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Tomar o aparato: as experiências de Brecht no cinema

[Taking over the apparatus: Brecht’s cinematic experiences]

Resumo

Este artigo aborda as diversas experiências de Brecht no cinema, na elaboração de inúmeros argumentos e roteiros não filmados e em sua participação na realização de filmes como Kuhle Wampe e Os carrascos também morrem. A apresentação e a análise de tais experiências propicia-nos um conhecimento mais aprofundado das ideias e da obra de Brecht, além de uma reflexão sobre o meio cinematográfico.

Palavras-chave:
Bertolt Brecht; cinema; roteiros; Kuhle Wampe; Os carrascos também morrem

Abstract

This paper discusses Brecht's various experiences with cinema, which included the elaboration of numerous non-filmed screenplays and scripts and his participation in the making of films such as Kuhle Wampe and Hangmen also die. The presentation and analysis of such experiences provides us with a deeper understanding of Brecht's work and ideas, as well as with reflections on the cinematographic medium.

Keywords:
Bertolt Brecht; cinema; screenplays; Kuhle Wampe; Hangmen also die

1 Introdução

Bertolt Brecht é conhecido, no Brasil, sobretudo como homem de teatro: dramaturgo, teórico e encenador. No entanto, ele também foi poeta, autor de prosa em romances e contos, ensaísta, e teve experiências práticas em meios de comunicação de massa como o rádio e o cinema.

Apesar das inúmeras tentativas, no entanto, poucas foram as experiências levadas a cabo por Brecht no meio cinematográfico. Entre elas deve-se contar o curta-metragem Os mistérios de uma barbearia1 1 A tradução de citações tomadas do alemão é da autora, que agradece ao professor de alemão Peter Hilgeland por sua revisão. (Mysterien eines Frisiersalons, Bertolt Brecht, Erich Engel e Karl Valentin, 1923), o filme Kuhle Wampe (Kuhle Wampe oder: Wem gehört die Welt?, Slatan Dudow, 1932), e a escrita do argumento e do roteiro de Os carrascos também morrem (Hangmen also die, Fritz Lang, 1943). Entre as propostas que não renderam obras audiovisuais, pode-se lembrar os inúmeros argumentos elaborados em sua juventude e durante o exílio, além de uma série de debates em torno de uma versão cinematográfica de sua peça Mãe Coragem e seus filhos (1949), já durante o período do trabalho no Berliner Ensemble na Alemanha Oriental.

Neste artigo, vamos nos debruçar sobre as experiências práticas de Brecht no cinema - primeiro traçando um panorama de seus inúmeros projetos não filmados para em seguida determo-nos nos filmes Kuhle Wampe e Os carrascos também morrem -, pois suas experiências com as mídias nos ajudam não somente a refletir sobre os meios de comunicação, como a obter uma compreensão mais aprofundada acerca de seu método teatral e de suas ideias a respeito das relações entre arte e política.2 2 Este artigo se complementa com outro já publicado, também de minha autoria: “Romper a superfície da imagem - reflexões de Brecht sobre o cinema e a fotografia” Pandaemonium Germanicum, São Paulo, v. 25, n. 45, jan.-abr. 2022, p. 157-186. Para aqueles que não lêem o idioma alemão, mas sim o inglês, boa parte dos roteiros aqui comentados pode ser encontrada em Silberman (2000).

2 Projetos da juventude

Drei im Turm (1921) é uma história de triângulo amoroso, baseada numa peça de Strindberg (Dödsdansen, 1900), da qual Brecht retira alguns motivos. A mulher de um capitão, que vivia em lugar isolado, flerta com o tenente. O capitão se suicida e seu corpo desaparece. As suspeitas recaem sobre o tenente. A mulher se muda para a cidade, onde acaba na prostituição. O tenente a reencontra e a traz de volta para a torre onde antes morava, e os dois se casam. Mas o fantasma do capitão perturba a relação. Com Drei im Turm, o alvo da provocação de Brecht é o cinema expressionista, com sua tonalidade sombria e psicologizante, havendo aí também uma crítica ao cinema melodramático, abertamente parodiado. No texto, pode-se vislumbrar uma interpretação baseada nos gestos, com especial atenção à expressividade das mãos, jogos de olhar típicos da linguagem cinematográfica, além de truques de montagem como a desaparição súbita de personagens. A crítica também chamou a atenção para o uso irônico, ou até mesmo absurdo, dos intertítulos que abrem cada ato, utilizados de maneira a oferecer um comentário sobre a ação.

Der Brilliantenfresser (1921) conta uma história rocambolesca do roubo de uma pedra preciosa, que é escondida numa laranja e acaba engolida por um sujeito. A busca pela jóia é narrada em paralelo com uma perseguição policial a um jovem casal de amantes fugitivos, pois o pai da moça denunciara seu suposto rapto. Aqui, a brincadeira é com os clichês dos filmes de aventura exibidos em série nos anos 1920, com direito a um herói superforte. Propõe-se o uso de transparências para mostrar o interior da barriga do guloso engolidor de jóia. O roteiro estrutura-se na montagem alternada de ações simultâneas em diferentes espaços.

Das Mysterium der Jamaika-Bar (1921) foi elaborado para uma empresa de Munique que produzia uma série de histórias de detetive. O episódio proposto por Brecht conta a história do sequestro de mulheres burguesas por um bando de criminosos. Eles se escondem numa espécie de bar giratório, mas acabam descobertos pelo detetive Webbs. O roteiro conta com inúmeros planos ponto de vista e truques fílmicos, além de montagem alternada na cena do desfecho em que, enquanto o detetive descobre os mecanismos e alavancas que fazem mover o bar giratório, uma das mulheres, já libertada por ele, traz reforços policiais. Há elementos cômicos no roteiro - como o detetive travestido em dama burguesa - que corrompem o heroísmo associado ao gênero. Por isso deve ter sido recusado pela produtora, permanecendo como mais um dos projetos engavetados de Brecht. Neste e noutros roteiros da juventude, Brecht recorre a diversos procedimentos no sentido de minar o efeito de realidade do cinema, e propõe um uso consciente e ostensivo dos padrões genéricos (Gersch 1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.).

Antes de tais roteiros, Brecht já havia esboçado outras ideias, que menciona em seus diários, e até mesmo projetos de publicidade para a venda de produtos como chocolate, cigarro e sabonete. O texto para o anúncio de uma fictícia marca de cigarros diz: ''Febril de raiva o Sr. Caramboyelt fuma um Zambesi 40 e chega a tranquilidade risonha'' (Brecht 1997: 595). O projeto para anúncio de sabonete apresenta um casal negro: ele a ama, ela o desdenha. Ele tenta seduzi-la todo emplumado, mas nada consegue. Então toma banho com o sabonete e ela o aceita. Mas ele cai na água ensaboada e fica branco. Ela reage horrorizada e acaba por cair na água, tornando-se branca também. Então os dois devoram o sabonete. O projeto de publicidade de chocolate é o seguinte:

Navio afunda porque a tripulação está sempre a encher a cara de chocolate. A mancha de chocolate. Segunda embarcação. Homem ao mar! Ele começa a se afogar com gosto. A mão! (Bote salva-vidas) devorado ruidosamente, como barra de chocolate, por tubarão. (Brecht 1997Brecht, B. ''Mutter Courage (Drehbuch)'' [1951-1955]. In: Hecht, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K.-D. (Hg.). Bertolt Brecht - Werke, Band XX. Berlin/Weimar/Frankfurt am Main: Aufbau-Verlag/Suhrkamp, 1997, 215-384.: 595)

Como era improvável e estranho que um filme de publicidade daquele tempo se auto-ironizasse através do exagero desmedido é o que comenta Bergheim (1998Bergheim, B. ''Die Jagd nach der schnellen Mark oder der verhinderte Serienschreiber - Brechts frühe Arbeiten für den Film''. In: Becker, S. (Hg.). Jahrbuch zur Literatur der Weimarer Republik, Band 4. St. Ingbert: Röhrig Universitätsverlag, 1998, 77-99.) sobre os projetos publicitários de Brecht, com que o jovem escritor pretendia fundar o ''alicerce de seu primeiro bilhão'' (apud Duchardt 2002Duchardt, M. Herr Puntila und sein Knecht Matti [Drehbuch]. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch, Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 472-478.). De fato, os clichês da publicidade e o exotismo dos primórdios do cinema são aqui levados ao absurdo.

Em 1922, Brecht desenvolve mais um projeto para cinema: Robinsonade auf Assuncion, em parceria com Arnolt Bronnen que, no ano seguinte, irá retomar a ideia para o roteiro do filme S.O.S. Die Insel der Tränen, realizado sob a direção de Lothar Mendes. O argumento concebido por Brecht e Bronnen conta a história dos três únicos sobreviventes da destruição de uma cidade por uma erupção vulcânica, dois homens e uma mulher. A luta pela sobrevivência - e pela mulher - leva todos à destruição, sendo que, quanto maior a capacidade técnica do homem, maior o seu potencial destrutivo - no que se inverte o elogio à ''civilização'' de Robinson Crusoe (1719).

De 1923 é a experiência com Mistérios de uma barbearia. O roteiro foi escrito por Brecht em parceria com o ator Karl Valentin, por quem nutria admiração. O filme lembra o cinema burlesco do final do século XIX, é uma espécie de encenação teatral filmada por câmera posicionada frontalmente, com truques típicos do cinema grotesco estadunidense, como cabeças cortadas e coladas de volta no lugar. Trata-se, de acordo com Silberman (2002Silberman, M. Die frühen Drehbücher. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch. Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 421-432.), do produto de uma brincadeira entre amigos do teatro sem experiência no cinema. Conta-se que o diretor, Erich Engel, era um homem rico que viabilizou o filme para dar a seu irmão, um ator, a possibilidade de uma experiência de interpretação cinematográfica. Com medo de uma possível acusação de plágio que pudesse prejudicar sua carreira - pois o curta-metragem era uma espécie de refilmagem de outro já existente, ao que parece, francês - Valentin bloqueou a circulação do filme, reencontrado somente em 1974 e reconstituído, durante os anos 1990, pelo Museu de Cinema de Munique (Silberman 2002).

Ainda na segunda metade dos anos 1920 - de acordo com as pesquisas de Duchardt (2002Duchardt, M. Herr Puntila und sein Knecht Matti [Drehbuch]. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch, Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 472-478.) - Brecht elabora outros projetos para cinema, como um esboço para a dançarina Valeska Gert, e um argumento escrito em parceria com Elisabeth Hauptmann sobre a sexta feira negra de 1929, além de uma adaptação cinematográfica da peça teatral dela, Happy End (1929). O início dos anos 1930 é marcado pela escrita do roteiro Die Beule (sua própria proposta para versão cinematográfica d'A ópera dos três vinténs), o processo contra a produtora que comprara os direitos de adaptação da ópera, que resultou no ensaio ''O processo dos três vinténs'' (1931), e a experiência de Kuhle Wampe.

3 Die Beule

''Complexo dos três vinténs'' é como Wöhrle (1988Wöhrle, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.) denomina o conjunto de obras derivadas de A ópera dos três vinténs (1928), em que se incluem O romance dos três vinténs (1934), o ensaio ''O processo dos três vinténs'' (1931) e o roteiro Die Beule (O inchaço, 1930). Wöhrle não vê o romance e o roteiro como adaptações da peça teatral, mas como obras autônomas, pois justamente analisa como Brecht foi alterando seu conteúdo para manter, em cada diferente meio, o que era primordial no projeto inicial: fazer do espetáculo uma discussão e desconstrução do próprio meio - ou, de acordo com Brecht (2005a), um ''atentado à ideologia burguesa''. Para que o sentido original da Ópera dos três vinténs fosse levado aos outros meios ̶ segundo Brecht, teatro épico, cinema policial, ''experimento sociológico'', e romance realista - não era suficiente adaptar o enredo da peça ao outro meio, era necessário levar a crítica prática ou a práxis crítica a cada um deles. Assim, no caso de Die Beule, Brecht se apropria dos gêneros cinematográficos policial e romântico para demoli-los a partir de dentro, sempre jogando com as expectativas do público.

Em A ópera dos três vinténs, com o negócio de Peachum, que consiste na exploração da mendicância, introduz-se o tema da representação da miséria como mercadoria capitalista organizada. Pois Peachum vive de uma representação teatral na realidade. A representação aí se apresenta como meio para uma finalidade de lucro, em que a compaixão desempenha função essencial. Nesse negócio são mais importantes os métodos artísticos do que a biografia real de cada pedinte. O que corresponde à velha forma de teatro, que vive de gerar compaixão e da moral do espectador. Em oposição a isso, Brecht apresenta o teatro épico. Assim, A ópera dos três vinténs vale como paradigma de sua obra, deste teatro que apresenta uma nova forma ao mesmo tempo em que desnuda e desconstrói a velha forma de representação. Aí, a vontade do público é tematizada mas permanece insatisfeita. Brecht desmascara as concepções burguesas não só no conteúdo mas também na maneira como são representadas (Wöhrle 1988Wöhrle, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.) - Wöhrle faz menção a Canetti, para quem a obra opera uma verdadeira análise do receptor.

Com o sucesso da Ópera dos três vinténs, logo surge uma proposta de sua adaptação para o cinema. O filme de Pabst não corresponde de forma alguma ao proposto por Brecht. Não tendo sido aceito o roteiro Die Beule pela empresa que comprara os direitos para filmagem de A ópera dos três vinténs, Brecht o publica no terceiro caderno dos Versuche,3 3 Série de compilações organizadas pelo próprio Brecht, em que reunia ensaios teóricos e peças. ''Versuche'' quer dizer ''ensaios'' e corresponde à concepção de Brecht de sua prática artística como experimento a ser colocado à disposição de todos (Benjamin 2017). junto com ''O processo dos três vinténs'', no início de 1932, em seguida à estreia do filme de Pabst, tornando possível a comparação imaginária entre o virtual filme de Brecht e a obra realizada por Pabst (Wöhrle 1988Wöhrle, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.). Analogamente à discussão da dramaturgia da compaixão do teatro dominante, na Ópera dos três vinténs, em Die Beule são colocados em xeque motivos dos gêneros cinematográficos citados ˗ Wöhrle afirma, porém, que com maior simpatia, dada a paixão de Brecht pelo gênero policial.

O roteiro está dividido em quatro partes, cada uma delas compartimentada em sequências apresentadas com intertítulos. A primeira parte chama-se ''Amor e casamento de Polly Peachum'', e sua sequência inicial trata do primeiro encontro entre Polly e Mac. A segunda sequência da primeira parte, ''Onde há uma vontade, há um caminho'', mostra alternadamente o idílio entre Polly e Mac e os preparativos para sua festa de casamento pelo bando de Mac: eles fazem vários roubos, a fim de prover a festa e mobiliar o futuro lar dos ''pombinhos''. ''Um evento social'' é a sequência do casamento.

A segunda parte se refere ao ''Poder do rei dos mendigos''. Na primeira sequência, ''O cotidiano cinzento'', há um assalto ao negócio de Peachum. Ele descobre ser esta uma retaliação do bando de MacHeath, porque, na noite anterior, um de seus ''funcionários'' havia denunciado à polícia o roubo de um relógio. Peachum vem a saber também do súbito casamento de sua filha com alguém cujo nome ela não sabe - mas que ele, Peachum, sabe muito bem quem é. O homem que havia ''dedurado'' o roubo do relógio tem um inchaço na cabeça, pois apanhara na noite anterior. Peachum vai com ele até a delegacia para denunciar os criminosos. A próxima sequência - ''Quem é Peachum?'' - mostra o delegado a inspecionar os preparativos para o desfile da rainha, que devem transformar uma rua miserável numa florida alameda. Peachum lhe exibe seus funcionários andrajosos, realçando seu potencial perturbador. Sem alternativa, o delegado sugere a Mac o sumiço. Na sequência ''Despedida e planos'', Polly se defronta com os policiais levando embora sua mobília. Na despedida de seu marido, tem uma brilhante ideia: por que, ao invés de assaltar bancos, ele não se torna banqueiro? Ela se responsabiliza por encaminhar os negócios.

Na terceira parte, ''Brincando com fogo'', a primeira sequência, ''A histórica mudança de propriedade do National Deposit Bank'' mostra as prostitutas encontrando cartazes que pedem a cabeça de MacHeath. Enquanto isso, Polly se reúne com o bando para dar instruções sobre os novos rumos de suas atividades. A mudança de propriedade do banco é mostrada numa cena em que o bando de ladrões maltrapilhos caminha e, ao atravessarem uma linha imaginária no quadro, eles se transformam subitamente em homens de negócios burgueses. Na próxima sequência, ''O combate pela cabeça de Mac'', Peachum ameaça com uma manifestação de mendigos no desfile da rainha caso Mac não seja preso. Uma perseguição policial a Mac e suas companheiras resulta na prisão dele, contra a qual se opõe um distinto grupo de empresários, encabeçado por Polly. O delegado se justifica: ''a polícia é muito fraca contra a miséria, que é muito grande''. Ao que os empresários respondem: ''É nosso dever fazer algo contra a miséria'' - ''Fortalecer a polícia!''. Polly vai visitar o marido na cela mas encontra-o com a prostituta Jenny. Ciumentas, elas travam um duelo por seu ''macho''. Pelos jornais, Peachum descobre que a opinião pública se opõe à prisão do banqueiro MacHeath. Notando que o inchaço do pobre mendigo ''dedo-duro'' diminui, Peachum dá-lhe uma bofetada.

A última parte do filme, ''O mensageiro a cavalo de MacHeath'', começa com ''Uma noite turbulenta'', em que mendigos conclamam miseráveis nas ruas a participar da manifestação, e os funcionários de Peachum já preparam cartazes. A sra. Peachum, porém, adverte o marido de que pode ser perigoso levantar os miseráveis: o próprio casal poderia tornar-se alvo da revolta. O ''Sonho do delegado'' nos mostra um pesadelo do delegado na noite anterior ao desfile da rainha. Naquele dia, o delegado havia visto alguns sem-teto debaixo da ponte. É com eles que se inicia seu pesadelo: essas pessoas, saindo de debaixo da ponte e tomando as ruas, convertem-se numa massa de miseráveis sem rosto. As forças policiais são inúteis para contê-los. Tiros atravessam a massa transparente, que segue avançando e tomando tudo como uma torrente. Na última sequência, ''Chegam os mensageiros'', Peachum desiste da manifestação, compreendendo partilhar com a polícia o mesmo inimigo. Os empresários, Peachum e o delegado soltam MacHeath a tempo de participar do desfile da rainha e, em seu lugar, deixam na cadeia o homem com o inchaço na cabeça.

No roteiro, vemos que há uma mudança no foco do conflito entre Peachum e Macheath. Na peça, o que o motiva é o casamento de Polly - o arrimo da velhice de Peachum. Provocado por isso é que Peachum denuncia Mac à polícia, e ameaça o delegado com uma manifestação de mendigos no dia do desfile da rainha. No roteiro, um dos mendigos denuncia um ladrão do bando de Mac. Como retaliação, eles roubam Peachum, que então passa a exigir a prisão de Mac.4 4 N'O romance dos três vinténs (1934) o conflito é, naturalmente, muito mais complexo, envolvendo a concorrência em negócios como os armazéns B - lojas de escoamento de produtos de origem ilícita -, o investimento de Peachum em barcos caindo aos pedaços e seus interesses investidos em bancos, além do misterioso assassinato de uma mulher. No livro, destrói-se a personagem auto-determinada do romance burguês: o que vemos, muitas vezes, são personagens agindo de acordo com ideias que vão contra seus próprios interesses - poucas vezes fica tão claro como aqui o projeto de Brecht de desmascaramento das ideologias. Para análises do romance, ver Wöhrle (1988) e Benjamin (2017), entre outros. Para outro olhar brasileiro sobre o roteiro Die Beule, ver Gonçalo (2016). Também é de interesse assistir ao Dreigroschenfilm (2018), em que Joachin Lang encena o roteiro, cujo enredo é narrado em paralelo com a história do processo de Brecht contra a produtora que comprara os direitos de adaptação cinematográfica d'A ópera dos três vintens. Ainda que com perda da potência crítica e a discutível transfomação de Brecht em personagem-galã, o filme é interessante para uma visualização do roteiro Die Beule. Além disso, há no roteiro uma sequência inteiramente nova e bastante significativa que é aquela do pesadelo do delegado, em que esse vê a massa de miseráveis avançando pelas ruas como torrente incontrolável. O sonho é um elemento fundamental para selar a aliança entre os pólos do conflito (o bando de Mac e Peachum) contra um adversário maior e comum: o inimigo de classe.

Die Beule está escrito na forma de conto, não em formato de roteiro como os projetos da juventude de Brecht. Nesse ''conto'' pode-se notar aspectos de uma escrita literária - como pensamentos de personagens e frases irônicas - que deixam em aberto como haveriam de ser transpostos para uma obra audiovisual -, e elementos tipicamente cinematográficos, que nos permitem visualizar a obra planejada. Assim, por exemplo, vemos toda a primeira cena do ponto de vista de Mac, que observa Polly por trás e pensa que vai ''se casar com este traseiro''. Um primeiro plano de sua mão segurando Polly pelo cangote dá conta de sua abordagem ''cavalheiresca''. O som também está previsto: uma canção popular sobre certo famigerado bandido é ouvida ao fundo, em diálogo com a ação na imagem.

Além disso, geniais notas de rodapé sugerem propostas de como colocar o enredo em cena. Assim, uma nota recomenda que cada sequência da primeira parte seja elaborada com um diferente tipo de técnica, o que inclui o estilo da fotografia, o ritmo da sequência e os posicionamentos de câmera. Toda a primeira sequência deve ser filmada sem cortes e acompanhar o ponto de vista de Mac à espreita de sua ''presa''. Já a segunda sequência, que prevê montagem alternada entre o idílio e os roubos, deve ser contada em dois estilos: de um lado, imagem esmaecida, cortes suaves e, do outro, cortes rápidos e secos, imagem nítida. Já a sequência da festa de casamento deve ser mostrada numa série de quadros fixos como naturezas-mortas, pelos quais a câmera passeia ''como um sociólogo''.

Em Die Beule há o recurso ao suspense, mas não no mesmo sentido do ''comércio internacional de narcóticos''. Pois a produção do suspense é contrabalançada por sua desconstrução, realizada principalmente através dos intertítulos. O roteiro recorre a motivos conhecidos do gênero policial, como a traição entre comparsas, a concorrência entre bandos criminosos e a fuga. Há sequências de montagem paralela, gags e, como não poderia faltar, uma sequência de perseguição. Mas a perseguição não desemboca no desenlace, e consiste em um carro cheio de policiais, e outro ocupado por prostitutas. Na história, ''amor'' e negócios se complementam. O roteiro inverte a clássica conclusão do gênero policial, em que os bandidos devem ser punidos. Aqui, a luta entre os dois bandos termina sem vencidos ou vencedores, e esses, na demanda por uma vítima, se unem à polícia contra a miséria social (Wöhrle 1988Wöhrle, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.).

Como em outros roteiros de Brecht, detecta-se em Die Beule a presença de procedimentos típicos do cinema, como uso do plano ponto de vista, a contraposição entre plano e contraplano, a montagem alternada e a sequência de perseguição. Com o recurso a motivos do gênero policial, Brecht capta as expectativas do público para irritá-lo com sua versão, com o que promove uma discussão sobre o próprio meio. No gênero policial, após os crimes o status ante quem costuma ser retomado. Daí a função estabilizadora da ordem desse gênero. Em Die Beule, isso é questionado, não tomado como natural (Wöhrle 1988Wöhrle, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.).

Em Die Beule a tendência política é acentuada, de maneira a corrigir a ópera. Com a crise na Alemanha, A ópera dos três vinténs já não era suficientemente radical e, para a preservação da função social da obra em um novo aparato, era preciso transformá-la. Na apresentação do complexo Old Oakstrasse - o quarteirão miserável a ser transformado em agradável alameda -, deveria haver uma virada em direção ao documental dentro da forma narrativa fictício-satírica. O filme seria assim estilisticamente heterogêneo. Tratar-se-ia de uma obra entre lúdica e agressiva com relação aos gêneros de que se apropria, pois Brecht revela conhecimento do gênero, divertimento no seu uso e irreverência com suas regras e modos (Wöhrle 1988Wöhrle, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.). Dessa maneira - seguindo a análise de Wöhrle - Brecht encena a destruição da ideologia na forma fílmica, através de um discurso sobre o meio realizado diante dos espectadores. Brecht torna assim produtivo o primado do meio de produção sobre o fornecedor.

4 No exílio, em busca de ganha-pão (mas não só)

Já no exílio, em busca de meios de sobrevivência, Brecht desenvolve uma série de projetos: em Londres, escreve Safety first (1933), inspirado pelo livro Geschichte der grossen amerikanischen Vermögen (1916), de Gustavus Myer, do qual também toma motivos para seu Romance dos três vinténs (1934) (Hecht et al 1997Hecht, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K.-D. Kommentar. In: Bertolt Brecht - Werke, Band XX. Berlin/Weimar/Frankfurt am Main: Aufbau-Verlag/Suhrkamp, 1997, 491-628.).5 5 O texto de Brecht relata a história de um capitão de navio que põe em prática um plano de vingança depois de ser humilhado por pedir socorro para salvar os passageiros de um navio que naufragava. Em Paris, Brecht planeja uma adaptação de sua peça Os cabeças redondas e os cabeças pontudas (1934); além de uma adaptação de Michael Kohlhaas (1810), novela de Heinrich Von Kleist; em Londres, trabalha em uma adaptação da ópera Pagliacci (1892), de Leoncavallo; e, para Piscator, propõe uma adaptação de Judith (1840), de Hebbel, entre outros projetos (Duchardt 2002Duchardt, M. Herr Puntila und sein Knecht Matti [Drehbuch]. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch, Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 472-478.).

O texto Die Fliege (1938) diz respeito ao médico que dedicou-se à erradicação da febre amarela, surgida em meio aos trabalhos para abertura do canal do Panamá. Aqui, a contradição é entre a ''frieza'' com que leva a cabo os experimentos para chegar à causa da doença, e sua contribuição ao bem da humanidade; entre uma moral concebida de maneira individual ou coletiva - como em A vida de Galilei (1947), em que o homem sacrifica sua dignidade pessoal em nome da ciência. O texto foi concebido em parceria com Margarete Steffin com base nos eventos históricos reais. Mais tarde, Brecht conjecturou transformá-lo em peça infantil ou em filme (Hecht et al 1997Hecht, W.; Knopf, J.; Mittenzwei, W.; Müller, K.-D. Kommentar. In: Bertolt Brecht - Werke, Band XX. Berlin/Weimar/Frankfurt am Main: Aufbau-Verlag/Suhrkamp, 1997, 491-628.).

O período de exílio nos EUA também rendeu vários projetos cinematográficos, além do roteiro de Os carrascos também morrem (1943), dirigido por Fritz Lang. Dentre os projetos realizados em Hollywood, destacam-se biografias de homens da ciência ou dos negócios e propostas ligadas a acontecimentos políticos contemporâneos, sobretudo a luta de resistência antifascista. Die seltsame Krankheit des Herrn Henri Dunant (1942) é uma biografia de Henri Dunant, que vai à falência por sua dedicação à Cruz Vermelha, com que procura compensar sua própria atuação como homem de negócios imperialistas na África. Aqui, revela-se a contradição da prática da caridade numa sociedade em que não há lugar para isso, entre a moral concebida como ''dever'' e aquilo que é possível sob determinadas circunstâncias. Contradição que Brecht explorou em outros trabalhos, como A alma boa de Setsuan (1941).

Dentre as propostas para filmes dedicados a lutas de resistência antinazista, há uma que Brecht caracterizou como ''puramente comercial'', chamada Silent Witness (1944). Conta a história do retorno a Paris de um homem que permanecera na Inglaterra como correspondente da resistência francesa durante a ocupação nazista. Após a expulsão do exército ocupante, ele volta para participar do julgamento aos colaboradores franceses dos nazistas. Mas sua esposa torna-se suspeita, por ostentar a cabeça raspada com que foram punidas as mulheres que tiveram envolvimento com membros do exército inimigo. Após algumas peripécias, a inocência da mulher fica provada. O pano de fundo histórico e os problemas morais surgidos nesse contexto são delineados de forma genial. Mas o interessante aqui é ver como Brecht parece ter aprendido a receita hollywoodiana, oferecendo à indústria uma história em que o ''amor tudo vence''.

Com o conterrâneo Feuchtwanger, Brecht elaborou um projeto que depois resultaria em sua peça As visões de Simone Machard (1942), sobre a resistência da população francesa à ocupação nazista, e no romance Simone (1944) de Feuchtwanger - cujos direitos de adaptação cinematográfica o escritor conseguiu vender mais tarde para uma produtora, dividindo a renda com Brecht. Na peça, Simone é uma menina cujas visões, motivadas pela leitura de livro sobre Joana D'Arc, a impelem a atos de sabotagem à ocupação nazista, a uma espécie de resistência espontânea. Simone é uma entre várias personagens que figuram a resistência a partir da inocência, aparente como em Schweyk, ou real como a de Katrin de Mãe Coragem e seus filhos.

Em 1945, como participante do Council for a Democratic Germany - segundo Gersch (1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.) - Brecht planejou a realização de filmes dirigidos aos alemães prisioneiros de guerra nos EUA, por cuja conscientização demonstrou preocupação.6 6 Presume-se que Gersch tenha tomado essas informações de diários e notas pessoais de Brecht do período. Deve-se observar que a pesquisa de Gersch - de seriedade incontestável - foi realizada quando se dispunha - além do espólio de Brecht, em estado ''bruto'' - apenas da primeira edição das obras completas de Brecht, dos anos 1960, ainda muito mais incompletas do que a Grosse kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe, finalizada nos anos 1990. Tais informações também podem ser encontradas em Brecht-Chronik, importante biografia da vida profissional de Brecht (Völker 1971). Entre os planos de Brecht para o cinema encontram-se também ideias para adaptações cinematográficas de obras literárias. Macbeth, por exemplo, ganha versão contemporânea ambientada no universo do açougue (Lady Macbeth of the Yards, 1945). O projeto começa com justificativas, motivos que tornariam a proposta atraente para a indústria: é uma boa história policial, uma boa história para interpretação, oferecendo muito aos atores nos papéis principais, uma boa história de amor, em que um casal se vê unido pelo crime, enfim uma boa história, antiga mas com apelo atual. É curioso ver Brecht tratando de ''vender'' seu projeto.

O que se nota, portanto, nos projetos que Brecht esboçou nos EUA para o cinema, é que esses não foram meramente uma busca por sustento, mas sim por intervir em questões políticas prementes, com pragmatismo em relação às possíveis brechas que poderiam ser aproveitadas, como a produção antifascista de Hollywood, então em voga, ou o gênero dos ''Biopics''.

5 Na Alemanha, contribuindo para a reconstrução

Ainda antes de se restabelecer na Alemanha, Brecht elaborou os projetos Der grosse Clown Emaël (1947),7 7 Emaël é o diretor de uma trupe teatral que está montando Shakespeare, e faz tudo para satisfazer as vontades de sua esposa, inclusive tolerar seu caso com um dos atores do grupo. O affair, porém, envolve o interesse do rapaz em determinado papel. e, com Elisabeth Hauptmann, Der Mantel (1947), pensando em conferir a Peter Lorre os papéis principais, além do Eulenspiegelfilm (1948), planejado em parceria com Weisenborn, e desenvolvido posteriormente para produção pela DEFA (Deutsche Film AG), produtora estatal da Alemanha Oriental.

Der Mantel, baseado em O capote (1841), de Gógol, conta a história de um funcionário público pequeno-burguês que assume para si a ideologia burguesa. Ele nega solidariedade a um amigo que precisa pagar honorários médicos, para investir todas as suas economias num sobretudo chique. Com ele, chega a participar de uma reunião no círculo de altos funcionários, ao término do qual seu sobretudo acaba sendo levado por outro homem. Seu sonho burguês dura pouco: resfriado e humilhado, é ele agora quem não tem como pagar honorários médicos. Na história de Gógol, Brecht encontra um tema que lhe é caro: a absorção, pelas pessoas, de uma ideologia que lhes é estranha e que atenta contra seus próprios interesses.

Já o Eulenspiegelfilm é a retomada de uma narrativa popular do século XVI, cuja personagem é uma espécie de pícaro. O projeto foi desenvolvido por Brecht e Weisenborn para a DEFA com o apoio de Elisabeth Hauptmann, que realizou pesquisa histórica para fundamentar o trabalho. Nessa versão, transcorrida durante as guerras camponesas, a personagem atua no desmascaramento dos poderosos frente aos pequenos, e destes frente aos menores. Embora não seja um revolucionário, ele está do lado dos oprimidos. O projeto de Brecht e Weisenborn não foi concretizado e, por fim, a DEFA acabou fazendo um filme sobre o Eulenspiegel em 1956 com direção de Gérard Philippe, que se baseou numa versão belga do século XIX (Duchardt 2004Duchardt, M. 'Ein völlig politischer Valentin' - Das Eulenspiegel Film Projekt von B. Brecht und G. Weisenborn. In: Giesler, B. et al. (Hg.). Gelegentlich: Brecht. Heidelberg: Universitätsverlag Winter, 2004, 75-85.).

Na volta à Alemanha, após quinze anos de escrita ''para a gaveta'', a intenção de Brecht era antes a de colocar projetos já elaborados em prática do que a de formular novas propostas. Ele demonstrou interesse pelo desenvolvimento da DEFA, oferecendo sugestões de como realizar o programa institucional de promover a educação e o conhecimento ''materialista-dialético'' do passado. Nesse sentido, propôs a filmagem de grandes romances históricos, menos por seu valor de herança cultural do que pelo valor histórico-social do material, posicionando-se de maneira crítica em relação à produção de filmes históricos de tendência monumentalizante (Gersch 1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.).

O episódio mais significativo relacionado ao cinema no retorno à Alemanha foi a frustrada negociação para uma adaptação cinematográfica da peça Mãe Coragem e seus filhos. A encenação teatral havia sido um grande sucesso em 1949. A guerra fria fazia o texto recobrar sentido. Também estimulava Brecht uma autocrítica relacionada à sua insatisfação com certos aspectos da recepção da peça. A guerra dos trinta anos era vista, na literatura burguesa, como uma guerra de crenças religiosas. Na peça de Brecht, trata-se de interesses materiais. A peça retrata a guerra como continuação dos negócios por outros meios, mas os grandes negócios da guerra não são feitos por ''gente pequena''. Porém a personagem central não aprende tal ensinamento. Brecht ficara insatisfeito com a reação do público à encenação teatral, pois essa era mais de compaixão pelos sofrimentos de Courage do que de crítica ao seu comportamento, ao seu propósito de tentar extrair da guerra benefícios particulares.

Para o filme, Brecht propôs combinar a adaptação da peça com trechos documentais relativos ao momento histórico. Houve diversas controvérsias com Wolfgang Staudte, que seria o diretor da obra cinematográfica, que iam desde a elaboração do roteiro passando pela escalação do elenco e por propostas para a fotografia. Brecht queria que a imagem do filme tivesse aparência de daguerreótipo (retomando ideias expostas em ''O processo dos três vinténs''). Além disso, o cenário não deveria funcionar como pano de fundo naturalista. De acordo com Brecht, na tela só deveria aparecer aquilo que atuasse, que tivesse função significante. Um cenário atuante devia conferir ''artisticidade'' à atmosfera, Brecht se opunha a apresentar exteriores e paisagens que dessem ao visual do filme um caráter cotidiano que não correspondia à fábula e à estrutura da peça. Também não queria ver sua obra traduzida em um filme histórico monumental a cores (Gersch 1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.).

Brecht dedicou-se ao projeto entre 1951 e 1955, retrabalhando a peça escrita em 1939 e adaptada para montagem teatral em 1949. A DEFA pede esclarecimentos sobre a direção política do filme - seria apenas uma obra pacifista ou uma denúncia contra a guerra? -, e o acusa de não diferenciar guerra justa de injusta. Naquele momento o teatro de Brecht estava em descrédito: era o período do debate sobre o formalismo, em que os críticos estavam informados por concepções engessadas extraídas de Lukács e a obra de Brecht não era encenada para além do palco do Berliner Ensemble (Gersch 2004Gersch, W. Film bei Brecht oder Filmdebatte für ein neues Theater. In: Schwaiger, M. (Hg.). Brecht und Piscator - Experimentelles Theater im Berlin der Zwanzigerjahre. Wien: Verlag C. Brandstätter, 2004, 54-72.). As filmagens chegaram a ser iniciadas, mas foram interrompidas.

Na passagem da peça para o roteiro, mais peso é conferido às personagens de Ivete e Katrin. Além disso, surge uma nova personagem, Müller, moleiro que tem um envolvimento amoroso com Katrin. Müller faz declarações políticas explícitas sobre a guerra como continuação do comércio. Com tais declarações, afirma Duchardt, ''o roteiro cumpre duas importantes exigências da DEFA. Ele se refere diretamente à situação da Alemanha dividida após a guerra e enfraquece a recriminação de puro pacifismo, já que o moleiro aprova a guerra dos camponeses'' (Duchardt 2002: 470). Em tais declarações da personagem, Duchardt enxerga o perigo de o filme planejado ter vindo a tornar-se uma obra propagandista, até mesmo com ecos de realismo socialista (Hinck apud Duchardt 2002). Além disso, enquanto na peça a salvação da cidade é um acontecimento que transcorre ao fundo, no filme essa é pateticamente representada como vitória camponesa (Gersch 1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.). Para Gersch (1975), no roteiro até a personagem de Courage perderia parte de sua complexidade, por ter sua ganância mostrada de maneira mais exacerbada. Mesmo assim, algumas das ideias surgidas no processo de trabalho na adaptação são interessantes para nos aproximarmos da visão de Brecht sobre o cinema.8 8 Já o roteiro proposto por Brecht - e não levado em consideração - para a adaptação de O sr. Puntila e seu criado Matti (1948) por Alberto Cavalcanti tem sido praticamente ignorado pela fortuna crítica do escritor. Segundo Duchardt (2002), o roteiro é politicamente suavizado em relação à peça, principalmente pela omissão da personagem Roten Surkala e pelo happy end proposto para a versão cinematográfica. Durante os anos 1950, outro trabalho de Brecht para o cinema foi sua colaboração no filme de Joris Ivens, Lied der Ströme (1954), para o qual Brecht escreveu a letra da canção principal. Trata-se de um documentário, algo monumental, sobre um encontro internacional de trabalhadores sindicalistas.

Enfim, de toda essa lista de projetos - tão extensa, mesmo numa abordagem panorâmica, que não esgota todas as propostas para cinema realizadas pelo escritor9 9 ''Dois filhos'', por exemplo, publicado como conto em Histórias de almanaque (1949), era inicialmente um projeto para cinema. Relata a história de uma mãe alemã que vê seu filho no rosto de um prisioneiro de guerra russo, e decide alimentá-lo. Depois, quando o filho resolve voltar ao combate apesar de a guerra já estar perdida, a mãe o entrega aos russos como prisioneiro, querendo com isso preservar-lhe a vida. - pode-se depreender que, por interesse ou necessidade, Brecht nunca deixou de planejar trabalhos para o cinema: o que é coerente com o pensamento de um artista que sempre teve como norte atingir um público popular.

6 Kuhle Wampe

Kuhle Wampe (1932) é tido como uma das poucas experiências ''felizes'' de Brecht no cinema, em que ele não se dissociou - ou foi dissociado - do projeto durante seu processo de produção. O filme está dividido em quatro partes: a primeira delas, um ''desempregado a menos'', mostra a desenfreada busca por emprego, seguida do suicídio de um rapaz. A segunda parte mostra a mudança da família para um acampamento de trabalhadores sem-teto, após o despejo do apartamento onde moravam. A moça se enfrenta com o problema de uma gravidez não planejada, e a decisão entre o casamento ou o aborto. Na terceira parte, acompanhamos um festival esportivo e artístico de trabalhadores. O filme não termina com essa sequência, mas com uma discussão, no trem, a respeito da queima de estoques de café no Brasil em função da inflação e da crise capitalista de 1929.

A censura de Kuhle Wampe mobilizou reflexões em Brecht. Em ''Kleiner Beitrag zum Thema Realismus'' (''pequena contribuição sobre o tema do realismo'', texto datilografado de 1932, de acordo com os organizadores das obras completas de Brecht), ele afirma que o censor teria entendido o filme melhor do que os críticos mais benevolentes, pois apontou o problema da desindividualização do desempregado que se suicida. Lindner e Gerz (2002Lindner, B.; Gerz, R. Kuhle Wampe oder wem gehört die Welt. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch. Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 433-456.) opinam ser um erro tratar tal texto como documento de época, pois acreditam que tenha sido escrito posteriormente, no contexto dos debates sobre o expressionismo e como provocação a Lukács, e não como relato literal da censura. Pode até ser. Mas, ao consultar-se os documentos da censura, nota-se que a piada de Brecht tem fundamento. Enviado à censura, Kuhle Wampe é submetido à avaliação de uma instância superior, por ser considerado um filme ''acima da média''.

O censor justifica a censura enquadrando o caso em determinada lei contra obras que pudessem representar risco à ordem e à segurança públicas. Menciona que o infortúnio da família Bönicke é tratado como caso típico, não como destino individual, e que o suicídio está ligado diretamente à perda do subsídio do Estado pelo rapaz. Isso, mais a leitura mecânica de várias ordens de despejo por parte de um juiz, revelaria um Estado que não quer ou é incapaz de sanar a miséria, atender as necessidades do povo que, por sua vez, dependeria somente de si próprio e de uma revolução. O censor também põe reparos numa cena em que jovens se banham nus em um lago: por ser possível ouvir ao fundo o repicar dos sinos de uma igreja, a cena sugeriria o abandono da religião (apud Gersch e Hecht 1969Gersch, W.; Hecht, W. (Hg.). Kuhle Wampe - Protokoll des Films und Materialen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1969.).

A censura do filme gerou debate e resistência na esfera pública, tanto na imprensa de esquerda como naquela de pendor liberal. Contra a censura escreveram importantes críticos como Herbert Jhering, Rudolf Arnheim e Bernhard von Brentano que, em Die literarische Welt a 22 de abril de 1932, afirmou que para o espectador não seria novidade o que ia ver no filme, e questionou se afinal a realidade da Alemanha deveria ou não ser registrada. Em abril há um protesto contra a censura de Kuhle Wampe, organizado em conjunto pela liga pelos direitos humanos, as associações Neuen Film Gruppe e Jungen Volksbühne, além da liga de cinema independente. Em seguida, a liberação do filme com cortes é anunciada na imprensa (Gersch e Hecht 1969Gersch, W.; Hecht, W. (Hg.). Kuhle Wampe - Protokoll des Films und Materialen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1969.).

Os cortes atingem principalmente os intertítulos, fazendo com que fatos que eram explícitos no filme se tornem implícitos. Por exemplo, o letreiro que anunciava o corte do subsídio do governo para o jovem Bönicke é eliminado, como também aquele que continha um diálogo mais aberto sobre a solução do aborto. A nudez dos jovens banhando-se no lago também foi excluída, além de certos elementos de cunho político: por exemplo, o juiz a declamar mecanicamente várias ordens de despejo foi reduzido. O filme foi submetido a cortes mais de uma vez até ser finalmente liberado (Gersch e Hecht 1969Gersch, W.; Hecht, W. (Hg.). Kuhle Wampe - Protokoll des Films und Materialen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1969.).

A empresa Tobis possuía o monopólio do aparato sonoro e com isso dificultou o lançamento de Kuhle Wampe. Foram necessárias várias reuniões para que o filme fosse aprovado. Brecht comenta uma dessas reuniões a 22 de janeiro de 1932, ponto a ponto, no texto datilografado ''Film ohne Geschäftswert'' (''filme sem valor comercial''): um filme comunista não tem valor comercial porque o comunismo já não representa risco para o público burguês. Além disso, filmes de valor artístico lesam os negócios porque estragam o gosto do público, por melhorá-lo (Brecht 1992).

O filme é bem recebido em Berlim, atraindo, segundo dados de imprensa, 14 mil espectadores na primeira semana de exibição, e sendo levado a 15 salas da cidade. Até o final de 1932, é exibido também em Amsterdã, Paris e Londres. A exibição em Moscou não encontra tão boa acolhida. Os russos vêem o rapaz suicida como um homem de posses, já que é dono de uma bicicleta e de um relógio, e não compreendem sua decisão radical (Gersch e Hecht 1969Gersch, W.; Hecht, W. (Hg.). Kuhle Wampe - Protokoll des Films und Materialen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1969.). Com a chegada dos nazistas ao poder, Kuhle Wampe é proibido na Alemanha. Fica desaparecido até ser redescoberto na segunda metade dos anos 1950, na Alemanha Oriental, e, na Alemanha Ocidental, somente em 1968, pelo movimento estudantil (Lindner e Gerz 2002Lindner, B.; Gerz, R. Kuhle Wampe oder wem gehört die Welt. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch. Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 433-456.).

À sua época, o filme foi bem recebido pela crítica, apesar de algumas objeções a uma suposta idealização do proletariado em luta. Em Die Rote Fahne, a 3 de abril de 1932, num texto de Heinz Lüdecke, pode-se ler:

Sem dúvida há [entre os realizadores do filme] uma carência de experiência prática na luta cotidiana, no contato com as massas revolucionárias e suas organizações, certo desconhecimento do proletariado, que nem o mais empenhado estudo teórico pode superar, senão somente através da simultânea praxis revolucionária. (Lüdecke apud Gersch e Hecht 1969Gersch, W.; Hecht, W. (Hg.). Kuhle Wampe - Protokoll des Films und Materialen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1969.: 155/156)

Kuhle Wampe surge da iniciativa de Brecht junto a Slatan Dudow e Ernst Ottwalt, partindo de materiais já produzidos por cada qual e de uma notícia de jornal, que relatava o suicídio de um desempregado. De Brecht, o grupo toma a peça de um ato O casamento (1919). De Dudow, a experiência no documentário Como vive o trabalhador berlinense (1930) e, de Ottwalt, aproveitam o trabalho no livro Denn sie wissen, was sie tun (1931), que se debruçava sobre o universo jurídico e descrevia, em algumas passagens, as condições de vida dos desempregados.10 10 O livro é um genial ''romance de deformação'', em que acompanhamos a trajetória de um jovem jurista, desde quando ainda é um estudante de direito ''idealista'', que acredita na justiça e colabora com os Freikorps, passando por seus primeiros passos na carreira, até assentar-se na profissão quando, após algumas crises de consciência, conforma-se à real função do sistema judiciário sob o capitalismo. O livro foi baseado em pesquisa em documentação de decisões judiciais da época, e foi alvo de críticas de Lukács na revista Linkskurve, em função do recurso à montagem de documentos (Gallas 1973). Em ''Reportage oder Gestaltung?'', de 1932, Lukács comparou o livro de Ottwalt a Ressurreição (1899), de Tolstói, que cirscunscreveria melhor a totalidade histórico-social ao mostrar também o universo dos condenados pelo sistema judicial russo (Lukács 1971). Com isso em mente, pode-se ver Kuhle Wampe também como uma intervenção nos debates sobre o uso de documentos na arte. O filme conta com a participação de atores de coletivos de esquerda, entre os quais integrantes do grupo Junger Schauspieler, além da presença de um coro proletário e do grupo de agitprop Das Rote Sprachrohr. Kuhle Wampe é inicialmente produzido pela Prometheus, produtora que tinha ligação com o KPD (Partido Comunista Alemão) e com a URSS, tendo sido o seu primeiro - e único - filme sonoro de ficção.

A Prometheus surge como braço cinematográfico da Organização Internacional de Ajuda aos Trabalhadores, que fora criada para arrecadar fundos para a população em situação de penúria na URSS. Inicialmente ocupava-se com a importação e distribuição de filmes soviéticos para a Alemanha, além da produção de alguns documentários. Depois, em função de uma lei de compensação por importações, a Prometheus passa à produção de filmes de ficção (Stooss 1977; Murray 1990Murray, B. Film and the German Left in the Weimar Republic. Austin: University of Texas Press, 1990.).11 11 Willi Münzenberg, responsável pela fundação da Prometheus, foi um importante editor e ativista cultural, e um dos membros fundadores do Partido Comunista Alemão. Ele foi o principal organizador da Internationale Arbeiter Hilfe, órgão responsável pela distribuição de filmes soviéticos na Alemanha, editou a publicação Arbeiter-Illustrierte-Zeitung, de massiva difusão durante os anos 1920 e 1930 e, no exílio após a ascensão do nazismo, editou em Paris a revista Die Zukunft, em que colaboraram renomados intelectuais alemães. Para uma aproximação às ideias que o moveram à criação da Prometheus, veja-se o seu ''Erobert den Film!'', texto de 1925 (Münzenberg 1973). Kuhle Wampe, no entanto, não chega a ser finalizado pela Prometheus, que vai à falência durante o processo de produção do filme, terminado pela suíça Praesens.

Kuhle Wampe mostra a indústria cultural nascente, em um evidente diálogo com outras produções da época: para esquecer os problemas, o namorado de Anni vai assistir a Nie wieder Liebe (Anatole Litvak, 1931). Desse mesmo ano é uma película com Greta Garbo sobre Mata-Hari, a ''celebridade'' que desperta o interesse do velho. De fato, pode-se ver em Kuhle Wampe um diálogo crítico com a cinematografia da época: os chamados ''Zillefilme'' e ''Strassenfilme'', filmes de denúncia social de caráter por vezes moralizante, muitos dos quais também abordaram os problemas do desemprego e do suicídio.12 12 Strassenfilme: em tradução literal, filmes das ruas. Zillefilme: o nome faz referência a Heinrich Zille, desenhista que dedicou seu trabalho ao retrato da população empobrecida de Berlim. As expressões são usadas por Kracauer em seu livro De Caligari a Hitler, de 1947. Ambas denominações se referem à tendência de filmes que retratavam a vida miserável na Alemanha de então, reivindicando autenticidade na representação do meio social, em tom de denúncia. Para mais sobre a produção cinematográfica de esquerda na República de Weimar, ver Santana (1993) e Murray (1990). Lindner e Gerz (2002) vêem ainda, no subtítulo de Kuhle Wampe, ''Wem gehört die Welt?'' (''a quem pertence o mundo?''), uma resposta à canção nazista Es zittern die Morschen knochen, em que se apresentam os versos ''hoje nos pertence a Alemanha, amanhã, o mundo''. Mas, se comparado aos outros filmes de crítica social realizados à mesma época, vê-se que Kuhle Wampe constitui um caso à parte. Pois um filme como Mutter Krausens Fahrt ins Glück (Phil Jutzi, 1929) - exemplo entre outros - apresentava sua denúncia social através de um esquema melodramático.13 13 Para uma análise mais generosa de Mutter Krausens…, veja-se Korte (1978). Neste livro, analisa-se como o filme representa um afastamento do naturalismo de mera denúncia e representação do ''millieu'' miserável em direção a uma certa compreensão do realismo, em que as personagens encarnam tipos com diferentes respostas às condições impostas.

Em Kuhle Wampe, o suicídio logo no início do filme nega ao acontecimento qualquer efeito melodramático. Não é o ponto culminante de uma vida desgraçada em um meio pobre que o filme pretende representar de maneira naturalista: ao contrário, é o ponto de partida a partir do qual se dará a ver as causas de tais condições de vida, e as possíveis atitudes diante delas: uma reação desesperada e individual, o retrocesso a um modo de vida pequeno-burguês; ou uma saída coletiva, proletária e de luta. Em Kuhle Wampe, não se trata de mostrar circunstâncias miseráveis: sua exibição se coloca como pré-condição para uma interpretação da conjuntura, crítica e mobilizadora (Gersch 1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.).

O filme não está centrado em qualquer biografia individual, mas no comportamento das personagens inserido em um processo social maior. Na primeira parte a classe trabalhadora se sacrifica contra seus próprios interesses. Na segunda, assistimos a um desvio pequeno-burguês e, na terceira, a ação coletiva do proletariado se apresenta como forma de superação do isolamento do indivíduo. A quarta parte introduz questões da economia global. Portanto, nenhuma das personagens está no centro do filme, mas sim as condições e possibilidades do proletariado: desespero, alienação, ou luta coletiva.

Por meio dos recursos da montagem, dos gestos e da interpretação distanciada dos atores, obtém-se uma desindividualização do desempregado, que passa a representar toda uma classe. O suicídio como resposta individual à situação miserável é motivado pela incapacidade de relacionar o problema ao todo social. O filme faz com que possamos ver desemprego e falta de moradia como problemas de classe. Na sequência do festival, o esporte e a arte são apresentados como meios para a criação de formas organizativas da coletividade, e a canção da solidariedade fornece o Grundgestus.14 14 Brecht explicou, no texto ''A nova técnica da arte de representar'', de 1940, a noção de Gestus social como a ''expressão mímica e conceitual das relações sociais que se verificam entre os homens'' (Brecht s/d: 137) de determinada época. O Grundgestus seria o gesto social fundamental, ou principal, subjacente a determinada cena. Mas o filme não se encerra com essa sequência afirmativa, e a discussão do trem pressupõe um espectador pensante, capaz de posicionar-se no debate, que permanece em aberto (Gersch 1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.).

Trata-se de um filme que rompe o modelo do cinema de ficção como destino de uma constelação de personagens e com a nítida separação entre documentário e ficção (Lindner e Gerz 2002Lindner, B.; Gerz, R. Kuhle Wampe oder wem gehört die Welt. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch. Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 433-456.). A forma tipicizante do filme, por outro lado, não tem como consequência uma abdicação da individualidade das personagens, que não são mera personificação de tendências sociais. O típico e o social se vinculam de maneira dialética ao individual. Assim, por exemplo, as visões de Anni - com fraldas, preços e anúncios de produtos infantis - ao deparar-se com um grupo de crianças no momento de angústia com a gravidez não planejada são apresentadas como expressão de uma espécie de psicologia em que os conflitos internos refletem uma condição social.15 15 Perfeita ilustração dos ''clássicos'': ''Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas pelo contrário o seu ser social que determina a sua consciência'' (Marx apud Brecht 1999: 186).

Kuhle Wampe lança uma crítica à influência, no proletariado, de comportamentos e formas de pensar pequeno-burguesas. A reprodução da ideologia burguesa ou pequeno-burguesa pelo proletariado pode ser observada, por exemplo, na cena do diálogo da família à mesa, em que as condições sociais são vistas como destino, e a ideologia burguesa é reproduzida em frases feitas como ''quem trabalha duro, vai sempre adiante''.16 16 A expressão original diz: ''Wer tüchtig ist, kommt immer vorwärts''. O noivado e a festa são exemplos de relações forçadas por padrões externos de conduta, ou pautadas pela ausência de solidariedade. Mais de uma vez, os meios de comunicação de massa são apresentados como forma de alienação. O rapaz entra no cinema para não pensar nos problemas. O velho se esforça para ler sobre a vida de uma ''celebridade'', enquanto a mulher faz contas para o orçamento doméstico e as imagens nos mostram o aumento dos preços dos alimentos. Nessa cena, a montagem por colisão, entre a leitura da notícia a respeito de Mata-Hari na banda sonora e as imagens dos preços no mercado, estimula um processo de pensamento. O filme se posiciona contra a indiferença política de certas camadas, algo em que tem seu papel a ''indústria da consciência'' do capitalismo (Gersch 1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.).

Kuhle Wampe se desenvolve em forma contrapontística, em que os elementos a compor o filme - imagem e som, texto e interpretação - não trabalham de maneira reiterativa, mas separados, em conflito. A técnica épica de montagem contrapõe o dramático (enredo) ao reflexivo (canções, comentários etc) (Gersch 1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.). A câmera de maneira geral não simula um olhar, mas oferece visões de conjunto, adquirindo por vezes o caráter de imagem fixa (Lindner e Gerz 2002Lindner, B.; Gerz, R. Kuhle Wampe oder wem gehört die Welt. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch. Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 433-456.). A música é um aspecto fundamental em Kuhle Wampe: não serve a um acompanhamento impressionista do visível, mas tem função de comentário. Elaborada durante a realização do filme, e não somente ao final do processo, não foi concebida como pano de fundo. Há trechos do filme que são mesmo presididos pela música. A proposta era provocar um choque entre a composição musical e a imagem, fazer com que a música resistisse à sentimentalidade empática (Eisler apud Gersch e Hecht 1969). A literalização proposta por Brecht em seu teatro se faz presente no filme: há citações de textos - como os jornais lidos pelo pai ou por um homem no trem, o trecho de Hegel lido por um rapaz no encontro da juventude -, ou mesmo falas que são apresentadas como citações, como os ditos populares reproduzidos pela mãe, além do uso da palavra na tela, com intertítulos - típicos do cinema silencioso - e imagens de jornais.

Em Kuhle Wampe, Lindner e Gerz (2002Lindner, B.; Gerz, R. Kuhle Wampe oder wem gehört die Welt. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch. Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 433-456.) assinalam o contraponto a Menschen am Sonntag (1930), dirigido por Robert Siodmak com roteiro de Billy Wilder. Menschen am Sonntag mostra um domingo na vida berlinense, um dia de lazer. Centra-se no passeio de quatro jovens a um lago, com flertes e sexo entre dois deles. Nessa cena, um rapaz e uma moça se afastam dos outros, num bosque, brincando de pega-pega e finalmente beijando-se deitados sobre a relva. A câmera os deixa e ''passeia'' pela natureza até voltar ao casal, ele já fumando, ela ajeitando o vestido. O filme termina com a volta da semana útil, e com intertítulos que afirmam que 4 milhões de pessoas aguardam o próximo domingo. Ou seja, o mundo do trabalho está fora do filme, mais interessado numa espécie de registro do lazer e nos pequenos idílios que aí têm lugar. Se pensamos na cena em que Anni engravida em Kuhle Wampe, há aí toda uma provocação contra o erotismo vicário geralmente promovido pelo cinema. A música que acompanha - ou conduz - a cena não tem nada de romântica: é por um lado bastante explícita (''...a mão acariciante de seu amor traz um tremor aos seios da garota...'') e, por outro, em sua metáfora bem evidente, já anuncia a conseqüência do encontro (''...e o mundo dá à luz o novo, sem nenhuma precaução...''), minando qualquer possibilidade de uma relação de desejo transferido, ou de ''romantismo'' por parte do espectador.

Por fim, deve-se mencionar a crítica posterior de Kracauer, para quem haveria no filme uma glorificação impolítica da juventude que enfraqueceria o engajamento dos trabalhadores ao mostrar a diferença de atitude como conflito de geração. Tal objeção ao filme é rebatida por Lindner e Gerz (2002Lindner, B.; Gerz, R. Kuhle Wampe oder wem gehört die Welt. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch. Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 433-456.): na visão deles, essa impressão se deve a que, sem a música que deveria introduzir a parte final - a cena do trem -, seu caráter independente se borra, mas a última sequência justamente interrompe o idílio político afirmativo do festival esportivo, minando a fachada de despertar juvenil.17 17 Kracauer (2004) parece incomodar-se especialmente com a sequência da festa de noivado, afirmando que o filme chega ao cúmulo de ridicularizar a falta de boas maneiras à mesa da velha geração. Nessa cena, no entanto, não há somente membros da velha geração, mas também pessoas mais jovens. A cena introduz, de maneira radical, um estilo heterogêneo em relação ao resto do filme, e baseia-se em peça da juventude de Brecht, representativa de seu ataque ao casamento como instituição burguesa ou pequeno-burguesa. A meu ver, porém, o que chama a atenção na sequência não é tanto a falta de maneiras à mesa como a ausência de solidariedade em relação ao jovem casal em dificuldade.

Concorde-se ou não com as críticas a uma diferenciação entre as personagens baseada nas gerações e a uma possível idealização do proletariado em luta, o fato é que, para os estudiosos do teatro épico, Kuhle Wampe pode ser visto como exemplo de encenação acorde ao método de Brecht, com a relação de autonomia e contradição entre os elementos que compõem o filme, a independência entre as suas sequências, o procedimento da literalização, a tipicização social das personagens, o princípio épico do comentário, o uso de documentos, a interpretação distanciada dos atores, o desnudamento das ideologias e o foco em problemas econômicos, políticos e sociais abrangentes mais do que nos conflitos individuais das personagens.

7 Encontro de Titãs: Os carrascos também morrem

Como visto, durante o exílio as inúmeras tentativas de Brecht de trabalhar no cinema estiveram relacionadas à busca por meios de subsistência. Uma das poucas experiências que lhe rendeu algum dinheiro foi sua participação na escrita do argumento e do roteiro do filme Os carrascos também morrem (1943), dirigido por Fritz Lang. O filme trata da história, verídica, de um atentado contra o colaborador nazista no governo tcheco perpetrado pelo movimento clandestino de resistência, e da repressão que se abate em seguida sobre a população de Praga.

Por muito tempo, Os carrascos também morrem não foi tido pela fortuna crítica de Brecht como um trabalho autêntico do escritor. Descobertas da diretora de teatro, tradutora e pesquisadora Irène Bonnaud, no final dos anos 1990 no acervo de Fritz Lang depositado na universidade Southern California, e de Bernard Eisenschitz, em 1991 na Cinemateca Francesa, no entanto, comprovaram a participação de Brecht no desenvolvimento do roteiro. De acordo com Bonnaud (2001), Brecht e Lang trabalharam juntos no argumento e em seu desenvolvimento inicial. Depois Brecht deu seguimento ao trabalho com a ajuda de John Wexley para fazer a versão em inglês. Comparando o filme às versões que encontrou do roteiro, Bonnaud conclui que a diferença entre essas e a obra acabada é apenas a supressão de algumas cenas e episódios, de maneira a adequá-la aos padrões de duração de Hollywood. Ou seja, o filme é uma versão encurtada do roteiro de Brecht, não uma deformação ou reescrita do mesmo. Após a filmagem, Brecht entrou com recurso reivindicando a participação na autoria do roteiro pois, nos créditos de Os carrascos também morrem, seu nome consta apenas como autor da história original. Wexley, que ficou com o crédito pelo roteiro, era um dos fundadores do Screen Writers Guild, entidade responsável pelo julgamento do recurso de Brecht reivindicando a autoria do roteiro.18 18 Bonnaud (2001) expressa indignação frente ao fato de que a fortuna crítica de Brecht tenha acreditado, por muito tempo, que Wexley fosse o autor do roteiro, e comenta que o próprio juiz que julgou o caso afirmou, em entrevista para um livro sobre Lang, que a decisão havia sido injusta. Na opinião de Bonnaud, boa parte da crítica brechtiana teria se deixado levar pelas mentiras de Wexley por preferir acreditar que Brecht nada teve a ver com Hollywood, tomando suas incursões por lá como ganha-pão sem valor ou afirmando que seus roteiros só podiam fracassar, dada a incompatibilidade de Brecht com Hollywood. A fortuna crítica de Brecht teria alimentado o mito da existência de um roteiro ideal perdido - pois em seus diários Brecht menciona um script ideal que acentuaria as cenas com o povo - e a lenda de um Brecht estrangeiro à indústria cultural dos EUA: como teve a maior parte de suas propostas aí recusadas, Os carrascos também morrem seria uma anomalia a eliminar do corpus dos estudos brechtianos. Por outro lado, argumenta Bonnaud, entre os críticos de cinema - sem conhecimento aprofundado da literatura alemã - o filme tampouco é visto como trabalho de Brecht, mas quase sempre atribuído apenas a Lang. Talvez a fortuna crítica brechtiana tenha se pautado pelos comentários de Brecht contra Lang em seus diários. Pois aí, embora expresse desconfiança em relação a Wexley, que usa mil artimanhas para não deixar Brecht de posse de cópias do trabalho, seu desapontamento maior parece voltar-se a Lang. Em seguida ao processo pelos créditos no roteiro, Brecht se expressa de maneira muito dura sobre a experiência. Chega a afirmar, por exemplo: ''A vista da mutilação espiritual me faz muito mal: não é possível permanecer na mesma sala com esses aleijões espirituais e inválidos morais'' (Brecht 2005b: 170).

Brecht e Lang teriam tomado do programa de rádio de Milton Gunzburg, Who killed Heydrich - da série de esquetes fictícios baseados em atualidades da CBS, Big Town Stories, - alguns motivos e certos elementos da intriga do filme. De acordo com Bonnaud (2001Bonnaud, I. Brecht, période américaine. Tese de doutorado. Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001.), Os carrascos também morrem se distingue de outros filmes antifascistas de Hollywood porque, nesses, a resistência é sempre representada como o bando dos bons contra os nazistas malvados. Para a pesquisadora, a reserva de Brecht contra uma arte política ''de mensagem'' é tornada produtiva neste filme: Os carrascos também morrem não se propõe a transmitir uma mensagem positiva, mas antes a levantar um questionamento a respeito das formas de luta contra o fascismo, ao mostrar as contradições da luta de resistência, pois o atentado organizado pelo movimento clandestino conduz à repressão indiscriminada contra os cidadãos tchecos.

Segundo a opinião de Gunzburg - autor do programa de rádio que inspirou o filme, também chamado a colaborar no roteiro - a história enfraquecia a causa do povo, ao fazê-lo resolver o problema de apresentar um culpado para o atentado através de uma falsificação, da culpabilização de um inocente - mesmo que esse fosse um colaborador dos nazistas. Tal problema também foi objetado pela censura, que se opôs a que figuras positivas do filme mentissem e fingissem colaborar com a Gestapo. Lang precisou discutir a questão com o chefe da censura para que o filme fosse liberado. De toda maneira, afirma Bonnaud (2001Bonnaud, I. Brecht, période américaine. Tese de doutorado. Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001.), mesmo que o filme transmita a ideia da justeza do assassinato de Heydrich, o movimento clandestino é mostrado em suas contradições. E o que se queria acentuar, mais do que qualquer gesto heróico do movimento clandestino, era a resistência espontânea do povo, pois é sua ação conjunta que compensa os erros do movimento clandestino. Nos diários, Brecht comenta a vontade de preservar mais cenas do povo no filme, que pretendia nomear Trust the people.

De fato, nas versões do roteiro encontradas nos anos 1990, há mais cenas da resistência cotidiana do povo. Brecht chega a mencionar a ideia de publicar as cenas não incluídas no filme em suas compilações Versuche. Trata-se da mesma atitude presente em ''O processo dos três vinténs'', em que Brecht pretende demonstrar a incompatibilidade de certas experiências com o aparato (Bonnaud 2001Bonnaud, I. Brecht, période américaine. Tese de doutorado. Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001.). Por outro lado, as cenas com o povo, com tendência a multiplicar as personagens secundárias, alongariam demais o filme, para além dos padrões de duração impostos em Hollywood. Lang lutou com o produtor para manter tudo quanto era possível. Já Gunzburg queria o conflito entre os noivos como o principal elemento da trama, pois, para ele, as cenas do povo retardavam a intriga: Bonnaud (2001) afirma que, em sua ingenuidade, Gunzburg teria compreendido, mais do que a crítica posteriormente, o caráter épico do roteiro.

No filme, chama a atenção a representação não heroicizada da resistência clandestina, cujos membros são de tal maneira desprovidos de individualidade, que fica impedido qualquer sentimento de identificação com os mesmos por parte do espectador. Analogamente, o terror devia ser mostrado como sistema, não como obra de um único carrasco. Mas, por outro lado, alguns críticos franceses, citados por Bonnaud (2001Bonnaud, I. Brecht, période américaine. Tese de doutorado. Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001.),19 19 Ela se refere ao artigo de Comolli e Geré, ''Deux fictions de la haine'', publicado em duas partes nos Cahiers du Cinéma nºs 286 e 287 de 1978. comentaram que a teatralidade desmesurada com que se representa a Gestapo - com direito a um comissário divertido, interpretado por Alexander Granach - seria um elemento problemático no filme, já que os oficiais nazistas parecem ter mais existência corporal e material do que os resistentes. Porém, é na despersonalização da resistência, em que a identificação com os resistentes é negada, que o conflito com os nazistas se configura como relação de forças, e não em termos morais (Bonnaud 2001).

Brecht pretendia retratar a resistência popular tcheca, mas o interesse de Hollywood, naturalmente, recaía, na visão de Gersch (1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.), sobre o lado sensacionalista do enredo, e a obra realizada por Lang teria se tornado predominantemente um filme de ação, com tendência a dar primazia à história individual. No entanto, é visível no filme a contraposição de diferentes concepções, e a ''mão'' de Brecht pode ser reconhecida em vários elementos: o filme é construído de forma épica, com três histórias entrelaçadas - de acordo com descrição do próprio Brecht, registrada em seu diário -, centradas no atentado, no envolvimento inicialmente involuntário da moça cujo pai é tomado como refém pela polícia, e na ação de toda a cidade contra um traidor, colaborador dos nazistas20 20 Gersch publicou seu Film bei Brecht no início dos anos 1970, numa fase em que parte da fortuna crítica de Brecht ainda procurava reivindicar Os carrascos também morrem para o corpus da obra de Brecht, encontrando no filme elementos épicos que comprovassem sua participação na concepção da fita. Tal procedimento crítico pode ser observado também em Lyon (2002) e Costa (2014). Lyon chama a atenção para termos e expressões alemães no texto do filme e Iná Camargo Costa relaciona-o a outras obras de Brecht, realizadas na mesma época. E, em livro sobre Lang, Lotte Eisner (1976) vê no filme aspectos das peças didáticas de Brecht, como a relação entre indivíduo e movimento. Pois a personagem de Mascha passa por uma transformação: aos poucos, vão desaparecendo suas características individuais para ir se tornando uma ''pequena soldada'' quase anônima. (Brecht 2005).

No enredo de Os carrascos também morrem, há afinidade com o cinema policial: antes de ''malvado nazista'', Gruber é o inspetor do filme policial tradicional, estruturado segundo o modelo ''whodunit''. Se é inegável a mão de Brecht no filme, há nele também vários aspectos típicos da cinematografia languiana, em que tudo está a serviço da mecânica da fábula e funciona segundo uma lógica dedutiva, em que as personagens são vetores matemáticos, a cumprir uma função determinada (Bonnaud 2001Bonnaud, I. Brecht, période américaine. Tese de doutorado. Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001.). Uma vez esta função cumprida, já não interessam mais. É o caso da família Novotny, que some ao final do filme, ou dos resistentes, que têm valor intercambiável. Outro aspecto característico de Lang é a ideia de uma rede clandestina agindo segundo o plano de um chefe - para Bonnaud (2001), a resistência de Praga funciona segundo o modelo da rede criminosa de Dr. Mabuse (1922). Outros motivos recorrentes na obra de Lang são a transformação de um grupo de pessoas numa massa histérica e a relação entre informação e poder, entre culpa, inocência e justiça. Há assim, no filme, uma combinação entre o enredo lógico e bem amarrado de Lang e os elementos épicos a interrompê-lo, como a cena em que os presos lêem o poema que conclama à resistência.

Em Os Carrascos também morrem, ambos os lados do conflito manipulam a informação: os nazistas usam sua máquina de propaganda, quer com filmes no cinema, quer por meio do rádio, através do qual ameaçam matar reféns caso o autor do atentado não seja entregue. Da mesma forma a resistência também manipula informações: a começar pela moça que despista os nazistas, apontando para a direção errada ao indicar o paradeiro do suspeito. Mas ainda mais no plano do movimento clandestino: primeiro para forjar um romance entre a moça e o médico que realizara o atentado, depois na acusação de um falso autor para o assassinato, em que todos corroboram testemunhando em falso. Ao final - afirma Bonnaud (2001Bonnaud, I. Brecht, période américaine. Tese de doutorado. Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001.) - os nazistas são obrigados a ratificar a mentira da resistência: foram batidos no terreno da propaganda e da manipulação de informações.

Há um esquema de encenações sucessivas: a moça e o médico encenam um romance diante dos microfones instalados pelos nazistas. Depois, fazem o mesmo quando recebem a polícia em casa. A população coincide no falso testemunho contra o colaborador dos nazistas. E o movimento de resistência descobre o traidor em seu seio por meio de uma encenação: contam uma piada em alemão, fazendo-o rir, para apanhá-lo na mentira de que não entendia o idioma do ocupante. Há encenações feitas para despistar, confundir, ou para observar a reação do suspeito, por algo à prova, descobrir a verdade, como um teste, um laboratório de dedução científica. Bonnaud (2001Bonnaud, I. Brecht, période américaine. Tese de doutorado. Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001.) analisa como, nas peças e trabalhos escritos por Brecht nos EUA, há, por um lado, o teatro como desmascaramento (como na pequena encenação do juiz de O círculo de giz caucasiano, de 1949) ou, por outro, um desmascaramento do teatro como máquina de produzir mentiras (como nas ações espetaculares de Arturo Ui, de 1941). Os carrascos também morrem não escapa a esse esquema.

No roteiro há elementos que rompem a superfície mimética, fazendo emergir um padrão literário. Exemplo evidente é a canção da liberdade, publicada depois por Brecht em uma compilação de poemas - no filme trocaram-se algumas palavras da letra para que se tornassem mais ''palatáveis'' para Hollywood: ''camaradas'' por ''irmãos'', ''bandeira'' por ''tocha''. Há também a carta do pai ao filho, em que a luta antifascista é identificada à luta revolucionária, algo improvável num filme hollywoodiano (Gersch 1975Gersch, W. Film bei Brecht. Bertolt Brechts praktische und theoretische Auseinandersetzung mit dem Film. Berlin: Henschel, 1975.), e que remete a um quadro de Terror e miséria do Terceiro Reich (1938). Eisler conta ainda ter contrabandeado no filme, no coro ''Never Surrender'' do final, a citação da sua canção do Komintern, de 1929 (Gersch 1975). Com isso, afirma Gersch (1975), a ignorância de Hollywood permitiu que a metrópole capitalista do cinema produzisse um filme com apoteose identificada ao comunismo.

Este filme, produzido a partir de um encontro de titãs, certamente não se equipara às mais importantes obras de Brecht ou de Lang. No entanto, talvez seja um dos mais inteligentes filmes de guerra já produzidos em Hollywood. Pode-se pensar que, em sua frustração com a experiência hollywoodiana, Brecht tenha sido injusto com Lang. Pois justamente Lang talvez tenha sido um dos melhores exemplos de artista que conseguiu infiltrar-se na indústria e transmitir, insidiosamente, reflexões filosóficas ou políticas a partir de dentro dela - postura defendida por Brecht. Os artistas partilhavam a paixão pela lógica que preside o gênero policial e a ambição por reunir pensamento e diversão. Para citar um exemplo, uma profunda crítica ao conservadorismo estadunidense, radical e histérico, pode ser observada em Fury (1936). Noutros trabalhos de Lang, há uma discussão sobre a moral, a culpa e o crime comparável àquela de Dostoiévski, em filmes que, na superfície, aparentam ser mero entretenimento.

E também é preciso destacar que o interesse de Lang por Brecht vai muito além dessa parceria pontual. Pode-se notar uma evidente influência do teatro épico na obra de Lang: Rancho Notorious (1952), por exemplo, é pontuado por comentários épicos por meio da canção narrativa que interrompe o fluxo do filme, todo estruturado a partir de relatos de personagens, que rompem com a linearidade do enredo. Da mesma forma, American Guerrilla in the Philippines (1950) tem seu caráter épico realçado pela narração em voz over que conduz o relato. Em You and me (1938), nota-se a incorporação de motivos tomados d'A Ópera dos três vinténs, com a mocinha que se revela mulher de negócios e passa a liderar o bando de criminosos.

Portanto, vê-se que a parceria de Lang com Brecht não é exclusivamente fruto da solidariedade de migrantes exilados, mas de afinidades eletivas abertamente reconhecidas por Lang (Eisner 1976Eisner, L. Fritz Lang. London: Secker and Warburg, 1976.). Não à toa ele foi identificado pela crítica francesa como autor que teria conseguido imprimir uma marca própria dentro do cinema industrial e, em O desprezo (Jean-Luc Godard, 1963), como ator na pele do diretor de cinema, foi levado a citar uma das elegias hollywoodianas de Brecht (''a cada manhã, para ganhar meu pão…'').

8 Considerações finais

Nas propostas de Brecht para Hollywood ou para a Broadway, Bonnaud (2001Bonnaud, I. Brecht, période américaine. Tese de doutorado. Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001.) vê a estratégia de inseminar a discórdia dentro da indústria por meio de duas táticas: seja pelo envenenamento - com a injeção de um produto nocivo -, ou pelo superaquecimento - com o recurso exagerado aos padrões industriais, levando à ruína do dispositivo pelo excesso, pela indigestão. Em Os carrascos também morrem, o plano se cumpre: sob a aparência de um bem amarrado enredo policial, a mensagem subliminar de Brecht é inseminada dentro da indústria.

Já com Kuhle Wampe, Brecht exercita uma estratégia quase oposta: trabalha num esquema de produção coletiva, à margem da indústria, na criação de uma experiência paradigmática para o cinema militante de ficção. Nesses filmes, e também nos roteiros e argumentos que não saíram do papel, observam-se alguns princípios fundamentais da obra de Brecht, como o diálogo crítico com os condicionamentos do público, a tentativa de demolir gêneros consolidados a partir de dentro e a desconstrução das ideologias. Mas também, sobretudo, verifica-se a sua recusa a encastelar-se na torre de marfim, rejeitando a indústria cultural: pois, afinal, a liberdade do artista de ''prescindir dos novos instrumentos de trabalho é o mesmo que lhe apontar uma liberdade fora do processo de produção'' (Brecht 2005a: 81).

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  • Este artigo é resultado parcial de pesquisa desenvolvida com o apoio da FAPESP e da CAPES (processo FAPESP 2016/13249-5). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES.
  • 1
    A tradução de citações tomadas do alemão é da autora, que agradece ao professor de alemão Peter Hilgeland por sua revisão.
  • 2
    Este artigo se complementa com outro já publicado, também de minha autoria: “Romper a superfície da imagem - reflexões de Brecht sobre o cinema e a fotografia” Pandaemonium Germanicum, São Paulo, v. 25, n. 45, jan.-abr. 2022, p. 157-186. Para aqueles que não lêem o idioma alemão, mas sim o inglês, boa parte dos roteiros aqui comentados pode ser encontrada em Silberman (2000Silberman, M. (ed.). Brecht on film and radio. London: Methuen, 2000.).
  • 3
    Série de compilações organizadas pelo próprio Brecht, em que reunia ensaios teóricos e peças. ''Versuche'' quer dizer ''ensaios'' e corresponde à concepção de Brecht de sua prática artística como experimento a ser colocado à disposição de todos (Benjamin 2017Benjamin, W. Ensaios sobre Brecht [1930-1939]. Tradução de Claudia Abeling. São Paulo: Boitempo, 2017.).
  • 4
    N'O romance dos três vinténs (1934) o conflito é, naturalmente, muito mais complexo, envolvendo a concorrência em negócios como os armazéns B - lojas de escoamento de produtos de origem ilícita -, o investimento de Peachum em barcos caindo aos pedaços e seus interesses investidos em bancos, além do misterioso assassinato de uma mulher. No livro, destrói-se a personagem auto-determinada do romance burguês: o que vemos, muitas vezes, são personagens agindo de acordo com ideias que vão contra seus próprios interesses - poucas vezes fica tão claro como aqui o projeto de Brecht de desmascaramento das ideologias. Para análises do romance, ver Wöhrle (1988Wöhrle, D. Bertolt Brechts medienästetische Versuche. Köln: Prometh, 1988.) e Benjamin (2017Benjamin, W. Ensaios sobre Brecht [1930-1939]. Tradução de Claudia Abeling. São Paulo: Boitempo, 2017.), entre outros. Para outro olhar brasileiro sobre o roteiro Die Beule, ver Gonçalo (2016Gonçalo, P. As letras exiladas: Brecht, Scott Fitzgerald e rastros de escritores-roteiristas nos anos 30. In: O cinema como refúgio da escrita. São Paulo: Anna Blume, 2016, 43-91.). Também é de interesse assistir ao Dreigroschenfilm (2018), em que Joachin Lang encena o roteiro, cujo enredo é narrado em paralelo com a história do processo de Brecht contra a produtora que comprara os direitos de adaptação cinematográfica d'A ópera dos três vintens. Ainda que com perda da potência crítica e a discutível transfomação de Brecht em personagem-galã, o filme é interessante para uma visualização do roteiro Die Beule.
  • 5
    O texto de Brecht relata a história de um capitão de navio que põe em prática um plano de vingança depois de ser humilhado por pedir socorro para salvar os passageiros de um navio que naufragava.
  • 6
    Presume-se que Gersch tenha tomado essas informações de diários e notas pessoais de Brecht do período. Deve-se observar que a pesquisa de Gersch - de seriedade incontestável - foi realizada quando se dispunha - além do espólio de Brecht, em estado ''bruto'' - apenas da primeira edição das obras completas de Brecht, dos anos 1960, ainda muito mais incompletas do que a Grosse kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe, finalizada nos anos 1990. Tais informações também podem ser encontradas em Brecht-Chronik, importante biografia da vida profissional de Brecht (Völker 1971Völker, K. Brecht-Chronik. München: Carl Hansen Verlag, 1971.).
  • 7
    Emaël é o diretor de uma trupe teatral que está montando Shakespeare, e faz tudo para satisfazer as vontades de sua esposa, inclusive tolerar seu caso com um dos atores do grupo. O affair, porém, envolve o interesse do rapaz em determinado papel.
  • 8
    Já o roteiro proposto por Brecht - e não levado em consideração - para a adaptação de O sr. Puntila e seu criado Matti (1948) por Alberto Cavalcanti tem sido praticamente ignorado pela fortuna crítica do escritor. Segundo Duchardt (2002Duchardt, M. Herr Puntila und sein Knecht Matti [Drehbuch]. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch, Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 472-478.), o roteiro é politicamente suavizado em relação à peça, principalmente pela omissão da personagem Roten Surkala e pelo happy end proposto para a versão cinematográfica. Durante os anos 1950, outro trabalho de Brecht para o cinema foi sua colaboração no filme de Joris Ivens, Lied der Ströme (1954), para o qual Brecht escreveu a letra da canção principal. Trata-se de um documentário, algo monumental, sobre um encontro internacional de trabalhadores sindicalistas.
  • 9
    ''Dois filhos'', por exemplo, publicado como conto em Histórias de almanaque (1949), era inicialmente um projeto para cinema. Relata a história de uma mãe alemã que vê seu filho no rosto de um prisioneiro de guerra russo, e decide alimentá-lo. Depois, quando o filho resolve voltar ao combate apesar de a guerra já estar perdida, a mãe o entrega aos russos como prisioneiro, querendo com isso preservar-lhe a vida.
  • 10
    O livro é um genial ''romance de deformação'', em que acompanhamos a trajetória de um jovem jurista, desde quando ainda é um estudante de direito ''idealista'', que acredita na justiça e colabora com os Freikorps, passando por seus primeiros passos na carreira, até assentar-se na profissão quando, após algumas crises de consciência, conforma-se à real função do sistema judiciário sob o capitalismo. O livro foi baseado em pesquisa em documentação de decisões judiciais da época, e foi alvo de críticas de Lukács na revista Linkskurve, em função do recurso à montagem de documentos (Gallas 1973Gallas, H. Teoría marxista de la literatura. Tradução de R. Alcalde. Buenos Aires: Siglo XXI, 1973.). Em ''Reportage oder Gestaltung?'', de 1932, Lukács comparou o livro de Ottwalt a Ressurreição (1899), de Tolstói, que cirscunscreveria melhor a totalidade histórico-social ao mostrar também o universo dos condenados pelo sistema judicial russo (Lukács 1971). Com isso em mente, pode-se ver Kuhle Wampe também como uma intervenção nos debates sobre o uso de documentos na arte.
  • 11
    Willi Münzenberg, responsável pela fundação da Prometheus, foi um importante editor e ativista cultural, e um dos membros fundadores do Partido Comunista Alemão. Ele foi o principal organizador da Internationale Arbeiter Hilfe, órgão responsável pela distribuição de filmes soviéticos na Alemanha, editou a publicação Arbeiter-Illustrierte-Zeitung, de massiva difusão durante os anos 1920 e 1930 e, no exílio após a ascensão do nazismo, editou em Paris a revista Die Zukunft, em que colaboraram renomados intelectuais alemães. Para uma aproximação às ideias que o moveram à criação da Prometheus, veja-se o seu ''Erobert den Film!'', texto de 1925 (Münzenberg 1973).
  • 12
    Strassenfilme: em tradução literal, filmes das ruas. Zillefilme: o nome faz referência a Heinrich Zille, desenhista que dedicou seu trabalho ao retrato da população empobrecida de Berlim. As expressões são usadas por Kracauer em seu livro De Caligari a Hitler, de 1947. Ambas denominações se referem à tendência de filmes que retratavam a vida miserável na Alemanha de então, reivindicando autenticidade na representação do meio social, em tom de denúncia. Para mais sobre a produção cinematográfica de esquerda na República de Weimar, ver Santana (1993Santana, I.E.A. O cinema operário na República de Weimar. São Paulo: UNESP, 1993.) e Murray (1990Murray, B. Film and the German Left in the Weimar Republic. Austin: University of Texas Press, 1990.). Lindner e Gerz (2002Lindner, B.; Gerz, R. Kuhle Wampe oder wem gehört die Welt. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch. Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 433-456.) vêem ainda, no subtítulo de Kuhle Wampe, ''Wem gehört die Welt?'' (''a quem pertence o mundo?''), uma resposta à canção nazista Es zittern die Morschen knochen, em que se apresentam os versos ''hoje nos pertence a Alemanha, amanhã, o mundo''.
  • 13
    Para uma análise mais generosa de Mutter Krausens…, veja-se Korte (1978Korte, H. (Hg). Film und Realität in der Weimarer Republik. München/Wien: Carl Hanser Verlag, 1978.). Neste livro, analisa-se como o filme representa um afastamento do naturalismo de mera denúncia e representação do ''millieu'' miserável em direção a uma certa compreensão do realismo, em que as personagens encarnam tipos com diferentes respostas às condições impostas.
  • 14
    Brecht explicou, no texto ''A nova técnica da arte de representar'', de 1940, a noção de Gestus social como a ''expressão mímica e conceitual das relações sociais que se verificam entre os homens'' (Brecht s/d: 137) de determinada época. O Grundgestus seria o gesto social fundamental, ou principal, subjacente a determinada cena.
  • 15
    Perfeita ilustração dos ''clássicos'': ''Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas pelo contrário o seu ser social que determina a sua consciência'' (Marx apud Brecht 1999Brecht, B. A compra do latão [1939-1955]. Tradução de U. Zuber e P. Berndt. Évora: Vega, 1999.: 186).
  • 16
    A expressão original diz: ''Wer tüchtig ist, kommt immer vorwärts''.
  • 17
    Kracauer (2004Kracauer, S. From Caligari to Hitler - a Psychological History of the German Film [1947]. Princeton: Princeton University Press, 2004.) parece incomodar-se especialmente com a sequência da festa de noivado, afirmando que o filme chega ao cúmulo de ridicularizar a falta de boas maneiras à mesa da velha geração. Nessa cena, no entanto, não há somente membros da velha geração, mas também pessoas mais jovens. A cena introduz, de maneira radical, um estilo heterogêneo em relação ao resto do filme, e baseia-se em peça da juventude de Brecht, representativa de seu ataque ao casamento como instituição burguesa ou pequeno-burguesa. A meu ver, porém, o que chama a atenção na sequência não é tanto a falta de maneiras à mesa como a ausência de solidariedade em relação ao jovem casal em dificuldade.
  • 18
    Bonnaud (2001Bonnaud, I. Brecht, période américaine. Tese de doutorado. Université Paris III Sorbonne Nouvelle, 2001.) expressa indignação frente ao fato de que a fortuna crítica de Brecht tenha acreditado, por muito tempo, que Wexley fosse o autor do roteiro, e comenta que o próprio juiz que julgou o caso afirmou, em entrevista para um livro sobre Lang, que a decisão havia sido injusta. Na opinião de Bonnaud, boa parte da crítica brechtiana teria se deixado levar pelas mentiras de Wexley por preferir acreditar que Brecht nada teve a ver com Hollywood, tomando suas incursões por lá como ganha-pão sem valor ou afirmando que seus roteiros só podiam fracassar, dada a incompatibilidade de Brecht com Hollywood. A fortuna crítica de Brecht teria alimentado o mito da existência de um roteiro ideal perdido - pois em seus diários Brecht menciona um script ideal que acentuaria as cenas com o povo - e a lenda de um Brecht estrangeiro à indústria cultural dos EUA: como teve a maior parte de suas propostas aí recusadas, Os carrascos também morrem seria uma anomalia a eliminar do corpus dos estudos brechtianos. Por outro lado, argumenta Bonnaud, entre os críticos de cinema - sem conhecimento aprofundado da literatura alemã - o filme tampouco é visto como trabalho de Brecht, mas quase sempre atribuído apenas a Lang. Talvez a fortuna crítica brechtiana tenha se pautado pelos comentários de Brecht contra Lang em seus diários. Pois aí, embora expresse desconfiança em relação a Wexley, que usa mil artimanhas para não deixar Brecht de posse de cópias do trabalho, seu desapontamento maior parece voltar-se a Lang. Em seguida ao processo pelos créditos no roteiro, Brecht se expressa de maneira muito dura sobre a experiência. Chega a afirmar, por exemplo: ''A vista da mutilação espiritual me faz muito mal: não é possível permanecer na mesma sala com esses aleijões espirituais e inválidos morais'' (Brecht 2005b: 170).
  • 19
    Ela se refere ao artigo de Comolli e Geré, ''Deux fictions de la haine'', publicado em duas partes nos Cahiers du Cinéma nºs 286 e 287 de 1978.
  • 20
    Gersch publicou seu Film bei Brecht no início dos anos 1970, numa fase em que parte da fortuna crítica de Brecht ainda procurava reivindicar Os carrascos também morrem para o corpus da obra de Brecht, encontrando no filme elementos épicos que comprovassem sua participação na concepção da fita. Tal procedimento crítico pode ser observado também em Lyon (2002Lyon, J. K. Hangmen also die. In: Knopf, J. (Hg.). Brecht Handbuch. Band 3. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2002, 457-465.) e Costa (2014Costa, I. C. Brecht na segunda guerra mundial: teatro e cinema. In: Vicente, A.L.; Junqueira, R.S. (orgs). Teatro, cinema e literatura - confluências. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014, 19-32.). Lyon chama a atenção para termos e expressões alemães no texto do filme e Iná Camargo Costa relaciona-o a outras obras de Brecht, realizadas na mesma época. E, em livro sobre Lang, Lotte Eisner (1976Eisner, L. Fritz Lang. London: Secker and Warburg, 1976.) vê no filme aspectos das peças didáticas de Brecht, como a relação entre indivíduo e movimento. Pois a personagem de Mascha passa por uma transformação: aos poucos, vão desaparecendo suas características individuais para ir se tornando uma ''pequena soldada'' quase anônima.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2022
  • Aceito
    02 Nov 2022
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