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Sobre os diagnósticos das doenças sem explicação médica

On medically unexplained illnesses diagnosis

Sobre los diagnósticos de enfermedades sin explicación médica

Resumos

O artigo apresenta a evolução histórica dos diagnósticos médicos ligados às doenças sem lesão, ressaltando quão problemáticos têm sido esses quadros na história da medicina, que muitas vezes contrariam os protocolos de construção de evidências clínicas. Abordam-se as classificações utilizadas para esses quadros ao longo do séc. XIX, de acordo com os paradigmas da irritabilidade, do arco-reflexo e do sistema nervoso central. No tocante ao século XX são focalizados o paradigma psicogenético e as transformações pelas quais passaram esses diagnósticos nas diversas edições do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Por fim, abordam-se algumas das denominações paralelas que as doenças e sintomas sem lesão adquiriram na atualidade, como o conceito de síndrome funcional e o dilema da (i)legitimidade no qual essas doenças estão imersas.

Sintomas sem lesão; psicossomática; história da medicina


This paper presents the historical evolution of medical diagnosis related to diseases without lesions. We focus on this problematic field of history of medicine observing the difficulties to get clinical evidences using pattern procedures. We approach the nosological classifications for these diseases during the 19th century based on three paradigms: irritability, arc-reflex, central nervous system. During the 20th century, we focus on the psychogenetic paradigm and on the transformations that those diagnosis have had in the different editions of the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Finally, we approach some of the new names that diseases without lesions have achieved nowadays, taking functional somatic syndromes as a contemporary example and analyzing the (i)legitimacy dilemma that surround that kind of illnesses.

Symptoms without lesion; psychosomatics; history of medicine


El artículo presenta la evolución histórica de los diagnósticos médicos ligados a las enfermedades sin lesión, subrayando el hecho de que han sido cuadros problemáticos en la historia de la medicina, pues contradicen los protocolos de construcción de evidencias clínicas. En el artículo se tratan las clasificaciones utilizadas para esos cuadros durante el siglo XIX, de acuerdo con los paradigmas de irritabilidad, de arco-reflejo, del sistema nervioso central y de la psicogenesis. Durante el siglo XX por otro lado, se focalizan las transformaciones de estos diagnósticos en las diversas ediciones del Manual diagnóstico y estadístico de los trastornos mentales. Finalmente, se trata de algunas denominaciones paralelas que las enfermedades y síntomas sin lesión adquieren en la actualidad, con el concepto de síndrome funcional.

Síntomas sin lesión; psicosomática; historia de la medicina


ARTIGOS

Sobre os diagnósticos das doenças sem explicação médica1 1 . Apoio: Faperj/Capes.

On medically unexplained illnesses diagnosis

Sobre los diagnósticos de enfermedades sin explicación médica

Rafaela Teixeira ZorzanelliII

IPsicóloga, Mestre em Psicologia Pela UFF, Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ, Pós-Doutorado pelo mesmo Instituto, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rafaela Teixeira Zorzanelli. Instituto de Medicina Social–UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, Pavilhão João Lyra Filho, 7º andar, blocos D e E, Maracanã, CEP 20550-900, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. E-mail: rtzorzanelli@yahoo.com.br

RESUMO

O artigo apresenta a evolução histórica dos diagnósticos médicos ligados às doenças sem lesão, ressaltando quão problemáticos têm sido esses quadros na história da medicina, que muitas vezes contrariam os protocolos de construção de evidências clínicas. Abordam-se as classificações utilizadas para esses quadros ao longo do séc. XIX, de acordo com os paradigmas da irritabilidade, do arco-reflexo e do sistema nervoso central. No tocante ao século XX são focalizados o paradigma psicogenético e as transformações pelas quais passaram esses diagnósticos nas diversas edições do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Por fim, abordam-se algumas das denominações paralelas que as doenças e sintomas sem lesão adquiriram na atualidade, como o conceito de síndrome funcional e o dilema da (i)legitimidade no qual essas doenças estão imersas.

Palavras-chave: Sintomas sem lesão; psicossomática; história da medicina

ABSTRACT

This paper presents the historical evolution of medical diagnosis related to diseases without lesions. We focus on this problematic field of history of medicine observing the difficulties to get clinical evidences using pattern procedures. We approach the nosological classifications for these diseases during the 19th century based on three paradigms: irritability, arc-reflex, central nervous system. During the 20th century, we focus on the psychogenetic paradigm and on the transformations that those diagnosis have had in the different editions of the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Finally, we approach some of the new names that diseases without lesions have achieved nowadays, taking functional somatic syndromes as a contemporary example and analyzing the (i)legitimacy dilemma that surround that kind of illnesses.

Key words: Symptoms without lesion; psychosomatics; history of medicine

RESUMEN

El artículo presenta la evolución histórica de los diagnósticos médicos ligados a las enfermedades sin lesión, subrayando el hecho de que han sido cuadros problemáticos en la historia de la medicina, pues contradicen los protocolos de construcción de evidencias clínicas. En el artículo se tratan las clasificaciones utilizadas para esos cuadros durante el siglo XIX, de acuerdo con los paradigmas de irritabilidad, de arco-reflejo, del sistema nervioso central y de la psicogenesis. Durante el siglo XX por otro lado, se focalizan las transformaciones de estos diagnósticos en las diversas ediciones del Manual diagnóstico y estadístico de los trastornos mentales. Finalmente, se trata de algunas denominaciones paralelas que las enfermedades y síntomas sin lesión adquieren en la actualidad, con el concepto de síndrome funcional.

Palabras-clave: Síntomas sin lesión; psicosomática; historia de la medicina

Uma das práticas centrais na medicina moderna é a de conciliar a queixa do paciente com os achados objetivos aos quais se possa atribuir a gênese de seus sintomas (Faure, 2008) - ou seja, recolher informações junto ao paciente e examiná-lo com atenção clínica, fazendo a ligação entre os sintomas apresentados e os agentes etiológicos Neste sentido, a pesquisa etiológica de um quadro patológico faz parte da construção do diagnóstico e da orientação para o tratamento e o prognóstico. Quando os sintomas apresentados se enquadram plenamente nos achados do exame clínico e nos exames complementares, tem-se uma doença ideal, cujo caminho terapêutico poderá ser traçado com base na tradição da literatura médica; mas quando, diante de queixas persistentes e sintomas, não se encontra nenhum agente que os justifique instaura-se um campo de incerteza tanto para o médico – que se sente desautorizado diante de um impasse na decifração diagnóstica – quanto para o paciente – que se vê sem causa explicável para seu sofrimento. A história da medicina demonstra que as febres essenciais, as neuroses, a fadiga, os sintomas psiconeurológicos e a dor sem lesão se constituíram, desde o fim do séc. XVIII, em problemas para a lógica do método anatomopatológico, segundo o qual a essência da doença está relacionada à sua sede (Foucault, 2004; Hodgkiss, 2000).

Esse campo problemático, em que os sintomas não encontram resposta na pesquisa etiológica, abre um vasto território de controvérsia na história da medicina, ao menos desde o séc. XIX. A essa celeuma soma-se outro dilema: certas doenças, mesmo com lesões ou achados físicos – como a asma, a psoríase, a candidíase de repetição e outras (Kaplan & Sadock, 1999) têm em seus fatores etiológicos elementos pouco passíveis de mensuração pelas tecnologias médicas, como os impactos estressores dos eventos da vida, as perdas, separações, e outros acontecimentos a que os indivíduos estão sujeitos. A esses casos, Kaplan e Sadock (1999) chamaram de doenças psicossomáticas. Fato é que as doenças sem lesão ou as com lesão e com fatores psicossociais contribuindo para sua gênese, formam um todo não homogêneo que coloca em xeque algumas das bases sobre as quais se assenta o funcionamento da medicina moderna, como a busca da objetividade das doenças.

Em se tratando da objetividade das patologias, sabe-se que a imersão da prática médica no modelo das ciências naturais conduziu a clínica a um processo de objetificação, por meio do qual são utilizados instrumentos técnicos capazes de mensurar e desvendar a fisiologia e a visceralidade, tais como o termômetro, o estetoscópio, o cardiógrafo, os raios-X, as tomografias e ressonâncias magnéticas (Ortega, 2008). Para tanto, foi necessário excluir os traços de subjetividade do paciente e construir generalidades sobre os quadros clínicos e seus impactos nos indivíduos (Camargo, Guedes, & Nogueira, 2006).

São diversas as modalidades de apresentação de sintomas cujo formato pouco se enquadra na objetividade apregoada pelos métodos biomédicos, carecendo de agentes etiológicos claros, lesões anatômicas visíveis ou qualquer outro padrão de causação bem-definido. Além disso, como mencionado, há quadros que, mesmo com a presença de lesões e achados anatomoclínicos têm em sua etiologia fatores psicossociais pouco enquadráveis nas formas de detecção objetiva das tecnologias biomédicas de que dispomos - afinal, como detectar o quanto de nosso estado de humor e do impacto dos eventos da vida contribui para picos de pressão arterial, crises não bacterianas de gastrite ou doenças de pele?

Todo esse introito é para apresentar a complexidade do tema a ser tratado - e o quanto é relevante na história médica e tem sido uma fonte de celeuma ainda não resolvida. Nosso objetivo é debater de forma panorâmica a história dos diagnósticos médicos ligados à abordagem das doenças sine materia ou a doenças em que fatores psicossociais estejam supostamente envolvidos na etiologia. Apesar de suas diferenças, há um ponto em comum entre esses dois grupos de manifestações, que é o fato de não se apoiarem no achado físico para o desvendamento etiológico e de, por isso, não se enquadrarem no gesto médico de conciliar o subjetivo (relato do paciente e seu modo de experienciar a enfermidade) com o objetivo (achados etiológicos).

DOENÇAS SEM LESÃO E SUA ABORDAGEM NO SÉC. XIX

Diversas categorias são paulatinamente introduzidas a partir da segunda metade do séc. XVIII, sobretudo na medicina mental, e se referem a doenças relativas à sensibilidade nervosa. A partir do trabalho de Hodgkiss (2000), é possível destacar alguns exemplos, como a “doença inglesa” (english malady), descrita por George Cheyne [1671– 1743] em 1733; a noção de irritabilidade, defendida pelo fisiologista Albert von Haller [1708-1777], em 1752, da qual deriva a “irritabilidade nervosa”, e a neurose, abordada por William Cullen [1794-1878], em 1769.

Já no séc. XIX, em 1801 François Chaussier [1746-1828] criou o termo “nevralgia”; em 1818, o termo psicossomático é utilizado pela primeira vez por Johann Christian Heinroth [1773-1843]; na década de 1860, a noção de fraqueza irritável tem novo ímpeto pelo uso que adquire na obra de Wilhelm Griesinger [1817-1868]; a partir de 1869, George Beard [1839-1883] reúne os sintomas dispersos do nervoso americano na categoria da neurastenia; ao longo da década de 1880, Jean Martin Charcot [1825-1893] se utiliza da noção de lesão dinâmica ou funcional para compreender a histeria.

O enquadramento de um modelo de compreensão dessas doenças sem explicação médica começa com o diagnóstico de irritação espinhal, em 1820, que pressupunha que os sintomas de doenças sem lesão fossem causados por uma doença invisível, mas real, na medula espinhal. Segundo Shorter (1992), de 1820 a 1870, algumas descobertas - como a inervação simpática do trato gastrointestinal, as raízes motoras e sensitivas da medula e a excitabilidade de alguns tecidos - levaram ao desenvolvimento da teoria da irritação espinhal (spinal irritation). Os principais tratamentos utilizados para o restabelecimento eram catarses, laxantes e sangrias.

No fim do séc. XVII, Albrecht von Haller fez experimentos com fibras musculares e ofereceu bases empíricas para a doutrina da irritabilidade, observando que as fibras musculares encurtavam brevemente quando estimuladas. As descobertas em torno do arco-reflexo foram, então, a fonte de uma teoria paralela à da irritabilidade – a teoria reflexa, segundo a qual as conexões nervosas, por meio das vias medulares, regulavam os órgãos do corpo, incluindo o cérebro, de forma quase independente da vontade do indivíduo. A partir dessa doutrina foi rápida a evolução para a crença de que todo órgão do corpo tinha influência em outros. Os tratamentos implicavam a remoção da irritação com tratamento local, banhos para a redução da excitabilidade do sistema nervoso, cirurgias de remoção e cauterizações. Entre 1850 e 1900, a teoria do arco reflexo tornou-se dominante do cenário dos modelos médicos para o espectro mais amplo das doenças nervosas (Shorter, 1992).

A partir da segunda metade do séc. XIX, de 1870 a 1920, praticamente ao mesmo tempo em que a teoria reflexa se desenrolava, emergiu o paradigma do sistema nervoso central, segundo o qual os sintomas e doenças sem explicação médica estariam relacionados a doenças do tecido cerebral, ainda que não fosse possível detectá-las. Os principais sintomas desse período foram as manifestações motoras, convulsões histéricas, fadiga e, principalmente, o quadro então emergente da neurastenia, cujo motivo central era, supostamente, a fraqueza dos nervos ligada à exaustão cerebral. A proposição de que o sofrimento mental e/ou quaisquer outros sintomas sem explicação anatômica são um sintoma de doença cerebral encontrou seu maior expoente em Wilhelm Griesinger, por meio do conceito de fraqueza irritável (Shorter, 1992), segundo o qual os nervos motores sofriam uma diminuição de potência, fácil exaustão, tendência a movimentos mais rápidos e menos energéticos.

Até mesmo pela extrema proximidade cronológica, um desses paradigmas não excluía automaticamente o outro e por isso suas práticas conviviam nas atitudes médicas e nas expressões culturais, o que justifica o fato de que, na primeira metade do séc. XIX, as teorias centradas no sistema nervoso central convivessem diretamente com a teoria do arco reflexo na explicação das doenças. Todos esses conceitos, diagnósticos ou protocategorias, conceitos e diagnósticos mencionados – irritabilidade, ação reflexa, fraqueza irritável - tiveram seu lugar na compreensão das doenças que não se adequavam ao modelo anatomoclínico de enquadre entre sintoma e lesão.

O panorama do desenvolvimento dessas ideias médicas permite apontar o que argumentam Shorter (1992) e Kleinman (1986): que os sintomas físicos sem explicação médica mudam de acordo com os sentidos culturais e com as tendências médicas em um dado momento histórico. Os indivíduos tendem a produzir sintomas adaptados aos quadros nosológicos vigentes e dissipados na cultura, assim como os médicos tendem a encaixar os sintomas relatados por seus pacientes nas entidades clínicas disponíveis. Destarte, padrões e formas de apresentação dessas doenças se baseiam em um suprimento culturalmente disponível de sintomas associado às ideias científicas vigentes sobre o corpo, às explicações culturalmente válidas para certas doenças, à memória coletiva sobre como se comportar quando doente. Isso significa que, sob algumas circunstâncias sócio-históricas, interpretamos os sinais às vezes disparatados que o corpo nos envia como evidência de certas doenças e não de outras, sendo os sintomas preferenciais aqueles que se enquadram no panorama legitimado pela ciência médica. Um exemplo disso é o koro, quadro classificado na quarta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações mentais (DSM-IV-tr) como síndrome ligada à cultura cujos sintomas dizem respeito à crença de que o pênis está se retraindo para a cavidade abdominal, o que causa grande ansiedade em seus portadores. Apesar de relativamente comum entre povos asiáticos, é praticamente ausente entre os ocidentais.

DOENÇAS PSICOSSOMÁTICAS NO SÉC. XX E XXI

Já adentrando o século XX, entre 1920 e 1970 ganha força o paradigma psicogenético, a partir do qual a intencionalidade psíquica passa a ser admitida como causa de doenças físicas e psíquicas (Shorter, 1992). O paradigma psicogenético surge de forma dispersa, mas torna-se a explicação predominante dos sintomas sem etiologia médica clara. O intenso desenvolvimento desse paradigma ocorrido na Europa Central em meados do século XX se deveu aos trabalhos de Sigmund Freud.

O termo psicossomático - muito associado ao campo psicanalítico - só teve uso e difusão significativa depois de 1930. Antes disso raramente ele era empregado, embora tivesse sido cunhado no início do século XIX, pelo médico Johann Christian Heinroth. Certamente, a medicina psicossomática ao longo do século XX resultou da assunção dos pressupostos psicanalíticos no campo da etiologia das doenças. Por meio dela, sustentava-se que fatores de ordem psíquica – conflitos, ideias, representações – pudessem atuar como agentes etiológicos contributivos, disparadores ou mantenedores de doenças, inclusive com lesões e alterações orgânicas.

Foi com os trabalhos de Franz Alexander [1891-1964], médico e psicanalista, que a partir de 1930 o campo da medicina psicossomática ganhou fôlego. Alexander (1989), principal representante da Escola de Chicago, realizou uma tentativa de descrever os conceitos básicos em que se fundamenta a abordagem psicossomática, com o intuito de apresentar o conhecimento acerca da influência dos fatores psicológicos sobre as funções do corpo e seus distúrbios. Um postulado que recorta a obra é que os processos psicológicos não diferem de outros processos ocorrentes no organismo, pois também são fisiológicos, diferindo das expressões corporais por serem percebidos subjetivamente e poderem ser comunicados verbalmente. Alexander (1989) afirma ser o processo corporal direta ou indiretamente influenciado por estímulos psicológicos, já que o organismo, como um todo, constitui uma unidade. Desse modo, a abordagem psicossomática poderia ser aplicada a todo e qualquer fenômeno do organismo vivo. Assim, o alvo do interesse médico deveria tornar-se “o paciente como um ser humano com preocupações, temores, esperanças e desesperos, como um todo indivisível e não apenas como um portador de órgãos doentes” (Alexander, 1989, p.19). As postulações iniciais de Alexander serviram para a construção de todo um campo da psicossomática psicanalítica que originaria diferentes correntes e pressupostos, cujo destaque mais evidente é a Escola de Paris, inspirada nos estudos de Pierre Marty.

É necessário notar que os sintomas psicossomáticos construíram um campo nebuloso de aproximação da noção de conversão – conceito importante para a compreensão da histeria a partir da leitura freudiana. A despeito do tipo de sintoma apresentado, pode-se dizer que a conversão pressupõe que um órgão ou a parte do corpo escolhida para a manifestação do sintoma tenha alguma relação inconsciente com o trauma que lhe deu origem. Para ilustrar esse processo, cabe lembrar Charcot (1888/2003). Ele analisa a paralisia da mão de uma de suas pacientes ocorrida depois de ela ter dado um tapa em seu filho. O que esse exemplo demonstra é que a noção de conversão histérica pressupõe uma ligação de sentido entre a região do corpo afetada pelo sintoma e o conflito que ela origina. Esse é precisamente, um dos pontos de principal diferença entre a noção de sintoma psicossomático e conversão. Para Alexander (1989), não haveria uma relação de sentido a ser desvendada no órgão ou sistema no qual o somatizador está afetado. Ao contrário, como os teóricos da Escola de Paris estabelecerão anos depois, haveria uma carência de mentalização, de simbolização e pobreza de fantasia que marcaria os pacientes somatizadores (Marty & M’uzan, 1963).

Outro ponto de diferença ressaltado por Alexander (1989) é o fato de que nas conversões estão envolvidos músculos estriados e percepções sensoriais, enquanto as manifestações psicossomáticas envolveriam a musculatura lisa. Supõe-se com isso que a musculatura involuntária e todo o campo da visceralidade não estejam envolvidos em processos de ideação, por isso as manifestações psicossomáticas relacionar-se-iam a padrões vegetativos de resposta dos órgãos. Essa distinção retomada por Alexander (1989) rememora a distinção feita por Freud (1895/1996) entre conversão e a neurose atual.

Algumas controvérsias em torno do uso do termo psicossomático se acentuaram desde a publicação da quarta edição do Manual de Diagnóstico Estatísticodos Transtornos Mentais (DSM-IV, 2002) e da décima edição da Classificação de Transtornos mentais e de comportamento (CID-10, 1993), pela sua retirada de ambos os sistemas classificatórios. Outra questão levantada pelo uso do termo é o fato de que, do ponto de vista de que o adoecimento é um processo global, toda doença seria psicossomática, pois acometeria o organismo integralmente. Nesse sentido, não seria coerente adotá-lo somente nos casos em que o fator psicológico estivesse evidente.

O rumo tomado pelos diagnósticos médicos que abarcam manifestações clínicas sem explicação anatômica e aquelas cujos fatores etiológicos contam com elementos psicossociais evidentes pode ser observado se rememorarmos sua evolução nas quatro edições do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais. Conforme Oken (2007), na primeira edição, de 1952, desenvolvida no período posterior à Segunda Guerra Mundial, observa-se a emergência da categoria dos transtornos não psicóticos em resposta ao serviço militar e ao combate. As condições apresentadas eram entendidas como reações às experiências de vida, cujo tratamento era, sobretudo, psicoterápico. Essas reações que representavam a expressão visceral do afeto, que podia, por sua vez, não ser consciente. Os sintomas eram relacionados a um estado crônico e exagerado da expressão fisiológica normal da emoção, com a parte subjetiva reprimida. Esses estados viscerais contínuos podiam eventualmente levar a mudanças estruturais. De forma mais ampla, as doenças mentais eram compreendidas como reações que poderiam ocorrer com ou sem causas físicas definidas ou estruturais no cérebro – o que era bastante coerente com o clima psicodinâmico da época. O diagnóstico de transtornos psicofisiológicos autonômicos e viscerais deveria ser usado em preferência aos transtornos psicossomáticos. Além disso, os transtornos fisiológicos foram subcategorizados em reações dos vários sistemas: musculoesquelético, cardiovascular, gastrointestinal e outros. Para corroborar a influência psicodinâmica e psicanalítica sobre a nosografia daquele momento, é interessante notar a presença de Franz Alexander como membro da comissão dessa primeira edição do DSM.

Oken (2007) observa que na segunda edição do referido Manual, publicado em 1968, as categorias acima mencionadas foram denominadas distúrbios psicofisiológicos. O termo “reação” foi substituído por neuroses, psicoses e transtornos. Os transtornos psicofisiológicos tiveram retirados os termos autonômico e visceral. Contudo, tanto as dúvidas em torno das asserções psicodinâmicas quanto o peso da pesquisa científica nos departamentos universitários começaram a crescer entre a primeira edição do Manual e a segunda. A psiquiatria americana tornou-se cada vez mais voltada às evidências, e os tratamentos passaram a se basear em pesquisas definidas por uma abordagem neurocientífica. A psicodinâmica não foi suplantada, mas perdeu sua preeminência, se comparada com as ciências cognitivas e comportamentais.

Todo esse processo de ascensão das neurociências foi incorporado nas alterações da terceira edição do Manual, de 1980. Nela adotou-se a categoria “Fatores Psicológicos que Afetam as Condições Físicas” (FPACF), considerada mais vantajosa do que a anterior “transtornos psicofisiológicos”, pois “integrava as contribuições para a doença médica em sistemas de diagnósticos multiaxial” (Kaplan & Sadock, 1999, p.1583). Isso diz respeito a uma série de mudanças mais abrangentes nessa terceira edição, referentes à denominação das condições como transtornos, por sua suposta neutralidade teórica.

Além disso, aparecem listas estabelecidas de critérios a serem usados para o diagnóstico. Foi incluído um formato multiaxial do diagnóstico, que previa transtornos de personalidade anteriores concomitantes com condições médicas e estressores. Os transtornos podiam ser assim classificados diante da presença de um ou mais fatores psicológicos ou comportamentais que afetavam uma condição médica existente prolongando seu curso, o que trazia risco adicional à saúde do indivíduo, precipitando ou exacerbando sintomas e provocando respostas fisiológicas relacionadas ao estresse.

O termo neurose, que implicava psicogênese, foi retirado do manual. Os “Fatores psicológicos afetando as condições médicas” tornaram-se “Fatores psicológicos afetando as condições físicas”, deixando de ser uma categoria para transformar-se em uma rubrica dentro de outra categoria: “Outras condições que podem ser foco de atenção”. Para torná-la clinicamente mais útil realizou-se uma subclassificação que especifica o tipo de fato psicológico ou comportamental que afeta a condição médica do paciente.

Tanto no DSM IV (2002) quanto no CID-10 (1993) não está mais em uso o termo psicossomático como categoria médica. O CID-10 admite que os termos psicogênico e psicossomático não são mais utilizados nos títulos de suas entidades classificatórias pela diversidade de seus significados em diferentes línguas e tradições psiquiátricas. Como se pode observar, novas categorias passam a abarcar os sintomas e quadros relativos a queixas sem lesão e os relacionados aos com lesão, embora com fatores psicossociais em sua base etiológica.

O campo amplo e controverso de quadros de difícil decifração biomédica aparece hoje em diversas outras alcunhas nosográficas, dissipadas pelos referidos manuais, mas principalmente na de “transtornos Somatoformes”, que se divide, por sua vez, em subtipos como o transtorno de somatização, transtorno somatoforme indiferenciado, transtorno conversivo, transtorno doloroso, transtorno dismórfico corporal, transtorno de somatização sem outra especificação. Os transtornos somatoformes são diferentes dos fatores psicológicos que afetam a condição médica, porque no primeiro não existe uma condição médica diagnosticável que explique plenamente os sintomas físicos apresentados.

A característica comum a essas subcategorias dos transtornos somatoformes é a presença de sintomas físicos que sugerem uma condição médica geral, mas não são explicados efetivamente por nenhuma condição médica, por efeitos diretos de uma substância, tampouco por um transtorno mental. Seu agrupamento diz respeito mais à utilidade clínica de excluir condições médicas gerais ocultas ou etiologias relativas a substâncias para explicar os sintomas físicos do que em uma etiologia ou mecanismo patogênico em comum.

Muitas controvérsias têm sido geradas em torno da classificação nosológica para os sintomas sem lesão definidas no presente. Se por um lado, a classificação da quarta edição do referido manual foi útil, por não negligenciar os pacientes cujos sintomas não eram explicáveis por uma condição médica geral, ela falhou em seu intuito de auxiliar no entendimento, orientar pesquisas e oferecer uma base útil para o tratamento desses pacientes. Um desses problemas é a não aceitação dessa classificação por parte dos pacientes, que a associam à ideia de que sua doença é mental e por isso, não biológica, e menos legítima do que se o fosse. Outro problema a ser sanado pelas modificações da próxima edição e o fato de os subtipos dessa categoria não formarem um todo coerente (Mayou, Kirmayer, Simon, Kroenke e Sharpe, 2005; Starcevic, 2006; Regier, 2007).

O tema aqui tratado abre campo para outras alcunhas médicas, como os “sintomas sem explicação médica” (Smith, Monson & Ray, 1986; Cheng-Ta et al., 2009), e as “síndromes funcionais” (Barsky & Borus, 1999). De acordo com Barsky e Borus (1999), o termo síndrome funcional tem sido aplicado a diversas condições relacionadas entre si e caracterizadas mais por sintomas de sofrimento e incapacidade do que por anormalidades demonstráveis nos tecidos e na estrutura física, entre elas a síndrome da fadiga crônica, a do intestino irritável, a pré-menstrual e a da sensibilidade química múltipla (Manu, 1998).

CONCLUSÃO

Se um dos eixos da experiência clínica está na tentativa de reconciliar as queixas subjetivas do paciente com os achados objetivos da clínica e dos exames complementares, o que acontece ao paciente quando essa conciliação é dificultada ou mesmo impossível, a despeito daquilo que as tecnologias nos disponibilizam? Os quadros aqui abordados, uma vez que não se adaptam à objetividade das tecnologias científicas e/ou carecem de um agente etiológico orgânico, demandam do próprio paciente que se engaje em uma campanha pela legitimidade de sua condição. Como observa Grecco (1993), no caso das doenças em que o fator etiológico é evidentemente físico, supõe-se que elas não envolvam a vontade do indivíduo. No caso de doenças sem etiologia física, elas são muitas vezes compreendidas como amostras da incapacidade do sofredor para superar suas dificuldades. A atitude cética - tanto dos leigos quanto dos médicos - para com essas condições faz com que o ônus da responsabilidade pela doença recaia muito mais severamente sobre o paciente, como se dependesse unicamente de sua vontade lutar contra a doença, que é muitas vezes compreendida como fingimento, exagero ou incapacidade de autocontrole.

Na tentativa de contrariar essa interpretação de seu sofrimento, os pacientes se veem desafiados a redescrever sua doença, forjando meios para torná-la compatível com as exigências de objetividade médica e buscando evidências de sua existência. Trata-se de quadros clínicos que se tem que lutar para ter (Dumit, 2006). Não é sem motivo que o crescimento dos grupos virtuais de ajuda mútua formados por pacientes de síndromes funcionais e outras formas de doenças controversas na internet tem sido documentado nos estudos sociológicos recentes (Landzelius, 2006; Novas, 2006). Nesses grupos, os indivíduos estão continuamente procurando explicações para suas doenças, questionando e/ou aderindo a resultados de pesquisas científicas, realizando campanhas por seus direitos e para combater o estigma.

O engajamento dos próprios doentes na luta pela aceitação de seu quadro clínico ilustra um dilema que sempre circundou patologias cuja etiologia não se decifre e/ou doenças cujo fator etiológico envolva a pressuposição de elementos psicossociais: a (i)legimitidade. É importante notar que essa ilegitimidade só pode ser assim considerada em relação ao parâmetro do que é supostamente legítimo (ou real), que na atualidade, é um sinônimo de somático e/ou atestável por exames. Como também se observou em outros momentos da história médica: “legitimidade social pressupõe identidade somática” (Rosenberg, 2006, p. 414). O infortúnio maior do paciente portador de doenças sem explicações médicas é ser taxado como alguém sem autocontrole e sem vontade de melhorar.

Na medida em que as definições de doença foram se tornando mais dependentes de sinais aparentemente objetivos (diagnóstico físico, achados laboratoriais, resultados de imageamento), as moléstias que não podem ser facilmente associadas a esses achados são naturalmente segregadas em um status inferior e acabam se situando no entremeio da doença com a autocondescendência.

Doenças e sintomas persistentes, para os quais não se pode alcançar um substrato físico explicativo são, sem dúvida, um campo que nos leva a questionar o privilégio das evidências mecânicas no processo de diagnóstico e na terapêutica e, ao mesmo tempo, a analisar o impacto sobre o paciente do fato de sua condição não corresponder aos padrões biomédicos de uma doença dita legítima. Seja qual for a alcunha que se use, o dilema das síndromes e sintomas sem achados antomopatológicos ou daquelas cuja etiologia não se restringe aos fatores físicos impõe ao paradigma da biomedicina a necessidade de discutir os modelos etiológicos vigentes, o status do sofrimento mental como desencadeador de doenças, a polarização entre biológico (físico) e volicional (moral), e principalmente, novos modelos conceituais para a abordagem de fenômenos patológicos transitivos entre o corpo e a mente.

Recebido em 15/03/2010

Aceito em 17/01/2011

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  • Endereço para correspondência
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    Pavilhão João Lyra Filho, 7º andar, blocos D e E, Maracanã,
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    E-mail:
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    . Apoio: Faperj/Capes.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      15 Mar 2010
    • Aceito
      17 Jan 2011
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