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Biblioteca Invisível1 1 O termo “Biblioteca Invisível” é inspirado no livro Le Musée Invisible de Nathaniel Herzberg (CLAUDIO, 2016, não paginado). O autor e repórter do jornal Le Monde afirma que esse museu seria composto por obras de arte roubadas ao longo da história e, portanto, teria uma das maiores e mais valiosas coleções do mundo dado o grande número de casos. Nesse sentido, para essa pesquisa, se pensou a biblioteca invisível como aquela na qual o acervo seja constituído pelo conjunto de obras afetadas pela biblioclastia. Se diz invisível pelo fato de que as obras não podem mais ser vistas (em alguns casos podem apenas por um grupo seleto de pessoas). Não cumprem mais seu papel como patrimônio tangível por terem sido destruídas ou estarem desaparecidas. Assim, a biblioteca invisível é uma metáfora utilizada por não ser possível quantificar as perdas causadas pela biblioclastia. Esse termo pretende ser uma representação para possibilitar uma ideia dos danos derivados das práticas biblioclásticas. : a biblioclastia na Guerra da Bósnia e Herzegovina (1992-1995)

Invisible Library: biblioclasm in the Bosnia and Herzegovina War (1992-1995)

RESUMO

As bibliotecas e os livros têm sido alvos constantes de ataques e de destruições ao longo da história, em especial em situações de tensionamentos sociais e culturais e de conflito armado. Não obstante, o fenômeno da biblioclastia, entendida a rigor como a destruição de livros e de bibliotecas, não costuma ser percebido como um gesto proposital. A compreensão do tema é necessária para a proteção do patrimônio bibliográfico tanto por profissionais da informação quanto por meio do estabelecimento de políticas para proteção dos bens culturais. O presente estudo apresenta alguns atos de biblioclastia sucedidos no contexto da Guerra da Bósnia e Herzegovina, ocorrida entre 1992 e 1995. Utiliza como metodologia a análise de bibliografia especializada nos campos da História do Livro e das Bibliotecas, Memória e Patrimônio Bibliográfico, a partir de Báez (2006), Battles (2003) e Polastron (2013) - o que evidencia a natureza bibliográfica e o caráter exploratório da pesquisa. Evidencia as relações entre memória, patrimônio bibliográfico e identidade. Define o termo de Biblioteca Invisível como uma metáfora para um acervo intocável por causa da destruição. Desmembra o conceito da Biblioclastia, o considerando recorrente e, como demonstrado neste estudo, proposital e sistemático. Descreve o contexto e as razões para o estopim da Guerra da Bósnia e Herzegovina. Conclui que as motivações para as práticas de biblioclastia ocorridas na Guerra da Bósnia e Herzegovina são quatro: o apagamento da memória, o renascimento histórico-cultural, a purificação étnica e a dominação. A biblioclastia se expressa de diversas formas, em diferentes territórios e em múltiplas temporalidades, portanto, perceber as suas motivações é fundamental à compressão das operações de memória e de preservação que determinam a manutenção e/ou destruição dos bens culturais no tempo.

Palavras-chave:
Biblioclastia; Bósnia e Herzegovina, Guerra da, 1992-1995; Patrimônio bibliográfico; Danos de guerra; História do Livro e das Bibliotecas

ABSTRACT

Libraries and books have been a constant target of attacks and destruction throughout history, especially in situations of social and cultural tension and armed conflict. Nevertheless, the phenomenon of biblioclasm, strictly understood as the destruction of books and libraries, is not usually perceived as a purposeful gesture. Understanding this theme is necessary for the protection of the bibliographic heritage both by information professionals and by establishing policies to protect cultural assets. The present study presents some acts of biblioclasm that took place in the context of the Bosnia and Herzegovina War, which occurred between the years of 1992 and 1995. It uses as methodology the analysis of specialized bibliography in the fields of History of Books and Libraries, Memory and Bibliographic Heritage (notably books, journalistic articles and documents), also from Báez (2006), Battles (2003) and Polastron (2013) - which highlights the bibliographic and exploratory nature of the research. It highlights the relationship between memory, bibliographic heritage and identity. It defines the term invisible library as a metaphor for an untouchable collection because of destruction. It dismembers the concept of biblioclasm, understanding it as recurrent and, as demonstrated in this study, purposeful and systematic. It describes the context and reasons for the outbreak of the Bosnia and Herzegovina War. It concludes that the motivations for the practices of biblioclasm that occurred in the War of Bosnia and Herzegovina are four: the erasure of memory, the historical-cultural revival, the ethnic purification and the domination. Biblioclasm is expressed in different ways, in different territories and in multiple temporalities, therefore, understanding its motivations is fundamental to the compression of memory and preservation practices that determine the maintenance and/or destruction of cultural goods over time.

Keywords:
Biblioclasm; Bosnia and Hezergovina, War, 1992-1995; Bibliographic heritage; War damage; History of Books and Libraries

1 Introdução

O século XX foi um dos séculos mais cruéis quando se trata de guerras e a Europa foi palco, para alguns dos maiores e mais desastrosos conflitos conhecidos. Nesse cenário, o que muitas vezes passa despercebido é o fim que levam os livros e as bibliotecas, enquanto patrimônio bibliográfico. As perdas patrimoniais derivadas das guerras já não podem ser recuperadas ou sequer quantificadas. Pode parecer distante pensar que isso acontece às bibliotecas, mas como indica Darnton (2001, p. 1) sobre esses espaços, “Vistas de dentro de grandes monumentos, elas parecem indestrutíveis. Mas, de fato, a história mostra que bibliotecas estão sempre sendo destruídas, e cada vez que uma biblioteca vem abaixo muito da civilização desaba com ela.”.

A destruição de livros e de bibliotecas, também conhecida como biblioclastia, é uma prática comum em períodos de guerra e atentam contra algumas das principais funções de uma biblioteca: preservação e acesso. De acordo com Chartier (2009CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 160 p., p. 23), “A fogueira em que são lançados os maus livros constitui a figura invertida da biblioteca encarregada de proteger e preservar o patrimônio textual.”.

O aprofundamento na questão da destruição dos livros e das bibliotecas é necessário a partir da percepção de que muitas vezes se estuda e se produz conhecimento relativo à construção do patrimônio, seu surgimento, mas em menor escala são realizadas pesquisas sobre o seu fim. O patrimônio bibliográfico, assim como de outras tipologias, quando se torna alvo em situações de guerra, acaba que por remover da população aquilo que representa e permite a evocação de suas memórias. Nesta direção, esta pesquisa, de caráter bibliográfico, teórica e qualitativa2 2 Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa foi realizada a partir da busca de materiais em diferentes domínios como a Jstor, o Project Muse, a BRAPCI, o Portal Capes, bibliotecas da ONU, UNESCO e IFLA e o site Heritage Sense Agency. Contatos não bem-sucedidos foram realizados com bibliotecas na Bósnia e Herzegovina. As notícias sobre a guerra que fazem parte do acervo documental do Centro de Informação Europeia da UFRJ também foram acessadas. Nesta pesquisa destacam-se, para além dos livros, as seguintes fontes: a correspondência eletrônica trocada com o especialista em patrimônio islâmico e professor da Universidade de Harvard, András Riedlmayer e os relatórios do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia (ICTY). Como fontes bibliográficas principais, destacamos os livros A história universal da destruição das bibliotecas: das tábuas sumérias à guerra do Iraque, de Fernando Báez (2006), A conturbada história das bibliotecas, de Mathew Battles (2003) e Livros em chamas: a história da destruição sem fim das bibliotecas, de Lucien X. Polastron (2013). , pretende identificar e discutir as motivações para a prática de biblioclastia no contexto da Guerra da Bósnia e Herzegovina, entre os anos de 1992 e 1995. Sendo assim, este estudo é sustentado pela seguinte questão: Quais as motivações para a destruição de livros e de bibliotecas no contexto da Guerra da Bósnia e Herzegovina nos anos de 1992 até 1995?

Construindo um caminho para as motivações a partir das destruições do patrimônio bibliográfico ao longo da guerra supramencionada, pretende-se contribuir para o entendimento da biblioclastia como um fenômeno que precisa ser compreendido para que se possa também evitá-lo. Indo além, se espera fortalecer os pilares conceituais que auxiliam na prevenção do fim dos livros e das bibliotecas, especificamente no contexto da Bósnia e Herzegovina, mas cujo percurso pode se estender à biblioclastia que também se expressa em outros territórios, incluindo o Brasil.

2 Memória, patrimônio bibliográfico e identidade

A memória é um dos elementos essenciais na formação de uma pessoa ou de um povo, ela é a capacidade de rememorar aspectos sociais, culturais, religiosos, entre tantos outros. Para auxiliar na preservação da memória, o ser humano começou a registrá-la e as bibliotecas são alguns dos lugares responsáveis por abrigar esses registros.

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. (NORA, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto história, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. Tradução: Yara AunKhoury., p. 13).

Sem os registros e esses espaços como abrigos, muito da memória - quando apenas oral - não resistira ao tempo, se perderia sem alcançar o presente ou o futuro. Le Goff (1990, p. 423) afirma que “A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.”. Contudo, caso não as passasse para outras gerações, muito se perderia quando o possuidor das memórias morresse. Ainda sobre a memória, Murguia declara que ela é uma:

[...] espécie de cordão que amarraria nossos atos e pensamentos, permitindo uma continuidade que, ao longo de um período de tempo, articulasse nossa existência [...]. Assim, presentificando o passado de forma contínua e constante, somos capazes de lembrar acontecimentos, ideias [...] permitindo a formação de pensamentos e a experiência de sentimentos. (2010, p. 18).

Dessa forma, é possível perceber que a memória é essencial para a existência humana, entretanto, por vezes tentam manipulá-la. Como afirma Pollak (1992POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. Esta conferência foi transcrita e traduzida por Monique Augras., p. 204) “[...] a memória é um fenômeno construído.” e, em face disso, ela pode ser modificada e alterada naturalmente ou de forma a favorecer determinados interesses, como ocorre nas guerras. Nessa tentativa de transformar a memória, os livros e as bibliotecas podem ser obstáculos. Isso se dá, pois a relação entre a memória, os documentos e as unidades de informação permite ultrapassar os limites temporais, ela toca o passado, alcançando também o presente e chegando até o tempo futuro. De acordo com Silveira e Moura (2016SILVEIRA, Fabrício José Nascimento da Silveira; MOURA, Maria Aparecida. Biblioteca, memória institucional e acesso aberto à informação: apontamentos teóricos e as experiências desenvolvidas pela UFMG. In: RIBEIRO, Anna Carolina Mendonça; FERREIRA, Pedro Cavalcanti Gonçalves (Orgs.). Biblioteca do século XXI: desafios e perspectivas. Brasília: IPEA, 2016, p. 197-222. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7426/1/Biblioteca%20do%20s%C3%A9culo%20XXI_desafios%20e%20perspectivas.pdf. Acesso em: 01 jul. 2022.
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream...
, p. 206):

[...] se a memória é capaz de distender conceitos duros e de reevocar não simplesmente o passado, mas o passado que prometia, as bibliotecas se configuram como espaços onde o homem, sua herança cultural, seu patrimônio simbólico, seus substratos de conhecimentos e sua memória social se mesclam na tentativa de superar o esquecimento e se preservarem futuro adiante.

O patrimônio é um dos possíveis resultados obtidos da representação de memórias, do registro do passado e do presente, da criatividade, do intelectual, das características - sejam religiosas, históricas ou culturais - de um povo. A UNESCO, ao tratar sobre patrimônio bibliográfico, tipologia patrimonial escolhida nessa pesquisa, aponta que estes são reconhecidos por ser:

[...] símbolos e ter características relevantes para a memória coletiva de uma comunidade, nação, região ou sociedade. Por meio do seu suporte e conteúdo, os documentos refletem a diversidade de povos, culturas e idiomas, se tornando parte do patrimônio humano. (UNESCO, 2017, não paginado, tradução nossa3 3 “[...] symbols of and have features relevant to the collective memory of a community, nation, region or society. Through their support and content, documents reflect the diversity of peoples, cultures and languages, and become part of the heritage of humanity.”. (UNESCO, 2017, não paginado). ).

Percebe-se então que os materiais bibliográficos tidos como patrimônio são assim denominados em vista de sua relevância para um grupo. No panorama geral de patrimônio, o fragmento abaixo deixa clara a importância do patrimônio para a evocação da memória e construção da identidade. O patrimônio:

É o conjunto de bens, materiais e imateriais, que são considerados de interesse coletivo, suficientemente relevantes para a perpetuação no tempo. O patrimônio faz recordar o passado; é uma manifestação, um testemunho, uma invocação, ou melhor, uma convocação do passado. Tem, portanto, a função de (re)memorar acontecimentos mais importantes; daí a relação com o conceito de memória [...] É o conjunto de símbolos sacralizados, no sentido religioso e ideológico, que um grupo, normalmente a elite, política, científica, econômica e religiosa, decide preservar como patrimônio coletivo. (RODRIGUES, 2002, p. 4).

Outro autor, Palma Peña, amplia o conceito de patrimônio bibliográfico ao dizer que:

[...] o que constituí o patrimônio bibliográfico e documental são as expressões artísticas, históricas, culturais, folclóricas, educativas, intelectuais e científicas, entre outras, que tenham sido produzidas para atestar o desenvolvimento das sociedades e que, por sua vez, tenham sua objetificação em manuscritos, impressos, meios audiovisuais, documentos eletrônicos e de outros tipos com a finalidade de armazenar, transmitir, preservar, conservar, comunicar e difundir o conjunto de conhecimentos contidos naquelas manifestações. (2013, p. 41, tradução nossa4 4 “[...] lo que consituye el patrimonio bibliográfico y documental son las expresiones artísticas, históricas, culturales, folclóricas, educativas, intelectuales y científicas, entre otras, que han sido producidas para atestiguar el desarollo de las sociedades y que, a su vez, han sido objetivadas em manuscritos, impresos, medios audiovisuales, documentos electrónicos y de otros tipos com el fim de almacenar, transmitir, preservar, conservar, comunicar y difundir la suma de conocimientos contenidos em aquellas manifestaciones.” (PALMA PEÑA, 2013, p. 41). ).

Sendo assim, entende-se patrimônio bibliográfico não como qualquer registro humano, mas sim aqueles que sejam representações de determinadas memórias, imbuídas de significação, passíveis de preservação e disseminação, na tentativa de fazer permanecer. Palma Peña (2013PALMA PEÑA, Juan Miguel. El patrimonio cultural, bibliográfico y documental de la humanidade. Revisiones conceptuales, legislativas e informativas para uma educación sobre patrimonio. Cidade do México, Cuicuilco, n. 58, p. 31-57, sep./dic. 2013., p. 32, tradução nossa5 5 “[...] éstos poseen particularidades materiales, intelectuales, gráficas, simbólicas, históricas y sociales, lo que les otorga significación para ser considerados patrimonio bibliográfico [...]” (Palma Peña, 2013, p. 32). ) aponta, ainda, que “[...] estes possuem particularidades materiais, intelectuais, gráficas, simbólicas, históricas e sociais, o que os outorga significação para serem considerados patrimônio bibliográfico [...]”, de forma que, vão além do objeto. Um livro não é patrimônio se não é representação, memória e significado, mas se for uma ou todas essas coisas, deve ser reconhecido como tal.

O livro é uma instituição da memória para a consagração e permanência, e por isso deve ser estudado como peça chave do patrimônio cultural de uma sociedade. Deve-se entender que o patrimônio cultural existe na medida em que a cultura constitui o patrimônio mais representativo de cada povo [...] o patrimônio tem capacidade para promover um sentimento de afirmação ou pertencimento transmissível e pode fortalecer ou estimular a consciência de identidade dos povos em seus territórios. Uma biblioteca, um arquivo ou um museu são patrimônios culturais e cada povo os assume como templos da memória. (BÁEZ, 2016BÁEZ, Fernando. Hacia una teoría parcial de la biblioclastia como fenómeno histórico. Revista de la Biblioteca Nacional, Montevideo, v. 11-12, p. 49-57, 2016. ISSN 0797-9061., p. 51).

Considerando que os materiais bibliográficos podem ser classificados como patrimônio bibliográfico/documental e em vista dessas definições para ele, é fácil entender a frase de que “Uma nação ‘se torna o que ela é na medida em que se apropria do seu patrimônio’.” (GONÇALVES, 1996, p. 24 apud BO, 2003BO, João Batista L. Proteção do patrimônio na UNESCO: ações e significados. Brasília [DF]: UNESCO, 2003. 186 p. ISBN 85-87853-62-7., p. 18), já que ele auxilia no acesso aos registros e evocação da memória, contribuindo para a formação da identidade. A identidade é formada a partir de valores nos quais o ser se reconhece e se encontra em determinado grupo, assim sendo, o patrimônio que é a representação dessas características tem um papel essencial por ser:

[...] um fundo destinado ao usufruto de uma comunidade alargada a dimensões planetárias e constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objectos que congregam a sua pertença comum ao passado: obras e obras-primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes humanos. (CHOAY, 1992, p. 11).

Já a identidade, enquanto ideia, é

[...] construto que tem como elemento de sustentação discursos, objetos e práticas simbólicas que nos posicionam no mundo e que dizem nosso lugar em relação ao outro (outros pontos de referência, outros lugares). Ao fazer isso, a identidade também marca e estabelece uma posição, o lugar que efetivamente construímos e no qual nos inserimos. (FRANÇA, 2002 apud SILVEIRA, 2010SILVEIRA, Fabrício José N. da. Biblioteca, memória e identidade social. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 15, n. 3, p. 67-86, set./dez, 2010., p. 68, grifo nosso).

Dessa forma, o patrimônio bibliográfico tem relação com a memória e com a identidade. Remover a oportunidade de se conectar com esses suportes repletos de significados, acaba por afetar a construção da identidade de um povo.

É necessário compreender que o patrimônio bibliográfico e documental da humanidade tem grande importância nas sociedades por sua capacidade para construir identidades, para proporcionar conhecimentos sobre o passado assim como para permitir construir o presente e visualizar o futuro. (PALMA PEÑA, 2011PALMA PEÑA, Juan Miguel. La socialización del patrimonio bibliográfico y documental de la humanidad desde la perspectiva de los derechos culturales. Madrid, Revista General de Información y Documentación, v. 21, p. 291-312, 2011., p. 308, tradução nossa6 6 “Es necesario comprender que el patrimonio bibliográfico y documental de la humanidad tiene gran injerencia en las sociedades por su capacidad para conformar identidades, para proporcionar conocimientos sobre el pasado así como para permitir construir el presente y visualizar el futuro.”. (PALMA PEÑA, 2011, p. 308). ).

Sem o patrimônio um povo ficaria, então, impossibilitado, ou dificultado, de acessar referenciais que auxiliam na construção de suas memórias e identidades. A história evidencia inúmeros casos em que o patrimônio de certas etnias foi destruído a fim de obstruir o reconhecimento dessas pessoas com seu grupo ou com a própria história.

3 O estudo da biblioclastia

A destruição de livros e de bibliotecas pode ocorrer de maneira natural (terremotos, inundações, tempo), de forma acidental (incêndio, descuido) ou propositalmente, como é possível no caso das guerras. Qualquer uma dessas situações pode ser denominada de biblioclastia, que, etimologicamente, significa destruição de livros (FARIA; PERICÃO, 2008FARIA, Maria Isabel; PERICÃO, Maria da Graça. Dicionário do livro: da escrita ao livro eletrônico. São Paulo: EdUSP, 2008. 739 p. ISBN 978-85-314-1055-0.). Já em uma definição mais alargada, biblioclastia seria “Condutas, práticas, procedimentos, dispositivos e políticas que conduzem à destruição, desvalorização ou inviabilização de recursos de informação, dos espaços físicos onde se alojam [...]” (BOSCH; CARSEN, 2015, p. [8], tradução nossa7 7 “Conductas, prácticas, procedimientos, dispositivos y políticas que conducen a la destrucción, desvalorización o invisibilización de recursos de información, de los espacios físicos donde se alojan [...]”. (BOSCH; CARSEN, 2015, p. [8]). ). Percebe-se que a biblioclastia é, então, qualquer ação que inviabilize a preservação e o acesso aos bens culturais.

Isso significa dizer que a biblioclastia como fenômeno não está restrita aos casos onde a ação é humana, nem mesmo aos atos propositais. A biblioclastia é muito mais ampla e precisa ser analisada em todas as suas vertentes, mas por fim acarreta perdas nos mesmos pilares: na memória e na identidade.

Ao longo da história ocorreram numerosos desastres, sejam naturais, induzidos ou permitidos por pessoas cujo objetivo era acabar ou desaparecer com os vestígios do nosso passado: terremotos, maremotos, incêndios, inundações; intervenções, revoluções, guerras que ocasionaram um estrago sem fim para a humanidade. Como resultado, além dos males à população (mortes, desaparecidos e feridos), o patrimônio cultural sofreu enormes danos que deixaram muitos sem memória escrita, sem os recursos das imagens e sem outros objetos considerados como fonte de conhecimento dos diversos povos [...] (VILLARELLO REZA, 2006VILLARELLO REZA, Rosamaría. La biblioclastia: entre los desastres naturales y las guerras. Biblioteca Universitária, Cidade do México, v. 9, n. 2, p. 108-119, jul./dic., 2006., p. 108, tradução nossa8 8 “A lo largo de la historia han ocurrido numerosos desastres, ya sean naturales, inducidos o permitidos por gente cuyo objetivo ha sido acabar o desparecer las huellas de nuestro pasado: terremotos, maremotos, incendios, inundaciones; intervenciones, revoluciones, guerras, que han ocasionado un sin fin de estragos a la humanidad. Como resultado, además de los males a la población (muertes, desaparecidos y heridos), el patrimonio cultural ha sufrido enormes daños que han dejado sin memoria escrita, sin los recursos de las imágenes, y sin otros objetos considerados como fuente de conocimiento de los diversos pueblos [...]” (VILLARELLO REZA, 2006, p. 108). ).

A forma que ocorre a biblioclastia pode ser fácil de classificar - as suas causas -, mas as motivações que levam aos atos podem ser complexas e múltiplas dependendo do caso. As motivações para um furto podem divergir bastante das destruições em conflitos. Ao falar sobre as biblioclastias que têm causas propositais, Battles (2003BATTLES, Matthew. A conturbada história das bibliotecas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003. 238 p., p. 43) as coloca em dois grupos:

Biblioclastias, sejam elas míticas ou reais, têm sempre suas razões de ser. Muitas vezes, são acidentais, [...]. Incêndios intencionalmente provocados de livros são de dois tipos. Podem ser tentativas de revisão, como aconteceu com Shi Huangdi, ou como aconteceu também durante a ascensão do Islã, quando seguidores do Corão queimaram textos sagradas que eles consideravam desprovidos de autoridade [...]. Outra possibilidade é os livros serem queimados com a finalidade de apagar seus autores e leitores da história.

As biblioclastias por revisão seriam uma tentativa de reescrever partes do passado e presente de um povo, já a outra forma seria uma retaliação a determinados textos, escritores e até mesmo leitores. Umberto Eco, no texto Desear, poseer y enloquecer, aponta três formas de biblioclastia diferentes: por incúria, por interesse e fundamentalista. A primeira seria aquela causada pelo descuido, abandono, despreparo para cuidar dos livros - algo que é comum a muitas bibliotecas; a segunda é onde se pretende um benefício, geralmente financeiro, sendo essa a situação dos furtos; por fim, tem-se a fundamentalista, onde os livros são atacados por questões ideológicas, religiosas, culturais contidas neles que incomodam a alguém (ECO, 2001ECO, Umberto. Desear, poseer y enlouquecer. El Malpensante, Bogotá, n. 31, p. 1-3, jun. 2001., p. 2).

Quando essa prática acontece de maneira proposital, existe a necessidade de se entender suas motivações. Báez afirma que “A biblioclastia, um neologismo usado para aludir à destruição de livros, é uma tentativa de aniquilar a memória que constitui uma ameaça direta ou indireta a outra memória a qual se supõe superior.” (2016, p. 54, tradução nossa9 9 “El bibliocausto, un neologismo usado para aludir a la destrucción de libros, es un intento por aniquilar una memoria que constituye uma amenaza directa o indirecta a otra memoria a la que se supone superior.”. (BÁEZ, 2016, p. 54). ). O autor mostra que a biblioclastia vai além do fato da destruição do objeto livro, sendo uma ideia com potencial destrutivo amplo, intentando dar fim à memória por meio da destruição patrimonial. Como ele afirma:

Um livro é destruído com a intenção de aniquilar a memória que encerra, isto é, o patrimônio de ideias de uma cultura inteira. Faz-se destruição contra tudo que se considera ameaça direta ou indireta a um valor considerado superior. O livro não é destruído por ser odiado como objeto. (BÁEZ, 2006BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas da suméria à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 438 p., p. 24).

A biblioclastia ocorrida nas guerras, ao contrário do que parece, não é o resultado do ódio aos livros, mas o completo reconhecimento de que esses documentos têm poder e lugar em uma sociedade.

Os livros são os portadores da civilização. Sem livros, a história é silenciosa, a literatura é muda, a ciência é aleijada, o pensamento e especulação paralisados. Sem livros, o desenvolvimento da civilização teria sido impossível. Eles são motores da mudança, janelas no mundo, e (como disse um poeta) ‘faróis erguidos no mar do tempo’. Eles são companheiros, professores, mágicos, banqueiros dos tesouros da mente. Livros são a humanidade impressa. (TUCHMAN, 1980, p. 13 apud KNUTH, 2003KNUTH, Rebecca. Libricide: the regime-sponsored destruction of books and libraries in the twentieth century. Westport: Praeger, 2003. 277 p. ISBN 0-275-98088-X., p. 5, tradução nossa10 10 “Books are the carriers of civilization. Without books, history is silent, literature dumb, science crippled, thought and speculation at a standstill. Without books, the development of civilization would have been impossible. They are engines of change, windows on the world, and (as a poet has said) ‘lighthouses erected in the sea of time.’ They are companions, teachers, magicians, bankers of the treasures of the mind. Books are humanity in print”. (TUCHMAN, 1980, p. 13 apud KNUTH, 2003, p. 5). ).

Os livros são representantes aceitos do conhecimento e são também registros históricos, já as bibliotecas são os templos, mais inquietos do que se pensa, que abrigam esse potencial. Portanto, a biblioclastia proposital, como é a situação das guerras e dessa pesquisa, não ocorrem por falta de conhecimento, em realidade, se dão a partir da plena noção do seu valor.

Aqueles que queimam livros, que banem e matam poetas, sabem exatamente o que fazem. Seu poder é incalculável. Precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores. [...] De maneira verdadeiramente desconcertante, podem fazer as duas coisas, praticamente ao mesmo tempo, em um impulso tão complexo, tão híbrido e tão rápido em sua alternância que nenhuma hermenêutica, nenhuma psicologia podem predizer nem calcular a sua força. [...] Na experiência humana não há fenomenologia mais complexa do que aquela dos encontros entre texto e percepção [...]. (STEINER, 2017, p. 15).

O medo que os materiais bibliográficos causam e a tentativa de controle sobre a cultura e história de um povo acabam por acarretar a destruição desses suportes e de seu abrigo, a biblioteca.

A sistemática destruição de livros e bibliotecas favorecida por Estados. Exemplos do século XX incluem queimas de livros e ataques a bibliotecas na Europa pelos nazistas e a destruição da Biblioteca Nacional da Bósnia e Herzegovina em 1992 pelos Sérvios durante o cerco de Sarajevo. (REITZ, 2014REITZ, Joan M. Online dictionary for library and information Science. Santa Barbara, CA: ABC-CLIO, 2014, não paginado. Disponível em: https://www.abcclio.com/ODLIS/odlis_l.aspx. Acesso em: 10 set. 2018.
https://www.abcclio.com/ODLIS/odlis_l.as...
, não paginado, tradução nossa11 11 “The systematic state-sponsored destruction of books and libraries. Twentieth-century examples include book burnings and attacks on libraries in Europe by the Nazis and the destruction of the National Library of Bosnia and Herzegovina in 1992 by the Serbs during the siege of Sarajevo.”. (REITZ, 2014, não paginado). ).

Esse caráter sistemático e, por consequência não acidental, da biblioclastia deve ser percebido a fim de desmistificar a ideia de que bibliotecas e livros não são relevantes na busca de se alcançar a dominação de um povo. Os ataques repetitivos e planejados aos documentos evidenciam exatamente o contrário.

Embora seja possível atribuir uma incidência isolada da destruição de livros e bibliotecas ao reino do não intencional, a destruição sistêmica deve ser considerada intencional e relativamente coordenada. A destruição pode ser interna (dentro de uma nação e variando de ações silenciosas de censura a atos agressivos de vandalismo, terrorismo, distúrbios civis, guerra civil ou genocídio) ou externa (uma função de guerra ou conquista). (KNUTH, 2003KNUTH, Rebecca. Libricide: the regime-sponsored destruction of books and libraries in the twentieth century. Westport: Praeger, 2003. 277 p. ISBN 0-275-98088-X., p. 50, tradução nossa12 12 “While it may be possible to attribute an isolated incidence of the destruction of books and libraries to the realm of the unintentional, systemic destruction must be considered intentional and relatively coordinated. Destruction can be internal (within a nation and ranging from quiet deeds of censorship to aggressive acts of vandalism, terrorism, civil unrest, civil war, or genocide)or external (a function of war or conquest).”. (KNUTH, 2003, p. 50). ).

Portanto, nessa pesquisa, a biblioclastia, ocorrida em tempos de guerra, é compreendida como a inviabilização de livros e de bibliotecas de forma proposital, direcionada, desmedida e que não é incomum.

4 Bósnia e Herzegovina: palco dos acontecimentos

A Bósnia e Herzegovina é um país situado na Europa, antiga componente da Iugoslávia e que enfrentou uma guerra entre os anos de 1992 e 1995 ao reivindicar a sua independência. Situada na região dos Balcãs, a antiga Iugoslávia era formada por 6 repúblicas, a Sérvia, a Croácia, a Bósnia e Herzegovina, a de Montenegro, a da Macedônia e a da Eslovênia, tinha ainda mais duas províncias, Kosovo e Voivodina.

Após a Segunda Guerra Mundial e a nova formação da Iugoslávia, ela passou a ser governada por Josip Broz Tito, conhecido como General Tito, que buscava uma identidade Iugoslava que fosse superior às individuais encontradas naquele território. Enquanto este estava no poder a conflituosa região dos Balcãs permaneceu “sossegada”, mas com a sua morte os antigos problemas que vinham sendo suprimidos vieram à tona.

Após a morte de Tito em 1980 e a desintegração da dominação comunista no final da década, a federação da Iugoslávia começou a se dissolver. A coexistência pacífica tornou-se problemática e quando a Sérvia começou a dominar a federação, a Eslovênia, a Croácia e depois a Bósnia declararam independência. Em resposta, a Sérvia travou uma guerra, ostensivamente uma guerra civil em nome de uma Iugoslávia unida, que era vista pelas outras nações como uma agressão nacionalista perpetrada no interesse de uma Grande Sérvia […]. As rupturas ocorreram ao longo de linhas nacional, religiosa e étnica, enquanto sérvios e croatas atacavam uns aos outros e aos muçulmanos. Questões de legitimidade política e territorial foram abordadas da mesma forma que sempre: grupos étnicos foram atacados e expulsos de áreas que eram reivindicadas como enclaves exclusivos dos sérvios ou croatas. Faltava um conceito moderno de tempo - a ‘repetição perpétua dos mesmos arquétipos oblitera qualquer distinção entre ontem, hoje e amanhã’ [...]. Memórias, suprimidas e deixadas para se infestar desde a Segunda Guerra Mundial, se tornaram uma inspiração para a violência; a identidade étnica e nacional racionalizou excessos de todo tipo. (DEBELJAK 1994, p. 19 apud KNUTH, 2003KNUTH, Rebecca. Libricide: the regime-sponsored destruction of books and libraries in the twentieth century. Westport: Praeger, 2003. 277 p. ISBN 0-275-98088-X., p. 106, tradução nossa13 13 “After the death of Tito in 1980 and the disintegration of Communist domination later in the decade, federated Yugoslavia began to dissolve. Peaceful coexistence became problematic and when Serbia began to dominate the federation, Slovenia, Croatia, and then Bosnia declared independence. In response, Serbia waged war, ostensibly a civil war in the name of a united Yugoslavia, which was viewed by the other nations as nationalist aggression perpetrated in the interest of a Greater Serbia. Yugoslavs reemerged as nationalists, while two groups, the Serbs and Croats, revisited fascism. Ruptures occurred along national, religious, and ethnic lines as Serbs and Croats attacked each other and the Muslims. Questions of political and territorial legitimacy were addressed in the same way they had always been: Ethnic groups were attacked and driven from areas that were claimed as exclusive enclaves of either the Serbs or Croats. A modern concept of time was lacking—the “perpetual repetition of the same archetypes obliterates any distinction between yesterday, today, and tomorrow” [...]. Memories, suppressed and left to fester since World War II, became an inspiration for violence; ethnic and national identity rationalized excesses of every kind.”. (DEBELJAK 1994, p. 19 apud KNUTH, 2003, p. 106). ).

Apesar dessa tentativa de ressaltar uma única identidade, as diferenças entre os componentes da antiga Iugoslávia continuavam a existir e eles não se identificavam, em maioria, como Iugoslavos. O trecho abaixo mostra um pouco da situação encontrada na região:

São seis repúblicas São seis nações São quatro idiomas São três religiões (católicos, ortodoxos e muçulmanos) São dois alfabetos (cirílico e latino) Porém um só desejo: Independência. (LEGUINECHE, 1992, p. 10 apud REYES, 2013REYES, Marcelo J. de los. Los conflitos en los Balcanes: la guerra civil em Yugoslavia y los intereses externos. IGADI, Espanha, p. 1-55, 01 feb. 2013. Disponível em: http://www.igadi.org/web/analiseopinion/los-conflictos-en-los-balcanes-la-guerra-civil-en-yugoslavia-y-los-intereses-externos. Acesso em: 22 set. 2018.
http://www.igadi.org/web/analiseopinion/...
, p. 26, tradução nossa14 14 “Son seis repúblicas son seis naciones son cuatro idiomas son tres religiones (católicos, ortodoxos y musulmanes) son dos alfabetos (cirílico y latino) pero un solo deseo: independência.”. (LEGUINECHE, 1992, p. 10 apud REYES, 2013, p. 26). ).

Entre tantos fatores, possivelmente o mais relevante era o religioso. A dissolução da Iugoslávia não pode ser desvinculada da religião, já que ela foi utilizada como forma de discriminação. A religião mais atacada foi a islâmica, exatamente a majoritária no território bósnio.

Bósnios, 43,7%. Uns 90 % eram muçulmanos.

Sérvios, 31,3 %. Uns 93 % eram cristãos ortodoxos.

Croatas, 17,3 %. Uns 88 % eram católicos.

Iugoslavos, 5,5 % (uma declaração pessoal que cada indivíduo fazia ao inscrever-se no censo; no resto da Iugoslávia, só 1 % se considerava iugoslavo). (ROMERO, E.; ROMERO, I., 2016, p. 194, tradução nossa15 15 “Bosnios, 43,7 %. Un 90 % eran musulmanes. Serbios, 31,3 %. Un 93 % eran cristianos ortodoxos. Croatas, 17,3 %. Un 88 % eran católicos. Yugoslavos, 5,5 % (una consideración personal que cada individuo hacía al inscribirse en el censo; en el resto de Yugoslavia, solo un 1 % se consideraba yugoslavo).”. (ROMERO, E.; ROMERO, I., 2016, p. 194). ).

Em vista da efusão nacionalista que estava sento tema em todo o planeta e das diferenças étnico-religiosas, foi inevitável que as repúblicas componentes já não se sentissem parte de um mesmo grupo e quisessem autonomia. A partir desse momento começa o fim da Iugoslávia e um dos momentos mais cruéis da história europeia.

4.1 A guerra: 1992-1995

Apesar desses conflitos, a Bósnia e Herzegovina, localizada entre dois países em guerra, decide, no ano de 1992, declarar independência. Isso fez com que ela não escapasse do mesmo destino bélico. Dentre suas cidades, uma das mais afetada foi Sarajevo, capital geográfica e cultural:

Desde o começo de abril de 1992 até o final de 1995, a cidade de Sarajevo viveu um implacável assédio por parte dos sérvios que a converteram no exemplo mais evidente da crueldade da guerra Bósnia. A imprensa se encarregaria de divulgar todo tipo de imagens sangrentas sobre o bombardeio de civis, baixas provocadas por atiradores [...]. Sarajevo foi o símbolo do horror de todas as guerras iugoslavas. (ROMERO, E.; ROMERO, I., 2016, p. 206, tradução nossa16 16 “Desde comienzos de abril de 1992 hasta finales de 1995, la ciudad de Sarajevo vivió un implacable asedio por parte de los serbios que la convirtió en el ejemplo más evidente de la crueldad de la guerra bosnia. La prensa se encargaría de divulgar todo tipo de imágenes sangrantes sobre el bombardeo de civiles, bajas provocadas por los francotiradores [...] Sarajevo fue el símbolo del horror de todas las guerras yugoslavas.”. (ROMERO, E.; ROMERO, I., 2016, p. 206). ).

O número de mortes no país foi assustador, um verdadeiro massacre aconteceu ao longo da guerra. Foi a primeira vez que a ONU reconhecia um genocídio desde a Segunda Guerra mundial. Além disso, a fome assolou o país e as pessoas não podiam sair de casa sem correrem o risco de ser atingidas por um dos atiradores localizados no topo dos prédios. Não se esperava que tão pouco tempo depois das grandes guerras fosse acontecer outra cena de tanta violência, mostrando que a lição, mais uma vez, não foi aprendida

A investigação realizada pelo Centro de Documentação de Sarajevo estabeleceu posteriormente que durante o assédio morreram 13.952 pessoas: 9.429 Bósnios, 3.573 Sérvios e 810 Croatas. [...] aproximadamente sessenta por cento de todas as pessoas que morreram em Sarajevo durante o assédio eram soldados. Um total de 5.434 civis morreu durante o sítio: 3.855 Bósnios, 1.097 Sérvios e 482 Croatas. A UNICEF informou que de cerca das 65.000 a 80.000 crianças que habitavam a cidade durante o assédio, ao menos quarenta por cento recebeu um disparo de atirador, falecendo mais de quinhentos. (ROMERO, E.; ROMERO, I., 2016, p. 265, tradução nossa17 17 “La investigación realizada por el Centro de Documentación de Sarajevo estableció posteriormente que durante el asedio murieron 13.952 personas: 9.429 bosnios, 3.573 serbios y 810 croatas. De ellos, 6.137 eran soldados de la Armija, y 2.241 tropas federales o serbias. Lo que significa que aproximadamente el sesenta por ciento de todas las personas que murieron en Sarajevo durante el asedio eran soldados. Un total de 5.434 civiles murieron durante el sitio: 3.855 bosnios, 1.097 serbios y 482 croatas. Unicef informó que de los cerca de 65.000 a 80.000 niños que habitaban la ciudad durante el asedio, al menos el cuarenta por ciento recibió un disparo de francotirador, falleciendo más de quinientos.”. (ROMERO, E.; ROMERO, I., 2016, p. 265). ).

A Guerra da Bósnia e Herzegovina acabou sendo conhecida como uma demonstração de brutalidade. Esse período continua sendo visto como um dos mais duros na história da Europa e como uma catástrofe no que diz respeito ao patrimônio daquela região.

5. Biblioclastia ao longo da Guerra da Bósnia e Herzegovina

Entre todos os horrores da guerra, outros atos devastadores vinham ocorrendo: a destruição dos livros e das bibliotecas. Talvez essa biblioclastia não ocupasse um lugar tão evidente caso a Biblioteca Nacional da Bósnia e o Instituto de Estudos Orientais tivessem sido poupados, mas quando se atinge algumas das instituições mais importantes de uma nação, o impacto é gigantesco.

A magnitude da devastação do patrimônio é aterradora. Os dados obtidos em 1993 - incompletos - revelam que foram destruídas mais de mil mesquitas - das quais umas vinte datam do século XVI -, 150 igrejas católicas, 15 igrejas ortodoxas, 4 sinagogas e outros mil monumentos culturais, incluindo museus, bibliotecas, arquivos e coleções de manuscritos [...]. (CONSELHO DA EUROPA, 1993, doc. 6869, p. 8-18; doc. 6904 p. 6-8 apud BLAZINA, 1996BLAZINA, Vesna. Mémoricide ou la purification culturelle : la guerre et les bibliothèques de Croatie et de Bosnie-Herzégovine. Documentation et bibliothèques, Montreal, v. 42, n. 4, p. 149-163, oct./déc. 1996., p. 156, tradução nossa18 18 “L'ampleur de la dévastation du patrimoine est terrifiante. Les données incomplètes, colligées en 1993, révèlent que plus de 1 000 mosquées dont une vingtaine datant du 16e siècle, 150 églises catholiques, 15 églises orthodoxes, 4 synagogues et 1 000 autres biens culturels, incluant les musées, les bibliothèques, les archives et les collections de manuscrits [...]”.(CONSELHO DA EUROPA, 1993, doc. 6869, p. 8-18; doc. 6904 p. 6-8 apud BLAZINA, 1996, p. 156). ).

Estima-se que cerca de 180 bibliotecas foram danificadas ou destruídas ao longo da guerra (BÁEZ, 2006BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas da suméria à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 438 p.). Contudo, não existem dados precisos de quanto ou do que foi destruído, mas isso não evita que seja percebida a magnitude da biblioclastia ocorrida no local.

Infelizmente, não existe um censo completo de perdas de bibliotecas na Bósnia. A guerra de 1992-95 na Bósnia ocorreu em uma época em que a maioria das bibliotecas na Bósnia ainda não havia convertido seus catálogos para a forma eletrônica. Os registros eram em sua maior parte em papel (catálogos de cartões, livros contábeis) e, em muitos casos, os registros foram destruídos junto com os livros. Como resultado, é difícil saber exatamente quanto foi perdido, devido à falta de dados precisos. (RIEDLMAYER, 2019RIEDLMAYER, András J. [Correspondência]. Destinatário: Diana Marques. Rio de Janeiro, 28 mar. 2019. E-mail. Online., não paginado, tradução nossa19 19 “Unfortunately, a full census of library losses in Bosnia does not exist. The 1992-95 war in Bosnia took place at a time when most libraries in Bosnia had not yet converted their catalogues to electronic form. Records were for the most part on paper (card catalogues, ledgers) and in many cases the records were destroyed along with the books. As a result, it is difficult to know exactly how much was lost, because of the lack of precise data.”. (RIEDLMAYER, 2019, não paginado). ).

No dia 17 de maio de 1992, o Instituto de Estudos Orientais, abrigo de uma das mais preciosas coleções de manuscritos islâmicos e otomanos, foi atacado. Após bombas e incêndio, conseguiu salvar muito pouco da sua coleção original - que possuía nada menos que cinco mil manuscritos (GÁZIC, 2004). Por volta do mesmo mês, somente na cidade de Mostar, foram destruídos entre 50 e 60 mil livros na Biblioteca do Arcebispado (RIEDLMAYER, 2007). Também foi destruída a Biblioteca da Universidade de Mostar e o arquivo da cidade - com coleção semelhante à da Biblioteca do Arcebispado em tamanho (BÁEZ, 2006BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas da suméria à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 438 p.).

Contudo, foi no dia 25 de agosto de 1992 que aconteceu o pior, o povo Bósnio - e o mundo - assistiu, incrédulo, a Biblioteca Nacional e Universitária da Bósnia arder em chamas.

[...] cifras que nada dizem sobre outro fenômeno: a mistura de idiomas e de culturas que o local acumula. Os incunábulos e manuscritos (a impressão só chegou em 1866 à Bósnia, cópias manual e caligráfica constituíam ali coisas naturais até o fim do século XIX) eram redigidos em latim, russo, árabe, alemão, italiano, espanhol, turco, hebraico e persa. A escrita era tanto latina quanto cirílica, árabe ou hebraica, glagolítica evidentemente; inúmeros livros eram também escritos em alhamijado ou adzamijski - o árabe para transcrever os idiomas do país: sérvio, croata e bósnio. Este mosaico é a outra face do barril de pólvora. (POLASTRON, 2013POLASTRON, Lucien X. Livros em chamas: a história da destruição sem fim das bibliotecas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. 419 p. ISBN 978-85-03-01168-6., p. 236).

Pouco pode ser feito quando papel pega fogo, menos ainda quando atiradores impedem a passagem dos bombeiros e a água ao redor é cortada. Apesar da coragem da linha humana que tentou salvar alguns livros, pouquíssimo sobrou da coleção com mais de um milhão e meio de livros - entre os quais 155 mil obras raras (BÁEZ, 2006BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas da suméria à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 438 p.; BLAZINA, 1997).

Infelizmente, esse não foi o fim. Mais nove das 16 bibliotecas da Universidade de Sarajevo sofreram perdas e a Biblioteca Municipal de Sarajevo perdeu metade de sua coleção de 300 mil itens (RIEDLMAYER, 2007). Após todas essas evidências o Museu Nacional da Bósnia antecipou seu destino e transferiu seu acervo pouco antes de ser atacado, nisso salvou o livro mais famoso do país e um dos manuscritos mais relevantes do mundo, a Haggadah de Sarajevo - que depois de uma história sendo perseguida, é guardada em um cofre e carregada em caixas-fortes (POLASTRON, 2013POLASTRON, Lucien X. Livros em chamas: a história da destruição sem fim das bibliotecas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. 419 p. ISBN 978-85-03-01168-6.).

Outra vítima foi a Biblioteca Monástica do Seminário Teológico Franciscano que ao invés de bombardeada foi pilhada. Algo em torno de 50 mil livros foram removidos das suas estantes e alguns foram vendidos por mercados ao redor do mundo, permitindo ser encontrados e devolvidos ao seu lugar, mas a maior parte desapareceu, provavelmente, acabaram eliminados ou vendidos para colecionadores (KARAMATIĆ, 1996; LOVRENOVIĆ, 1994; KARAMATIĆ, 2005 apud RIEDLMAYER, 2007). A biblioteca muçulmana de Stolac, a biblioteca da Mesquita do Imperador e a da Mesquita de Pogradska também sofreram com a guerra, junto com 1200 mesquitas, igrejas, sinagogas e outros espaços culturais (BÁEZ, 2006BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas da suméria à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 438 p.).

Além dos livros e das bibliotecas, as tristezas da guerra também alcançaram os bibliotecários - assim como escritores, professores, pesquisadores e filósofos. Buturović perdeu sua vida voltando do trabalho na Biblioteca Nacional e Universitária da Bósnia, mas não foi a única. Mirko Azinović e Adela Leota foram mais alguns bibliotecários assassinados entre 1992 e 1995, mostrando que quem lida com as informações corre grande risco em períodos turbulentos (ZEĆO, 1996ZEĆO, Munevera. The National and University Library of Bosnia and Herzegovina during the Current War. The Library Quarterly: Information, Community, Policy, Chicago, v. 66, n. 3, p. 294-301, July 1996.). Ao menos no julgamento realizado pela Corte Internacional de Justiça, para os crimes ocorridos na Guerra da Bósnia e Herzegovina, foram reconhecidos os ataques contra as bibliotecas (Fig. 1).

Figura 1
Reconhecimento da destruição de bibliotecas em decorrência da guerra

Esse reconhecimento é indispensável, ainda mais quando os atos são entendidos como propositais e não acidentais.

6 As motivações para os atos biblioclásticos

Visto o contexto da guerra e atos biblioclásticos ocorridos no território da Bósnia e Herzegovina, tenta-se entender o que motivou os ataques contra os livros e as bibliotecas. A destruição desses componentes pode ser classificada como um atentado ao patrimônio e Palma Peña (2013PALMA PEÑA, Juan Miguel. El patrimonio cultural, bibliográfico y documental de la humanidade. Revisiones conceptuales, legislativas e informativas para uma educación sobre patrimonio. Cidade do México, Cuicuilco, n. 58, p. 31-57, sep./dic. 2013., p. 35, tradução nossa21 21 “[...] la trascendencia y el impacto del patrimonio sólo se potenciará en la medida en que las sociedades conozcan, usufructúen y reflexionen sobre los elementos históricos, culturales y sociales de éste.” (PALMA PEÑA, 2013, p. 35). ) nos fala que “[...] a transcendência e o impacto do patrimônio só se potencializará na medida em que as sociedades conheçam, usufruam e reflitam sobre os elementos históricos, culturais e sociais deste.”, ou seja, sem poder acessá-lo a perda é incalculável, indo além do objeto e do local. Essa pesquisa identificou, portanto, quatro motivações: o apagamento da memória, o renascimento histórico-cultural, o etnocídio e a dominação.

Em primeiro lugar temos o “apagamento da memória”, no sentido de remover os pontos de acesso para a memória a partir da sua eliminação. Isso não significa apagar literalmente, mas impedir que determinadas memórias sejam obtidas por um de seus meios, os livros. Báez (2016BÁEZ, Fernando. Hacia una teoría parcial de la biblioclastia como fenómeno histórico. Revista de la Biblioteca Nacional, Montevideo, v. 11-12, p. 49-57, 2016. ISSN 0797-9061., p. 52, tradução nossa22 22 “A lo largo de los siglos, hemos visto que cuando un grupo o nación intenta someter a otro grupo o nación, lo primero que intenta es borrar las huellas de su memoria para reconfigurar su identidad.”. (BÁEZ, 2016, p. 52). ) nos conta que “Ao longo dos séculos, vimos que quando um grupo ou nação tenta subjugar outro grupo ou nação, a primeira coisa que tenta fazer é apagar os vestígios de sua memória para reconfigurar sua identidade.”. Assim, o autor, pontua que a memória é destruída como meio para atingir a identidade de um povo.

É certo que a memória também se encontra em outros locais, como por exemplo nas pessoas, e, por isso, não é completamente apagada, não desaparece inteiramente ao se destruir o patrimônio bibliográfico. O que se entende aqui é que a biblioclastia pode ser utilizada para afetar a memória, diminuindo os acessos a ela. E como se sabe a memória só o é quando revive em alguém, quando é lembrada ou interpretada, mas sem ser possível acessá-la esse processo pode ser perdido.

Apagar também tem a ver com esconder, ocultar, despistar, confundir os vestígios, afastar da verdade, destruir a verdade. Com frequência se pretendeu impedir que as ideias circulem e se afirmem, desejou-se (e se deseja) limitar, fazer calar, direcionar para o silêncio e o olvido. Aqui, o convite ou a coerção ao esquecimento tem a ver com as ortodoxias, com a tentativa de coagir todo pensamento possível dentro de uma imagem enrijecida e paranóica do mundo. (ROSSI, 2010, p.32).

A ideia principal do apagamento seria destruir as pessoas, ou melhor, quem elas são - sua cultura, sua religião, seus costumes, sua língua - por meio da aniquilação dos seus referenciais, dando lugar ao “novo”. Tendo em vista que as memórias contribuem para a identidade de um povo, a crença consiste na percepção de que ao pôr fim à memória está se fragilizando as identidades. Dessa forma, chegamos ao segundo ponto, o renascimento histórico-cultural que, após eliminar as memórias, acredita-se estar livre para construir novos referenciais e uma nova identidade.

Nessa ideia de renascer por meio da biblioclastia, os biblioclastas acreditam que destruindo os suportes que referenciam as culturas, ideologias, religiões e outros aspectos de um povo, conseguiriam criar uma linha em branco onde poderiam então reescrever a história de um povo a sua maneira. Báez afirma que “Ao longo dos séculos, vimos que quando um grupo ou nação tenta subjugar outro grupo ou nação, a primeira coisa que tenta fazer é apagar os vestígios de sua memória para reconfigurar sua identidade.” (2016, p. 52, tradução nossa), essa ideia vai de acordo com os atos contra o patrimônio em diversos conflitos.

O renascimento histórico-cultural pretende a remoção dos símbolos que remetam a períodos ou ideais distintos daqueles que o biblioclasta defende e acredita. Chartier (2009CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 160 p., p. 23) afirma que “Dos autos-de-fé da Inquisição às obras queimadas pelos nazis, a pulsão de destruição obcecou por muito tempo os poderes opressores que, destruindo os livros e, com frequência, seus autores, pensavam erradicar para sempre suas ideias.”. Os que buscavam - ou buscam - editar a história acabaram por, infelizmente, acreditar que os livros e as bibliotecas poderiam ser um empecilho.

Como terceiro ponto temos o etnocídio. Quando aqui se usa esse termo é no sentido dado por Polastron (2013POLASTRON, Lucien X. Livros em chamas: a história da destruição sem fim das bibliotecas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013. 419 p. ISBN 978-85-03-01168-6., p. 196) no qual “[...] o etnocídio, que faz do gênio de um povo o que o genocídio faz com a carne.”. Portanto, o etnocídio pretende a eliminação dos produtos da mente humana, sejam artísticos, literários, musicais. Esse método de destruição costuma ser movido pela diferença de ideais ou por questões territoriais e segue um pensamento evidenciado por Knuth (2003KNUTH, Rebecca. Libricide: the regime-sponsored destruction of books and libraries in the twentieth century. Westport: Praeger, 2003. 277 p. ISBN 0-275-98088-X., p. 236, tradução nossa23 23 “Books were destroyed as part of the process of homogenizing discourse, suppressing individualism in the interest of the collective, and co-opting or purging the intellectuals. The goal of extremist regimes was complete control, and books and libraries were compromised by their association with humanism, the creed of enemy democracies [...]. Regardless of their individual agendas, books ultimately, by their very existence and coexistence with the entirety of the world’s print literature, support individualism, pluralism, creativity, rationalism, freedom of information, critical thinking, and intellectual freedom.”. (KNUTH, 2003, p. 236). ):

Livros foram destruídos como parte do discurso de homogeneização, suprimindo o individualismo no interesse do coletivo, e cooptando ou purgando os intelectuais [...]. Independentemente de suas agendas individuais os livros, por fim, pela sua própria existência e coexistência com a totalidade da literatura impressa mundial, apoiam o individualismo, o pluralismo, a criatividade, o racionalismo, a liberdade de informação, o pensamento crítico e a liberdade intelectual.

Em vista disso, pode-se concordar com Stavenhagen (2010STAVENHAGEN, Rodolfo. Limpieza étnica. Cidade do México: Universidad Autónoma de México, jan. 2010., p. 3) no que esse processo é oposto à ideia de multiculturalidade. No caso da Bósnia e Herzegovina, a quantidade de espaços culturais atingidos e até mesmo espaços religiosos mostra uma tentativa de eliminação de certas culturas, memórias e identidades.

Decerto, o preconceito etnocentrista nunca é inocente [...]. É pernicioso, por trazer no seu bojo um elemento da mais alta periculosidade: a negação do "Outro" enquanto tal. E nega-o por senti-lo como uma ameaça à sua própria maneira de ser, e mesmo ao seu ser. [...] a ‘solução definitiva’ que Hitler quis dar ao problema judaico, e que Slobodan adotou, em relação aos bósnios e kosovares, com sua famigerada ‘limpeza étnica’. Nosso século se destacou por seus etnocídios e massacres.

Mas rejeição do Outro, combinada com a dominação, assume também outra forma: não tirar a vida do Outro, mas apenas a diferença, ou seja, extirpar-lhe a alteridade que o constitui como Outro, assimilando-o e reduzindo-o à imagem e semelhança do Mesmo. (MENESES, 2000MENESES, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 27, n. 88, p. 245-254, 2000., p. 246).

Ou seja, o etnocídio pretende remover de alguma cultura específica os seus referenciais, seja para criar tensões ou criar vazios. Esses pontos de referência auxiliam na fundamentação da identidade étnica e no reconhecimento de “lugar no mundo”.

[...] a identidade étnica se refere à consciência que uma pessoa tem de pertencer ao grupo do qual faz parte e de identificar-se com ele durante seu processo de desenvolvimento.

Os grupos sociais etnicamente diferenciados utilizam conteúdos culturais (representações simbólicas e práticas cotidianas e rituais) para traçar fronteiras. Estas fronteiras variam de acordo com os contextos e as necessidades históricas. Através destes processos se configuram identidades étnicas baseadas em elementos culturais, que são sempre relacionais. (SORIANO, 2014, p. 51, grifo do autor, tradução nossa24 24 “[...] la identidad étnica se refiere a la conciencia que tiene una persona de pertenecer al grupo del que forma parte y de identificarse con él durante su proceso de desarrollo. Los grupos sociales etnicamente diferenciados utilizan contenidos culturales (representaciones simbólicas y prácticas cotidianas y rituales) para trazar fronteras. Estas fronteras varían de acuerdo con los contextos y las necessidades históricas. A través de estos procesos se configuran identidades étnicas basadas en elementos culturales, las cuales son siempre relacionales.” (SORIANO, 2014, p. 51, grifo do autor). ).

De acordo com Riedlmayer (2002) os ataques contra o patrimônio na Bósnia e Herzegovina - dentre os quais o bibliográfico - foram uma tentativa de remover as representações que confirmassem a possível coexistência de diferentes etnias na antiga Iugoslávia. O próprio julgamento relativo aos crimes ocorridos na dita guerra aponta para a destruição ter como fundo motivos étnicos (Fig. 2):

Figura 2
Conclusão atestando a destruição proposital do patrimônio e seus motivos étnicos

Eliminando provas da convivência étnica na região por meio de constantes destruições aos seus locais e objetos simbólicos. Assim propõe-se que o primeiro local onde foi reconhecido legalmente um genocídio depois da Segunda Guerra Mundial (O GLOBO... 2017, não paginado) foi também palco de uma tentativa de etnocídio.

Contudo, o objetivo maior a alcançar com os pontos anteriores é a dominação. Unindo o apagamento da memória, o espaço para “renascer” e o etnocídio - isso sem contar os outros horrores da guerra -, se tem por consequência um povo fragilizado. Sobre a intenção de dominação e a relação entre o dominador e o dominado, Meneses (2000MENESES, Paulo. Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões. Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 27, n. 88, p. 245-254, 2000., p. 250) diz que “Considerá-los sub-humanos, ou seres humanos de segunda classe, é pretexto e efeito de uma relação de dominação.”.

A busca por dominar um outro povo ocorreu diversas vezes na história, principalmente em guerras ou com governos autoritários e em muitas situações a destruição de livros e de bibliotecas, a biblioclastia, foi uma das ferramentas. Como disse Todorov (2002TODOROV, Tzvetan. Memoria del mal, tentacion del bien: indagación sobre el siglo XX. Barcelona: Ediciones Península, 2002. 376 p.), no século XX, os muitos governos que buscaram se impor descobriram um inimigo poderoso, a memória, e mostraram que tentariam dominá-lo.

Nunca houve, nem há, uma causa única para a destruição de um livro ou de uma biblioteca: há dezenas. Entretanto, e além das anedotas circunstanciais que exoneram ou culpam, predomina uma intenção deliberada de forçar uma amnésia gradual ou imediata que permita o controle de um indivíduo ou sociedade. (BÁEZ, 2016BÁEZ, Fernando. Hacia una teoría parcial de la biblioclastia como fenómeno histórico. Revista de la Biblioteca Nacional, Montevideo, v. 11-12, p. 49-57, 2016. ISSN 0797-9061., p. 52, tradução nossa26 26 “No ha habido nunca ni hay una sola causa para la destrucción de un libro o una biblioteca: hay decenas. No obstante, y más allá de las anécdotas circunstanciales que exoneren o culpen, predomina una intención deliberada de forzar una amnesia gradual o inmediata que permita el control de un individuo o sociedad.”. (BÁEZ, 2016, p. 52). ).

Essa intenção é a maior prova de que os biblioclastas, em casos propositais, têm extrema noção do valor que um livro, uma coleção e uma biblioteca possuem. Para controlar as pessoas, eles acreditaram ser necessário fazer o mesmo com as informações, as narrativas e as memórias que circulam no espaço de domínio. Battles (2003BATTLES, Matthew. A conturbada história das bibliotecas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003. 238 p., p. 43) ao falar sobre um dos mais famosos biblioclastas diz que “Shi Huangdi parece ter percebido a mesma coisa que os Ptolomeus aprenderam no Egito, ou seja, que o monopólio sobre os recursos intelectuais é tão importante para governar um país quanto o controle sobre a produção do arroz ou da seda.”, mas ele não foi o primeiro nem o último a ter essa percepção.

As motivações para os atos biblioclásticos são muitas, mas para as guerras, em especial para a da Bósnia e Herzegovina, se colocam as quatro motivações supramencionadas que estão interligadas pela intenção de dominar um povo pela sua cultura e sua memória.

7 Considerações finais

A guerra ocorrida na Bósnia e Herzegovina entre os anos de 1992 e 1995 ficou conhecida por sua extrema violência. Contudo, essa guerra também foi uma das mais destrutivas quando se trata do patrimônio, entre eles o bibliográfico/documental. O patrimônio do país foi atacado constantemente e pelos números finais é possível afirmar que não foi sem intenção; em realidade, fica evidente o caráter proposital.

A biblioclastia, destruição de livros e de bibliotecas, ocorrida nesse território, foi sistemática e atingiu até mesmo o maior símbolo do patrimônio bibliográfico no país, a Biblioteca Nacional e Universitária da Bósnia e Herzegovina. Mas ataques dessa dimensão, que não são acidentais, acontecem com motivações muito precisas e foi isso que o presente estudo buscou identificar.

Baseado nos fatos e na pesquisa bibliográfica e documental, identificamos quatro motivações para a biblioclastia no país entre os anos de guerra:

  • a) o apagamento da memória;

  • b) o renascimento histórico-cultural;

  • c) o etnocídio;

  • d) a dominação.

Nesse caso, e acredita-se que em outros, essas motivações são relacionadas à eliminação de memórias e enfraquecimento dos referenciais identitários de um povo, para que assim seja possível sobrepor os ideais do opressor sobre o oprimido mais facilmente.

No decorrer dessa pesquisa entendeu-se que a temática da biblioclastia aborda mais que a destruição e perda material. É sobre perdas intrínsecas que afetam grupos, nações e até mesmo o mundo. Posto isso, é ainda uma discussão sobre o posicionamento ético e moral ou não, no que toca à destruição do patrimônio cultural, em especial bibliográfico, do conjunto de informações e do produto intelectual humano. Fica evidente que a posição social, institucional e política em relação aos bens culturais precisa ser revista até que estes sejam valorizados, priorizados e defendidos.

Apesar de não contar com um histórico de guerras como a da Bósnia e Herzegovina, o Brasil também não está livre da biblioclastia. Em solo brasileiro tem-se muitos outros casos que podem e devem ser observados, a começar com o provavelmente mais famoso: a censura na Ditadura Civil-Militar27 27 Alguns documentos sobre essa temática são Livros e subversão de Sandra Reimão, Documentos sensíveis de Icléia Thiesen e Censura de livros durante a ditadura militar: 1964-1978 de Maria Mercedes Otero. . Para além desse, temos o da biblioclastia por incúria que, causada internamente ou por falta de políticas públicas, ocasiona a perda de inúmeros itens anualmente. Não se pode esquecer que a biblioclastia é a inviabilização aos documentos, mesmo em casos sem ser de conflito ou sem o caráter proposital. A biblioclastia no Brasil é aquela de natureza muitas vezes silenciosa e quase que imperceptível em um primeiro momento.

Dada a atual situação do Brasil, em que os bens culturais e as instituições de memória vêm enfrentando a incerteza trazida por leis e por medidas desvalorizadoras, o tema se torna ainda mais relevante. Vale lembrar que os livros, enquanto patrimônio, não costumam ser reconhecidos como tal, visto o direcionamento histórico que leva o foco de preservação e políticas estarem voltados para os bens de “pedra e cal”.

Por fim, voltando ao objeto de estudo, para atingir o povo da Bósnia e Herzegovina foram destruídos incontáveis espaços culturais e religiosos no país. O mesmo que ocorre em tantas outras guerras ou regimes autoritários ao redor do mundo. Dentre os locais e objetos que sofrem com esse tipo de controle, as bibliotecas e os livros têm destaque, possuindo uma história marcada por eventos biblioclásticos. Eventos esses aos quais se deve sempre ter atenção.

A biblioclastia se expressa de diversas formas, em diferentes territórios e em múltiplas temporalidades, portanto, perceber as suas motivações é fundamental à compressão das operações de memória e de preservação que determinam a manutenção e/ou destruição dos bens culturais no tempo.

Referências

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  • 1
    O termo “Biblioteca Invisível” é inspirado no livro Le Musée Invisible de Nathaniel Herzberg (CLAUDIO, 2016, não paginado). O autor e repórter do jornal Le Monde afirma que esse museu seria composto por obras de arte roubadas ao longo da história e, portanto, teria uma das maiores e mais valiosas coleções do mundo dado o grande número de casos. Nesse sentido, para essa pesquisa, se pensou a biblioteca invisível como aquela na qual o acervo seja constituído pelo conjunto de obras afetadas pela biblioclastia. Se diz invisível pelo fato de que as obras não podem mais ser vistas (em alguns casos podem apenas por um grupo seleto de pessoas). Não cumprem mais seu papel como patrimônio tangível por terem sido destruídas ou estarem desaparecidas. Assim, a biblioteca invisível é uma metáfora utilizada por não ser possível quantificar as perdas causadas pela biblioclastia. Esse termo pretende ser uma representação para possibilitar uma ideia dos danos derivados das práticas biblioclásticas.
  • 2
    Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa foi realizada a partir da busca de materiais em diferentes domínios como a Jstor, o Project Muse, a BRAPCI, o Portal Capes, bibliotecas da ONU, UNESCO e IFLA e o site Heritage Sense Agency. Contatos não bem-sucedidos foram realizados com bibliotecas na Bósnia e Herzegovina. As notícias sobre a guerra que fazem parte do acervo documental do Centro de Informação Europeia da UFRJ também foram acessadas. Nesta pesquisa destacam-se, para além dos livros, as seguintes fontes: a correspondência eletrônica trocada com o especialista em patrimônio islâmico e professor da Universidade de Harvard, András Riedlmayer e os relatórios do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia (ICTY). Como fontes bibliográficas principais, destacamos os livros A história universal da destruição das bibliotecas: das tábuas sumérias à guerra do Iraque, de Fernando Báez (2006), A conturbada história das bibliotecas, de Mathew Battles (2003) e Livros em chamas: a história da destruição sem fim das bibliotecas, de Lucien X. Polastron (2013).
  • 3
    “[...] symbols of and have features relevant to the collective memory of a community, nation, region or society. Through their support and content, documents reflect the diversity of peoples, cultures and languages, and become part of the heritage of humanity.”. (UNESCO, 2017, não paginado).
  • 4
    “[...] lo que consituye el patrimonio bibliográfico y documental son las expresiones artísticas, históricas, culturales, folclóricas, educativas, intelectuales y científicas, entre otras, que han sido producidas para atestiguar el desarollo de las sociedades y que, a su vez, han sido objetivadas em manuscritos, impresos, medios audiovisuales, documentos electrónicos y de otros tipos com el fim de almacenar, transmitir, preservar, conservar, comunicar y difundir la suma de conocimientos contenidos em aquellas manifestaciones.” (PALMA PEÑA, 2013, p. 41).
  • 5
    “[...] éstos poseen particularidades materiales, intelectuales, gráficas, simbólicas, históricas y sociales, lo que les otorga significación para ser considerados patrimonio bibliográfico [...]” (Palma Peña, 2013, p. 32).
  • 6
    “Es necesario comprender que el patrimonio bibliográfico y documental de la humanidad tiene gran injerencia en las sociedades por su capacidad para conformar identidades, para proporcionar conocimientos sobre el pasado así como para permitir construir el presente y visualizar el futuro.”. (PALMA PEÑA, 2011, p. 308).
  • 7
    “Conductas, prácticas, procedimientos, dispositivos y políticas que conducen a la destrucción, desvalorización o invisibilización de recursos de información, de los espacios físicos donde se alojan [...]”. (BOSCH; CARSEN, 2015, p. [8]).
  • 8
    “A lo largo de la historia han ocurrido numerosos desastres, ya sean naturales, inducidos o permitidos por gente cuyo objetivo ha sido acabar o desparecer las huellas de nuestro pasado: terremotos, maremotos, incendios, inundaciones; intervenciones, revoluciones, guerras, que han ocasionado un sin fin de estragos a la humanidad. Como resultado, además de los males a la población (muertes, desaparecidos y heridos), el patrimonio cultural ha sufrido enormes daños que han dejado sin memoria escrita, sin los recursos de las imágenes, y sin otros objetos considerados como fuente de conocimiento de los diversos pueblos [...]” (VILLARELLO REZA, 2006, p. 108).
  • 9
    “El bibliocausto, un neologismo usado para aludir a la destrucción de libros, es un intento por aniquilar una memoria que constituye uma amenaza directa o indirecta a otra memoria a la que se supone superior.”. (BÁEZ, 2016, p. 54).
  • 10
    “Books are the carriers of civilization. Without books, history is silent, literature dumb, science crippled, thought and speculation at a standstill. Without books, the development of civilization would have been impossible. They are engines of change, windows on the world, and (as a poet has said) ‘lighthouses erected in the sea of time.’ They are companions, teachers, magicians, bankers of the treasures of the mind. Books are humanity in print”. (TUCHMAN, 1980, p. 13 apud KNUTH, 2003, p. 5).
  • 11
    “The systematic state-sponsored destruction of books and libraries. Twentieth-century examples include book burnings and attacks on libraries in Europe by the Nazis and the destruction of the National Library of Bosnia and Herzegovina in 1992 by the Serbs during the siege of Sarajevo.”. (REITZ, 2014, não paginado).
  • 12
    “While it may be possible to attribute an isolated incidence of the destruction of books and libraries to the realm of the unintentional, systemic destruction must be considered intentional and relatively coordinated. Destruction can be internal (within a nation and ranging from quiet deeds of censorship to aggressive acts of vandalism, terrorism, civil unrest, civil war, or genocide)or external (a function of war or conquest).”. (KNUTH, 2003, p. 50).
  • 13
    “After the death of Tito in 1980 and the disintegration of Communist domination later in the decade, federated Yugoslavia began to dissolve. Peaceful coexistence became problematic and when Serbia began to dominate the federation, Slovenia, Croatia, and then Bosnia declared independence. In response, Serbia waged war, ostensibly a civil war in the name of a united Yugoslavia, which was viewed by the other nations as nationalist aggression perpetrated in the interest of a Greater Serbia. Yugoslavs reemerged as nationalists, while two groups, the Serbs and Croats, revisited fascism. Ruptures occurred along national, religious, and ethnic lines as Serbs and Croats attacked each other and the Muslims. Questions of political and territorial legitimacy were addressed in the same way they had always been: Ethnic groups were attacked and driven from areas that were claimed as exclusive enclaves of either the Serbs or Croats. A modern concept of time was lacking—the “perpetual repetition of the same archetypes obliterates any distinction between yesterday, today, and tomorrow” [...]. Memories, suppressed and left to fester since World War II, became an inspiration for violence; ethnic and national identity rationalized excesses of every kind.”. (DEBELJAK 1994, p. 19 apud KNUTH, 2003, p. 106).
  • 14
    “Son seis repúblicas son seis naciones son cuatro idiomas son tres religiones (católicos, ortodoxos y musulmanes) son dos alfabetos (cirílico y latino) pero un solo deseo: independência.”. (LEGUINECHE, 1992, p. 10 apud REYES, 2013, p. 26).
  • 15
    “Bosnios, 43,7 %. Un 90 % eran musulmanes. Serbios, 31,3 %. Un 93 % eran cristianos ortodoxos. Croatas, 17,3 %. Un 88 % eran católicos. Yugoslavos, 5,5 % (una consideración personal que cada individuo hacía al inscribirse en el censo; en el resto de Yugoslavia, solo un 1 % se consideraba yugoslavo).”. (ROMERO, E.; ROMERO, I., 2016, p. 194).
  • 16
    “Desde comienzos de abril de 1992 hasta finales de 1995, la ciudad de Sarajevo vivió un implacable asedio por parte de los serbios que la convirtió en el ejemplo más evidente de la crueldad de la guerra bosnia. La prensa se encargaría de divulgar todo tipo de imágenes sangrantes sobre el bombardeo de civiles, bajas provocadas por los francotiradores [...] Sarajevo fue el símbolo del horror de todas las guerras yugoslavas.”. (ROMERO, E.; ROMERO, I., 2016, p. 206).
  • 17
    “La investigación realizada por el Centro de Documentación de Sarajevo estableció posteriormente que durante el asedio murieron 13.952 personas: 9.429 bosnios, 3.573 serbios y 810 croatas. De ellos, 6.137 eran soldados de la Armija, y 2.241 tropas federales o serbias. Lo que significa que aproximadamente el sesenta por ciento de todas las personas que murieron en Sarajevo durante el asedio eran soldados. Un total de 5.434 civiles murieron durante el sitio: 3.855 bosnios, 1.097 serbios y 482 croatas. Unicef informó que de los cerca de 65.000 a 80.000 niños que habitaban la ciudad durante el asedio, al menos el cuarenta por ciento recibió un disparo de francotirador, falleciendo más de quinientos.”. (ROMERO, E.; ROMERO, I., 2016, p. 265).
  • 18
    “L'ampleur de la dévastation du patrimoine est terrifiante. Les données incomplètes, colligées en 1993, révèlent que plus de 1 000 mosquées dont une vingtaine datant du 16e siècle, 150 églises catholiques, 15 églises orthodoxes, 4 synagogues et 1 000 autres biens culturels, incluant les musées, les bibliothèques, les archives et les collections de manuscrits [...]”.(CONSELHO DA EUROPA, 1993, doc. 6869, p. 8-18; doc. 6904 p. 6-8 apud BLAZINA, 1996, p. 156).
  • 19
    “Unfortunately, a full census of library losses in Bosnia does not exist. The 1992-95 war in Bosnia took place at a time when most libraries in Bosnia had not yet converted their catalogues to electronic form. Records were for the most part on paper (card catalogues, ledgers) and in many cases the records were destroyed along with the books. As a result, it is difficult to know exactly how much was lost, because of the lack of precise data.”. (RIEDLMAYER, 2019, não paginado).
  • 20
    “342. O tribunal observa que os arquivos e bibliotecas também foram submetidos a ataques durante a guerra na Bósnia e Herzegovina. No dia 17 de maio de 1992, o Instituto de Estudos Orientais em Sarajevo foi bombardeado com munições incendiárias e queimado, resultando na perda de 200,000 documentos, incluindo uma coleção de mais de 5,000 manuscritos islâmicos (Riedlmayer Report, p. 18; Council of Europe, Parliamentary Assembly; Second Information Report on War Damage to the Cultural Heritage in Croatia and Bosnia-Herzegovina, doc. 6869, 17 de junho de 1993, p. 11, ann,38). No dia 25 de agosto de 1992, a Biblioteca Nacional da Bósnia foi bombardeada e um estimado de 1.5 milhões de volumes foram destruídos (Riedlmayer Report, p. 19). O tribunal observa que, embora o réu considere que não há certeza sobre quem tenha bombardeado essas intituições, exitem evidências que ambos o Instituto de Estudos Orientais de Sarajevo e a Biblioteca Nacional foram bombardeados a partir de posições Sérvias.” (CASE ... , 2007, p. 185, tradução nossa).
  • 21
    “[...] la trascendencia y el impacto del patrimonio sólo se potenciará en la medida en que las sociedades conozcan, usufructúen y reflexionen sobre los elementos históricos, culturales y sociales de éste.” (PALMA PEÑA, 2013, p. 35).
  • 22
    “A lo largo de los siglos, hemos visto que cuando un grupo o nación intenta someter a otro grupo o nación, lo primero que intenta es borrar las huellas de su memoria para reconfigurar su identidad.”. (BÁEZ, 2016, p. 52).
  • 23
    “Books were destroyed as part of the process of homogenizing discourse, suppressing individualism in the interest of the collective, and co-opting or purging the intellectuals. The goal of extremist regimes was complete control, and books and libraries were compromised by their association with humanism, the creed of enemy democracies [...]. Regardless of their individual agendas, books ultimately, by their very existence and coexistence with the entirety of the world’s print literature, support individualism, pluralism, creativity, rationalism, freedom of information, critical thinking, and intellectual freedom.”. (KNUTH, 2003, p. 236).
  • 24
    “[...] la identidad étnica se refiere a la conciencia que tiene una persona de pertenecer al grupo del que forma parte y de identificarse con él durante su proceso de desarrollo. Los grupos sociales etnicamente diferenciados utilizan contenidos culturales (representaciones simbólicas y prácticas cotidianas y rituales) para trazar fronteras. Estas fronteras varían de acuerdo con los contextos y las necessidades históricas. A través de estos procesos se configuran identidades étnicas basadas en elementos culturales, las cuales son siempre relacionales.” (SORIANO, 2014, p. 51, grifo do autor).
  • 25
    “344. À luz do exposto, o tribunal considera que existem evidências conclusivas da destruição deliberada do patrimônio histórico, cultural e religioso do grupo protegido durante o período em questão. O tribunal toma nota da submissão do aplicante de que a destruição de tais patrimônios foi "uma parte essencial da política de purificação étnica" e foi "um atentado para destruir os traços da própria existência" dos muçulmanos bósnios. Contudo, na visão do tribunal, a destruição do patrimônio histórico, cultural e religioso não pode ser considerada como uma imposição deliberada e calculada para provocar a destruição física do grupo. Apesar de tal destruição poder ser altamente significativa visto que ela é direcionada a eliminação de todos os traços culturais e religiosos da presença de um grupo.” (CASE ... , 2007, p. 185, tradução nossa).
  • 26
    “No ha habido nunca ni hay una sola causa para la destrucción de un libro o una biblioteca: hay decenas. No obstante, y más allá de las anécdotas circunstanciales que exoneren o culpen, predomina una intención deliberada de forzar una amnesia gradual o inmediata que permita el control de un individuo o sociedad.”. (BÁEZ, 2016, p. 52).
  • 27
    Alguns documentos sobre essa temática são Livros e subversão de Sandra Reimão, Documentos sensíveis de Icléia Thiesen e Censura de livros durante a ditadura militar: 1964-1978 de Maria Mercedes Otero.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2020
  • Aceito
    05 Out 2022
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