses no campo dos direitos humanos. Considerado um humanista secular, Dewey participou de movimentos humanistas entre as décadas de 1930 e 1950, incluindo sua posição de conselheiro em agremiações como a Charles Francis Potter’s First Humanist Society of New York, em 1929. Foi, ainda, um dos 34 primeiros assinantes do Humanist Manifesto, de 1933, e eleito membro honorário da Humanist Press Association, em 1936. Embora criticado por alguns intérpretes pela sua atuação frente às questões do racismo americano, há registros de sua afiliação no que se configurou ser uma organização chamada National Association for the Advancement of Colored People.

Teixeira foi perseguido durante quase toda a sua trajetória profissional, tendo sido combatido nos principais postos que ocupara, bem como acusado de ser comunista, sobretudo pelos setores mais conservadores católicos, por sua insistente defesa de uma escola pública forte, ampliada e bem qualificada. Sofreu enfrentamento na política de Vargas, principalmente por insistir na tese da descentralização, dentre outras ideias, ficando à margem das decisões políticas durante um grande período ainda na década de 1940 e 1950. E, paradoxalmente, quando já morto, sua obra foi grandemente interpretada com desconfiança pelos autores críticos ao capitalismo, vendo-o como um de seus mais hábeis aliados e alguém que seguia os ensinamentos de um norte-americano – Dewey –, que, por outro lado, nos Estados Unidos também sofrera retaliações, porém por ser excessivamente progressista.

Com a ditadura militar, desconfianças em razão de distintas visões político-ideológicas renderam perseguições e o estigma de indesejável revolucionário a Freire, o que o levou ao exílio. Contudo, convicto dos seus propósitos pedagógicos, assessorou a Rede Brasileira de Educação e Direitos Humanos e proferiu palestras sobre o assunto quando retornou ao país beneficiado pela Anistia Internacional e assumiu o cargo de secretário da educação de São Paulo de 1989 a 1991.

Trata-se, pois, de um trio de intelectuais que apresenta facetas muito semelhantes referentes às inter-relações da democracia, educação e direitos humanos, cujas elaborações que produziram são associadas a um perfil de incômodas personalidades, tendo em vista suas vastas obras, encadeamento de ideias e ações fomentadas por notável espírito analítico, observador e crítico. Embora tenham sofrido duras penas pelas causas que tomaram para si, esses pensadores se notabilizaram pelas importantes reflexões interpretativas que fizeram sobre os nexos possíveis entre os termos do interesse desta exposição, cuja proposta de estudo sobre essas vinculações ainda continua, a nosso ver, merecendo aprofundamento, uma vez que tais ideias persistem no horizonte da sociedade atual, apresentando-se frequentemente com imprecisão.

Tentativa de aprofundamento das questões

Pelo exposto, acreditamos ter argumentado em defesa da vinculação da democracia com a educação, que é reconhecida como um dos mais importantes direitos humanos por aqueles que desejam garantir o que há de mais fundamental na humanidade, que é a sua capacidade de crescer não simplesmente em sua vida física, material e até mesmo cognitiva, mas também naquilo que preserva e enriquece a sua existência pessoal, comunitária e social, constituindo coletividades de alcance cada vez mais global e vinculadas pela ideia de cooperação e compartilhamento.

Primeiramente, devemos enfatizar que, quando nos reportamos à educação no bojo dos direitos humanos, não tratamos de qualquer tipo de educação. Daí o requerimento de esforços especiais postos pelos intelectuais envolvidos com a temática. Em segundo lugar, há que haver um espaço democrático para que a dita vinculação se sustente. Nesse caso, me parece que as três noções, educação, democracia e direitos humanos, são termos intimamente imbricados. Logo, trata-se de um assunto altamente complexo que exige um enfrentamento sério, incisivo e promovido por ações empreendidas por profissionais de diversas esferas que manifestem o mesmo interesse e pelo conjunto dos sujeitos enredados no processo de formação humana político-social.

Defendendo a educação enquanto um acontecimento respaldado pelo fato associativo e imbricado por laços sociais necessários à elucidação e ao estreitamento do consenso, dos interesses comuns, do estímulo à criação e do compartilhamento de ideias entre os homens, Dewey, entretanto, salienta que:

Somos assim forçados a reconhecer que, mesmo dentro do grupo humano mais social, existem relações que não são ainda sociais. Grande número de relações em todos os grupos sociais ainda se encontra no plano das peças das máquinas. Os indivíduos utilizam-se uns dos outros para obter resultados desejados, sem atender às disposições emocionais e intelectuais e ao consentimento daqueles de quem se servem. Este uso subentende a superioridade física, ou de posição, habilidade, aptidão técnica e o domínio mecânico ou financeiro da aparelhagem ou dos instrumentos de trabalho. Enquanto estiverem neste pé as relações entre pais e filhos, professores e alunos, patrões e empregados, governantes e governados, não formarão eles verdadeiro grupo social, por mais estreitamente que se toquem suas respectivas atividades. Dar e receber ordens modifica a atividade e seus efeitos, mas por si mesmo não constitui uma coparticipação de escopos e comunicação de interesses.

(Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., p. 24)

Para que uma instituição seja reconhecida como verdadeiramente humana – e aqui me dirijo especialmente às instituições educativas –, ela precisa provocar consequências benéficas sobre a experiência consciente dos sujeitos, ampliando a sua atitude mental e social, evitando que o foco da formação seja os especialistas egoístas ou mesmo os eruditos, quando estes se tornam alheios aos demais à sua volta. Ainda, precisa diminuir espaços para o autoritarismo e o distanciamento entre a vida e a experiência real, insuflada por ensinamentos planejados de modo meramente formal e artificialmente. Se não houver comunicação, não haverá a garantia da preservação da vida social, tampouco será viável a participação de cada um no processo da experiência construída na sociedade ou na coletividade para que tal experiência expresse efetivamente o interesse comum. A educação democrática concorre para facilitar essa intrincada tarefa, mas, por outro lado, ela precisa se instituir democraticamente, de forma a corresponder aos ideais e às condições democráticas.

Como já observado, nos encontramos num impasse, para o qual Dewey oferece algumas saídas. Frente à questão sobre quando uma sociedade favorece espaços fomentadores da democracia, Dewey (1952, p. 122)Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional. reafirma que isso só pode ocorrer quando os membros do grupo social manifestem “[…] muitos interesses conscientemente comunicados e compartilhados”, permitindo o contato com variadas associações e evitando o fortalecimento de posições unilaterais. Para isso, no entanto, deve haver oportunidades iguais a todos para a exposição de variados empreendimentos, valores e experiências. “Não sendo assim”, afirma o autor, “as influências que a alguns educam para senhores, educariam a outros para escravos” (Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., p. 122). O contato de uma classe com a outra e de uma experiência entrelaçada com as várias atividades da vida evita os artificialismos, a cultura estéril, os especialismos, de um lado, e, de outro, a passividade, a massificação e a rotina. Desse modo, Dewey (1952)Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional. enfatiza a reciprocidade de interesses como a forma de combate ao pernicioso isolamento dos indivíduos uns dos outros e à privação de contatos e de troca de experiências. Deve-se estimular a mudança de perspectivas, a ampliação das relações e os modos educativos de formação para o desenvolvimento da aceitação voluntária, nutrida pelo “[…] livre intercâmbio e comunicação de experiências” (Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., p. 141), versus a imposição de autoridade externa. Nesse sentido, vale ressaltar que:

A extensão, no espaço, do número de indivíduos que participam de um mesmo interesse de tal modo que cada um tenha de pautar suas próprias ações pelas ações dos outros e de considerar as ações alheias para orientar e dirigir as suas próprias, equivale à supressão daquelas barreiras de classe, raça e território nacional que impedem que o homem perceba toda a significação e importância de sua atividade. Estes mais numerosos e variados pontos de contato denotam maior diversidade de estímulos a que um indivíduo tem de reagir; e incentivam, por conseguinte, a variação de seus atos; asseguram uma libertação de energias que ficam recalcadas enquanto são parciais e unilaterais as incitações para a ação, como ocorre com os grupos que com os seus exclusivismos fecham a porta a muitos outros interesses.

(Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., pp. 126-127, grifo nosso)

Pautado nos traços da democracia que almejava, Dewey aponta para a indústria, o comércio, as intercomunicações, a ciência, entre outros, como fatores que permitiram o deslanchar de mudanças concretas que exigiam uma nova formação com “[…] oportunidades intelectuais […] acessíveis a todos os indivíduos, com iguais facilidades para os mesmos […] educados de modo a possuírem iniciativa individual e adaptabilidade” (Dewey, 1952Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional., p. 127).

Além desses aspectos, o autor exibe outros fatores indispensáveis ao alcance do modo de vida democrático e o tanto que a educação escolar pode ajudar por meio das suas atividades ampliadas a todos e com a qualidade desejável para esse fim. Trata-se do desenvolvimento do pensamento visado ao modo do pensar reflexivo que nos capacita a nos emanciparmos das ações unicamente impulsivas e rotineiras, convertendo-as em ações inteligentes que permitem a apreensão das consequências e dos resultados daquilo que praticamos. Isso conduz ao controle da ação e ao manejo das coisas que estão ao nosso redor para que algo intencionado resulte com o sentido emanado dos elementos singulares em conexão. Essas propriedades de pensamento revelam a superação dos níveis mais elementares e ingênuos de pensar e a conquista de maior autonomia, ou seja, o sujeito se torna capaz de utilizar o que a natureza o oferece a seu favor e de descortinar o que está escondido pelos elementos poluentes, prejudiciais ao nosso entendimento da realidade.

Nada disso é possível sem a intervenção da educação e de suas preciosas orientações e conduções no tocante ao seu ensino. Dewey chama a atenção para os perigos dos equívocos e das falsas crenças que podem invadir o pensamento daquele que esteja distante de um ambiente calcado efetivamente em experiências educativas. O autor, em seu Como pensamos (1959)Dewey, J. (1959). Como pensamos (3a ed.). Nacional. e outros escritos, trata de diversos problemas que podem rondar a construção do pensamento. Sabemos que já bem antes, Francis Bacon (1973)Bacon, F. (1973). Aforismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem. In F. Bacon, Novum organum (pp.19-237). Abril Cultural., por exemplo, propôs a teoria dos ídolos ou teoria das falsas e enganosas interferências invasoras do espírito e que podem dominá-lo e bloquear a mente humana. Em outras palavras, pode ocorrer, no processo de educação, a ingerência de erros produzidos, primeiramente, pela própria natureza humana – ídolos da tribo –, e erros resultantes das peculiaridades do indivíduo, formadas pela educação, pelo seu contato com os outros, pela leitura ou pela influência de autoridades – ídolos da caverna. Ainda, há erros produzidos pela comunicação e linguagem, decorrentes do agrupamento e consórcio humanos – ídolos do foro – e aqueles advindos do espírito de uma determinada época, como explicações elaboradas pela tradição e aderidas pela credulidade, produzidas, por vezes, pelo descuido, mas revestidas de verdade filosófica ou científica – ídolos do teatro (Bacon, 1973Bacon, F. (1973). Aforismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem. In F. Bacon, Novum organum (pp.19-237). Abril Cultural.).

Na mesma tradição do empirismo inglês, encontramos John Locke (1973, pp. 139-350)Locke, J. (1973) Ensaio acerca do entendimento humano. Os pensadores (pp. 139-350). Abril Cultural., que também se preocupou com os elementos intromissores prejudiciais ao pensamento quanto à sua clareza, como a influência excessiva de pessoas escolhidas como objetos de fé em substituição aos esforços pessoais na busca de fundamentação, tendo frequentemente como resultado disso a adesão fiel e cega do sujeito à autoridade e ao estabelecido como modelo inquestionável. Outro elemento seria o uso demasiado da paixão em lugar da razão para a elaboração dos argumentos e ações e, também, a impetração de atitudes e análises parciais frente a um fenômeno ou fato. Observando as preocupações do autor inglês, Dewey adverte:

[…] se por um lado o poder do pensamento nos liberta da submissão servil ao instinto, aos apetites e à rotina, por outro nos traz, também, o ensejo e a possibilidade de cometer erros e enganos. Elevando-nos sobre os irracionais, expõe-nos a quedas a que não estão sujeitos os animais que se guiam exclusivamente pelo instinto.

(Dewey, 1959Dewey, J. (1959). Como pensamos (3a ed.). Nacional., pp. 31-32)

Interessantes as vinculações do pragmatismo deweyano com o empirismo inglês. Em relação a este, as ideias deweyanas aproveitam a valorização da experiência, por exemplo, se distanciando em alguns quesitos como no caso da ênfase que Dewey dirige à reação do sujeito em sua participação na corrente de atividades que desenvolve junto aos demais organismos que compõem o universo.

Sendo Dewey natural da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, um solo fértil para o vicejo filosófico, religioso e cultural plantado pelos seus colonizadores, ele aproveitou essas influências para refletir. A perspectiva epistemológica se tornou um forte eixo para a sua filosofia, conectando-se com suas preocupações sobre a educação, uma vez que esta se constitui, a seu ver, em um campo promissor para a aprendizagem do exercício do pensamento. Somente com o pensamento reflexivo construiremos uma sociedade democrática e provida por cidadãos responsáveis que reconhecem as consequências advindas das suas ações e recusam as posturas caprichosas que atendem precipuamente os seus próprios desejos ou as atitudes rotineiras enquanto produtos da sua passividade diante do mundo (Dewey, 1959Dewey, J. (1959). Como pensamos (3a ed.). Nacional.). A partir dessas considerações e de outros conceitos elaborados pelo autor, salienta-se, contudo, a sua posição emblemática na afirmação de que: “O espírito não é um pedaço de mata-borrão, que absorve e retém automaticamente. É, antes, um organismo vivo que precisa procurar o seu alimento, que escolhe e rejeita […]” (Dewey, 1959Dewey, J. (1959). Como pensamos (3a ed.). Nacional., pp. 258-259), que conserva o que retém, mas o transforma a seu favor. Isso significa que a vida, já no seu patamar elementar de ocorrência, demanda a atividade, a reação e a continuidade das conexões estabelecidas entre os organismos, não se configurando, portanto, como passividade do espírito. Essa qualidade seria, contrariamente, o oposto ao pensamento, um prejuízo ao juízo, à curiosidade e à aprendizagem. Com isso, percebemos que Dewey se aproxima do empirismo, por um lado, mas se distancia dele, por outro, advogando para si o empirismo ou humanismo naturalista (Dewey, 1974Dewey, J. (1974). Experiência e natureza. In W. James, J. Dewey & T. Veblen, Os pensadores (pp.159-210). Abril Cultural.).

Desnecessário supor o trabalho que a educação formal pode realizar frente a essa problemática. Comprometida com o desenvolvimento do pensamento reflexivo, a escola deve proceder os ensinamentos por meio da investigação sistemática, da verificação na busca por conhecimento e pelo enfrentamento das verdades cristalizadas, sugestão nominada por Dewey (1959)Dewey, J. (1959). Como pensamos (3a ed.). Nacional. de método da inteligência. É preciso um espírito aberto, contrário ao cultivo de preconceitos, partidarismos, indisposição e indolência cognitiva para a busca por novos problemas e ideias inovadoras. Além disso, é necessário que o indivíduo se jogue por inteiro na busca pelo conhecimento com irrestrita responsabilidade intelectual. Toda a proposta deweyana oposta à educação tradicional versa segundo esses princípios, que embasam uma nova pedagogia. No Brasil, sua teoria pedagógica foi bem recepcionada pelos chamados Pioneiros da Escola Nova, dentre os quais destacamos Teixeira, que percebe os empecilhos estruturais para a implementação da nova teoria em nosso país. Além dos traços distintivos de uma pedagogia tradicional aqui imperante, Teixeira (1971)Teixeira, A. (1971). Educação não é privilégio (3a ed.). Nacional. aponta as grandes dificuldades representadas por algumas escolas assentadas nos “privilégios” e na dotação de maiores facilidades para a aprendizagem por parte de uma porção quantitativamente pequena da população, mas poderosa nos desígnios de suas vontades de poder. Educação é direito, e não privilégio, defende.

Considerando o período de vitalidade de Freire em relação às mudanças que ele desejava implementar na educação brasileira quando ainda jovem, o educador atenta para a inexperiência democrática do Brasil (Freire, 2001Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., p. 26ss) e confessa o débito intelectual que contraiu com Teixeira (Freire, 2001Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire., pp. 12-13), que muito o ensinou a esse respeito. Além disso, o educador contribui para a discussão posterior de como tornar uma escola democrática, advogando, dentre outros fatores, em favor dos direitos e do respeito necessário que deve ser realizado no âmbito escolar, não só em relação aos estudantes, mas também em relação aos seus docentes, ou seja, defende “[…] uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética” (Freire, 1997Freire, P. (1997). Pedagogia da autonomia (58a ed.). Paz e Terra., p. 36). Para ele:

Educar é substantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado [vide as ideias citadas de Locke]. De testemunhar aos alunos, às vezes com ares de quem possui a verdade, um rotundo desacerto [vide Dewey quando defende a humildade frente às verdades e sua permanente busca]. Pensar certo, pelo contrário, demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos fatos [vide Locke quando defende a necessária amplitude da visão sobre um fato]. Supõe a disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a possibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-lo [vide Dewey, ao defender a abertura do espírito]. Mas como não há pensar certo à margem de princípios éticos, se mudar é uma possibilidade e um direito, cabe a quem muda – exige o pensar certo – que assuma a mudança operada [vide a responsabilidade intelectual apregoada por Dewey]. Do ponto de vista do pensar certo não é possível mudar e fazer de conta que não mudou. É que todo pensar certo é radicalmente coerente.

(Freire, 1997Freire, P. (1997). Pedagogia da autonomia (58a ed.). Paz e Terra., p. 37)

A partir da citação anterior, pode-se construir várias conexões entre as ideias expostas até aqui, o que possibilita desfazer de algumas dificuldades engendradas na relação entre o direito à educação e a democracia, bem como encontrar algumas saídas para a efetivação de uma escola democrática numa ambientação de igual qualidade.

Finalização

Ao propor o título Anísio Teixeira e o “direito à educação” – ideias que evocam Dewey e inspiram Freire, ou, em outras palavras, colocando Dewey em diálogo/discussão com dois intelectuais brasileiros, a intenção foi de, com a ajuda desses autores, procurar explicitar os vínculos observados entre os termos democracia, educação e direitos humanos, que, a nosso ver, são provocadores de questões teóricas ainda muito relevantes e necessárias. Contudo, conforme vimos, não se trata de relações fáceis de se estabelecer. Ao tentar analisá-las, fomos levados a enveredar por um círculo vicioso em que os termos se misturavam nas relações de interdependência, não nos permitindo definir bem claramente o lugar de cada um deles no contexto fenomênico de análise. Contudo, embora tenham sido envidados esforços para o enfrentamento dessa problemática, reconhecemos que tais dificuldades ainda aspiram maiores aprofundamentos e estudos. Trata-se, pois, de um desafio e de uma demonstração de que ainda não realizamos o grande ideal democrático sonhado há séculos, embora algumas medidas tenham sido realizadas e perseguidas. Talvez mereça importância perguntarmos sobre a real participação dos educadores para responder qual educação, de fato, é aquela mais concernente com esses ideais. E o que podemos aproveitar dos nossos grandes pensadores para, a partir deles, gerarmos a realização do que pretenderam ou uma contraproposta factível?”

Com Dewey – não por acaso apontado como um destacado filósofo da democracia na América – percebemos os elementos próprios e indispensáveis para que a democracia se concretize e se aperfeiçoe, sendo o contexto em que a educação encontra o clima orgânico para se desenvolver de igual forma, beneficiando-se dos elementos constitutivos desse modo diferenciado de vida associada dos indivíduos em cooperação, bem como, contribuindo para o fomento cada vez mais operativo e construtivo da própria democracia.

Passados 68 anos da morte de Dewey, assistimos belos argumentos em favor da democracia, que ainda está por se concretizar. Se considerarmos os liames estreitos e indissolúveis da democracia e dos direitos humanos, sendo um destes o direito à educação, tal questão, incorporada gradativamente às agendas políticas e, mais recentemente, referendada em lei em muitos países, ainda está por ser plenamente resolvida e observada por grande parte da sociedade humana, hoje global.

No Brasil, a discussão realizada na ambientação governamental sobre os direitos à educação nos mostra que o tema vem sendo surpreendentemente atacado, haja vista as políticas de enfraquecimento das instituições públicas de ensino, do fomento à pesquisa e da pouca valorização dos estudos que versem sobre teorias filosófico-pedagógicas, tomadas frequentemente como ameaças ao sistema mais conservador, que tenta ser o representante dos valores do povo. Partindo do pressuposto de que o conhecimento, a pesquisa, a ciência e a tecnologia se traduzem no mundo atual por poder, força produtiva e capacidade de inserção do homem nas diversas dimensões da realidade, Marilena Chauí (Lima & Motta, 2019Lima, H., & Motta, C. (2019, 16 outubro). Ataque à educação vai tirar o país da sociedade do conhecimento, diz Marilena Chauí. Rede Brasil Atual. https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2019/10/marilena-chaui-ataque-educacao/
https://www.redebrasilatual.com.br/polit...
) condena as medidas de contenção de recursos e limitação na expansão desses fatores. A democracia estaria colapsando? Estaríamos retornando a uma política de submissão e de privilégios? Essas são suas preocupações. Tais questionamentos nos inquietam diante das evidências de que os princípios de liberdade de expressão, de participação e de escolha estariam soçobrando frente aos ditames autoritários ou, o que poderia ser pior, implícitos em roupagens pouco afinadas aos ideais democráticos. Não obstante, sobre as preocupações com o momento atual da educação brasileira, tanto Teixeira (1969)Teixeira, A. (1969). Educação no Brasil. Nacional. quanto Freire (2001)Freire, P. (2001). Educação e atualidade brasileira. Cortez; Instituto Paulo Freire. já sinalizaram para os problemas do descaso do poder público com relação à educação pública desde longa data e o percurso de crises que a área enfrenta, nos oferecendo importantes lições.

Diante dessa realidade, Anísio Teixeira deve sempre ser lembrado por seus esforços como o intelectual e político que dedicou grande parte da sua vida mostrando a grande distância entre os segmentos carentes da sociedade brasileira e aqueles que os dirigem – fenômeno presente na história do país por longa data –, argumentando que a educação é um direito (Teixeira, 1968Teixeira, A. (1968). Educação é um direito. Nacional.) e não um privilégio de poucos. Além disso, o autor mostra que podemos criar medidas para essa correção. Já nos altos dos anos 1990, os escritos de Freire adicionaram alguns outros elementos para a análise de Teixeira, que observou que a educação vinha se constituindo numa eficaz ferramenta dos sistemas opressivos, embora mudando os modos de se manifestar e até mesmo os seus designativos. Defende, assim, o investimento num tipo de educação que inclua a todos e os liberte do regime desumanizador (Teixeira, 1968Teixeira, A. (1968). Educação é um direito. Nacional., 1971) e observa com grande interesse a questão dos direitos humanos, especialmente os direitos à educação, que vê, de modo ampliado, como o direito de ser, direito à liberdade, direito à palavra, direito do professor na formação de profissionais de acordo com sua capacidade de pesquisa e segundo os princípios que fomentam uma postura ética junto ao amor que sempre deve cimentar as relações efetivamente educativas, dentre outros.

Resta-nos perguntar, ainda nas décadas iniciais do segundo milênio: partindo das constatações aqui apresentadas, será que caminhamos razoavelmente em direção aos ideais tão bem estabelecidos e explicitados pelos autores com quem dialogamos? O que ainda nos falta? Talvez o que nos resta é manter tais indagações como um convite à resistência aos autoritarismos que frequentemente ameaçam a busca de respostas e a construção do cenário democrático de diálogo, investigação e seriedade intelectual. Os autores aqui expostos não estão isentos de críticas, como qualquer autor com quem nos ocupemos. Mas, sem dúvida, nos oferecem suas lupas interpretativas valiosíssimas para que, com elas, apontemos para a nossa dramática realidade.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Lara Nunes (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br.
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    Sobre esses fatores, tomamos como base a obra de Freire, Educação e atualidade brasileira (2001), originalmente produzida em 1959 como Tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco na então Universidade do Recife, que, desde 1965, passou a ser denominada Universidade Federal de Pernambuco. (Torres et al., 2001Torres, C. A., Gutierrez, F., Romão, J. E., Gadotti, M. & Garcia, W. E. . (2001). Prefácio. In P. Freire, Educação e atualidade brasileira (pp.9-12). Cortez; Instituto Paulo Freire.).

Referências

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  • Cunha, M. V. (1994). John Dewey: uma filosofia para educadores em sala de aula. Vozes.
  • Dewey, J. (1952). Democracia e educação (2a ed.). Nacional.
  • Dewey, J. (1959). Como pensamos (3a ed.). Nacional.
  • Dewey, J. (1974). Experiência e natureza. In W. James, J. Dewey & T. Veblen, Os pensadores (pp.159-210). Abril Cultural.
  • Freire, P. (1978). Pedagogia do oprimido (5a ed.). Paz e Terra.
  • Freire, P. (1983). Educação e mudança (12a ed.). Paz e Terra.
  • Freire, P. (1997). Pedagogia da autonomia (58a ed.). Paz e Terra.
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Editado por

1
Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2020
  • Revisado
    22 Ago 2020
  • Aceito
    25 Nov 2020
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