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Ações Ciberativistas LGBTQIA+ no YouTube: Identidades e Minorias Ativas

LGBTQIA+ Cyberactivist Actions on YouTube: Active Identities and Minorities

Acciones Ciberactivistas LGBTQIA+ en YouTube: Identidades Activas y Minorías

Resumo

Neste trabalho, objetiva-se compreender o processo de construção de identidades ciberativistas LGBTQIA+ de criadores de conteúdo no YouTube brasileiro, tomando como referência suas concepções de ativismo e de pertencimento grupal. Para isso, realizou-se uma pesquisa qualitativa e exploratória, desenvolvida a partir de entrevistas semiestruturadas em profundidade com quatro youtubers do segmento LGBTQIA+, sendo duas mulheres lésbicas e cisgênero, uma mulher heterossexual transgênero e um homem gay cisgênero. Para a análise das entrevistas, as transcrições foram inseridas no software Atlas.ti. Os resultados alcançados indicam que as identidades ciberativistas são permeadas pelas noções de ativismo, vivências pessoais como LGBTQIA+, pela consciência de suas pertenças sociais, bem como por estratégias de resistência e de ocupação do lugar de influenciadores sociais. Como conclusão, este trabalho apresenta o ciberativismo LGBTQIA+ no YouTube brasileiro como uma forma de criatividade social, que favorece a positivação dessas identidades sociais a partir das percepções de pertencimento e de significação grupal.

Palavras-chave:
Identidade Social; Ciberativismo; Grupos Minoritários

Abstract

This work aims to understand the process of building LGBTQIA+ cyberactivist identities of content creators on Brazilian YouTube, taking as a reference their conceptions of activism and group belonging. To that end, a qualitative and exploratory research was carried out based on in-depth semi-structured interviews with four YouTubers from the LGBTQIA+ segment, two lesbian and cisgender women, one transgender heterosexual woman and one cisgender gay man. For the analysis of the interviews, the transcripts were inserted into the Atlas.ti software. The results found indicate that cyberactivist identities are permeated by the notions of activism, personal experiences such as LGBTQIA+, awareness of their social belongings, and strategies of resistance and occupation of the place of social influencers. In conclusion, this work presents the LGBTQIA+ cyberactivism on Brazilian YouTube as a form of social creativity, which favors the positivization of these social identities from the perceptions of belonging and group significance.

Keywords:
Social Identity; Cyberactivism; Minority Groups

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo comprender el proceso de construcción de identidad ciberactivista LGBTQIA+ de creadores de canales en YouTube en Brasil, teniendo como referencia sus concepciones de activismo y de pertenencia grupal. Para ello, se realizó un estudio cualitativo y exploratorio por medio de entrevistas semiestructuradas a profundidad a cuatro youtubers del segmento LGBTQIA+, de las cuales son dos mujeres lesbianas y cisgénero, una mujer transgénero heterosexual y un hombre cisgénero gay. Para el análisis de las entrevistas, se utilizó el software Atlas.ti. Los resultados indican que las identidades ciberactivistas están constituidas por nociones de activismo, por experiencias personales como LGBTQIA+, por la conciencia de sus pertenencias sociales, así como por las estrategias de resistencia y ocupación del lugar de los influyentes sociales. Se concluye que el ciberactivismo LGBTQIA+ en YouTube en Brasil presenta una forma de creatividad social, que favorece la afirmación de estas identidades sociales desde las percepciones de pertenencia y significación grupal.

Palabras clave:
Identidad Social; Ciberactivismo; Grupos Minoritarios

O fenômeno do ativismo vem ganhando uma nova roupagem com a ascensão e popularização das mídias digitais. As ações ativistas na internet, denominadas ciberativismo, têm se popularizado, principalmente, a partir das redes sociais (Queiroz, 2017Queiroz, E. F. C. (2017). Ciberativismo: A nova ferramenta dos movimentos sociais. Revista Panorama: Revista de Comunicação Social, 7(1), 2-5. https://doi.org/10.18224/pan.v7i1.5574
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). O ciberativismo configura-se como resultado de novas manifestações, sejam por meio de textos, vídeos, fotos e outras intervenções, em prol de pautas sociais não efetivadas pela política institucional (Illia, 2003Illia, L. (2003). Passage to cyberactivism: How dynamics of activism change. Journal of Public Affairs, 3(4), 326-337. https://doi.org/10.1002/pa.161
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). O protagonismo de ciberativistas pode ser percebido como uma forma de exercício de cidadania, implicado por ações que visam o empoderamento e almejam informar e conscientizar sobre as demandas desses grupos (Fonseca, Silva, & Teixeira, 2017Fonseca, S. M. M., Silva, A. P., & Teixeira, J. G. A., Filho. (2017). O impacto do ciberativismo no processo de empoderamento: O uso de redes sociais e o exercício da cidadania. Desenvolvimento em Questão, 15(41), 59-84. https://doi.org/10.21527/2237-6453.2017.41.59-84
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).

Diversas plataformas podem abrigar as ações ciberativistas, facilitando e incentivando a conexão social por meio de curtidas, comentários e mensagens diretas (Lange, 2009Lange, P. G. (2009). Videos of affinity on YouTube. In P. Snickars & P. Vonderau (Eds.), The YouTube reader (pp. 70-88). National Library of Sweden.). A sociabilidade online é considerada essencial pelos próprios criadores de conteúdo, haja vista a rapidez e maior abrangência de comunicação proporcionadas pela internet. Uma das plataformas que preza esse critério é o YouTube, tendo seu projeto e sua estrutura desenvolvidos para incentivar o compartilhamento e a conexão social (Gannon & Prothero, 2018Gannon, V., & Prothero, A. (2018). Beauty bloggers and YouTubers as a community of practice. Journal of Marketing Management, 34(7-8), 592-619. https://doi.org/10.1080/0267257X.2018.1482941
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).

Nessa perspectiva, a plataforma pode ser compreendida como uma forma de intervenção social, tendo em vista que qualquer pessoa pode compartilhar seus vídeos e que grupos sociais podem se identificar, apoiar e compartilhar conteúdos. Nesse sentido, o YouTube revoluciona a forma como o mundo digital se comunica com a sociedade, trazendo a voz e o corpo dos youtubers como objetos de análise, diferente de outras redes sociais nas quais a comunicação se dá, sobretudo, por meio da escrita. Surge, assim, uma nova possibilidade de identificação entre quem cria os vídeos e aqueles lhes assistem (Burgess & Green, 2009Burgess, J., & Green, J. (2009). YouTube e a revolução digital: Como o maior fenômeno da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. Aleph.).

O ciberativismo tem se constituído como uma forma eficaz de manifestação dos movimentos sociais, sendo considerado tão efetivo quanto o ativismo de rua no que tange aos seus protagonistas e ao processo de mudança social (Greijdanus et al., 2020Greijdanus, H., Fernandes, C. A. M., Turner-Zwinkels, F., Honari, A., Roos, C. A., Rosenbusch, H., & Postmes, T. (2020). The psychology of online activism and social movements: Relations between online and offline collective action. Current Opinion in Psychology, 35, 49-54. https://doi.org/10.1016/j.copsyc.2020.03.003
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; Jost et al., 2018Jost, J., Barberá, P., Bonneau, R., Langer, M., Metzger, M., Nagler, J., Sterling, J., & Tucker, J. A. (2018). How social media facilitates political protest: Information, motivation, and social networks. Political Psychology, 39(S1), 85-118. https://doi.org/10.1111/pops.12478
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). Um estudo realizado com jovens canadenses atuantes no ciberativismo LGBTQIA+ revelou que as redes sociais proporcionam debates sobre questões cívicas e promovem o protagonismo de pessoas conscientes de si mesmas, que, em busca de mudanças, encontram no mundo virtual uma comunidade rica e interativa (Raby, Caron, Théwissen-LeBlanc, Prioletta, & Mitchell, 2018Raby, R., Caron, C., Théwissen-LeBlanc, S., Prioletta, J., & Mitchell, C. (2018). Vlogging on YouTube: The online, political engagement of young Canadians advocating for social change. Journal of Youth Studies, 21(4), 495-512. https://doi.org/10.1080/13676261.2017.1394995
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). De modo geral, em relação à participação política, a internet tem sido um espaço de maior engajamento para pessoas mais jovens, e a rua, para pessoas mais velhas, ao mesmo tempo que as interações na rede têm aproximado diferentes gerações de ativistas (Boulianne, 2020Boulianne, S. (2020). Twenty years of digital media effects on civic and political participation. Communication Research, 47(7), 947-966. https://doi.org/10.1177/0093650218808186
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).

Embora se possa discutir essa aproximação, é importante considerar que o ciberativismo contribui com as lutas sociais de uma forma diferente dos movimentos offline, haja vista a maior velocidade de comunicação e a quantidade de ações de visibilidade social e de união de pessoas em prol de objetivos comuns (Volpato, Luvizotto, & Versuti, 2019Volpato, A. N., Luvizotto, C. K., & Versuti, C. D. (2019). Visibilidade como estratégia, estratégias de visibilidade: Movimentos sociais contemporâneos na internet. Eco-Pós, 22(1), 352-383. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v22i1.15992
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). Assim, o fortalecimento de ações ativistas na internet tem ampliado o debate em torno das pautas de diversos grupos sociais, como o movimento negro, feminista e LGBTQIA+, com a pretensão de que seus discursos ecoem sobre novas práticas sociais e políticas públicas (Illia, 2003Illia, L. (2003). Passage to cyberactivism: How dynamics of activism change. Journal of Public Affairs, 3(4), 326-337. https://doi.org/10.1002/pa.161
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; Queiroz, 2017Queiroz, E. F. C. (2017). Ciberativismo: A nova ferramenta dos movimentos sociais. Revista Panorama: Revista de Comunicação Social, 7(1), 2-5. https://doi.org/10.18224/pan.v7i1.5574
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).

Para compreender as ações ciberativistas, é preciso considerar contextos históricos e culturais específicos (Illia, 2003Illia, L. (2003). Passage to cyberactivism: How dynamics of activism change. Journal of Public Affairs, 3(4), 326-337. https://doi.org/10.1002/pa.161
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; Queiroz, 2017Queiroz, E. F. C. (2017). Ciberativismo: A nova ferramenta dos movimentos sociais. Revista Panorama: Revista de Comunicação Social, 7(1), 2-5. https://doi.org/10.18224/pan.v7i1.5574
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). Ao pensar de forma particular sobre o ciberativismo de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queers, intersexuais, assexuais e de outras identidades de gênero e orientações sexuais (LGBTQIA+), é necessário refletir sobre a conjuntura social em que esse grupo está inserido. No Brasil, a população LGBTQIA+ insere-se em um contexto de exclusão social que se caracteriza pela falta de políticas públicas e pela invisibilidade social, produzindo, por um lado, formas de violência contra essa população, e, por outro, fortalecendo mecanismos de resistência (Catão, Farias, Lima, & Góes, 2015Catão, M. O., Farias, C. L. D., Lima, D. M. C., & Góes, L. C. M. (2015). Da exclusão social aos direitos de cidadania: Percursos e percalços da população LGBT de Campina Grande-PB. Dat@venia, 7(1), 5-30.). Essas resistências podem ser expressas por meio de ações de ativismo, entendidas como aquelas que culminam na defesa de causas as quais propõem mudanças sociais, sejam seus atores contemplados diretamente por essas transformações ou não (Damon & Colby, 2015Damon, W., & Colby, A. (2015). The power of ideals: The real story of moral choice. Oxford University Press.).

O ciberativismo tem sido estudado a partir de seu conceito (Illia, 2003Illia, L. (2003). Passage to cyberactivism: How dynamics of activism change. Journal of Public Affairs, 3(4), 326-337. https://doi.org/10.1002/pa.161
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; Queiroz, 2017Queiroz, E. F. C. (2017). Ciberativismo: A nova ferramenta dos movimentos sociais. Revista Panorama: Revista de Comunicação Social, 7(1), 2-5. https://doi.org/10.18224/pan.v7i1.5574
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), sua importância política (Deslandes, 2018Deslandes, S. F. (2018). O ativismo digital e sua contribuição para a descentralização política. Ciência & Saúde Coletiva, 23(10), 3133-3136. https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.21122018
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) e suas implicações de comunicação no processo de exercício da cidadania (Fonseca et al., 2017Fonseca, S. M. M., Silva, A. P., & Teixeira, J. G. A., Filho. (2017). O impacto do ciberativismo no processo de empoderamento: O uso de redes sociais e o exercício da cidadania. Desenvolvimento em Questão, 15(41), 59-84. https://doi.org/10.21527/2237-6453.2017.41.59-84
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). Ao analisar esse fenômeno, pode-se considerar diferentes atores, recortes e reverberações. Desse modo, estudar o ciberativismo implica refletir sobre os impactos de suas ações e entender como se constroem as identidades daqueles que são agentes ativos nesse processo (Deslandes, 2018Deslandes, S. F. (2018). O ativismo digital e sua contribuição para a descentralização política. Ciência & Saúde Coletiva, 23(10), 3133-3136. https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.21122018
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; Queiroz, 2017Queiroz, E. F. C. (2017). Ciberativismo: A nova ferramenta dos movimentos sociais. Revista Panorama: Revista de Comunicação Social, 7(1), 2-5. https://doi.org/10.18224/pan.v7i1.5574
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).

O processo ciberativista LGBTQIA+ no Brasil tem sido estudado a partir das suas estratégias comunicacionais, da importância de seu engajamento e de seus reflexos na representação política desse grupo (Lopes, Nunes, & Veloso, 2019Lopes, J. W., Nunes, P. S., & Veloso, M. S. F. (2019). Ciberativismo LGBT: Uma análise das publicações da iniciativa #VoteLGBT (Brasil). Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, 12(1), 112-127. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.6984
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). Considerando especificamente o YouTube, entende-se que essa forma de ativismo pode viabilizar novos espaços de sociabilidade para o grupo, possibilitar a afirmação identitária e fomentar a representatividade social e a luta por direitos (Barreira & Maia, 2020Barreira, M. M. L., & Maia, L. M. (2020). Ciberativismo LGBTQIA+ no Youtube: Pautas, estratégias e motivações para ação. Revista de Psicologia da IMED, 12(2), 38-57. https://doi.org/10.18256/2175-5027.2020.v12i2.3547
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). Portanto, o ciberativismo LGBTQIA+ pode ser pensado como uma tática de fortalecimento dessa população, visto que tais estratégias são marcadas pelo sentimento de pertença e coletividade (Fernandes & Pereira, 2018Fernandes, S. C. S., & Pereira, M. E. (2018). Endogrupo versus exogrupo: O papel da identidade social nas relações intergrupais. Estudos & Pesquisas em Psicologia, 18(1), 30-49. https://doi.org/10.12957/epp.2018.38108
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).

Antes de pensar sobre os processos identitários de ciberativistas, é importante discutir a articulação entre as identidades pessoais e sociais. As identidades referem-se, ao mesmo tempo, àquilo que as pessoas são e como estão posicionadas em relação ao mundo, sendo, assim, formadas por processos individuais e pela interação com os outros (Deschamps & Moliner, 2014Deschamps, J. C., & Moliner, P. (2014). A identidade em psicologia social: Dos processos identitários às representações sociais (2a ed.). Vozes.). As construções identitárias podem ser pensadas como uma prática que assume a importante tarefa de diferenciar pessoas como indivíduos e, de mesmo modo, possibilitar a sua inserção em grupos sociais (Muir & Wetherell, 2010Muir, R., & Wetherell, M. (2010). Identity, politics and public policy. Institute for Public Policy Research, 1-13. https://www.ippr.org/publications/identity-politics-and-public-policy
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). É na relação entre indivíduo e mundo que se criam significados e símbolos, os quais possibilitam a construção identitária e o reconhecimento de pertença a categorias sociais. Esses processos, por sua vez, são permeados por representações previamente fornecidas pela socialização e atualizadas nas relações sociais (Spezani & Oliveira, 2013Spezani, R. S., & Oliveira, D. C. (2013). O perfil da produção científica sobre identidade no campo da teoria das representações sociais. Revista Psicologia: Teoria e Prática, 15(2), 104-118.). Dessa forma, a identidade política de pessoas LGBTQIA+ é atravessada por experiências de preconceito, exclusão e segmentação, não sendo possível desassociar a dor e o sofrimento da necessidade de lutar contra essas situações (Lopes et al., 2019Lopes, J. W., Nunes, P. S., & Veloso, M. S. F. (2019). Ciberativismo LGBT: Uma análise das publicações da iniciativa #VoteLGBT (Brasil). Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, 12(1), 112-127. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/disertaciones/a.6984
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).

Sobre a construção identitária, embora Tajfel (1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.) reconheça que a imagem ou o conceito que um indivíduo tem de si próprio é infinitamente mais complexo do que sua identidade social, o autor defende que muitos dos aspectos que os indivíduos reconhecem neles próprios são uma contribuição de sua pertença a determinados grupos ou categorias sociais. Nessa perspectiva, a identidade social trata da consciência, do pertencimento e do significado de pertencer a um determinado grupo social. O pressuposto central que orienta os estudos sobre identidade social afirma que o indivíduo procura atingir uma autoimagem positiva a partir do sentimento de pertença a determinado grupo no qual se encontra inserido (Tajfel, 1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.).

Assim, essa autoimagem se constitui a partir das imagens socialmente compartilhadas acerca de um grupo e da consciência que o grupo tem dele próprio e do lugar que ocupa nas relações sociais. As especificidades de um grupo não se resumem àquilo que os integrantes falam sobre si, mas também ao que o grupo representa como objeto social. Nesse sentido, a autoimagem de um indivíduo e as representações sociais do seu grupo estão intimamente ligadas (Moscovici, 2015Moscovici, S. (2015). Representações sociais: Teorias em psicologia social. Vozes.; Spezani & Oliveira, 2013Spezani, R. S., & Oliveira, D. C. (2013). O perfil da produção científica sobre identidade no campo da teoria das representações sociais. Revista Psicologia: Teoria e Prática, 15(2), 104-118.).

A análise das identidades sociais de grupos minoritários coloca em discussão a sua relação com a autoimagem grupal, uma vez que seus membros constroem suas identidades em meio a preconceitos, estereótipos e discriminações (Jost & Andrews, 2012Jost, J., & Andrews, R. (2012). System justification theory. In D. J. Christie (Ed.), Encyclopedia of peace psychology (Vol. 2, pp. 1092-1096). Wiley-Blackwell.). Na perspectiva das relações intergrupais, Tajfel (1972Tajfel, H. (1972). La catégorisation sociale. In S. Moscovici (Org.), Introduction à la psychologie sociale (Vol. 1, pp. 272-302). Larousse.) explica a ocorrência do preconceito a partir da inserção do indivíduo em um grupo, visto que essa pertença pode levar a atributos positivos ou negativos aos seus membros a partir das representações sociais atribuídas àquela categoria social.

O preconceito contra a população LGBTQIA+ é um elemento de análise recente da psicologia social no Brasil, mas que tem ganhado muita relevância em virtude dos impactos que essa violência representa no cotidiano da comunidade. Ademais, constitui um campo de estudos que, a partir das relações intergrupais, pode gerar repercussões, inclusive em movimentos de reação ao preconceito (Silva & Aléssio, 2019Silva, L. B., & Aléssio, R. L. S. (2019). Revisão sobre a utilização da teoria das representações sociais nos estudos sobre homofobia no Brasil. Estudos & Pesquisas em Psicologia , 19(2), 342-365. https://doi.org/10.12957/epp.2019.44278
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).

Nesse cenário, é fundamental que a comunidade LGBTQIA+ ganhe visibilidade social, o que depende do reconhecimento da existência desse grupo. Moscovici (2011Moscovici, S. (2011). Psicologia das minorias ativas. Vozes.) denomina minorias ativas o processo pelo qual uma minoria influencia e modifica a realidade social a partir de posturas e comportamentos consistentes e diferentes daqueles estabelecidos pela maioria. Esse movimento compreende a influência social por meio de outra perspectiva, visto que ela, tradicionalmente, era entendida como um fenômeno que se dirigia da maioria para a minoria. As minorias ativas podem produzir influência social a partir do momento que coordenam ações grupais consistentes, as quais não provocam compreensões equivocadas pelo receptor. O autor afirma que as minorias ativas precisam ser pensadas por meio dos conflitos sociais, que, além de um ponto de partida, são o meio através do qual as representações sociais antigas sobre o grupo minoritário podem ser alteradas, possibilitando a criação de novas representações que sejam menos conflituosas para as relações intergrupais (Moscovici, 2011Moscovici, S. (2011). Psicologia das minorias ativas. Vozes.).

Aqui, é importante lembrar que a minoria ou o grupo minoritário é representado não pelo critério quantitativo, mas pela visibilidade e pelo acesso a espaços de privilégio e poder na sociedade (Moscovici, 2011Moscovici, S. (2011). Psicologia das minorias ativas. Vozes.; Tajfel, 1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.). Desse modo, uma minoria social compreende “unidades de pessoas conscientes de si próprias que possuem determinadas semelhanças e desvantagens sociais comuns” (Tajfel, 1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte., p. 353). Para ser visibilizado como grupo social, é preciso pensar na afiliação de indivíduos a uma coletividade. Essa afiliação se dá não só pela compreensão cognitiva de que se faz parte de determinado grupo social, mas também pelo sentimento de pertença ao mesmo. É a partir da afiliação grupal e da positivação da identidade social que se torna possível perceber as potências de se fazer parte de uma minoria (Tajfel, 1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.).

O reconhecimento identitário pode ser pensado por meio das relações intergrupais e do sistema de reconhecimento de identidades e diferenças entre o grupo de pertença e os outros grupos. Tajfel (1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.) compreende que há sempre uma tentativa de buscar distintividade positiva na comparação entre o endogrupo (aquele no qual se percebe um lugar de pertencimento) e o exogrupo (grupo no qual não se percebe um lugar de pertencimento).

Diversas estratégias podem ser usadas na busca pela positivação de identidades, tanto na esfera individual como grupal. Em uma perspectiva societal, as mais efetivas seriam as estratégias grupais. Entre elas, destaca-se a criatividade social, desenvolvida para a modificação de uma cultura intergrupal a fim de tornar positivas as imagens acerca do próprio grupo. Esse processo pretende positivar o valor de um grupo antes considerado negativo. A mudança não é no grupo em si, mas nos significados compartilhados acerca dele, seja em uma perspectiva endogrupal ou nas relações sociais (Cabecinhas, 2007Cabecinhas, R. (2007). Preto e branco: A naturalização da discriminação racial. Campo das Letras.; Tajfel, 1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.).

Mouffe (1992Mouffe, C. (1992). Citizenship and political identity. October, 61, 28-32. https://doi.org/10.2307/778782
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) articula identidade e política considerando que o termo cidadania não pode ser pensado como algo dado naturalmente nem como um status, mas como uma identidade construída a partir de um lugar de identificação e relações sociais. O ser cidadão é, desse modo, uma construção identitária articulada com a forma de estar no mundo, reconhecendo diversas identidades que orbitam na consciência daquele que é.

Nessa perspectiva, a criatividade social pode ser entendida como ações políticas de minorias sociais motivadas por uma construção identitária que se relaciona aos tensionamentos provocados entre os padrões sociais estabelecidos e o lugar social de um grupo minoritário. Esses tensionamentos se dão por meio da luta por direitos e políticas públicas ou pelo diálogo e pela comunicação entre membros de um grupo minoritário e membros de outros grupos. O poder de uma minoria está na construção e definição de um espaço de luta, assim como em sua capacidade de influência a partir de diálogos consistentes. A dimensão ativista pode ser pensada na esfera de ordem prática e pública e, por isso, influencia mudanças e inspira novas ações (Hernandez, Accorssi, & Guareschi, 2013Hernandez, A. R. C., Accorssi, A., & Guareschi, P. (2013). Psicologia das minorias ativas: Por uma psicologia política dissidente. Revista Psicologia Política, 13(27), 383-387.). Partindo dessa compreensão, os movimentos sociais e as ações ativistas podem ser considerados formas de criatividade social, uma vez que afirmam um lugar social e buscam transformar as vulnerabilidades sociais em luta. Desse modo, as ações ativistas podem ser pensadas como uma forma de visibilidade e de influência da minoria, como proposto por Moscovici (2011Moscovici, S. (2011). Psicologia das minorias ativas. Vozes.).

As minorias vêm sendo estudadas a partir das ideologias e atitudes que suportam a ocorrência do preconceito (Poteat & Mereish, 2012Poteat, V. P., & Mereish, E. H. (2012). Ideology, prejudice, and attitudes toward sexual minority social policies and organizations. Political Psychology, 33(2), 211-224. https://doi.org/10.1111/j.1467-9221.2012.00871.x
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), o seu enfrentamento e as suas possibilidades de diminuição (Tropp & Pettigrew, 2005Tropp, L. R., & Pettigrew, T. F. (2005). Relationships between intergroup contact and prejudice among minority and majority status groups. Psychological Science, 16(12), 951-957. https://doi.org/10.1111/j.1467-9280.2005.01643.x
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). No caso específico da população LGBTQIA+, estudos refletem a construção identitária em torno desse grupo como uma forma de combate ao preconceito (Goldberg & Kuvalanka, 2018Goldberg, A. E., & Kuvalanka, K. A. (2018). Navigating identity development and community belonging when “there are only two boxes to check”: An exploratory study of nonbinary trans college students. Journal of LGBT Youth, 15(2), 106-131. https://doi.org/10.1080/19361653.2018.1429979
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). Entre esses estudos, aqueles que se propõem a analisar esse processo no contexto virtual objetivam compreender as identidades a partir de discursos e ações ativistas propagados pela internet (Greijdanus et al., 2020Greijdanus, H., Fernandes, C. A. M., Turner-Zwinkels, F., Honari, A., Roos, C. A., Rosenbusch, H., & Postmes, T. (2020). The psychology of online activism and social movements: Relations between online and offline collective action. Current Opinion in Psychology, 35, 49-54. https://doi.org/10.1016/j.copsyc.2020.03.003
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).

De modo geral, os estudos no campo da psicologia social têm priorizado os processos de exclusão, preconceito e discriminação, sobretudo a partir da perspectiva de seus preditores psicossociais, tomando como referência a maioria. Por outro lado, as minorias são investigadas como grupos excluídos, analisados e discutidos a partir de referências externas e normas sociais tradicionais (Gatica, Martini, Dreizik, & Imhoff, 2017Gatica, L., Martini, J. P., Dreizik, M., & Imhoff, D. (2017). Predictores psicosociales y psicopolíticos de la justificación de la desigualdad social. Revista de Psicología, 35(1), 279-310. https://doi.org/10.18800/psico.201701.010
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), fenômeno que é observado quando se trata da população LGBTQIA+ (Silva & Aléssio, 2019Silva, L. B., & Aléssio, R. L. S. (2019). Revisão sobre a utilização da teoria das representações sociais nos estudos sobre homofobia no Brasil. Estudos & Pesquisas em Psicologia , 19(2), 342-365. https://doi.org/10.12957/epp.2019.44278
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).

Neste trabalho, o foco foi direcionado ao poder da minoria sobre a mudança da realidade social e, a partir dessa perspectiva, no protagonismo da população LGBTQIA+. De forma específica, a discussão enfatiza tanto a pertença a uma minoria social quanto o ciberativismo como uma forma de ação política dessa minoria. Nesse sentido, este artigo objetiva compreender o processo de construção de identidades ciberativistas LGBTQIA+ de criadores de conteúdo do YouTube brasileiro, tomando como referência suas concepções de ativismo e de pertencimento grupal.

Método

Esta pesquisa se delineou a partir de uma perspectiva qualitativa e se propõe a analisar um fenômeno específico (Minayo, 2002Minayo, M. C. S. (Org.). (2002). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Vozes.), assumindo um caráter exploratório que visa a identificação de fatores relacionados à ocorrência de um determinado fenômeno social (Piovesan & Temporini, 1995Piovesan, A., & Temporini, E. R. (1995). Pesquisa exploratória: Procedimento metodológico para o estudo de fatores humanos no campo da saúde pública. Revista de Saúde Pública, 29(4), 318-325. https://doi.org/10.1590/S0034-89101995000400010
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). Assim, buscou-se analisar os sentidos daquilo que é evocado a partir das falas dos entrevistados (Câmara, 2013Câmara, R. H. (2013). Análise de conteúdo: Da teoria à prática em pesquisas sociais aplicadas às organizações. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 6(2), 179-191.). Ressalta-se que a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética e aprovada de acordo com as Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Participaram quatro youtubers brasileiros do segmento LGBTQIA+, sendo duas mulheres lésbicas e cisgênero, uma mulher heterossexual e transgênero e um homem gay e cisgênero. Na apresentação e discussão dos resultados, esses participantes serão chamados por nomes fictícios em referência a pessoas LGBTQIA+ assassinadas no Brasil.

A primeira entrevistada, aqui chamada de Dandara dos Santos, é uma mulher transgênero, branca e heterossexual, tem 23 anos e trabalha como modelo. É natural da região sudeste e mora na Europa. Seu canal existe desde 2015 e, atualmente, possui quase 30 mil inscritos. A escolha do nome Dandara dos Santos é uma forma de visibilizar a história da travesti cearense assassinada em Fortaleza, em 2017, em um crime violento de espancamento que foi amplamente divulgado na internet.

A segunda entrevistada, que aqui foi nomeada Luana Barbosa, tem 28 anos e é uma mulher negra, cisgênero e lésbica. Ela tem um canal no YouTube desde 2017 que, atualmente, conta com cerca de 4 mil inscritos. Cursa mestrado em Sociologia e reside na região sudeste. O nome Luana Barbosa foi escolhido em referência à mulher lésbica, periférica e negra que foi assassinada por policiais em São Paulo, em 2016, em frente ao seu filho, após não aceitar ser revistada por policiais homens.

A terceira entrevistada também é natural da região sudeste e reside nela, tem 28 anos e aqui será chamada de Anne Mickaelly. Trabalha com marketing e cursa Psicologia. No YouTube, seu canal existe desde 2014 e, atualmente, tem cerca de 120 mil inscritos. É uma mulher lésbica, cisgênero e branca. Anne Mickaelly foi um nome escolhido em referência a uma mulher lésbica assassinada em 2018 pelo sogro, em Samambaia, no Distrito Federal, ao pedir a namorada em casamento.

Aqui chamado de Diego Vieira, o último entrevistado é um homem gay, negro e cisgênero de 26 anos. É youtuber desde 2016 e seu canal possui cerca de 10 mil inscritos. É cineasta, trabalha com produção e análise de conteúdos digitais e reside na região sudeste. O nome homenageia o homem negro e gay assassinado no Rio de Janeiro, em 2016, na universidade em que estudava, em meio a conflitos ocasionados por estudantes que ameaçavam membros de grupos sociais minoritários.

Utilizou-se como instrumento de pesquisa um roteiro de entrevista semiestruturado, construído pelas autoras a partir do objetivo da investigação. Esse roteiro foi composto por questões organizadas em sete dimensões: características do canal, criação do canal, características ativistas do canal, noção de ativismo, identidade ativista, identidade ativista LGBTQIA+ e ativismo LGBTQIA+ na internet/no YouTube.

A definição dos entrevistados se deu a partir de um levantamento (Barreira & Maia, 2020Barreira, M. M. L., & Maia, L. M. (2020). Ciberativismo LGBTQIA+ no Youtube: Pautas, estratégias e motivações para ação. Revista de Psicologia da IMED, 12(2), 38-57. https://doi.org/10.18256/2175-5027.2020.v12i2.3547
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) sobre os canais de ativismo LGBTQIA+ considerados mais relevantes para quem consome esse conteúdo. A pesquisa iniciou-se com o envio de e-mails para todos os criadores mencionados nesse levantamento. Ao todo, foram enviadas mensagens para 33 youtubers a partir dos contatos disponibilizados nos próprios canais. No período entre 20 de junho de 2019 e 25 de julho de 2019, doze pessoas responderam e, destas, quatro aceitaram participar da pesquisa.

Duas entrevistas foram realizadas através do aplicativo Skype, por meio de ligação de vídeo. As outras duas entrevistas foram realizadas por meio de mensagens de voz do aplicativo WhatsApp por escolha dos entrevistados. As entrevistas aconteceram em horários previamente marcados. No momento da entrevista, os entrevistados leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, após a entrevista, enviaram o documento por e-mail. As entrevistas realizadas via Skype foram gravadas e posteriormente transcritas, e as realizadas via WhatsApp foram registradas pelo próprio aplicativo e transcritas. Todas as entrevistas foram conduzidas pela primeira autora deste trabalho.

Para a análise do material, as entrevistas foram transcritas na íntegra e os áudios foram apagados. O conteúdo foi transposto para o software de análise qualitativa Atlas.ti, que forneceu auxílio para a sua análise a partir de categorias temáticas, além de possibilitar a sua organização dentro dessas categorias. O tratamento desse material foi proposto a partir de uma análise de conteúdo temática (Câmara, 2013Câmara, R. H. (2013). Análise de conteúdo: Da teoria à prática em pesquisas sociais aplicadas às organizações. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 6(2), 179-191.), considerando a extração da categoria principal - “Identidade ativista” - e das categorias secundárias que a compõem.

Resultados e discussão

A análise das identidades ativistas LGBTQIA+ no ATLAS.ti possibilitou classificar 120 trechos de narrativas, os quais foram agrupados em sete categorias a partir do conteúdo fornecido pelos entrevistados. As categorias foram denominadas como: “Definição de ativismo”; “Construção de pautas”; “Estratégias de ativismo”; “Significação do grupo minoritário”; “Pertença a grupo minoritário”; “Pautas da população LGBTQIA+” e “Percepção acerca do grupo LGBTQIA+”.

Considerando tanto a melhor organização dos resultados como o conteúdo das categorias secundárias e a relação existente entre estas, dividiu-se a categoria primária, “Identidade ativista”, em duas dimensões que contemplaram 1) o “Ciberativismo”, englobando sua definição, estratégias e construção de pautas, e 2) a “Identificação como LGBTQIA+”, englobando o significado dado à minoria, o pertencimento e a identidade social.

Ciberativismo

A primeira dimensão, denominada ciberativismo, estrutura-se em torno da definição que os youtubers dão para esse processo, as estratégias que utilizam e as pautas que orientam suas ações. O ativismo aparece nas entrevistas como um meio de resistência aos processos de exclusão social. Como afirma a entrevistada Luana Barbosa, “se ser lésbica é sofrer preconceito cotidianamente, vou lutar contra isso. Nunca quis ser estatística de morte”. O ciberativismo no YouTube contempla esse processo e, além disso, propõe-se a dialogar sobre experiências pessoais na tentativa de promover visibilidade às identidades e identificações com elas (Illia, 2003Illia, L. (2003). Passage to cyberactivism: How dynamics of activism change. Journal of Public Affairs, 3(4), 326-337. https://doi.org/10.1002/pa.161
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).

Os entrevistados entendem que seus canais podem ser classificados como uma estratégia de educação e de influência social, e que seus vídeos se constituem como meios de discussão, reflexão e sensibilização sobre a vivência de pessoas LGBTQIA+. Deslandes (2018Deslandes, S. F. (2018). O ativismo digital e sua contribuição para a descentralização política. Ciência & Saúde Coletiva, 23(10), 3133-3136. https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.21122018
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) afirma que a ação ativista no meio digital contribui para a descentralização política de temas tradicionalmente pautados. A informação levada pelos entrevistados aos seus seguidores pode ser vista como uma possibilidade de influência social das minorias ativas (Moscovici, 2011Moscovici, S. (2011). Psicologia das minorias ativas. Vozes.).

A influência social ajuda a entender como a convivência de pessoas de grupos diferentes pode proporcionar a formação de valores, crenças e atitudes, contribuindo para o estabelecimento de novas normas sociais (Volpato et al., 2019Volpato, A. N., Luvizotto, C. K., & Versuti, C. D. (2019). Visibilidade como estratégia, estratégias de visibilidade: Movimentos sociais contemporâneos na internet. Eco-Pós, 22(1), 352-383. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v22i1.15992
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). Para os entrevistados, o processo de influência social gerado pelo ativismo é expresso em ações cotidianas, rotineiras e que geram quebra de paradigmas, reflexões e diálogos. Como diz Luana Barbosa: “a questão de ser influenciador nesse segmento é poder gerar discussão, incômodo. Isso é possível quando estamos com voz ativa”.

A concepção de ativismo apresentada pelos entrevistados dessa pesquisa também reflete a ideia de ações que perpassam um posicionamento político e ideológico direcionado à justiça (Moreira & Rique, 2019Moreira, P. L., & Rique, J. (2019). Julgamento moral e posicionamento político-ideológico de jovens brasileiros. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 71(1), 54-67.). Nessa perspectiva, a indignação pode ser percebida como uma motivação baseada em valores éticos e, também, em um componente afetivo.

O trecho da entrevista de Anne Mickaelly, apresentado a seguir, demonstra que o sentimento de privação e a necessidade de justiça social podem ajudar a explicar as ações ativistas, como exposto por Mendonça & Fuks (2015Mendonça, C., & Fuks, M. (2015). Privação relativa e ativismo em protestos no Brasil: Uma investigação sobre o horizonte do possível. Opinião Pública, 21(3), 626-642. https://doi.org/10.1590/1807-01912015213626
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):

Qualquer pessoa que reconhece o contexto social político e se reconhece dentro dele e faz alguma coisa em relação a isso, para mim, ela já está se engajando com ativismo. Para mim, é isso! Eu acredito que o ativismo é uma coisa que vem muito de dentro mesmo. Ele nasce na indignação, sabe? (Anne Mickaelly)

A noção de ativismo está relacionada a uma questão cultural. É importante considerar que a compreensão desse conceito vem se alterando ao longo do tempo devido às diversas mudanças impulsionadas pela internet e pela velocidade das informações. Assim, as ações ativistas precisam ser vistas a partir de suas intenções. Ser ativista envolve questões atitudinais, cognitivas, afetivas e grupais, pois, ainda que a motivação inicial seja individual, há o objetivo de modificação do sistema (Greijdanus et al., 2020Greijdanus, H., Fernandes, C. A. M., Turner-Zwinkels, F., Honari, A., Roos, C. A., Rosenbusch, H., & Postmes, T. (2020). The psychology of online activism and social movements: Relations between online and offline collective action. Current Opinion in Psychology, 35, 49-54. https://doi.org/10.1016/j.copsyc.2020.03.003
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).

A construção das identidades dos entrevistados como ativistas não é percebida a partir do pertencimento a apenas uma única categoria social, mas às diferentes pertenças sociais. Os dois entrevistados negros (Diego e Luana) adotam a intersecção entre raça e orientação sexual como a principal pauta de seus canais. Essa questão não aparecia nos debates das redes à época em que criaram seus canais, o que justificou a abertura desse diálogo por eles. Assim, a ação de Diego e Luana pode ser analisada, do ponto de vista político, como resistência e estratégia de visibilidade de uma discussão não contemplada (Volpato et al., 2019Volpato, A. N., Luvizotto, C. K., & Versuti, C. D. (2019). Visibilidade como estratégia, estratégias de visibilidade: Movimentos sociais contemporâneos na internet. Eco-Pós, 22(1), 352-383. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v22i1.15992
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). Sobre a criação do canal no YouTube, Diego afirmou:

Eu acredito que, como provavelmente aconteceu com a maioria dos outros criadores LGBTs, ou principalmente os LGBTs negros, pela ausência de representatividade e de pautas que são colocadas para públicos grandes e que não te contemplam. Isso é muito comum entre criadores, principalmente os voltados para a militância. Se não tem, eu vou fazer. E começou por aí, dessa necessidade de fazer com que vivências próximas a minha fossem espalhadas e talvez ouvidas por outras pessoas que talvez estejam em outros nichos, outras bolhas (Diego Vieira).

Da mesma forma, a entrevistada Anne Mickaelly aponta que ser uma lésbica considerada mais masculinizada é uma questão importante abordada em seu canal. Já a entrevistada Dandara discute questões sobre transexualidade, mas também fala sobre maquiagem e beleza, visto que esse conteúdo faz parte de seu trabalho fora da rede. Percebe-se assim que, apesar de todos os entrevistados se considerarem ativistas pela causa LGBTQIA+, seus canais são amplos e trazem narrativas e temas que se interligam com suas pertenças sociais e vivências pessoais. De fato, a construção das identidades é um processo complexo e multifacetado (Deschamps & Moliner, 2014Deschamps, J. C., & Moliner, P. (2014). A identidade em psicologia social: Dos processos identitários às representações sociais (2a ed.). Vozes.). Os discursos apresentados no YouTube pelos entrevistados os representam não apenas como ativistas ou como pessoas LGBTQIA+, mas também a partir de outras identidades que os constituem.

Para eles, suas identidades ativistas configuram-se, também, a partir do momento em que se sentem visíveis, isto é, quando seu discurso é escutado. Nesse sentido, percebe-se que a visibilidade é um fator importante para os youtubers, aparecendo de forma dialética no uso da internet: por um lado, ela pode ser percebida como estratégia e, por outro, como objetivo. Nota-se que uma das formas de usar a visibilidade como estratégia são as ações baseadas em relatos sobre experiências pessoais, ou seja, a conquista do reconhecimento identitário a partir de vivências que confirmam processos de marginalização ou discriminação social.

A busca de estratégias de visibilidade coletivas acontece, de forma mais clara, quando youtubers se reúnem nas chamadas collabs, termo utilizado para se referir à criação de conteúdos em que há a participação de dois ou mais youtubers de canais diferentes em um único vídeo. Dos quatro entrevistados, Luana e Anne Mickaelly reconhecem as collabs como uma forma interessante de proporcioar um diálogo produtivo, principalmente quando reúne pessoas com vivências diferentes ou que representem diferentes letras da sigla LGBTQIA+. Em um grupo diverso, a possibilidade de reunião de pessoas com perspectivas distintas fortalece as suas ideias, visto que, em alguns desses vídeos, são perceptíveis as similaridades e diferenças entre as letras da sigla.

Para Tajfel (1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.), a união do grupo pode ser um fator que motiva a mudança social. As estratégias grupais são sempre mais eficazes do que as individuais. Ao reunir-se em collabs, os criadores de conteúdo fortalecem a imagem do grupo e trazem discussões identitárias diferentes. Naujorks & Silva (2016Naujorks, C. J., & Silva, M. K. (2016). Correspondência identitária e engajamento militante. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 16(1), 136-152. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2016.1.18139
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) afirmam que a construção da identidade ativista de grupos minoritários é perpassada por questões coletivas, visto que a experiência de exclusão e de discriminação não é individual, mas compartilhada por indivíduos de um mesmo grupo. Nesse sentido, entender como o grupo se mobiliza coletivamente é essencial.

O ciberativismo LGBTQIA+ ganha força ao dar visibilidade às suas pautas e fortalecer as identidades dos membros do grupo. No entanto, a mesma plataforma que possibilita essas ações também as limita. Os entrevistados mencionam a dificuldade de falar sobre alguns assuntos que são considerados não recomendados pelos algoritmos do YouTube. Discutir sobre sexo, por exemplo, pode classificar um vídeo como não recomendado, não conferindo publicidade ou monetização aos criadores de conteúdo a partir da quantidade de acesso do material (Burgess & Green, 2009Burgess, J., & Green, J. (2009). YouTube e a revolução digital: Como o maior fenômeno da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. Aleph.). Ou seja, pode-se não avançar em algumas pautas devido à pouca divulgação de um vídeo ou mesmo da reticência de alguns youtubers em falar sobre elas.

A entrevistada Anne Mickaelly parece ter clareza acerca dos limites do ativismo no YouTube quando relata que, em cada rede social da qual faz parte, coloca-se de forma diferente, tendo em vista as especificidades desses espaços virtuais:

No meu Twitter, é onde eu sou sem filtro. É onde eu falo muito de política. É onde eu xingo mesmo. É onde eu mando tomar no cu. Eu uso diversas estratégias, eu tô sempre estudando assim porque fazer o conteúdo que eu faço não é fácil. Ele é um conteúdo odiado pelos algoritmos. Então, assim, eu falo de sexo no YouTube e colocam meus números lá no lixo, sabe? (Anne Mickaelly)

Apesar do lema do YouTube ser Broadcast Yourself [Transmita-se], nem todos os temas são igualmente visibilizados dentro da plataforma. Em complemento à ideia da Anne Mickaelly, Diego acrescenta que muitas marcas patrocinam iniciativas de youtubers LGBTQIA+ quando percebem a possibilidade de retorno financeiro:

As marcas vão monetizar pautas políticas sem sombra de dúvidas. O YouTube começou com entretenimento e você vê vídeos de todo lugar. Aí ele expandiu para espaços como a militância. Lembro de ter visto alguns estudos que diziam que os algoritmos interferem no que o YouTube entrega, reforçando estereótipos de gênero. Tutorial de maquiagem, vai aparecer mais mulheres; futebol, vai aparecer mais homens. E teve a polêmica do que ocorreu com a parada. Nada de novo. Todo ano, empresas vão lá e colocam influenciadores brancos, cis, privilegiados. Esse ano o YouTube foi lá, tentou fazer e foi super criticado, porque não faz sentido, num mar imenso de criadores negros, você colocar vários criadores brancos e um criador negro (Diego Vieira).

Deslandes (2018Deslandes, S. F. (2018). O ativismo digital e sua contribuição para a descentralização política. Ciência & Saúde Coletiva, 23(10), 3133-3136. https://doi.org/10.1590/1413-812320182310.21122018
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) entende que, apesar de uma falsa sensação de liberdade de expressão, as redes sociais também são envolvidas por relações de poder como em uma microesfera social, reproduzindo padrões vigentes e criando um espaço não inteiramente democrático. Isso afeta diretamente a construção de pautas por esses ativistas. Uma estratégia usada por Dandara, por exemplo, é a de misturar conteúdos de tom mais ativista, ou que explicam questões relativas à identidade de gênero, com tutoriais de maquiagem. Segundo a entrevistada, os vídeos que não abordam conteúdo ativista em seu canal:

São coisas que já são criadas e eu deixo como alívio para o canal entre os temas mais difíceis de abordar, mais pesados ou vídeos muito longos. Daí, eu sempre incluo um pouco desses vídeos assim, de dispersão, sabe? Falo alguma coisa sobre transexualidade, sobre a temática LGBT e, logo depois, já vem com outro vídeo de maquiagem (Dandara dos Santos).

É difícil pensar o ciberativismo no YouTube sem refletir como as próprias características da plataforma afetam suas pautas e estratégias, implicando, de alguma forma, no próprio entendimento daquele youtuber sobre ser um ativista ou não. Portanto, pode-se entender o youtuber como um ativista midiático, com maior alcance de comunicação, mas rodeado de limites em virtude das questões ligadas à monetização. Estas, por sua vez, se referem à quantidade de visualizações, curtidas, comentários e, consequentemente, pessoas que serão atingidas por essa forma de ativismo.

Além disso, é importante considerar que o papel político de ciberativistas LGBTQIA+ no YouTube contempla também o aspecto da visibilidade individual, que pode gerar ganhos materiais e simbólicos para o indivíduo (Burgess & Green, 2009Burgess, J., & Green, J. (2009). YouTube e a revolução digital: Como o maior fenômeno da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. Aleph.). Assim, é preciso que o grupo exista socialmente e seja respeitado, contudo, as limitações da plataforma e uma certa glamourização do youtuber podem prejudicar a função ativista desses canais.

Identificação como LGBTQIA+

A segunda dimensão analisada aborda a identificação LGBTQIA+ a partir do significado que os entrevistados dão à minoria e ao pertencimento a uma categoria social minoritária e especificamente à categoria social LGBTQIA+. Os entrevistados desta pesquisa se reconhecem como parte de minorias sociais e se percebem como membros da população LGBTQIA+, ainda que ressaltem outros fatores identitários como raça, característica corporais e classe social. Nas falas dos youtubers, percebe-se que esse reconhecimento é motivo de orgulho. Luana Barbosa diz que sua identidade é “motivo de orgulho e luta”. Já Dandara diz que:

Cada minoria com suas pautas e lutas, mas que quando a gente vai analisar, é sempre minoria. São aquelas pessoas que são deixadas à margem, que não têm seus direitos respeitados. Gosto de fazer parte de uma minoria. Eu me sinto única, como se estivesse descobrindo o mundo, informando o mundo, sendo pioneira. A gente tem essas questões sociais, não tem os direitos garantidos, mas eu me sinto muito única, nesse sentido. Eu tenho maior orgulho de ser quem eu sou (Dandara dos Santos).

O conteúdo da fala de Dandara permite identificar a noção de minoria associada à violação de direitos e à pouca representatividade e participação social, assim como a perspectiva de Tajfel (1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.) sobre o conceito de minorias. A população LGBTQIA+ pode ser entendida como uma minoria social, pois se encontra em situação de exclusão social em virtude dos processos de preconceito e violação de direitos que caracterizam as suas experiências sociais. Nesse sentido, torna-se necessária a luta desse grupo pela afirmação de seus direitos e manutenção de suas vidas (Catão et al., 2015Catão, M. O., Farias, C. L. D., Lima, D. M. C., & Góes, L. C. M. (2015). Da exclusão social aos direitos de cidadania: Percursos e percalços da população LGBT de Campina Grande-PB. Dat@venia, 7(1), 5-30.).

Um aspecto que merece destaque é que Dandara se sente informando as pessoas sobre pautas políticas à medida que vai tomando consciência de si, das suas pertenças a categorias sociais e das suas relações com o mundo. Esse processo dialético remete à ideia de que as minorias podem tomar um lugar de influência social a partir do momento que se unem e criam estratégias de visibilidade e desejabilidade social, entendendo-se como socialmente ativas conforme se organizam e se mostram existentes (Moscovici, 2011Moscovici, S. (2011). Psicologia das minorias ativas. Vozes.).

Os entrevistados também são unânimes quando reconhecem que, desde o momento que entenderam sua orientação sexual ou sua identidade de gênero de forma positiva, surgiram o orgulho e a necessidade de luta. Nesse sentido, aceitar-se, para uma parte da população LGBTQIA+, foi um ponto decisivo para a construção de uma identidade pessoal positiva e, também, para o entendimento da necessidade de agir de maneira ativista. Anne Mickaelly se descreve da seguinte forma: “Sou ativista… LGBT, feminista, interseccional, de diversos movimentos. Já coloco isso tudo no meu currículo para não ter perigo de trabalhar para uma empresa preconceituosa, homofóbica”.

A identidade social pode ser vista como o sentimento de ser reconhecer como parte de um grupo e de pertencer a ele (Tajfel, 1972Tajfel, H. (1972). La catégorisation sociale. In S. Moscovici (Org.), Introduction à la psychologie sociale (Vol. 1, pp. 272-302). Larousse.). Para Moscovici (2011Moscovici, S. (2011). Psicologia das minorias ativas. Vozes.), pode-se refletir sobre o processo de aceitação de uma minoria, visto que há um conflito psicológico entre a situação de exclusão social e uma avaliação satisfatória de si mesmo. Assim, reconhecer-se como LGBTQIA+ é saber da inevitabilidade de experiências que podem ser vistas negativamente, como a discriminação, mas, ainda sim, identificar a potência em fazer parte desse grupo. Portanto, passar pelo processo de aceitação implica ressignificar, a partir do processo de criatividade social, um lugar definido socialmente como inferior (Fernandes & Pereira, 2018Fernandes, S. C. S., & Pereira, M. E. (2018). Endogrupo versus exogrupo: O papel da identidade social nas relações intergrupais. Estudos & Pesquisas em Psicologia, 18(1), 30-49. https://doi.org/10.12957/epp.2018.38108
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). Percebe-se como positivo o significado compartilhado pelos entrevistados dessa pesquisa no reconhecimento como população minoritária. Nesse sentido, os youtubers assumem identidades sociais positivas como população minoritária e grupo LGBTQIA+, pertenças sociais que contribuem diretamente para as ações ativistas. Essa ideia pode ser ilustrada no seguinte relato:

Teve a ver com o meu processo de aceitação enquanto mulher preta, pobre e sapatão. Me reconhecer enquanto possível, dentro desse recorte, só foi possível quando eu entendi que precisava ter orgulho e visibilizar minha identidade e lutar por ela, falar sobre ela (Luana Barbosa).

Com a criatividade social, os membros de um grupo procuram uma distintividade positiva para o grupo de pertença, alterando os elementos de comparação com grupos mais favorecidos. Para Cabecinhas (2007Cabecinhas, R. (2007). Preto e branco: A naturalização da discriminação racial. Campo das Letras.), estratégias grupais, como a criatividade social, são sempre estratégias mais eficazes, tendo em vista que elas tendem a beneficiar uma coletividade e não apenas um indivíduo.

Da mesma forma, os youtubers entrevistados reconhecem que suas ações ativistas implicam o reconhecimento e a aceitação de seus seguidores. Claramente, isso sugere que a ocupação de espaços de influência reforça uma identidade social positiva, mesmo que, ao assumi-la, o indivíduo se coloque no lugar de alvo de exclusão social. Diego Vieira diz que “essa é a melhor parte de estar no YouTube. Fazer um vídeo e saber que aquilo ajudou alguém a se aceitar”. Em outros casos, os vídeos podem auxiliar pais e demais familiares de pessoas LGBTQIA+:

Mães que vieram me agradecer porque não sabiam nem por onde iniciar. Teve uma história que eu me lembro muito bem, que a mãe chegou para mim desesperada e disse que ela precisava ter um mecanismo de ligação com a filha que era trans. Uma transexual feminina. Daí eu disse assim: qual o nível de transição que ela passa? Aí ela disse: a gente está começando ir para o psicólogo agora. Esteticamente, eu ainda vejo como um menino. Eu falei: então você precisa apoiar, porque já que ela está começando, por que você não compra uma roupa bonita? Dê para ela uma roupa desenvolvida para o corpo feminino, um sutiã, por exemplo, que é bem característico. E aí dá de presente para tua filha. Porque vai mostrar para ela que você tá preocupada, que você tem interesse no que ela tá vivendo. Daí ela fez e deu de presente e veio me trazer a resposta, disse que a filha dela ficou muito mais feliz, que sorri mais, mesmo às vezes com os problemas de disforia, de autoaceitação. Só depois de muito tempo que a gente consegue viver com isso. Então, para mim é muito gratificante e eu quero ter mais experiências como essa, sabe? (Dandara dos Santos)

Em uma perspectiva política, os youtubers reconhecem a dificuldade de garantia de direitos civis vivenciada pela população LGBTQIA+. Nesse sentido, eles identificam suas ações como uma forma de amplificar a voz desse grupo, entendendo que a vitória de um significa ganho social para muitos:

Eu penso que, se aqui no Brasil está tudo bem, mas na Somália não está, então não está tudo bem para ninguém. Eu só vou ficar em paz na hora que todo LGBT do mundo inteiro tiver em paz. É isso que eu quero, é esse o meu objetivo. É nossa obrigação fazer funcionar as leis que a gente já tem hoje. A homofobia é crime, então denunciar, fazer funcionar, fazer o casamento funcionar. Eu estou preocupada em sobreviver, de verdade, do fundo do coração (Anne Mickaelly).

Por fim, entende-se que as pautas a serem trabalhadas pelos youtubers se relacionam com o grupo minoritário do qual fazem parte e com sua significação, visto que, ao entenderem a importância de sua ação para o grupo, compreendem a relevância de sua fala e de sua visibilidade. Os relatos dos entrevistados demonstram que o ciberativismo colocado em prática pelos youtubers é uma forma de tornar a minoria ativa, como afirma Moscovici (2011Moscovici, S. (2011). Psicologia das minorias ativas. Vozes.), mas que isso é impossível sem a positivação da identidade social LGBTQIA+, de acordo com a ideia de Tajfel (1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.). Nessa perspectiva, ser existente e visibilizado socialmente se torna fundamental para que a minoria se coloque no lugar de influenciadora (Hernandez et al., 2013Hernandez, A. R. C., Accorssi, A., & Guareschi, P. (2013). Psicologia das minorias ativas: Por uma psicologia política dissidente. Revista Psicologia Política, 13(27), 383-387.). Ao mesmo tempo, para que isso aconteça, o grupo minoritário precisa estar ciente tanto de suas vulnerabilidades sociais como de seus direitos, compreendendo-se como grupo, significando-o como positivo e adotando a ação ativista como uma forma de criatividade social (Tajfel, 1982Tajfel, H. (1982). Grupos humanos e categorias sociais. Livros Horizonte.).

Considerações finais

A partir do objetivo deste artigo, compreende-se que caracterizar os ativistas LGBTQIA+ que utilizam o YouTube como meio de comunicação é uma tarefa ampla e multifacetada. Essas ações ganham cada vez mais espaço e reconhecimento atualmente.

O ciberativismo foi percebido pelos entrevistados como uma maneira mais efetiva de difusão de suas pautas e reivindicações. No entanto, apesar da literatura entender o YouTube como forma de comunicação participativa, a maneira como a plataforma vem reagindo a vídeos que falam sobre temáticas relativas ao universo LGBTQIA+ pode diminuir a potencialidade dessa comunicação e a robustez das ações desses ativistas. Por outro lado, há o entendimento de que alguns dos youtubers do segmento LGBTQIA+ ganham também de forma individual, ao visibilizarem sua imagem e serem reconhecidos como pessoas da mídia, o que pode ter implicações negativas para a compreensão dessas ações como ativistas. Isto pode ser pensado como uma característica do ciberativismo, o que o difere do chamado ativismo de rua.

Os youtubers entrevistados entenderam que o processo de criação de canais na plataforma foi uma forma de lidar com seu próprio reconhecimento identitário, assim como se relaciona à necessidade de compartilhar informações sobre as intersecções de suas identidades. Não basta apenas transmitir suas experiências como alguém LGBTQIA+, mas também como negro, periférico, mulher etc. Desse modo, parece claro que a identidade ativista dos youtubers é permeada pelo processo de entender-se como parte de grupos minoritários, fazendo com que os entrevistados compreendam que o ativismo está intrinsecamente ligado a sua percepção como membro de um ou mais grupos em situação de exclusão social.

Observou-se também que a compreensão sobre o ativismo dos entrevistados atua diretamente sobre sua identidade ativista. A ideia que cada um tem sobre o ativismo se relaciona com as ações desse fazer, ou seja, as estratégias utilizadas e a construção de pautas. Uma das principais razões do fazer ativista, além de reivindicar melhores condições sociais para o endogrupo, é a de auxiliar no processo de positivação da identidade social LGBTQIA+. Nesse sentido, as collabs podem ser pensadas como uma estratégia de aproximação das semelhanças das diversas identidades LGBTQIA+, bem como de diálogo sobre as diferenças existentes dentro desse grupo devido a sua pluralidade.

Embora se reconheçam limitações no estudo, especialmente em relação ao número de participantes e à amplitude das categorias investigadas para a compreensão das ações ciberativistas, vale destacar a importância dos resultados alcançados para a identificação de aspectos que são essenciais para a análise da identidade ativista de youtubers. Os participantes desse estudo se identificam como ativistas não apenas por suas ações políticas, mas também pela consciência de experimentarem uma realidade de exclusão social, em decorrência de fazerem parte de um ou mais grupos minoritários. De forma dialética, essa consciência favorece o fortalecimento do grupo, o reconhecimento de suas potências e a afirmação de suas identidades sociais. Esse processo caracteriza o grupo como uma minoria ativa, que organizada assume poder de influência social sobre a maioria. Para ampliar a análise desse processo, são necessários novos estudos que contemplem um maior número de participantes e outras dimensões de análise, tais como o comprometimento, a participação e a motivação para ações políticas, e que possam ser desenvolvidos a partir de outras metodologias.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2020
  • Aceito
    05 Jul 2021
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