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A diversidade do ódio: Masaniello de Christian Weise

The Diversity of Hate in Christian Weise's Masaniello

Resumos

Este artigo pretende analisar a diversidade do ódio na peça Masaniello de Christian Weise. Com seu projeto de teatro pedagógico, o autor deseja preparar seus estudantes para as futuras atividades políticas. Isso inclui o desenvolvimento da habilidade de imaginar outros horizontes argumentativos para antecipar possíveis reações. Este artigo se concentra na configuração estética do ódio e suas implicações para o discurso político, considerando o ódio experimentado pelo clero, pela nobreza e pelo povo.

Christian Weise; Masaniello ; expressão estética do ódio; implicações políticas


This article aims to analyse the diversity of hate in Christian Weise's play Masaniello. With his project of a pedagogical theatre, the author wants to prepare his students for future political activities. This includes the development of the ability to imagine other argumentative horizons in order to anticipate possible reactions. This article concentrates on the aesthetic configuration of hate and its implications for the political discourse, taking into consideration the hate felt by members of the clergy, the nobility and the people.

Christian Weise; Masaniello ; aesthetic expression of hate; political implications


Introdução

O século XVII é um século de turbulências no espaço cultural alemão. Semelhantemente aos acontecimentos da primeira metade do século XX, o período em questão passa por guerras, ondas de fome e irrupções de violência sem igual. A Guerra dos Trinta Anos estende-se por boa parte da primeira metade do século, devastando a região e espalhando terror aos quatro ventos. O momento histórico é um momento de instabilidade política, social e humana. Diante do caos e da barbárie que acompanham a guerra, os fundamentos da sociedade veem-se estremecidos e os alicerces da segurança existencial se encontram fortemente abalados (cf. Szarota 1976Sryrocki, Marian. Die deutsche Literatur des Barock. Stuttgart, Reclam, 1994.).

A produção literária dessa época reflete as preocupações e os temores que caracterizam o período. Como em outras literaturas "nacionais", o mundo é visto como grande teatro em que seus atores são ininterruptamente atribulados pelas vicissitudes do destino, em que é preciso lembrar da efemeridade da existência, não se deixar cegar pela vaidade e manter a equanimidade a despeito das constantes atribulações que acometem o homem em seus ensaios de existência: teatrum mundi, memento mori, vanitas, constantia (Cf. Emrich 1981Emrich, Wilhelm. Deutsche Literatur der Barockzeit. Königstein, Athenäum, 1981.; Aikin 1982Aikin, Judith. German Baroque Drama. Boston, Twayne, 1982.; Bremer 2008Bremer, Kai. Literatur der Frühen Neuzeit. Paderborn, Wilhel Fink Verlag, 2008.). Diante da guerra e do caos, esses princípios formadores de visão de mundo se tornam ainda mais acentuados e demandam uma reflexão que ajude a dar conta do excesso não-compreendido.

O teatro barroco alemão reflete esses medos e coloca em cena o espetáculo dos afetos. Dominando os afetos, é possível controlar o caos e reaver a ordem perdida. No prólogo de Leo Armenius (1650), Andreas Gryphius, considerado pela historiografia literária alemã o mais importante dramaturgo da época, reflete sobre as turbulências políticas e estabelece programaticamente - aludindo à tradição aristotélica - uma das principais funções de seu teatro: "Die Alten gleichwohl haben diese art zu schreiben nicht so gar geringe gehalten/ sondern alß ein bequemes mittel menschliche Gemütter von allerhand vnartigen vnd schädlichen Neigungen zu säubern/ gerühmet" (Gryphius 1971Horn, Hans Arno. Christian Weise als Erneuerer des deutschen Gymnasiums im Zeitalter des Barock: Der 'Politicus' als Bildungsideal. Weinheim, Beltz, 1966.: 13)2 2 "Os antigos tampouco menosprezavam esse modo de escrever/ sim, o louvavam como um meio cômodo de purgar a alma humana de diversas inclinações degeneradas e prejudiciais" (Gryphius 1971: 13). Todas as traduções livres, quando não indicado de outro modo, são do autor deste artigo. . A função do teatro era, entre muitas outras coisas, também a de estabelecer uma escola das emoções. Bremer (2008: 193)Bremer, Kai. Literatur der Frühen Neuzeit. Paderborn, Wilhel Fink Verlag, 2008. escreve: "Durch die Darstellung des Grauens auf der Bühne soll der Mensch abgehärtet werden gegen die Schrecken des realen Lebens, weil er durch die Anschauung in die Lage versetzt wird, seine Affekte zu kontrollieren und zu mäßigen"3 3 "Ao encenar o terror no palco, o objetivo era preparar o ser humano para os horrores da vida real, pois ao ver a encenação era habilitado a controlar e moderar seus afetos" (Bremer 2008: 193). . Diante da incerteza que a existência impõe, faz-se necessário aprender a disciplinar as emoções que, como os acontecimentos imprevisíveis do entorno social, atribulam o ser humano e a estabilidade de sua vida.

A função didática prevista por Gryphius igualmente atraía a Christian Weise, um autor não às margens, mas menos canonizado que Gryphius. Christian Weise nasce em 1642, em Zittau, onde se torna diretor de uma escola secundária em 1678. Seu trabalho pedagógico pretende preparar os alunos para a vida profissional, atraindo, entre outros, aristocráticos que mais tarde assumem o comando político (cf. Horn 1966Lipsius, Justus. Von der Geistesstärke. De Constantia. Tradução Karl Beuth. Disponível em <http://www.lipsius-constantia.de/>. (12 Nov 2013).
Disponível em <http://www.lipsius-consta...
; Zeller 1980; Ppreuss 1998Richter, Sandra. Der herkulische Charaktertypus und seine Gegenspieler: Christian Weises Masaniello (1682/83) im europäischen Kontext. In: Steiger, Johann Anselm; Richter, Sandra; Föcking, Marc (ed.). Innovation durch Wissenstransfer in der Frühen Neuzeit: Kultur- und geistesgeschichtliche Studien zu Austauschprozessen in Mitteleuropa. Amsterdã, Rodopi, 2010, p. 17-53.). Para isso, ele anualmente escreve cerca de três peças prevendo um papel para o máximo de alunos, o que resulta em textos com um altíssimo número de personagens, com episódios, em parte, vagamente conectados e sem grande atenção às convenções de gêneros (Szyrocki 1994Thiel, Roger. Constantia oder Klassenkampf? Christian Weises Masaniello (1682) und Barthold Feinds Masagniello Furioso (1706). In: Daphnis: Zeitschrift für Mittlere Deutsche Literatur, 17 (2), 1988, p. 247-266.: 352). Sua preocupação definitivamente não reside na obediência às regras impostas pelas poéticas da época, ele acredita muito mais no potencial de transformação que o teatro e a atuação trazem consigo. Esse potencial é aproveitado, sobretudo, para a formação política, como mostra Preuss (1998: 87)Richter, Sandra. Der herkulische Charaktertypus und seine Gegenspieler: Christian Weises Masaniello (1682/83) im europäischen Kontext. In: Steiger, Johann Anselm; Richter, Sandra; Föcking, Marc (ed.). Innovation durch Wissenstransfer in der Frühen Neuzeit: Kultur- und geistesgeschichtliche Studien zu Austauschprozessen in Mitteleuropa. Amsterdã, Rodopi, 2010, p. 17-53.. Weise coloca no palco aquilo que desenvolvera teoricamente em seu tratado sobre questões políticas.

Atrelada a essa formação política, encontra-se um treinamento afetivo e uma exposição dos efeitos que as emoções podem ter sobre o comportamento. Como aponta Martino (1978: 141)Opitz, Martin. Buch von der Deutschen Poeterey. Stuttgart, Reclam, 2011. em seu estudo sobre Daniel Caspar von Lohenstein, outro grande dramaturgo da época, Justus Lipsius (2013, livro 1, capítulo 6)Luserke, Matthias. Christian Weise: Masaniello. In: Dramen vom Barock bis zur Aufklärung. Stuttgart, Reclam, 2000, p. 154-176., em seu tratado sobre a constância - um livro seminal para a compreensão do barroco alemão - defende a necessidade de desenvolver a habilidade de se manter constante mesmo diante das situações mais desestabilizadoras: "Der wahrhaft ein König, wahrhaft frei, der allein Gott Untertan ist und völlig frei vom Joch der Affekte und der schicksalhaften Umstände"4 4 "Realmente um rei, verdadeiramente livre, é aquele que é súdito somente de Deus e totalmente livre do jugo dos afetos e das circunstâncias do destino" (2013, livro 1, capítulo 6). . Livrar-se, portanto, do "jugo dos afetos" e discipliná-los, ao invés de ser dominado por eles, transforma-se numa meta essencial para a encenação de identidade e a concepção de mundo que rege o pensamento da época.

A peça Do rebelde napolitano Masaniello foi publicada juntamente com outros dois textos em 1683. Christian Weise adapta para os palcos um acontecimento histórico que se deu em 1647: um pescador de 27 anos, chamado Tommaso Aniello, lidera uma revolta contra a imposição arbitrária de impostos exigidos pelo vice-rei de Nápoles (Luserke 2000Martino, Alberto. Daniel Caspar von Lohenstein. Geschichte seiner Rezeption. Tübingen, Niemeyer, 1978.: 156). O tema calha perfeitamente no projeto de formação política de Weise: como agir diante de situações excepcionais que põem em risco o equilíbrio do bem público? Ele retoma também outro importante tópico da época, que reside no ideal da constância. O ódio do pescador Masaniello atinge todos os recantos da sociedade, forçando a todos seus membros a se posicionarem diante dos afetos que desestabilizam o espaço social. Os alunos de Weise aprendem atuando, enquanto os espectadores o fazem com a experiência estética que vivenciam no teatro.

Com 82 personagens, há representantes de todos os estratos sociais na peça. Bremer (2008: 201)Bremer, Kai. Literatur der Frühen Neuzeit. Paderborn, Wilhel Fink Verlag, 2008. aponta: "Das Stück hat damit alles, was ein Schuldrama braucht: Massenszenen, einen entsprechenden Umfang, viele Redepartien für viele Mitspieler und verschiedene Redesituationen, denen sich die Schüler anzupassen hatten"5 5 "A peça tem, com isso, tudo que um drama escolar precisa: cenas de massas, uma extensão correspondente, muitas falas para muitos atores e diversas situações de fala às quais os alunos tinham de adaptar-se" (Bremer 2008: 201). . O foco de análise deste artigo limita-se à discussão de três e recai sobre representantes de três estamentos: o arcebispo, o vice-rei e o pescador Masaniello. Diante de 82 personagens, essa redução analítica aos três protagonistas é problemática, mas necessária, dado o espaço de um artigo. Uma discussão detalhada das personagens secundárias revelaria outros aspectos importantes da obra, mas que não são levados em consideração neste artigo. Com o objetivo de refletir sobre a representação do ódio, três perguntas orientarão a análise: Como o ódio é encenado? Qual sua motivação intradiegética? E, por fim, que provável função Christian Weise atribui a esses personagens dentro de seu universo pedagógico?

Talvez a sentença de Luserke (2000: 173)Martino, Alberto. Daniel Caspar von Lohenstein. Geschichte seiner Rezeption. Tübingen, Niemeyer, 1978. que afirma que Masaniello não é um drama atual por ter sido encenado uma única vez nos últimos decênios seja rigorosa demais. Uma pergunta que a peça também levanta trata da legitimidade de certos afetos, nesse caso, do ódio. A experiência dessa emoção muito provavelmente é comum à concretização existencial humana, mas como esse ódio vem a ser encenado no espaço social depende, entre muitas outras coisas, da posição desse indivíduo nas malhas do poder e de sua capacidade discursiva de justificar seu posicionamento. Aparentemente existe uma diferença palpável entre o ódio experimentado na casa grande e aquele que surge na senzala, para usar uma imagem brasileira. Certamente, essa reflexão não estava no centro do horizonte reflexivo de Christian Weise, mas a pergunta encerra um importante potencial de reflexão para a atualidade, permitindo uma aproximação que não se limita a considerar a peça em sua historicidade, mas que tenta entrever aquilo que ela ainda tem a dizer mais de trezentos anos depois.

1 O ódio do clero

Ao mesclar os diferentes estamentos e justapor alto e baixo, Christian Weise já fere um dos principais pressupostos poéticos da época, ao menos de acordo com aquilo que Opitz, autor de um dos mais importantes compêndios poéticos da época, apregoa em Buch von der Deutschen Poeterey [Livro sobre a poesia alemã, Opitz 2011Preuss, Evelyn. Christian Weise's Masaniello: ReWriting the Peace of Westphalia. In: Focus on Literatur, 5 (2), 1998, p. 85-105.: 30]. Weise opta por deixar nobres e clérigos exporem suas falas em linguagem não rimada, violando mais um preceito que diferencia o pertencimento a um determinado estrato social. Embora a "cláusula dos estamentos" (Bartl 2009Bartl, Andrea. Die deutsche Komödie. Metamorphosen des Harlekin. Stuttgart, Reclam, 2009.: 42) seja importante, vale lembrar que os palcos "alemães" da época apresentavam grande internacionalidade (id.: 40), acolhendo elementos de diferentes tradições estéticas, especialmente do teatro inglês, que se fazia presente por meio de grupos itinerantes e que apresentava uma maior liberdade quanto aos rigorosos preceitos sobre forma, conteúdo, estilo e configuração de personagens. Com efeito, o teatro de Weise não se subordina completamente às prescrições poéticas, mas tampouco se distancia totalmente delas. Apesar de seu ímpeto subversivo, ele não ousa questionar clero, nobreza e ordem social. Dessa forma, o pensamento conservador se mantém no caráter didático da peça e se legitima pela efemeridade e o engano do mundo.

Em parte, essas opções estão atreladas a uma poética da clareza e simplicidade que vão ao encontro de seus objetivos pedagógicos (cf. Luserke 2000Martino, Alberto. Daniel Caspar von Lohenstein. Geschichte seiner Rezeption. Tübingen, Niemeyer, 1978.: 160). Assim, não cabe dúvida que Philomarini, o arcebispo de Nápoles, pertence ao rol de personagens positivas, de caráter exemplar e que incorporam o ideal de sabedoria política (cf. Battafarano 1994Battafarano, Italo Michelle. Ethik und Politik: Christian Weises Revolutionsdrama Masaniello. In: Battafarano, Michelle Italo (Ed.). Glanz des Barock. Forschungen zur deutschen als europäischer Literatur. Bern, Peter Lang, 1994, p. 47-73.: 69). Definitivamente, o arcebispo representa a personagem que melhor internalizou o ideal neo-estóico da constância, controlando suas emoções com uma destreza admirável (cf. Luserke 2000Martino, Alberto. Daniel Caspar von Lohenstein. Geschichte seiner Rezeption. Tübingen, Niemeyer, 1978.: 171). Contudo, essa capacidade incontestável de dominar e domesticar seus ímpetos emotivos não significa que não os experimente, como todas as outras personagens.

A despeito de sua aura de superioridade, também Philomarini sente ódio, mas sua figuração na realidade intradiegética passa por dois crivos que minimizam a intensidade de sua representação. O primeiro está atrelado à lógica da caracterização figural. Na função de líder religioso, o arcebispo representa um modelo de comportamento, portanto tem de apresentar uma aptidão mais desenvolvida no que concerne ao controle de suas emoções. Isso serve de instrumento de encenação dentro da realidade intradiegética, mas também de legitimação para o papel social que desempenha. Controlar as emoções encerra um instrumento de poder que o diferencia e lhe permite servir de modelo. O segundo crivo passa pelo momento de constituição da obra. Christian Weise não pode nem quer caracterizar uma personagem exemplar com máculas de caráter, tendo em vista seus objetivos pedagógicos, mas também as malhas discursivas que inibem críticas desvantajosas à igreja. Com essas duas matrizes discursivas em mente, o ódio do arcebispo se encontra suavizado, concretizando-se nas entrelinhas, remodelado e ressignificado, a fim de evitar um conflito indesejado e improdutivo para os objetivos escolares de Weise.

À primeira fala de Philomarini, antecede uma exposição detalhada sobre o conflito que atribula a cidade de Nápoles e seus habitantes. O arcebispo aparece pela primeira vez na décima sétima cena do primeiro ato, revelando suas habilidades políticas e seu raciocínio de estrategista:

Nachgeben hat seine Zeit. Vielleicht erleben wir die Zeit/ da man sich wieder auffrichten kan. Und etwas im Vertrauen gesagt: Ein Vice-Roy kan leicht im Versprechen freygebig seyn; Denn hat er zu viel gethan / so mag es der Koenig oder der Successor aendern.

Ceder tem o seu tempo. Talvez vivenciemos o tempo/ em que seja possível se erguer novamente. E entre nós: Um vice-rei pode facilmente ser generoso ao prometer; / Pois se ele fez em excesso / assim o rei ou o sucessor pode mudá-lo (2003: 46)6 6 Todas as citações seguem a edição de Fritz Martini: Weise (2003). As traduções livres são nossas. .

As primeiras linhas dessa fala apontam a um modo de pensar e se posicionar perante as turbulências sociais, arraigado no princípio da constância. A despeito das grandes reviravoltas ocasionadas pela insurreição e o risco que todos correm pela iminência de irrupções violentas, o arcebispo mantém sua capacidade de avaliação intocada, trazendo a lume a serenidade de um político nos moldes de Weise. A estratégia que ele sugere ao vice-rei indica que Philomarini, antes de mais nada, conhece a importância e as implicações das emoções para a formação de opinião e de desejo. Assim, ele não hesita em sugerir ao administrador público que faça promessas que talvez venham a exceder aquilo que de fato possa cumprir.

Seus conselhos parecem sugerir que mais importante que manter a palavra é controlar os ânimos da turba. Dessa caracterização inicial, surge a imagem de uma figura que detém um conhecimento que vai além do manuseio das ferramentas práticas de gestão pública. O arcebispo internalizou os princípios de autocontrole e de domesticação das emoções. Com base nesses saberes, ele estende sua capacidade de desencadear e antecipar reações em seus interlocutores. Philomarini se revela como o melhor administrador - "mantenedor do estado" (2003: 47)7 7 "Erhalter des Estaats" (2003: 47). - porque aprendeu a encenar suas emoções e utilizá-las como instrumento de poder.

Numa conversa com o duque de Ferrante, o arcebispo explicita suas convicções, utilizando-se de imagens da natureza a fim de ilustrar com maior clareza o que deve ser feito para dar conta da fúria do povo:

  • Ferrante: Hierdurch erweisen jhr Excellentz eine Bestendigkeit / welche von der Nach-Welt soll verwundert werden / in dem sie dem rasenden Volcke nicht alles zu Willen thun.

  • Philomarini: Ich wolte diese Tugend selber loben / wenn die Zeit so beschaffen waere / wie man wueschen moechte. Doch gewiß / wir werden auf eine Probe gesetzt / dabey die Politiqve mit jhren alten Regeln nicht zulangen wil.

  • Ferrante: Sollen wir des Volckes Sclaven werden?

  • Philomarini: Der Adel soll nichts verliehren: er soll sich nur so lange buecken / biß der Sturm-Wind vorueber geht: Als denn wird er sein Haupt so gut aufrichten koennen / als jemals.

  • Ferrante: Com isso, sua Excelência comprova sua constância / que será admirada pela posteridade / ao não fazer todas as vontades do povo furioso.

  • Philomarini: Quisera louvar essa virtude / se os tempos estivessem / como o quiséramos. Mas certamente, estamos passando por uma provação / nisso a política e suas velhas regras não são suficientes8 8 O verbo "zulangen" também poderia ser traduzido por "pôr mãos à obra", ou seja, trabalhar com afinco para mudar a situação. Essa opção me parece conter uma crítica muito forte à nobreza que acaba não sendo atualizada no contexto. A alternativa "ser suficiente" revela um tom conciliador, disposto a auxiliar e encontrar uma solução, o que o arcebispo de fato faz nas linhas subsequentes. .

  • Ferrante: Devemos nos tornar do povo escravos?

  • Philomarini: A nobreza não deve perder nada: somente deve curvar-se / até que a tempestade tenha passado: Então pode erguer sua cabeça tão bem / como jamais antes (2003: 68).

Ao contrário dos outros interlocutores, o arcebispo está acima de medos e, aparentemente, também de ódios, obtendo com isso um maior espaço para refletir sobre maneiras de administrar as dificuldades que se impõem com a revolta. Contudo, o que ensina a seu interlocutor Ferrante não consiste somente em suportar as incertezas do momento de acordo com os princípios da constância, ele sugere também, por meio de imagens inteligentemente escolhidas por sua amplitude interpretativa, que é preciso dominar a arte da dissimulação. Isto é, subjugar suas emoções de modo a ocultá-las, sem perseguir propriamente sua erradicação. Curvar-se somente diante da necessidade, a fim de se erguer com mais poder após dominar aquele que não foi capaz de ler os signos dissimulados.

Nesse diálogo, Philomarini articula um claro posicionamento político em prol da nobreza. Suas aproximações posteriores ao grupo de pescadores, em especial, seus diálogos com Masaniello, têm de ser vistos a partir desse ângulo. Pergunta-se: ele, de fato, tem qualquer empatia pelos problemas apresentados pelo pescador ou desempenha um papel a fim de garantir os interesses da nobreza? O arcebispo internalizou tão bem a arte da dissimulação e da domesticação de emoções, que, por vezes, é impossível afirmar com clareza de que lado ele se encontra. Com base nessa visão de mundo, é interessante ler essa personagem a contrapelo para identificar aquilo que se encoberta por trás da máscara. Em seus atos e na escolha de suas palavras, o arcebispo aprendeu a se curvar, não somente para suportar com maior equanimidade os acasos do destino, mas também para ocultar com maior destreza o que se passa em seu interior.

Isso se mostra de modo conspícuo, quando Masaniello proíbe o uso de vestidos longos, já que muitos de seus antagonistas se escondem sob roupas de clérigos, os quais poupava de sua perseguição. Com efeito, todos os representantes da igreja têm de trocar suas vestimentas religiosas por roupas civis (2003: 121). Socializado no princípio da constância, Philomarini articula suas emoções de forma moderada: "Ich sehe wohl / der Herr General setzt meine Freundschafft auf eine ziemlich harte Probe" (2003: 122)9 9 "Eu vejo bem / o senhor General está provando minha amizade duramente" (2003: 122). . Se o arcebispo está passando por um momento de provação, ele não se encontra num estado de serenidade. Há emoções a serem dominadas, a fim de conformá-las à imagem que Philomarini tenta encenar com suas palavras e seus atos. Ele precisa acionar todos seus mecanismos para manter o equilíbrio: "Bey solchen Zeiten muß uns die Gedult die besten Dienste thun" (2003: 122)10 10 "Nesses tempos, a paciência precisa nos prestar os melhores serviços" (2003: 122). . A ofensa é grave, pois questiona a distribuição de poder, ao forçar os clérigos a renunciar a um elemento essencial de sua representação social. Uma perda de poder ainda maior resultaria justamente de um descontrole emotivo que indicaria o abalo do arcebispo. Logo, o ódio despertado pela ofensa sofrida passa por um crivo de modelação, chegando à superfície de encenação adaptado ao papel social.

A sutileza desse ódio se mostra de modo oblíquo, numa cena que novamente envolve vestimentas. O arcebispo reúne o vice-rei e o pescador Masaniello numa igreja para firmar um acordo de paz. Os clérigos continuam usando calças, enquanto Masaniello traja roupas em que não se sente confortável:

  • Philomarini: Er hat das Kleid aus vielen Ursachen verdienet / wer von uns hochgeschaetzet wird / der darff sich selbst nicht geringe halten.

  • Masaniello: Ach jhr Leute / sehet wie wird ein ehrlicher Mann genoethiget / wieder seinen Willen stoltze Kleider zutragen: ach erbarme euch / und beter vor mich / daß ich wieder zu meinen Fischer-Hosen komme.

  • Philomarini: Ele mereceu essa vestimenta por muitos motivos / quem tem nossa estima / não pode se prezar menos.

  • Masaniello: Ah, caros senhores / vede como um homem honesto é forçado / contra a sua vontade a usar vestimentas soberbas: ah, tende piedade / e rezai por mim / para que volte às minhas calças de pescador (2003: 140).

Tendo em vista o claro posicionamento político de Philomarini e levando em conta que os clérigos continuam utilizando trajes que minoram seu poder, as palavras do arcebispo definitivamente não são sinceras. Seu ódio dissimulado é a motivação que o leva a induzir o pescador a um comportamento impróprio. As palavras de Masaniello indicam sua ingenuidade, diante da destreza emotiva do arcebispo. O pescador é vítima da vaidade, passivo em seu comportamento, pois não se apercebe de sua subjugação emotiva. Philimarini, ao contrário, é ator de uma cultura emotiva complexa, refletida e conscientemente empregada. Seu ódio é um ódio cultivado, eticamente problemático como todos os outros, porém encenado de tal forma que, à primeira vista, parece estar acima de sua mesquinhez. Sua encenação revela conhecimento e treino na arte de controlar e exprimir emoções, obedecendo sempre à necessidade do papel social e dos interesses pessoais.

Quando Masaniello o desafia novamente, subindo no púlpito ao lado do arcebispo e proferindo palavras heréticas, desta vez já enlouquecido por um veneno posto em suas bebidas, Philomarini pede que o levem a um mosteiro (2003: 169). Nesse mesmo mosteiro, Masaniello é assassinado, provavelmente sem o envolvimento do arcebispo. Este, porém, em suas falas subsequentes não lamenta os acontecimentos, nem sequer os considera dignos de comentário. Pelo contrário, comemora-os juntamente com seus aliados da nobreza, permitindo que o festejem como o salvador do reino, mas não sem encenar-se modestamente no princípio da constância (2003: 175). Definitivamente, Philomarini sente ódio como todos os outros, o que o diferencia e o legitima em seu cargo é sua capacidade de moldá-lo e encená-lo de acordo com discursos que regem a distribuição de signos de poder.

2 O ódio da nobreza

Ao contrário de Philomarini, os representantes da nobreza se mostram menos hábeis no que concerne ao domínio e à leitura das emoções. Isso não implica que sua concepção figural seja negativa. No final, a ordem se encontra restabelecida e Roderigo, o vice-rei de Nápoles, pode comemorar sua vitória, pois ele e seus companheiros da nobreza aprenderam com o exemplo do arcebispo o quão importante é modelar os ímpetos emotivos para alcançar objetivos políticos. A guerra civil se revela como chance para aprender (cf. Fischer 1995Fischer, Bernhard. Ein politisches Experiment über den Bürgerkrieg: Christian Weises 'Trauer-spiel von dem Neapolitanischen Haupt-Rebellen Masaniello'. In: Zeitschrift für Germanistik, 5 (3), 1995, p. 495-507.). Como aprendizes, ainda não dominam completamente a técnica de manipular as emoções e assim potenciar os resultados de suas ações. Desse modo, ainda não logram completamente enlear seus interlocutores com signos estrategicamente selecionados e encenados. No lugar da disciplina e da manipulação emotivas, encontram-se a imposição arbitrária e, em parte, também a violência física como formas de forçar o outro a obedecer.

O teatro pedagógico de Christian Weise representa também uma escola de sentimentos, com personagens modelares, aprendizes e aqueles cujo comportamento serve de antimodelo. Ao deixar que seus alunos representem no palco essas diferentes configurações emotivas, eles e os espectadores aprendem com os erros e os exemplos das personagens, refletindo nesse processo sobre a necessidade de moldar e ler competentemente as emoções alheias de acordo com as diferentes situações de conflito que se lhes impõem. O vice-rei e os representantes da nobreza se encontram num estágio de transição quanto à sua capacidade de configurar emoções estrategicamente. Ainda não as dominam com a maestria do arcebispo, mas já se afastaram do estado mais bruto que representa o comportamento de Masaniello e seus afiliados.

As primeiras falas do vice-rei revelam um comportamento de grande desprezo pelas visões de mundo e pelas necessidades das pessoas que o circundam. In medias res, o espectador descobre que a esposa de Roderigo está amedrontada diante da rebelião liderada pelo pescador Masaniello. O motim não ameaça somente os privilégios da nobreza, mas sobretudo a estabilidade do espaço social, trazendo consigo uma provável onda de violência. O temor, portanto, faz sentido, porém a autoconfiança do vice-rei o impede de atentar às possíveis consequências. Certo de que o poder de sua palavra é inquebrantável, ele reduz o temor de sua esposa a "von Weiblicher Schwachheit" (2003: 18)11 11 "fraquezas de mulher" (2003: 18). . Com efeito, essa primeira modalidade de interação é característica para todos os encontros posteriores em que Roderigo dialoga com outros. Seu modelo consiste em afirmar a própria convicção, sem levar em consideração a realidade do outro e ignorando completamente as emoções experimentadas por seus interlocutores. Seguro de si, ele afirma: "Der Auf-stand wird nicht so gefährlich seyn / und wenn es zum eusersten komt / so wird dem Volcke viel versprochen / das man hernach desto weniger halten darff" (2003: 19)12 12 "A rebelião não será tão perigosa / e se chegar às últimas consequências / prometer-se-á muito ao povo / o que depois deve ainda menos ser cumprido" (2003: 19). . Da mesma forma como ele simplesmente não procura compreender o medo que sua esposa lhe confessa, ele tampouco se esforça em entender as demandas do povo. Ou seja, ele permanece na convicção da legitimidade de suas emoções, sem refletir a posição alheia. Na terceira cena, ele expõe esse comportamento com ainda mais clareza, em duas falas. Na primeira, ele expõe sua opinião sobre o comportamento do pescador:

  • Roderigo: Es ist mir schon gesagt worden / daß ein naerrischer Fischer-Bube durch ungeschickte Reden den Strang verdienen wil: vielleicht eh dieser Tag vergehet / so kan jhm nach seinen Willen geschehen.

  • Roderigo: Já me disseram / que um patife-pescador louco quer merecer a corda com suas falas desajeitadas: talvez ainda antes que este dia passe / seu desejo possa ser cumprido (2003: 22).

Sem grandes rodeios, ele expressa todo o desprezo que sente por aquele que, do estamento inferior, ousa articular um desejo que não esteja dentro dos parâmetros impostos pela nobreza. A ironia utilizada para expressar essa opinião indica sua convicção de superioridade e de que sua interpretação de realidade é a única que possui validade, por isso não se deixa abalar pelos possíveis perigos inerentes à inquietude que move o pescador. Um diálogo com a realidade do outro não chega a ter lugar, já que para Roderigo a realidade é concretizada por ele mesmo, inexistindo se não for instaurada por ele ou seus pares. O modo como ele aborda as demandas do povo e a maneira como ele descreve as tentativas de articulação dessas demandas por parte de Masaniello mostram que, em sua visão de mundo, não os concebe como seres dignos de respeito ou mesmo atenção. A fala sendo "louca" e "desajeitada", ela não apresenta qualquer legitimidade, portanto não merece ser ouvida. Com isso, anula a razão inscrita nas palavras e na própria autopercepção do pescador, infantilizando-o e reduzindo-o a um boneco que se arroga o direito de fala. O modo jocoso como expressa a ameaça de condenação à morte sugere a falta de seriedade que imprime à ação, não acreditando realmente que tenha de utilizar-se desse recurso para restabelecer a estabilidade social. Ao mesmo tempo, ela dá a entender que é ele quem tem o comando sobre o corpo e a fala naquele espaço social.

Diante dessa concepção de mundo, o que adentra a consciência figural do vice-rei se concretiza como desprezo, aparentemente não em forma de ódio. O desprezo reflete a posição de superioridade em que Roderigo se crê encontrar. Desse lugar seguro, ele interpreta a situação como problema aborrecedor, oriundo de uma instância que não compreendeu a impertinência de suas demandas. Enquanto o desprezo sugere segurança a partir da convicção de superioridade, o ódio suscita a ideia de um risco pessoal e, com isso, certa igualdade posicional, nesse contexto, ao menos no tocante à legitimidade da fala. A interpretação de realidade que o vice-rei defende ainda não define o que experimenta como ódio. Este ainda se encontra mascarado em forma de desprezo.

Na segunda fala a ser analisada aqui, Roderigo começa a pensar em estratégias de manipulação do povo, mas sem se importar com as emoções que atribulam os rebeldes:

  • Roderigo: Unterdessen wuerde doch unsere Flucht den Poebel kuehne machen. Wer mitten in der Gefahr standhafftig ist / den bringet den Feind erstlich in Verwunderung / hernach in einen Zweifel / endlich in eine Furcht / daß er sich der angefangenen Frevelthat nicht unbillich schaemen mus.

  • Roderigo: Entretanto, nossa fuga deixaria o populacho audaz. Quem permanece constante em meio aos perigos / esse primeiramente deixa o inimigo admirado / depois duvidoso / e por fim amedrontado / de modo que ele tenha que envergonhar-se, não injustamente, do sacrilégio iniciado (2003: 23).

A fala indica que já internalizou o ideal da constância, compreendido por ele não como uma atitude frente às vicissitudes pessoais, mas como mecanismo político, utilizado para assegurar a posição de poder, quando esta se encontra ameaçada. Portanto, a contenção do turbilhão de ímpetos emotivos não serve para obter uma atitude equilibrada, arraigada na reflexão e no distanciamento e incluindo aí o horizonte do outro. Ela deseja antes de mais nada evocar uma impressão determinada para manipular o ódio alheio e dessa forma sufocá-lo. Nisso, Roderigo se encena no princípio de superioridade diante de seus pares: como pessoa que não se deixa levar por emoções indesejadas e, sobretudo, como aquele que detém a razão e, com isso, a legitimidade de experimentar o ódio, perante o comportamento impróprio de um estrato social que merece somente seu desprezo.

Convicto da legitimidade de suas emoções, ele utiliza palavras pejorativas para se referir aos rebeldes como "populacho" (2003: 22 e 32) ou "cachorro" (id.: 34), mantém a necessidade de iludir seus súditos com falsas promessas (id.: 30 e 32) e, por fim, sem qualquer argumentação ética, ordena que se misture ao vinho de Masaniello um líquido que deteriora suas faculdades mentais (id.: 149). O espectador recebe a informação sobre o projeto de "silenciar" a Masaniello indiretamente, por meio da filha, que entrara sem permissão no gabinete secreto do vice-rei (id.: 149). Ou seja, há toda uma preocupação com a autoencenação que procura construir uma imagem positiva, mas que, na verdade, encobre um ódio crescente pelos autores da desestabilização do poder. Quando constata que todos os métodos de controle fracassam, Roderigo já não consegue mais conter a intensidade de seu ódio:

  • Roderigo: Ey du verfluchter Bube! heist dieses den Frieden gehalten / und soll uns deine Thorheit zur eusersten Schande gereichen? auf! wer ein Adeliches Hertz im Leibe hat / der greiffe zum Gewehr / biß die gifftige Bestie vertilget ist.

  • Roderigo: Maldito patife! isso significa manter a paz / tua tolice tem o fim de nos infamar? Vamos! Quem tem um coração nobre no peito / pegue as armas / até que se acabe com a fera venenosa (id.: 163).

Seu desejo de estraçalhar a "fera" já não é fruto do desprezo, com o qual tentava se encenar anteriormente e representar sua superioridade; a gana de aniquilar o corpo do inimigo irrompe em forma de ódio. Este, contudo, apresenta uma diferença fundamental se comparado àquele que move o povo: a posição de poder que ocupa e a proteção discursiva o legitimam e lhe permitem expressá-lo abertamente. A constância, portanto, e a disciplina das emoções têm validade somente como mecanismos de poder, não como base de conduta frente ao outro. Daí a pergunta legítima que intitula o artigo de Thiel (1988)Weise, Christian. Masaniello. Hg. v. Fritz Martini. Stuttgart: Reclam, 2003.: Constância ou luta de classes? Tão logo o outro se arroga o direito de questionar a distribuição de poder, tem de contar com uma perseguição cujo fito reside em silenciar a voz subversiva. Nisso, a constância como ideal de comportamento acaba sendo menos importante.

3 O ódio do povo

Para Christian Weise, Masaniello representa uma personagem negativa, um antimodelo a ser estudado pelos alunos, a fim de expandirem seus conhecimentos sobre a dinâmica social. Ao subverter a ordem e ameaçar a estabilidade política, essa personagem hercúlea (cf. Richter 2010Szarota, Elida Maria. Geschichte, Politik und Gesellschaft im Drama des 17. Jahrhunderts. Bern, Francke, 1976.) perde toda legitimidade, ao menos aos olhos da época, de expressar sua revolta e demandar mudanças sociais que criem um espaço social mais justo. Ao contrário dos representantes do clero e da nobreza, o pescador Masaniello tem pouca experiência com as diversas formas de encenação social e, por conseguinte, também com as diferentes modalidades de concretização emocional. Como líder da revolta e como porta-voz de um grupo que raramente tem a chance de articular suas opiniões, ele se vê confrontado com situações muito mais complexas que aquelas a que estava afeito. Há, nesse encontro de interesses, uma desigualdade patente no que concerne às habilidades de expressão e encenação no palco dos conflitos políticos.

As primeiras interações ainda se concretizam no marco da humildade e do respeito, embora os representantes do povo não deem mais crédito às promessas dos governantes. Nessa aproximação, há um claro intuito de resolver o conflito, mantendo a posição de superioridade de Roderigo, mas demandando melhores condições para os rebeldes:

  • Masaniello: Hier ist das getreue Volck von Neapolis, welches vor den Koenig Gut und Blut aufsetzen will: Allein daß wir auch ins kuenfftige von den Ministern als Buerger und nicht als Hunde tractiret werden.

  • Masaniello. Aqui está o fiel povo de Nápoles que quer arriscar, pelo rei, seu sangue e seus bens: contanto que sejamos tratados também futuramente como cidadãos e não como cachorros (2003: 41).

A demanda parece justa, uma vez que se trata de impostos sobre alimentos básicos. O que desperta a ira da nobreza reside, sobretudo, no questionamento da prática política e das regras discursivas. Para Roderigo, a abordagem direta de sua pessoa, sem a observância dos trâmites protocolares que encenam claramente a disposição de poder, representa a afronta maior (id.: 41). Do seu ponto de vista, a barragem de seu corpo discursivamente santificado iguala a uma forma de violência condenável. Desse modo, os representantes do povo não tumultuam somente a organização política, mas também a disposição emotiva, claramente delineada pelas regras discursivas. Ao abordar o vice-rei diretamente, Masaniello indica que seu ódio tem direito de ser ouvido no espaço público e penetrar a concretização política que rege aquele espaço social.

Na primeira parte da exposição das personagens a representarem o povo, suas falas e exigências revelam um tom conciliador, procurando manter os afetos sob controle. Assim que Masaniello expandiu seu poder e o povo se dá conta das possibilidades de ação, há uma mudança no quadro afetivo das personagens que indica sua falta de experiência com a cultura da emoção. A troca de comportamento influencia também a percepção das demandas feitas anteriormente, suscitando um questionamento acerca de seu teor de probidade e de seu caráter justo. Essa inversão expositiva se inicia com a reação das mulheres, na família de Masaniello:

  • Zeppa: Es muste so seyn: damit werden wir zu grossen Leuten. Ach / wie wil ich nun den Bluthunden befehlen / die mich sonst vor einen Hund ansahen. In wenig Tagen soll ein Silbernes Stuecke mein geringstes Kleid seyn / und welche Perlen nicht so groß als Haselnuesse seyn / die wil ich mit Fuessen treten.

  • Zeppa: Tinha que vir assim: com isso nós vamos ser pessoas importantes. Ah / agora quero mandar nesses cachorros sanguinolentos / que me viam antes como um cachorro. Em poucos dias, meu pior vestido será uma peça de prata / e as pérolas que não forem do tamanho de uma avelã / eu quero pisar com meus pés (id.: 66).

Zeppa é a cunhada do pescador, mas o comportamento de sua esposa e de sua mãe não é diferente. Essa passagem é especialmente interessante pelos movimentos perceptivos que encerra. Na lógica intradiegética, as personagens estão embriagadas diante do repentino poder que detêm para modelar o espaço em que circulam. Como não estão afeitas às possibilidades inerentes à dinâmica do poder, são tomadas por emoções inusitadas, neste caso, também a possibilidade de expressar o ódio sem rodeios e remorsos, pois, tendo os recursos sociais e econômicos para concretizar a existência, não precisam temer o futuro. O ódio se mostra de forma bruta, não afetada nem disciplinada. Ao contrário do clero e da nobreza, os representantes do povo ainda não aprenderam a dissimular suas emoções e, com isso, utilizá-las com maior proveito como instrumento de seus interesses. Justamente essa incapacidade de modelar seus ímpetos agressivos tem de produzir uma virada perceptiva no mercado de simpatias. Ao exporem de forma tão conspícua tudo o que sentem, acabam revelando ao público aspectos demasiado negativos de seu caráter, justificando desse modo a dúvida sobre sua retidão e sobre a legitimidade das demandas realizadas.

A encenação das emoções, portanto, tem um papel essencial na lógica da imposição discursiva. Os atores sociais com um melhor preparo emotivo também são aqueles que vão instaurar os discursos a interpretarem a realidade e regerem o espaço social. As mulheres dos pescadores estão no início desse caminho e ainda precisam aprender a modelar e expressar o que sentem para obterem maior êxito na imposição de suas visões de mundo em coordenadas mais amplas da concretização existencial.

O pescador Masaniello acaba sendo vítima da mesma insuficiência, quando percebe que o aparato judiciário está em suas mãos:

  • Masaniello: So komt numehr jhr getreuen Neapolitaner / und sehet / wie sich der Staat / von eurem Vaterlande veraendert hat. Die Bluthunde liegen zu Boden / welche sich mit eurem Marcke gesaettigt haben: Und wer nunmehr die H. Justitz um Huelffe anruffen wird / der soll durch keinen unnoethigen Process aufgehalten werden.

  • Masaniello: Venham fieis napolitanos / e vejam / como o estado de sua pátria mudou. Os cães sanguinolentos estão prostrados / que se alimentavam com seu tutano: E aquele que agora invocar a ajuda da justiça / não será barrado por processos desnecessários (id.: 77).

De início, suas palavras ainda suscitam a impressão de que deseja mudar o sistema judiciário, com intuito de diminuir os problemas que acossavam a população com a administração parcial e indiferente. Contudo, quando começa a analisar os casos e emitir juízos, ele se revela tão arbitrário e incapaz quanto os administradores anteriores, com a diferença de que estes encobriam sua arbitrariedade com promessas doces, dissimulando o que sentiam, enquanto Masaniello mostra toda sua inexperiência discursiva de forma direta e sem estratégias de autoproteção. Em seu tratado sobre questões políticas, Politische Fragen (1696), Weise escreve: "wer nicht simuliren und dissimuleren kan / der wird bey der REPUBLIQUE wenig Nutzen schaffen" (apud Preuss 1998Richter, Sandra. Der herkulische Charaktertypus und seine Gegenspieler: Christian Weises Masaniello (1682/83) im europäischen Kontext. In: Steiger, Johann Anselm; Richter, Sandra; Föcking, Marc (ed.). Innovation durch Wissenstransfer in der Frühen Neuzeit: Kultur- und geistesgeschichtliche Studien zu Austauschprozessen in Mitteleuropa. Amsterdã, Rodopi, 2010, p. 17-53.: 97)13 13 "quem não sabe simular e dissimular / esse produzirá poucos benefícios na república" (apud Preuss 1998: 97). . Sua falta de experiência se mostra de modo ainda mais conspícuo na cena das vestimentas, em que, acompanhado de Philomarini e Roderigo, revela seu desajeitamento e seu discernimento restrito quanto a práticas sociais de encenação (2003: 139). Enquanto os representantes se divertem e aparentemente tentam apoiá-lo em seu novo papel social, Masaniello tropeça e se ajoelha diante do vice-rei. Esse gesto involuntário simbolicamente mostra quem detém o poder, restabelecendo já no momento da assinatura do pacto a ordem anterior, mas indica também quanto o pescador ainda tem de aprender para obter o grau de complexidade e maleabilidade comunicativa exposta pelo outros dois membros desse encontro. Ele mostra sua ingenuidade emotiva ao acreditar na aparente boa-vontade encenada nas interações e acaba sendo vítima dessa mesma insuficiência ao final, quando internado num mosteiro, recebe seus assassinos, dizendo: "Hier bin ich / jhr lieben Brueder / was habt jhr zu thun?" (id.: 172)14 14 "Aqui estou / queridos irmãos / o que vocês têm a fazer?" (2003: 172). . Diante dessa inexperiência quanto a modalidades comunicativas e perante a inabilidade de modelar suas emoções de acordo com as exigências impostas pelas práticas sociais, Masaniello fracassa e, com ele, a causa justa que defendia. Sem conhecimentos sobre como administrar e disciplinar suas emoções, sua ascensão ao poder e a inserção de sua voz no discurso formador de realidade estão pré-dispostas a fracassar, uma vez que não detém os conhecimentos necessários para visualizar o horizonte emotivo alheio e, com isso, o possível arco de ações a ser esperado. Com o restabelecimento da ordem, as demandas de Masaniello logicamente têm de ser expostas como ilegítimas. Nessa posição discursiva, ele seria o vilão.

Considerações finais

Uma frase como "Angelo: Wer das Monstrum beschuetzen will / der ist unser Feind" (2003: 171)15 15 "Angelo: quem quiser proteger o monstro / esse é nosso inimigo" (2003: 171). , dita por um dos representantes da nobreza, soa bastante atual, se pensarmos em determinados discursos políticos ou nas estratégias discursivas para legitimar guerras. O que a peça de Christian Weise indesejadamente mostra é quem nem todos tem o direito de pronunciá-la com a mesma intensidade, ou seja, a expressão do ódio que se encobre por trás das palavras está regulamentada por uma série de dispositivos sociais, regulamentando a legitimidade e o espaço da expressão dessa emoção. Talvez a sensação física do ódio materializada nos representantes dos três estamentos analisados seja bastante similar, sua concretização discursiva, contudo, se mostra diversa e perpassada por uma série de elementos que acabam remodelando o ímpeto inicial.

Os representantes mostram diferentes graus de aptidão quanto à habilidade de encenar suas emoções no espaço social, especialmente na contenda pela determinação do poder. Nisso, a capacidade de disciplinar, modelar e reconfigurar determinados ímpetos emotivos se revela como essencial, porquanto essa estratégia de representação pessoal garante um maior potencial de manipulação do outro. A imagem negativa do carvalho (Eiche) e exemplar do salgueiro (Weide) utilizada por Christian Weise em seu posfácio (2003: 179) para indicar a importância da maleabilidade na destreza política serve também para a destreza emotiva. As emoções, incluindo as negativas, não deixam de existir. O êxito político e social depende, em grande parte, da administração dessas emoções e de sua encenação adequada nos diferentes espaços do poder. Tendo essa maleabilidade, o poder está assegurado. Aqueles que não a desenvolveram necessariamente terão de pertencer ao grupo dos perdedores. Se a causa justa de Masaniello não obteve êxito, isso se deve também à sua falta de experiência no complexo processo de encenação emocional. A falta desses saberes foi determinante para a distribuição de poder.

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  • 2 "Os antigos tampouco menosprezavam esse modo de escrever/ sim, o louvavam como um meio cômodo de purgar a alma humana de diversas inclinações degeneradas e prejudiciais" (Gryphius 1971: 13). Todas as traduções livres, quando não indicado de outro modo, são do autor deste artigo.
  • 3 "Ao encenar o terror no palco, o objetivo era preparar o ser humano para os horrores da vida real, pois ao ver a encenação era habilitado a controlar e moderar seus afetos" (Bremer 2008: 193).
  • 4 "Realmente um rei, verdadeiramente livre, é aquele que é súdito somente de Deus e totalmente livre do jugo dos afetos e das circunstâncias do destino" (2013, livro 1, capítulo 6).
  • 5 "A peça tem, com isso, tudo que um drama escolar precisa: cenas de massas, uma extensão correspondente, muitas falas para muitos atores e diversas situações de fala às quais os alunos tinham de adaptar-se" (Bremer 2008: 201).
  • 6 Todas as citações seguem a edição de Fritz Martini: Weise (2003). As traduções livres são nossas.
  • 7 "Erhalter des Estaats" (2003: 47).
  • 8 O verbo "zulangen" também poderia ser traduzido por "pôr mãos à obra", ou seja, trabalhar com afinco para mudar a situação. Essa opção me parece conter uma crítica muito forte à nobreza que acaba não sendo atualizada no contexto. A alternativa "ser suficiente" revela um tom conciliador, disposto a auxiliar e encontrar uma solução, o que o arcebispo de fato faz nas linhas subsequentes.
  • 9 "Eu vejo bem / o senhor General está provando minha amizade duramente" (2003: 122).
  • 10 "Nesses tempos, a paciência precisa nos prestar os melhores serviços" (2003: 122).
  • 11 "fraquezas de mulher" (2003: 18).
  • 12 "A rebelião não será tão perigosa / e se chegar às últimas consequências / prometer-se-á muito ao povo / o que depois deve ainda menos ser cumprido" (2003: 19).
  • 13 "quem não sabe simular e dissimular / esse produzirá poucos benefícios na república" (apud Preuss 1998: 97).
  • 14 "Aqui estou / queridos irmãos / o que vocês têm a fazer?" (2003: 172).
  • 15 "Angelo: quem quiser proteger o monstro / esse é nosso inimigo" (2003: 171).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2014
  • Aceito
    08 Maio 2014
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