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Afinidades e diferenças: Algumas considerações sobre a política da consideração (Parte 1)

Affinities and Differences: Some thoughts on the politics of regard

Afinidades y diferencias: algunas consideraciones sobre la política de la consideración (Parte 1)

Resumo

Este artigo promove uma discussão crítica sobre a “política da consideração” proposta por Kelly e Matos, em texto publicado nesta revista. O objetivo é comparar interpretações alternativas sobre o mundo indígena amazônico e daí tirar algumas consequências teórico-etnográficas. O artigo será publicado em duas partes. Na primeira, analisam-se as premissas dos autores, bem como os dados etnográficos que sustentam seus argumentos. Na segunda, esclarecem-se equívocos na interpretação da “teoria da maestria”, bem como avançam-se algumas figuras alternativas da ação e agência na Amazônia indígena. Ao final, pergunta-se a que serve uma política de donos.

Palavras-chave:
Amazônia; maestria; agência; cuidado; parentesco

Abstract

This article is a critical discussion of the “politics of regard” proposed by Kelly and Matos in an article published in this journal. Our aim is to compare alternative interpretations of Indigenous Amazonia, and to highlight their theoretical-ethnographic consequences. The article will be published in two parts. In the first part we analyse the authors’ premises, as well as the ethnographic data that supports their arguments. In the second, we will clarify equivocations in their interpretation of the ‘theory of mastery’, and suggest alternative figure for action and agency in Indigenous Amazonia. In conclusion, we will enquire into what a politics of ownership achieves.

Keywords:
Amazonia; mastery; agency; care; kinship

Resumen

Este artículo propone una discusión crítica sobre la "política de la consideración" planteada por Kelly y Matos en un texto publicado en esta revista. El objetivo es comparar interpretaciones alternativas sobre el mundo indígena amazónico y extraer algunas consecuencias teórico-etnográficas. El artículo será publicado en dos partes. En la primera, se analizan las premisas de los autores, así como los datos etnográficos que apoyan sus argumentos. La segunda parte aclara malentendidos en la interpretación de la "teoría de la maestría" y avanza algunas figuras alternativas de la acción y la agencia en la Amazonía indígena. Al final, nos preguntamos para qué sirve una política de dueños.

Palabras clave:
Amazonía; maestría; agencia; cuidado; parentesco

So I endeavour to remain true to a point of view not because I defend it but because there is some mileage to be gained from specifying [...] what is so interesting about it that it could become important to leave behind. (Strathern 2005STRATHERN, Marilyn. 2005. Kinship, Law and the Unexpected: Relatives are Always a Surprise. Cambridge: Cambridge University Press .:x).

Em um artigo recente publicado nesta revista, José Kelly e Marcos Matos (2019)KELLY, Jose & MATOS, Marcos. 2019. “Política da Consideração: Ação e Influência nas Terras Baixas da América do Sul”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 25 (2):391-426. buscam aplicar aos povos indígenas das Terras Baixas da América do Sul o modelo de ação melanésia proposto por Marilyn Strathern em O Gênero da Dádiva, com o objetivo, afirmam, de repensar “as formas de ação e organização dos coletivos” (:391) na região. O texto parte de duas premissas - uma delas stratherniana, a outra tributária da antropologia da ética - que funcionam como dispositivos heurísticos de toda a empreitada dos autores. As premissas são, em suas palavras, as seguintes:

  1. a)

    toda ação significativa (i.e., que tem efeitos e consequências perceptíveis) poderia ser explicada - ou compreendida, ou justificada, ou questionada etc. - como envolvendo a separação entre uma pessoa que age e uma outra pessoa tomada como a causa da ação;

  2. b)

    ser reconhecido como pessoa, ou ocupar o lugar de um agente moral, implica estar sob a consideração de uma outra pessoa (:391).

Por meio de uma elegante exposição, os autores abordam uma série de situações etnográficas, reanalisando-as a partir destas duas premissas. Uma boa parte do artigo é voltada para um debate - ora implícito, ora explícito - com nossas ideias sobre a maestria na Amazônia, em particular aquelas expostas em Fausto (2008)FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14 (2):329-366. e em Costa (2017)COSTA, Luiz. 2017. The Owners of Kinship: Asymmetrical Relations in Indigenous Amazonia. Chicago: HauBooks..1 1 Os autores não consideram outros textos em que tratamos de assuntos correlatos (Brightman, Fausto & Grotti 2016; Costa 2010, 2013, 2016, 2019; Costa & Fausto 2019; Fausto 1999, 2001; Fausto & Costa 2013). Kelly e Matos afirmam estar de acordo conosco no que toca à pervasividade da relação de maestria - “[há] pouca dúvida de que a figura do mestre-dono seja amplamente difundida entre os povos amazônicos, servindo como um esquematismo para muitas relações” (:408) - mas, ao mesmo tempo, buscam subsumir a especificidade da relação de maestria a uma teoria geral da ação na Amazônia indígena. Assim, concluem que “[a] relação mestre-xerimbabo seria uma modulação particular de uma estruturação geral da ação e não uma precondição para a agência de forma geral” (:408).

O texto de Kelly e Matos oferece uma oportunidade rara para nos engajarmos em um debate crítico, colocando em realce interpretações alternativas sobre o mundo indígena amazônico. Neste texto, nosso objetivo é explicar porque achamos pouco interessante subsumir as relações mestre-xerimbabo (ou sua teoria etnográfica) a uma teoria geral da ação, cujo escopo é muito mais amplo. Nossa ambição é mais limitada: queremos descrever (e teorizar sobre) relações de caráter assimétrico na Amazônia. Nesse âmbito, elaboramos um modelo de agência magnificada, que não se confunde com uma teoria geral da ação. A relação mestre-xerimbabo é o esquema por meio do qual um certo tipo de agência se faz possível e se torna visível. Apesar da diferença de escopo, há vários elementos do modelo de Kelly e Matos que fazem interseção com o nosso, de tal modo que nos parece interessante esclarecer nossas afinidades e diferenças.

Este artigo será publicado em duas partes. Na primeira, analisaremos criticamente as duas premissas dos autores, e discutiremos os dados etnográficos que eles oferecem para sustentar seus argumentos. Na segunda parte, a ser publicada no próximo número de Mana, iremos esclarecer alguns equívocos na interpretação da teoria da maestria, além de avançar algumas proposições novas. Ao final, focalizaremos o interflúvio Juruá-Purus para mostrar como as torções propostas por Kelly e Matos não fazem jus nem à riqueza dos dados etnográficos, nem à história dos povos indígenas daquela região.

O apelo e a convocação

Toda teoria etnográfica tem uma portabilidade limitada. Nós, amazonistas, sabemos bem disso no que tange ao africanismo britânico dos anos 1930 a 1960. Contudo, costumamos ser menos cautelosos quando se trata do melanesianismo anglo-saxão dos últimos 50 anos. Ao fazer esta afirmação, não queremos dar a impressão de que somos contra explorar as ressonâncias e as conexões parciais entre diferentes modelos regionais, os quais resultam de tradições e traduções locais (tanto as dos povos estudados quanto as dos próprios pesquisadores).2 2 Nós mesmos fizemos isso, investigando, por exemplo, as tradições venáticas na Amazônia, América boreal e Sibéria (Fausto 2007), ou as diferenças entre a maestria amazônica e fenômenos similares na Ásia Central, no Mediterrâneo, e nos Andes (Costa & Fausto 2019). O problema emerge quando uma teoria local é importada como chave-mestra capaz de abrir todas as portas. O risco que se corre é o de diluir as especificidades etnográficas.

Nem sempre é fácil, contudo, distinguir os limites espaço-temporais de uma teoria antropológica. A separação entre causa e agente proposta por Strathern é um desses casos, pois resulta do encontro de duas tradições locais - a britânica e a melanésia - em torno de dois eixos principais: o gênero (tal como atualizado no mundo anglo-saxão e na Melanésia nos anos 1970 e 1980) e a díade sociedade/indivíduo (em um momento de individualismo redivivo no contexto do neoliberalismo triunfante de Thatcher e Reagan).

Um ano antes da publicação de O Gênero da Dádiva, na introdução do livro Dealing with Inequality, Strathern já dedicava algumas páginas à então nova noção de agência. O termo - que Ortner (1984)ORTNER, Sherry. 1984. “Theory in Anthropology since the Sixties”. Comparative Studies in Society and History, 26 (1):126-166. havia qualificado como símbolo-chave da antropologia pós-1960 - emergira no contexto do debate sobre a relação entre estrutura e ação, isto é, entre o peso das determinações estruturais e a capacidade de ação dos atores (Bourdieu 1972BOURDIEU, Pierre 1972. Esquisse d’une Théorie de la Pratique (Précédé de Trois Études D’ethnologie Kabyle). Genebra: Librairie Droz.; Giddens 1984GIDDENS, Anthony. 1984. The Constitution of Society: Outline of the Theory of Structuration. Berkeley: University of California Press.; Sahlins 1981)SAHLINS, Marshall. 1981. Historical Metaphors and Mythical Realities: Structure in the Early History of the Sandwich Islands Kingdom. Ann Arbor: The University of Michigan Press.. A intervenção de Strathern, em 1987, visava desvencilhar esse novo conceito de agência da dualidade indivíduo e sociedade, apropriando-se dele como um termo neutro em relação à descrição da causalidade e intencionalidade da ação. O conceito, dizia a autora, poderia dar uma contribuição à discussão sobre personitude nos estudos de inspiração feminista, desde que os “agentes não sejam tomados como feitores de coisas feitas” (1987:22STRATHERN, Marilyn. 1987. “Introdução”. In: STRATHERN, Marilyn (ed.), Dealing with Inequality: Analysing Gender Relations in Melanesia and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-32.). Ela explorava, assim, outras possibilidades:

Não seria má ideia indagar o que constitui a ação efetiva. Ou seja, como as pessoas são vistas impingirem-se umas às outras; como elas são afetadas pelos outros? São as pessoas os autores de seus próprios atos? Ou elas derivam sua eficácia de outros? Se, em termos ocidentais, as relações de poder têm a ver com a ação eficaz, então o que nessas sociedades não ocidentais conta como evidência disso - o que é visto como a origem de eventos particulares, resultados, conjuntos de comportamento? O conceito de agência é uma abreviatura para essas questões. Ele se refere à maneira pela qual as pessoas atribuem causalidade ou responsabilidade umas às outras e, portanto, alocam fontes de influência e direções de poder. Perguntar sobre o exercício da agência é também perguntar como as pessoas dão a conhecer essa capacidade de agir a si mesmas (1987:23STRATHERN, Marilyn. 1987. “Introdução”. In: STRATHERN, Marilyn (ed.), Dealing with Inequality: Analysing Gender Relations in Melanesia and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-32.).

Para Strathern, a pergunta não deveria ser posta como se a ação eficaz fosse algo que emanasse meramente de uma motivação individual. O problema geral seria o de saber “como os efeitos sociais são registrados” (1987STRATHERN, Marilyn. 1987. “Introdução”. In: STRATHERN, Marilyn (ed.), Dealing with Inequality: Analysing Gender Relations in Melanesia and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-32.) - algo que, precisamente, procuramos delinear, para a Amazônia, por meio da teoria da maestria.

As perguntas que nos coloca Strathern no texto de 1987STRATHERN, Marilyn. 1987. “Introdução”. In: STRATHERN, Marilyn (ed.), Dealing with Inequality: Analysing Gender Relations in Melanesia and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-32. não se limitam à separação entre causa e agente de uma determinada ação, mas comportam uma série de possibilidades de distribuição da causalidade e da responsabilidade - algumas delas exploradas de diferentes modos na tradição filosófica ocidental. Locke, por exemplo, ao alinhar propriedade de si, identidade pessoal e responsabilidade gerou o modelo prototípico do indivíduo, que tem servido a nós, antropólogos, como contramodelo para construirmos nossas descrições da pessoa extraocidental (Fausto 2008)FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14 (2):329-366.. Sabemos que isso é, sobretudo, uma estratégia descritiva, que não subsistiria intacta caso multiplicássemos nossos contramodelos, seja por meio da etnografia do mundo anglo-americano, seja por meio de outros construtos filosóficos igualmente ocidentais. Aqui, poderíamos tomar como exemplo a filosofia pós-estruturalista de Derrida ou Deleuze, mas preferimos voltar ao idealismo alemão pós-kantiano, que, diferentemente de Locke, buscou ancorar a liberdade e a ética na intersubjetividade e não em indivíduos isolados, donos de si mesmos. Esses idealistas pós-kantianos não fundaram, portanto, a tradição liberal contra a qual Strathern escreve.

Pensemos em Fichte, que elaborou conceitos tais como “reconhecimento” (Anerkennung) e “apelo” (Aufforderung), que apontam para uma concepção menos centrada de Sujeito. Na interpretação de R. Williams, um comentador particularmente interessado em desenvolver uma ética do reconhecimento, Fichte teria instalado um Outro não apenas como condição transcendental ou limite do Eu, mas como um agente que age sobre o Eu e o influencia por meio de um apelo (Aufforderung), que pode ser aceito, rejeitado ou ignorado (Williams 1997:36-37WILLIAMS, Robert R. 1997. Hegel's Ethics of Recognition. Berkeley: University of California Press .). Nas palavras de Fichte: “Se esse outro não tivesse agido e convocado o sujeito para a atividade, o sujeito não teria agido. Sua ação como tal é condicionada pela ação daquele que está fora dele.” (GNR §4, 41 citado em Williams 1997:37WILLIAMS, Robert R. 1997. Hegel's Ethics of Recognition. Berkeley: University of California Press .).3 3 Na tradução de Bauer: “If the external being had not exercised its efficacy and thus had not summoned the subject to exercise its efficacy, then the subject itself would not have exercised its efficacy. The subject's activity as such is conditioned by the activity of the being outside it” (2000:39-40).

A questão de Fichte (2000)FICHTE, Johann Gottlieb. 2000. Foundations of Natural Right: According to the Principles of the Wissenschaftslehre. Cambridge, UK: Cambridge University Press. era como fundar a liberdade e a consciência de Si no reconhecimento - um problema que dificilmente nos seria útil na Melanésia ou na Amazônia. Enquanto teoria geral, contudo, há aqui ressonâncias - por certo equívocas, mas não menos interessantes - entre o conceito de Aufforderung e a noção de claim, tão central à antropologia de Strathern.4 4 Aufforderung e Forderung costumam ser traduzidos para o inglês, justamente, por demand, claim, call, request, invitation, incitement. Não queremos dizer com isso que a teoria stratherniana é fichtiana, mas sim apontar para o fato de que o problema da “alocação de causalidade e responsabilidade” pela ação comporta diversas possibilidades, que vão além da simples separação entre causa e agente (a começar pela inclusão do paciente - o alvo da ação - no esquema).

Nosso aceno a Fichte aqui é menos fortuito do que parece: a teoria da maestria possui uma relação, digamos, de filiação com a teoria do reconhecimento.5 5 Fichte exerceu grande influência sobre Hegel durante o período em que este último esteve em Jena (1801-1806). Tal influência seria decisiva para a elaboração da Fenomenologia do Espírito, publicada em 1807. Como sugere Honneth (2003:47), o salto fundamental de Hegel foi o de dinamizar, por meio do conflito, o modelo de reconhecimento de Fichte. Foi esse passo que permitiu a Fausto (2001:537-41) fazer ressoar o modelo hegeliano com a predação e a luta de perspectivas na Amazônia. Para uma discussão sobre o conceito de reconhecimento, ver Ricouer (2005) e Ikäheimo e Laitinen (2011). Em sua origem, nosso modelo tinha como contramodelo (e ao mesmo tempo inspiração) a dialética mestre-escravo de Hegel (Fausto 1997FAUSTO, Carlos. 1997. A Dialética da Predação e da Familiarização entre os Parakanã da Amazônia Oriental: Por uma Teoria da Guerra Ameríndia. Tese de Doutorado, PPGAS, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro., 1999FAUSTO, Carlos. 1999. “Of Enemies and Pets: Warfare and Shamanism in Amazonia”. American Ethnologist, 26:933-956.).6 6 O termo usado por Hegel é Knecht, frequentemente traduzido, em inglês, como servant ou bondsman. As traduções em português, no entanto, costumam seguir a tradição francesa, vertendo o termo por “escravo”. A proposição era que, em uma economia da dádiva, a dialética senhor-escravo assume uma forma subjetivante, na qual nenhum dos termos é reduzido à condição de objeto. Àquela altura, operávamos com a distinção heurística entre economia da dádiva e economia da mercadoria (Gregory 1982GREGORY, Chris 1982. Gifts and Commodities. London: Academic Press.; Strathern 1988)STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. Berkeley: University of California Press ., o que permitia contrastar duas modalidades da maestria: uma subjetivante, outra objetivante; uma em que o termo menor é esquematizado como xerimbabo, a outra em que o termo menor é esquematizado como escravo.

Note-se que não se tratava de uma oposição entre relações interespecíficas e relações inter-humanas, uma vez que uma criança cativada (cativa e cuidada) também é um xerimbabo, assim como um animal de trabalho é um escravo. O ponto do contraste, portanto, é que a forma-escravidão aparece em um regime de relações em que pessoas podem ser coisas de um determinado tipo (propriedade), enquanto a forma-familiarização surge em um regime em que tudo, inclusive coisas, podem ser pessoas (alvo de cuidado). Esse contraste possui, contudo, uma ressonância positiva, pois a dialética senhor-escravo hegeliana, assim como a mestre-xerimbabo ameríndia, exprime um mesmo paradoxo.

O paradoxo da maestria - tanto ameríndia quanto hegeliana - é que para se magnificar o mestre não pode minificar completamente o termo subordinado sob pena de tornar a relação estéril. Em Hegel, a luta de vida ou morte que conduz à servidão é uma “luta para determinar de quem será o ponto de vista normativamente dominante” (Pinkard 2000PINKARD, Terry P. 2000. Hegel: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press.:174). Na ausência de mediação, não pode haver mútuo reconhecimento, de tal modo que a luta conduz ou à morte ou à servidão. O paradoxo é que a redução do escravo à condição de objeto (propriedade) não permite ao mestre obter o reconhecimento genuíno que ele deseja. Daí a estrutura relacional mestre-escravo estar fadada a ser superada, por meio, justamente, de uma inversão: enquanto o mestre tem um mero objeto à sua frente, o escravo tem diante de si um sujeito soberano, que servirá de modelo para a superação da consciência servil. A liberdade genuína está pressuposta na figura do escravo, porém ainda não posta. O futuro da liberdade, assim, não se joga do ponto de vista do mestre, mas sim do ponto de vista do escravo (Hegel 2018 [1807]:76-82 - PhG §178-196HEGEL, Georg W. Friedrich. 2018. The Phenomenology of Spirit. Trad. M. J., Inwood. Oxford: Oxford University Press.).7 7 É essa “saída por baixo” que será criticada por Nietzsche - pelo menos na interpretação de Deleuze (1962), para quem a dialética mestre-escravo hegeliana expressa a perspectiva ressentida e reativa do escravo e não a potência afirmativa do mestre. Essa potência dionisíaca é hierárquica: “a origem é a diferença na origem, a diferença na origem é a hierarquia, isto é, a relação de uma força dominante com uma força dominada, de uma vontade obedecida por uma vontade obediente” (1962:8). Para uma interpretação distinta, crítica à leitura de Deleuze, ver Williams (2012).

No caso ameríndio, é preciso garantir ao termo minificado a capacidade de continuar a ocupar uma perspectiva própria. Isto se expressa claramente nas relações em que o Outro é tão ou mais potente que o mestre, como no caso do xamanismo e da guerra. Há sempre o risco de inversão e é mesmo difícil saber quem controla quem (Fausto 1997FAUSTO, Carlos. 1997. A Dialética da Predação e da Familiarização entre os Parakanã da Amazônia Oriental: Por uma Teoria da Guerra Ameríndia. Tese de Doutorado, PPGAS, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro., 1999FAUSTO, Carlos. 1999. “Of Enemies and Pets: Warfare and Shamanism in Amazonia”. American Ethnologist, 26:933-956.). Esse risco é mais contundente nas relações que envolvem outros poderosos (espíritos, inimigos, objetos rituais) do que nas relações com outros menos potentes (crianças, filhotes de animais, plantas cultivadas). Mas mesmo de xerimbabos - que costumam ser controlados de modo mais estrito (amarrados, desdentados, despenados) - não se espera que percam totalmente a sua volição e modos de ação (Costa 2017COSTA, Luiz. 2017. The Owners of Kinship: Asymmetrical Relations in Indigenous Amazonia. Chicago: HauBooks.:49-53). Seja como for, o paradoxo da maestria mostra que a reversão relacional lhe é constitutiva. Ela não implica, contudo, simples alternância, pois há sempre um movimento direcional e, logo, um evento, que não pode ser simplesmente cancelado - toda familiarização deixa um traço.

Coagir e compelir

A teoria da ação de Strathern, utilizada por Kelly e Matos, aparece no final de O Gênero da Dádiva como um golpe final no sujeito solar ocidental. O golpe começa por uma crítica a Leenhardt. Strathern julga que, apesar de tudo, ele não foi até o fim na dissolução do sujeito, uma vez que teria ainda conservado um centro, mesmo que vazio, na forma de um precipitado de relações. Para escapar em definitivo do fantasma do unmoved mover (“motor imóvel”), que na modernidade migrou de Deus para o indivíduo, seria preciso conjurar de vez qualquer centro.8 8 Esse é um tema aristótelico clássico, discutido no livro 12 da Metafísica, em que o autor se pergunta sobre a existência de uma substância primeira que é eterna, inamovível e separada das coisas sensíveis; substância esta que não tem magnitude, nem é partível ou divisível (1977:151; Livro 12, Cap.VII, 12). Em seguida, Aristóteles se pergunta se há uma ou mais de uma substância desse tipo (cap. VIII, 1) e conclui, por meio de uma conhecida citação da Ilíada, que “[a] regra de muitos não é boa; deixe um só ser o rei”. É interessante notar que La Boétie abre o Discurso da Servidão Voluntária retomando a mesma passagem em Homero: “De ter senhores demais, nenhum bem verei; que um, sem mais, seja o mestre e que um só seja o rei” (2002:127). Assim como La Boétie, nosso modelo pensa a política na Amazônia como implicando dispersão e multiplicidade, algo já indicado pelo título “Donos demais” (Fausto 2008) e discutido também em Costa e Fausto (2019). E, para tanto, Strathern utiliza-se de uma imagem proveniente da pesquisa de Battaglia (1983)BATTAGLIA, Deborah. 1983. “Projecting Personhood in Melanesia: The Dialectics of Artefact Symbolism in Sabarl Island”. Man (N.S.), 18:289-304., na ilha Sabarl, Arquipélago de Calvados, na Nova Guiné. Ao analisar o machado de pedra típico da região, Battaglia afirma que ele é percebido como “uma imagem de ação e movimento dirigido” (1983:296BATTAGLIA, Deborah. 1983. “Projecting Personhood in Melanesia: The Dialectics of Artefact Symbolism in Sabarl Island”. Man (N.S.), 18:289-304.) - movimento este que corresponderia graficamente ao de certas prestações envolvendo os lados maternos e paternos de Ego. No cotovelo do machado (a noção de “cotovelo” é dos próprios Sabarl), Strathern localiza o agente, que age em benefício de seus coaldeãos, servindo como ponto de inflexão no fluxo de objetos de valor. Essa posição pivotal entre duas direções é o que caracteriza, para a autora, o agente na Melanésia. Aí reside a sua teoria etnográfica da ação, que não se confunde, a nosso ver, com uma teoria geral da ação.

Uma das questões que emergem desse modelo melanésio de Strathern é a de como caracterizar a ação desse agente que está localizado em um campo dividido entre dois lados e/ou direções. Como se dá a escolha (ou “seleção” em Kelly e Matos) entre duas reivindicações (claims)? O que determina a direção da ação? Como a causa se impõe ao agente? Em alguns momentos, como ocorre no texto “Loosing (out on) intellectual resources”, que trata da disputa judicial em torno dos direitos humanos de uma menina incluída nas compensações entre dois clãs, Strathern mobiliza a linguagem jurídica da obrigação para caracterizar a ação de quem serve de pivô entre relacionamentos. Do ponto de vista das transações entre os clãs, diz ela, o caso da menina é sobre “a natureza das obrigações e como as pessoas honram suas dívidas” (2005:128STRATHERN, Marilyn. 2005. Kinship, Law and the Unexpected: Relatives are Always a Surprise. Cambridge: Cambridge University Press .). Talvez, cogita Strathern, antes do que agir livremente, a menina quisesse ser capaz de “cumprir suas obrigações” (2005:132STRATHERN, Marilyn. 2005. Kinship, Law and the Unexpected: Relatives are Always a Surprise. Cambridge: Cambridge University Press .). Mas quais delas?

A noção de obrigação não é usada com frequência por Strathern. Aqui, é possível que ela esteja experimentando com a linguagem em que o próprio caso foi julgado na Corte Suprema de Papua Nova Guiné. É interessante notar, porém, que não raras vezes Strathern descreve a causação como uma forma de coação ou um compelir - termos aliás que são retomados por Kelly e Matos em seu artigo: “Se os agentes estão sempre respondendo a outros tomados como causas inertes ou explícitas de suas ações, podemos dizer que seus atos são induzidos, compelidos ou até coagidos por esses outros”. (2019:406). Estes termos descrevem uma causação bastante forte, sugerindo uma poderosa capacidade de agência da causa externa, bem mais expressiva do que a tipologia de causas (inerte, oculta, explícita) proposta pelos autores permite intuir.

Compelir provém do latim compellere, que se aplicava primariamente ao pastoreio. No dicionário de Latim de Oxford (1968), o seu primeiro sentido é, precisamente, (1a) “conduzir (gado etc.) junto, tocar o rebanho”; em seguida, (1b) “compelir (pessoas) a vir junto”; e (1c) “forçar (coisas) a se juntarem”. Por sua vez, o verbo latino para coagir é coercere, cujo sentido é “restringir dentro dos limites, confinar”. O campo semântico destes dois verbos aponta para um certo mundo mediterrâneo - mundo da escravidão e da domesticação de plantas e animais - que contrastamos alhures com o mundo ameríndio da familiarização de pessoas, plantas e animais (Fausto & Neves 2018)FAUSTO, Carlos & NEVES, Eduardo. 2018. “Was There Ever a Neolithic in the Neotropics? Plant Familiarization and Biodiversity in the Amazon”. Antiquity, 92:1604-1618.. Notem que a teoria da maestria busca precisamente construir uma linguagem da ação que escape a termos que evocam a tríade domesticação-escravidão-soberania.

Quando, inspirados em Descola (1994)DESCOLA, Philippe. 1994. “Pourquoi les Indiens d’Amazonie n’ont-ils pas Domestiqué le Pécari? Genéalogie des Objets et Anthropologie de la Objectivation”. In : B. Latour & P. Lemonnier (eds.), De la Préhistoire aux Missiles Balistiques: L’intelligence Sociale des Techniques. Paris: La Découverte. pp. 329-344., tomamos de Haudricourt (1962)HAUDRICOURT, Georges-Andres. 1962. “Domestication des Animaux, Cultures des Plantes et Traitement D’autrui”. L’Homme, 2 (1):40-50. a ideia de que há uma homologia no tratamento do outro humano e não-humano é porque ela nos servia, entre outras coisas, para pensar a Amazônia a partir da distinção entre “ação direta positiva” (típica do pastor mediterrâneo) e a “ação indireta negativa” (típica do agricultor de tubérculos melanésio). Quem não entendeu isto gastou tempo a criticar-nos por termos caracterizado a relação senhor-xerimbabo como envolvendo controle e proteção. Não se deram conta de que distinguíamos esse controle daquele característico da domesticação clássica (e/ou das narrativas sobre ela), trabalhando na linha estirada entre o controle e o cuidado, tensionando e deslocando os sentidos normativos atribuídos a esses termos (Fausto 2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14 (2):329-366.:342-343; Fausto & Neves 2018FAUSTO, Carlos & NEVES, Eduardo. 2018. “Was There Ever a Neolithic in the Neotropics? Plant Familiarization and Biodiversity in the Amazon”. Antiquity, 92:1604-1618.).

A questão crucial, porém, é saber qual linguagem devemos utilizar para descrever a limitação do movimento, o enlaçamento, a contenção espacial, o englobamento e a violência, que estão inegavelmente presentes na cadeia operatória dos processos de familiarização. Entendemos, inclusive, que a intensidade relativa de controle e cuidado é o que diferencia modalidades de relações esquematizadas, todas elas, pela maestria. Assim, a relação com um patrão da borracha e seu freguês indígena implica mais controle e menos cuidado, enquanto a relação entre um guerreiro e um menino cativo tende a envolver, progressivamente, menos controle e mais cuidado. Seja como for, é importante notar que a teoria da maestria não é uma teoria da obrigação ou do controle, mas antes um modelo que descreve o desejo cósmico de produzir o parentesco a partir do não-parentesco, o que significa dizer a partir da afinidade (Fausto 2007:502FAUSTO, Carlos. 2007. “Feasting on People: Eating Animals and Humans in Amazonia”. Current Anthropology, 48:497-530.; Costa 2017:225-230COSTA, Luiz. 2017. The Owners of Kinship: Asymmetrical Relations in Indigenous Amazonia. Chicago: HauBooks.). E isto nos afasta definitivamente do esforço de reconceitualização proposto por Kelly e Matos, no qual a afinidade desaparece, levando de roldão as relações interespecíficas de metaparentesco. Com a política da consideração acabamos reduzidos ao universo do parentesco entre congêneres, obviando as relações de alteridade.

Moral e cuidado

Até aqui nos detivemos apenas na primeira premissa de Kelly e Matos. Sugerimos que, por um lado, enquanto teoria geral, a separação entre causa e agente é um tema recorrente na filosofia e nas ciências sociais, exigindo um esforço conceitual mais denso do que aquele proposto pelos autores. Por outro lado, sugerimos que, enquanto teoria etnográfica, a teoria da ação de Strathern não é de fácil aclimatação à Amazônia, onde raramente encontramos um sistema de transações interclânicos (ou entre “lados” paterno e materno). Adicionalmente, levantamos a questão do léxico utilizado por Kelly e Matos a partir de Strathern, focalizando verbos como “coagir” e “compelir”, bem como o conceito de obrigação. Agora, voltaremos nossa atenção para a segunda premissa de Kelly e Matos, em particular à qualificação do agente como “moral”. O uso deste adjetivo não é sem consequências, produzindo inflexões importantes no argumento dos autores.

Se o artigo aqui em discussão pretende ser uma aplicação da teoria da ação de Strathern à Amazônia, é forçoso admitir que, neste ponto, ele se desvia do original, pois raramente a autora utiliza o nome ou adjetivo “moral” ao falar do mundo melanésio. O termo ocorre com frequência quando estão em questão as noções anglo-americanas de parentesco, as discussões sobre tecnologias reprodutivas e sobre propriedade intelectual ou, mais recentemente, a teoria dos sentimentos morais de Hume (Strathern 2020STRATHERN, Marilyn. 2020. Relations: An Anthropological Account. Durham: Duke University Press.). Em uma entrevista publicada por Mana, Strathern expressou de modo contundente suas razões para evitar utilizar o termo “moral”:

Eu posso dizer que nós dois temos uma relação: e eu tanto quero dizer isto em um sentido axiomático - pois estando em um contexto social, temos obviamente uma relação no sentido formal -, quanto quero dizer que temos uma relação em um sentido intensamente socializante, sentimental - há sempre esse valor moral por trás do conceito. E eu detesto a sentimentalização das relações, a redução, por exemplo, da reciprocidade ao altruísmo, um erro que Tim Ingold, dentre outros, faz. Não aguento isso, a redução da socialidade à sociabilidade. Estes termos se tornam imbuídos de conotações positivas - ou negativas, quando se trata de guerra, ou de conflito. Todos esses problemas se encontram no estrutural-funcionalismo, tudo isso sai da ideia de que a sociedade é algo inerentemente solidário. É aí que Fortes, naturalmente, põe sua moralidade (1999:169STRATHERN, Marilyn. 1999. “No Limite de uma Certa Linguagem”. Entrevista a Eduardo Viveiros de Castro e Carlos Fausto. Mana: Estudos de Antropologia Social, 5 (2):157-175.).

A teoria relacional stratherniana - assim como a lévistraussiana - é formal, ou seja, é antes uma estética da relação do que uma ética. Moral e sentimento comparecem na obra de Strathern apenas como conceitos nativos anglo-americanos, não como chaves de leitura da Melanésia. A autora busca deliberadamente evitar que o vocabulário ético-moral - conceitos pesados como caráter, liberdade, intencionalidade, responsabilidade, costumeiramente associados ao Sujeito e à consciência de Si - seja contrabandeado para dentro do sistema M (como diria Alfred Gell 1999GELL, Alfred. 1999. “Strathernograms, or the Semiotics of Mixed Metaphors”. In: GELL, Alfred, The Art of Anthropology: Essays and Diagrams. London: The Athlone Press. pp. 29-55.:34). Por que Kelly e Matos, em vez de amerindianizar a questão, preferem inseri-la no campo da filosofia moral? Qual é a fonte de inspiração?

Os autores não esclarecem de onde importam sua noção de “moral”. Talvez possamos ver aí a influência difusa da antropologia da ética (Lambek 2010LAMBEK, Michael (ed.). 2010. Ordinary Ethics: Anthropology, Language, and Action. New York: Fordham University Press.; Laidlaw 2014)LAIDLAW, James. 2014. The Subject of Virtue: An Anthropology of Ethics and Freedom. Cambridge: University of Cambridge Press., ou ainda dos textos pioneiros de Overing e colaboradores que, decididamente, trouxeram essa discussão para a etnologia amazônica muito antes da voga atual. Em “Elogio do Cotidiano”, também publicado originalmente nesta revista, Overing recorre ao que chama de nova filosofia moral feminista, para a qual “‘cuidado’ [care] é a nova palavra-chave” (1999:82OVERING, Joana. 1999. “Elogio do Cotidiano: A Confiança e a Arte da Vida Social em uma Comunidade Amazônica”. Mana: Estudos em Antropologia Social, 5 (1):81-107.).9 9 A discussão de Overing é devedora, sobretudo, do livro Moral Prejudices (1995) de Annette Baier, uma filósofa moral especialista em Hume. Aqui, não entramos em detalhes sobre as compatibilidades e as incompatibilidades entre a ética do cuidado e a ética da virtude (esta sim esposada por Baier). Seja qual for a fonte de inspiração de Kelly e Matos, o fato é que a segunda premissa situa-os não mais no relacionalismo de Strathern, mas sim no relacionalismo próprio à ética do cuidado (e de seu modelo da ação qua cuidado). Que teoria é essa?

A bibliografia acumulada sobre o tema, desde o ato inaugural representado por In a Different Voice (1982GILLIGAN, Carol. 1982. In a Different Voice: Psychological Theory and Women’s Development. Cambridge: Harvard University Press .) de Carol Gilligan, é imensa. Não cabe aqui aprofundar essa discussão. Para nossos fins, basta citar uma das autoras mais influentes no campo, Joan Tronto. Em um texto clássico do final do século passado, ela escreve, por exemplo, que “cuidar parece envolver tomar as preocupações e necessidades do outro como base para a ação”. E continua: o que define o cuidado é “a perspectiva de tomar as necessidades do outro como o ponto de partida para o que precisa ser feito” (1993:105TRONTO, Joan. 1993. Moral Boundaries: a Political Argument for an Ethics of Care. New York: Routledge.). Notem que Tronto não está propondo que a estrutura da ação do “cuidado” esquematize toda e qualquer ação. O cuidado implica uma modalidade específica de agência na qual o outro é tomado como fonte da ação - a ação moral caracterizar-se-ia, pois, pelo fato de que a fonte (causa) não é o próprio agente, mas o paciente.

Ao acrescentarem “moralidade” na definição de agência na Amazônia, Kelly e Matos generalizam o modelo relacional da ética do cuidado, e o aplicam ao parentesco ameríndio. Nesse movimento, a afinidade escorrega para o segundo plano, assim como ocorria em Overing, não cumprindo qualquer papel axial no modelo. Por isso, o artigo permanece quase restrito ao parentesco humano, entendido sobretudo como o domínio da consanguinidade - as relações entre afins simétricos ou assimétricos passam a ocupar um lugar menor, assim como as relações interespecíficas. A alteridade encolhe, sendo poucas vezes mobilizada pelos autores. Uma das raras ocasiões em que isto ocorre é quando o foco recai sobre a interação entre os Yanomami e os Brancos (2019:392-93KELLY, Jose & MATOS, Marcos. 2019. “Política da Consideração: Ação e Influência nas Terras Baixas da América do Sul”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 25 (2):391-426.).

Na descrição dos autores, vemos que, diante dos Brancos, os Yanomami podem dramatizar tanto o desamparo como a intimidação a fim de extrair dos primeiros uma ação de cessão (de comida, remédio ou outra mercadoria). Aos olhos indígenas, porém, os Brancos não seriam sensíveis à moralidade do parentesco, e “[q]uebrando a ligação entre a causa e o agente, uma ligação que é tão lógica quanto moral, essas situações revelam diferentes facetas de uma deterioração do parentesco, que em nosso contexto pode ser definido como ‘agir tendo em mente outras pessoas’ (ou ‘agir causado por outras pessoas’)” (:399). Aqui fica claro como a estrutura geral da ação tende a confundir-se com o próprio parentesco, e este com a estrutura do cuidado. Não à toa, na sequência, os autores deslocam o foco de sua análise da interação com os inimigos (os Brancos) para aquela entre os Yanomami e seus parentes (aqueles que causam a ação dos primeiros na relação face a face com os não-indígenas).

Essa mesma situação interacional poderia ser descrita como uma série causal mais longa. Assim, por exemplo, diríamos que os homens yanomami agem com seus parentes em mente a fim de serem a causa da ação dos Brancos, os quais os Yanomami esperam que ajam com eles em mente. Na versão dos autores, esta última causação se deteriora, porque os não- indígenas não atendem à moralidade do parentesco. Contudo, por um lado, a performance do desamparo sugere que os Yanomami supõem que os Brancos possam agir segundo essa mesma moralidade - talvez já o façam com os seus próprios parentes, de modo que podem ser sensibilizados a estender a comiseração também a eles, indígenas.10 10 Valeria a pena comparar essa performance com aquela, descrita por Penfield (2017), dos Sanüma em face dos Ye’kuana. Nesse caso, vemos um outro povo yanomami realizar a mesma “performance do desamparo” no contexto de relações interindígenas, o que sugere que esta é uma estratégia geral de navegação em situações de assimetria, produzindo aquilo que Penfield designa “a deferential pity-eliciting demeanour” (2017:9). No caso yanomae, Marcelo Moura (info. pessoal) sugere que esse mesmo comportamento é característico dos visitantes yanomae que chegam a outra aldeia aliada fora do contexto das festas. Ele indica, ainda, que essa modalidade de elicitar pena não se aplica de modo tão claro à relação sogro-genro, como Penfield sugere no caso sanüma. Por outro lado, a performance do abandono pode também dar lugar à performance da intimidação, o que sugere que é possível tratar os Brancos como inimigos para deles extrair uma ação por meio do medo e não por comiseração. Há, assim, mais de um modo de “agir com o outro em mente”. Aliás, “agir com o outro em mente” é a própria definição do que seja uma interação entre pessoas, a qual sempre implica uma teoria da mente (implícita ou explícita). Qualquer interação supõe ter alguém em mente sabendo que esse alguém também o tem em mente e assim recursivamente.11 11 Como escreve Strathern: “Na verdade, muito da política melanésia se volta para a avaliação crítica das intenções mentais de outras pessoas, tais como reveladas por suas ações, no contexto de uma relutância geral em presumir o que vai em suas mentes. Esta é uma maneira em que o impacto ou a eficácia de toda uma gama de atos (um roubo, digamos, ou uma partilha de alimentos) é registrada: por meio do que as pessoas computam como sendo as intenções por trás disso” (1987:23). Sobre a opacidade de outras mentes na Melanésia, ver Robbins e Rumsey (2008).

De um ponto de vista sócio-histórico, é preciso lembrar que a noção de um agente que é causa exclusiva de sua própria ação é uma construção relativamente recente, que está na base dos regimes político e jurídico da modernidade. A democracia liberal pressupõe uma certa metafísica, que requer um certo tipo de agente e de agência. Sem a autoidentidade do Si e sua capacidade de autolegislação - que como argumentamos está ligada à propriedade de Si (Fausto 2008)FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14 (2):329-366. - não teria sido possível construir a modernidade euro-americana.12 12 Como afirma Safatle (2017), “autolegislação e autogoverno são necessariamente baseados em um princípio muito mais decisivo e pregnante, a saber, a noção de autopertencimento”. O Si indivisível e incausado, livre de todas as dependências pessoais, é uma ficção objetiva da filosofia política moderna - ficção poderosa e consolidada em nossas leis e instituições, mas, como sabemos, dificilmente extensível a outros mundos com pressupostos metafísicos diferentes. No caso amazônico, tal autonomia se exprimiria, no limite, por meio da figura do jaguar solitário, aquele que devora sozinho sua própria presa. Sem ter ninguém em mente, ele só reconhece a devoração como modalidade de relação.13 13 No caso xinguano, a figura do feiticeiro aproxima-se daquela do agente que age tendo como causa única e exclusiva a sua própria vontade - ou mais exatamente a sua inveja (Fausto 2014). Já no caso kanamari, o jaguar mítico existia na forma de uma singularidade plural, que continha todas as presas em si. O animal contemporâneo, esse sim, é um devorador solitário (Costa 2010:185-186; 2017 190-194).

Como sabemos, mesmo em nosso contexto - e aqui voltamos à filosofia - a liberdade formal e a autonomia individual são temas complexos e controvertidos. A figura do indivíduo que é fonte exclusiva de sua própria ação está longe de ser inequívoca. Da perspectiva da pós-modernidade, como escreve Derrida,

o que deve ser pensado […] é esta coisa inconcebível e incognoscível, uma liberdade que não seria mais o poder de um sujeito, uma liberdade sem autonomia, uma heteronomia sem servidão, em suma, algo como uma decisão passiva. Teríamos, então, que repensar os filosofemas da decisão, daquele par fundacional atividade e passividade, assim como potencialidade e atualidade (2005:152DERRIDA, Jacques. 2005. Rogues: Two Essays on Reason. Stanford: Stanford University Press.).

Nesta passagem, tecida por fios oximóricos, Derrida expressa bem o quanto a filosofia se debate para superar o solipsismo do sujeito solar ocidental. Há, de certo, todo um mundo da filosofia e da psicanálise a ser explorado por uma teoria da ação em que o agente não é a causa incausada de sua ação. E há também todo um mundo amazônico a ser explorado a partir do duo “liberdade sem autonomia” e “heteronomia sem servidão”. Para tanto, contudo, é necessário ancorar firmemente a discussão no solo da etnografia regional, permanecendo o mais próximo possível das formulações locais. Não é possível fazê-lo pela aplicação mecânica da separação entre causa e agente (moral) a alguns dados etnográficos. É o que mostraremos a seguir.

Revisitando a etnografia

Kelly e Matos propõem-se a reler alguns textos etnográficos - “em especial o de Gow (1991)GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press. entre os Piro, de Surrallés (2009)SURRALLÉS, Alexandre. 2009. En el Corazón del Sentido: Percepción, Afectividad, Acción en los Candoshi, Alta Amazonia. Lima: IFEA/ IWGIA. entre os Candoshi, e o de Allard (2010)ALLARD, Olivier. 2010. Morality and Emotion in the Dynamics of an Amerindian Society (Warao, Orinoco Delta, Venezuela). PhD diss., University of Cambridge. entre os Warao” (:393) - de modo a melhor expor suas ideias sobre a política da consideração. Nessa releitura, eles privilegiam três relações: entre marido e mulher, entre parentes “reais”, e entre pais e filhos. Cunhados e sogros aparecem apenas ocasionalmente ao longo do texto, assim como amigos formais e parceiros comerciais (isso sem falar em espíritos, plantas e animais, que estão praticamente ausentes). Além disso, na exposição dos trabalhos de Gow, Surrallés e Allard, observa-se um uso bastante seletivo dos dados empíricos, o que nos obriga a recontextualizar e reanalisar os dados por eles apresentados.

Gow e a memória de cuidados passados

Na política de consideração de Kelly e Matos, o que eles chamam de “alternância” tem um lugar de destaque: “um ponto crucial nesta estrutura de ação, na qual as pessoas são objetos de consideração mútua, é que há uma alternância, e uma pessoa é tanto uma causa quanto um agente” (2019:407KELLY, Jose & MATOS, Marcos. 2019. “Política da Consideração: Ação e Influência nas Terras Baixas da América do Sul”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 25 (2):391-426.). Como exemplo da alternância, os autores descrevem as relações entre maridos e esposas piro, a única relação que Gow (1991)GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press. caracteriza como de “demanda mútua” (Kelly & Matos 2019:395KELLY, Jose & MATOS, Marcos. 2019. “Política da Consideração: Ação e Influência nas Terras Baixas da América do Sul”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 25 (2):391-426.).14 14 Os autores preferem traduzir a expressão de Gow como “demanda recíproca”, sem fazer qualquer distinção entre mutualidade e reciprocidade. Os autores leem essa relação sobretudo na chave da mutualidade, deixando o caráter de demanda em segundo plano, de tal modo que a relação aparece como apenas “constituída pela participação voluntária de cada um...” (2019:394KELLY, Jose & MATOS, Marcos. 2019. “Política da Consideração: Ação e Influência nas Terras Baixas da América do Sul”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 25 (2):391-426.). Embora Gow indique que os parceiros podem abandonar livremente o casamento, ele não parece entender a relação matrimonial como propriamente voluntária, afirmando que “marido e mulher podem exigir [demand] que o outro faça algo, porque o não cumprimento leva à vingança” (1991:128GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.) - isto é, à recusa em realizar certas tarefas esperadas, ou mesmo à “retirada do acesso sexual, [à] violência e [ao] adultério” (1991GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.). Gow insiste no constante balanceamento entre as atividades de cada membro do casal, indicando que a “demanda mútua” exibe o caráter alternado que Kelly e Matos destacam - mas isso, para Gow, só ocorre entre esposos.

Kelly e Matos tendem a analisar isoladamente a relação matrimonial entre os Piro, em vez de inseri-la no conjunto de relações entre parentes e afins. É certo que se referem a outra configuração, designada pelos Piro, em espanhol, família legítima, cujo foco é a germanidade. Nas palavras de Gow: “[o]s mais legítimos dos parentes legítimos são os germanos” (the realest of real kin are siblings) (1991:163GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.). Segundo Kelly e Matos, as relações entre parentes legítimos são marcadas pela “antecipação das necessidades” (2019:395GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.).15 15 Note-se que a expressão é de Kelly e Matos. Gow não utiliza uma só vez o termo “necessidade” com este sentido. O que ele diz é: “Parentes reais precisam respeitar uns aos outros. O respeito toma a forma de jamais gracejar uns com os outros, jamais fazer demandas explícitas uns para os outros, e sempre antecipar os desejos [wishes] dos outros” (1991:165). De acordo com a taxonomia da causalidade por eles proposta, poder-se-ia dizer que no matrimônio, no qual há demanda mútua, predominam as “causas explícitas”, enquanto entre parentes legítimos, em que há a antecipação das necessidades, são as “causas implícitas” ou “inertes” que predominam. Desafortunadamente, Kelly e Matos deixam de articular essas relações àquelas entre pais e filhos, que são objeto de um capítulo inteiro de Of Mixed Blood. Por que a filiação desaparece da descrição dos autores? Por que só restam o plano horizontal e as relações descritas como recíprocas ou de mutualidade? Ao não considerarem o eixo vertical do parentesco piro, Kelly e Matos acabam por amputar um aspecto fundamental do argumento de Gow.

Entre pais e filhos não há demanda, nem antecipação, mas sim dois idiomas complementares: de um lado, o de conexão física e substância compartilhada e, de outro, o cuidado (cujo ato recíproco é o uso de termos de parentesco [Gow 1991GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.:259]). Esses idiomas têm um desdobramento temporal. O primeiro está ligado às restrições perinatais e ao ato de amamentar o recém-nascido; já o segundo surge com crianças mais velhas, que recebem cuidados de seus pais (Gow 1991:161GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.; ver Costa 2017COSTA, Luiz. 2017. The Owners of Kinship: Asymmetrical Relations in Indigenous Amazonia. Chicago: HauBooks.:132-135). O primeiro idioma não é utilizado para falar da relação entre pais e filhos, pois se refere a um passado em que o corpo da criança era um apêndice do corpo de seus pais. Já o segundo registra o amor da criança por seus pais, por ter sido criada com comida legítima. São tais atos de cuidado de pais para filhos que constituem a filiação como memória.16 16 A ênfase nas relações de cuidado explica a perspectiva piro sobre a adoção, prática em que conexão física e cuidado têm origens distintas (Gow 1991:160). Se entre germanos há partilha de alimentos, entre aqueles que estão conectados assimetricamente os cuidados fluem dos mais velhos para os mais novos.17 17 Não temos como analisar aqui a assimetria entre germanos na Amazônia. Embora esta seja a relação de identidade por excelência na região, quase todos os povos indígenas distinguem terminologicamente irmão mais velho e irmão mais novo de mesmo sexo (e, quando não o fazem, marcam-na por meio de atitudes). Na mitologia sobre os gêmeos, a diferença entre eles é marcada por possuírem pais distintos e/ou pela ordem de nascimento (Lévi-Strauss 1991). A distinção entre mais velho e mais novos introduz, assim, uma diferença em um conjunto indiferenciado, fraturando a identidade plena entre germanos. Nem sempre isto tem consequências sociológicas importantes, mas, na Amazônia, ali onde há hierarquia é comum que a ordem de nascimentos forneça o princípio de hierarquização. Essa orientação assimétrica (passada) de cuidado deixa como registro a antecipação dos desejos (não das necessidades), presentes e futuros, daqueles que cuidaram/cuidam uns dos outros (Gow 1991:177GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.).

Temos assim, na análise de Gow (1989GOW, Peter. 1989. “The Perverse Child: Desire in a Native Amazonian Subsistence Economy”. Man, n.s. 24:567-582.:573), quatro modos de relação: dois deles (demanda mútua conjugal e antecipação entre parentes reais) se situam em um eixo horizontal, e dois deles (conexão física entre pais e filhos e cuidado entre criadores e criados) se situam num eixo vertical. Quando inserimos a demanda conjugal no conjunto de relações analisado por Gow, a alternância que Kelly e Matos colocam no cerne da política da consideração piro se torna menos evidente. Em particular, quando consideramos as relações entre pais e filho, ou, de modo mais geral, entre parentes mais velhos e parentes mais novos, a alternância se torna tênue, pois o que resta é antes o traço da memória de cuidados pretéritos impresso na criança. E é justamente por meio da articulação entre casamento e filiação que os Piro são capazes de constituir o parentesco como história: “A história dos povos nativos é, portanto, um relato de casamentos, abertura de aldeias e criação de crianças” (Gow 1991:252GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.).

Em resumo, Kelly e Matos desconsideram a descrição de Gow de como o eixo horizontal do parentesco piro se articula com o eixo vertical. As relações de demanda mútua e antecipação de que eles tratam só ocorrem entre cônjuges e parentes reais (cujo foco são os germanos). Já as relações de cuidado assimétrico têm um caráter mais geral, estruturando inclusive a inserção dos Piro na economia da borracha (Gow 1991:211-215GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.). Mas este é um assunto para outra ocasião. Passemos à análise do segundo exemplo etnográfico.

Surrallès e o coração selvagem

Após discutirem o caso piro, Kelly e Matos voltam a sua atenção para o livro de Surrallès sobre os Candoshi, cujos dados etnográficos indicam uma forte relação entre cuidar, pensar, amar e “domesticar”.18 18 Vale notar que este último termo ocorre na tradução em espanhol. No original em francês, o termo usado é apprivoiser, que o dicionário on-line da Academia Francesa glosa como: “tornar um animal menos selvagem, menos feroz, mais familiar” e, por analogia, “tornar alguém [humano ou não] mais doce”. No que se segue, traduzimos apprivoiser por “familiarizar”, distinguindo-o de “domesticar”. Nossos autores focalizam as inúmeras expressões candoshi que qualificam o coração enquanto sede da percepção sensível e da cognição. Detêm-se, especialmente, em uma expressão de difícil tradução, magish chinakish, que pode ser vertida por “coração que pensa” ou “coração que ama”. Este é um ponto importante no argumento de Surrallès por indicar que, para os Candoshi, não há cisão entre emoção e intelecção. Para melhor traduzir a expressão, o autor explica que a raiz chin- significa “familiarizar” (apprivoiser) e que a “única palavra que pode eventualmente oferecer uma tradução única e válida em não importa qual situação, se quisermos permanecer próximos às noções indígenas, é curiosamente ‘coração que familiariza’” (Surrallès 2003:66SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.).

Na leitura de Kelly e Matos, contudo, a familiarização - tão central para Surrallès por manter-se próxima ao pensamento candoshi - fica em segundo plano e acaba por desaparecer por completo. Assim, eles afirmam que:

Em busca de uma tradução mais definida, ele [Surrallès] hesita entre “coração que se lembra” ou “coração que domestica”, afirmando assim que as ideias de amor, pensamento e domesticação estão imbricadas na linguagem e na prática candoshi, sendo expressão de um princípio relacional muito presente. Sobre a relação entre o amor e o pensamento (deixemos a ideia de domesticação para ser abordada abaixo), Surrallés diz que os Candoshi “pensam sobre tudo o que é necessário para cuidar, alimentar, proteger, ou simplesmente ajudar, aqueles que em um dado momento e por razões diversas dependem de quem pensa, como no caso da domesticação (2009:116).” (2019:395KELLY, Jose & MATOS, Marcos. 2019. “Política da Consideração: Ação e Influência nas Terras Baixas da América do Sul”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 25 (2):391-426.).

Embora os autores afirmem que tratarão, em seguida, da “domesticação”, isto não acontece.19 19 O tema só retorna, páginas à frente, em uma breve citação de Vanzolini, sem conexão com a discussão de Surrallès. O fato merece relevo, pois toda a discussão de Surrallès é uma elaboração sobre captura e familiarização - um tema que, como ele mesmo nota, foi desenvolvido por Fausto (1997FAUSTO, Carlos. 1997. A Dialética da Predação e da Familiarização entre os Parakanã da Amazônia Oriental: Por uma Teoria da Guerra Ameríndia. Tese de Doutorado, PPGAS, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro., 2001FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos Fiéis: História, Guerra e Xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp.) e Taylor (2000)TAYLOR, Anne-Christine. 2000. “Le Sexe de la Proie: Représentations Jivaro du Lien de Parenté”. L’Homme, 154-155:309-334. (Surrallès 2003SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.:69; 2009:115SURRALLÉS, Alexandre. 2009. En el Corazón del Sentido: Percepción, Afectividad, Acción en los Candoshi, Alta Amazonia. Lima: IFEA/ IWGIA.). Após definir a tradução de magish chinakish como “coração que familiariza”, o autor diz ser preciso conhecer o contexto sociológico candoshi para compreender “esse laço insólito estabelecido entre as atividades intelectuais em geral, o amor e a familiarização” (2003SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.:67).

Surrallès passa, então, a descrever a apropriação e a familiarização de filhotes de animais pelos caçadores, cuja relação com seu “dono” é, para os Candoshi, “a imagem mesma da ternura” (2003:67). O verbo utilizado para designar a familiarização de xerimbabos provém do nome “órfão”. A orfandade, esclarece o autor, é um tema maior para os Candoshi, que tradicionalmente se engajavam em conflitos endêmicos, os quais vitimavam muitos homens adultos. A homologia entre a orfandade de humanos e de animais é, inclusive, utilizada pelos próprios órfãos que “gostam de se apresentar como passarinhos sem plumas, clamando proteção para que o caçador os leve consigo” (2003:67).

No caso candoshi, continua Surrallès, o modelo mestre-xerimbabo se estende para quase todos os domínios relacionais, inclusive para o par marido e mulher (“as mulheres são, também elas, familiarizadas por seus maridos no momento do casamento” [2003:68]). Isto é ainda mais evidente no que tange às cativas de guerra, que após um longo processo de aclimatação podem se tornar membros de sua família adotiva: “depois de vários anos de vida tranquila em comum, o esposo chama sua esposa de no tomoziri (meu cão) como sinal de familiarização” (2003:68SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.; 2009:114SURRALLÉS, Alexandre. 2009. En el Corazón del Sentido: Percepción, Afectividad, Acción en los Candoshi, Alta Amazonia. Lima: IFEA/ IWGIA.). As mulheres desprestigiadas ou abandonadas por seus maridos também se colocam na posição de orfandade para solicitar a atenção e o amor de um companheiro (2003:68SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.). Esse imaginário relacional pode ser, ainda, invertido, pois “as mulheres amam igualmente imaginar que seus esposos e seus filhos se sentem ligados a elas como os animais familiares que elas cuidam, ideologia compartilhada igualmente pelos homens” (2003:69SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.).20 20 Entre os Mamaindê-Nambikwara, uma mulher pode chamar seu marido de “minha criação”, mesmo termo usado para se referir a seus xerimbabos e a seus filhos (Miller 2018:119).

A pregnância do modelo relacional mestre-xerimbabo entre os Candoshi é tão notável que Surrallès afirma que “o paradigma da familiarização constitui [...] a base conceitual de todos as relações afetivas entretidas no seio da família” (2003:69SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.). Em outras palavras, o modelo fundante do parentesco candoshi requer a articulação entre apropriação e familiarização, passando portanto por relações de maestria. É preciso considerar, ainda, a concepção local da posição recíproca à de xerimbabo, a saber, a de dono-mestre-cuidador. Graças à rica etnografia jívaro, sabemos que há um foco regional na produção de “Grandes Homens”, figuras magnificadas com uma capacidade de ação ampliada, a qual é descrita como própria de uma personalidade que possui “coragem, soberania, determinação e orgulho” (Surrallès 2003:53SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.) - pessoas, enfim, que possuem um “grande coração” (magish kapogo), tal como o jaguar, sendo dotadas de forte “intencionalidade predatória” (2003:260SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.).

Em uma série de artigos sobre a magnificação do Si entre os Jívaro, Taylor (2006TAYLOR, Anne-Christine. 2006. “Devenir Jivaro. Le Statut de L’homicide Guerrier en Amazonie”. Cahiers d’Anhtropologie Sociale, 2:67-84., 2007TAYLOR, Anne-Christine. 2007. “Sick of History: Contrasting Regimes of Historicity in the Upper Amazon”. In: C. Fausto & M. Heckenberger (eds.), Time and memory in indigenous Amazonia: Anthropological perspectives. Gainesville: University Press of Florida. pp. 133-168., 2018TAYLOR, Anne-Christine. 2018. Individualism in the Wild. Marett Lecture. Manuscrito.) desenvolveu um modelo de ação e do agente distinto daquele esposado por Kelly e Matos, por entender que

A alteridade constituinte não se reduz tampouco à dialética cooperativa já evocada, por meio da qual, na Amazônia, as pessoas se coproduzem enquanto parentes. A mutualidade parental constitutiva não é suficiente na Amazônia para fabricar um sujeito plenamente agentivo. É preciso algo mais: para ser uma “verdadeira pessoa”, é preciso incorporar, enquanto tal, essa parte de alteridade hostil da qual está carregada meu inimigo (2006:72).21 21 No caso jívaro, isso implica sair “da posição de ‘presa’ da criança e se colocar sempre em posição de agente antes do que paciente na interação com o outro” (2006:72), algo que é adquirido por meio de experiências visionárias propiciadas pelo isolamento, o jejum e o consumo de alucinógenos.

Aqui não há agência ampliada se não houver alteridade constitutiva - e, portanto, heteronomia. Não basta eu pensar em meus parentes, pois só serei capaz de agir se tiver um outro em mim e não um congênere comigo: “um homem que possui um grande coração é um grande predador […] ter um ‘coração pequeno’ (magish paksi) significa simplesmente ser incapaz de ter o mínimo de vontade necessária para tomar decisões e executá-las” (Surrallès 2003SURRALLÉS, Alexandre. 2003. Au Coeur du Sens: Perception, Affectivité, Action chez les Candoshi. Paris: Maison des Sciences de L’Homme/ CNRS.:53-54).

Allard e a adoção

O terceiro autor ao qual Kelly e Matos recorrem sistematicamente é Allard, cuja tese sobre os Warao do Delta do Orinoco contém farto material para se discutirem a ética do cuidado, a moralidade e as emoções. Mais uma vez, é surpreendente observar que Kelly e Matos não fazem nenhuma referência ao fato de Allard procurar articular organicamente esses temas com a maestria, dedicando um capítulo inteiro a isso. Já havíamos notado, de passagem, que a estrutura do cuidado é fundamental à compreensão das relações assimétricas na Amazônia indígena (Fausto 2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14 (2):329-366.: 331, 333, 347, 354), mas não havíamos ainda nos dedicado à articulação entre “cuidado”, “alimentação” e “maestria”. Nesse sentido, Allard antecipa ideias que só viríamos a desenvolver - sobretudo em diálogo com Grotti (2007)GROTTI, Vanessa. 2007. “Nurturing the Other: Well-being, Social Body and Transformability in Northeastern Amazonia”. PhD diss., University of Cambridge. e Grotti e Brightman (2010GROTTI, Vanessa & BRIGHTMAN, Marc. 2010. “The Other’s Other: Nurturing the Body of ‘Wild’ People among the Trio of Southern Suriname”. Ethnofoor, 22 (2):51-70., 2016GROTTI, Vanessa & BRIGHTMAN, Marc. 2016. “First Contacts, Slavery and Kinship in Northeastern Amazonia”. In: M., Brightman, C., Fausto & V., Grotti (eds.), Ownership and nurture: Studies in native Amazonian property relations. Oxford: Berghahn. pp. 63-80.) - em trabalhos posteriores (Brightman, Fausto & Grotti 2016BRIGHTMAN, Marc; FAUSTO, Carlos & GROTTI, Vanessa. 2016. “Introduction: Altering ownership in Amazonia”. In: BRIGHTMAN, Marc; FAUSTO, Carlos & GROTTI, Vanessa, Ownership and nurture: Studies in native Amazonian property relations. New York: Berghahn. pp. 1-35.; Fausto & Costa 2013FAUSTO, Carlos & COSTA, Luiz. 2013. “Feeding (and Eating): Reflections on Strathern’s ‘Eating (and feeding)’”. Cambridge Anthropology, 31:156-162.; Costa 2017COSTA, Luiz. 2017. The Owners of Kinship: Asymmetrical Relations in Indigenous Amazonia. Chicago: HauBooks.).22 22 A contribuição de Allard nos escapou inteiramente nesses trabalhos. Aproveitamos a ocasião para registrar, aqui, nosso lapso e fazer jus às ideias pioneiras do autor.

Como Allard (2010ALLARD, Olivier. 2010. Morality and Emotion in the Dynamics of an Amerindian Society (Warao, Orinoco Delta, Venezuela). PhD diss., University of Cambridge.:98) deixa claro, ele busca levar à frente ideias que haviam sido aventadas por Fausto (2008)FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14 (2):329-366., de modo a propor a existência de um “esquema geral da adoção temporária [fosterage]”, o qual emerge em diversos contextos como a “forma principal de relação assimétrica”, um verdadeiro operador cosmológico capaz de articular o interior ao exterior (Allard 2010:117ALLARD, Olivier. 2010. Morality and Emotion in the Dynamics of an Amerindian Society (Warao, Orinoco Delta, Venezuela). PhD diss., University of Cambridge.). A proposição guarda uma relação direta com a predação familiarizante e o estabelecimento de relações de filiação adotiva, mas desloca a ênfase para uma relação “em que apropriação e controle são eclipsados pelo cuidado” (2010:124ALLARD, Olivier. 2010. Morality and Emotion in the Dynamics of an Amerindian Society (Warao, Orinoco Delta, Venezuela). PhD diss., University of Cambridge.). Como indicamos diversas vezes, a categoria recíproca àquela de dono-mestre oscila na Amazônia entre filho e xerimbabo, sendo o traço subjacente a adoção-apropriação, de tal modo que a “relação modelar de maestria-domínio [é] a filiação adotiva” (Fausto 2008:333FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14 (2):329-366.). O esquema do fosterage é uma inflexão warao do esquema da maestria; ou ainda, uma das inflexões possíveis deste último, sendo também bastante difundida no interflúvio Juruá-Purus, onde a adoção sobrecodifica a função-xerimbabo (Costa 2017COSTA, Luiz. 2017. The Owners of Kinship: Asymmetrical Relations in Indigenous Amazonia. Chicago: HauBooks.:128-135; Bonilla 2007BONILLA, Oiara. 2007. “Des proies si désirables: Soumission et prédation pour les Paumari d’Amazonie brésilienne”. PhD diss., École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.; Maizza 2014)MAIZZA, Fabiana. 2014. “Sobre as Crianças-Planta: O Cuidar e o Seduzir no Parentesco Jarawara”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 20 (3):491-518..

Além de explorar a textura emocional e fenomenológica da adoção temporária, Allard analisa as categorias indígenas que designam modalidades dessa relação. Os Warao possuem duas categorias distintas para o mestre: arotu designa o dono de um xerimbabo ou de uma “coisa”; já aidamo aplica-se ao líder político, patrão, pai ou mãe adotivos, ou ainda ao mestre de uma espécie animal, ou seja, um dos termos aplica-se à relação assimétrica entre pessoa e coisa (os xerimbabos aqui são equacionados a coisas), enquanto o outro termo aplica-se à relação entre pessoas.23 23 Para um exemplo similar, ver Erikson (2009). Segundo Allard, só este segundo implica alteração do dono e ambiguidade relacional: “O arotu é um proprietário inalterado, cujos pertences ou xerimbabos estão totalmente submetidos [a ele], enquanto o aidamo é transformado em um ser composto por englobar outras subjetividades” (2010:115ALLARD, Olivier. 2010. Morality and Emotion in the Dynamics of an Amerindian Society (Warao, Orinoco Delta, Venezuela). PhD diss., University of Cambridge.).

O termo aidamo aceita, por sua vez, dois termos recíprocos: nebu, que normalmente se aplica ao coletivo de empregados de um patrão ou aos seguidores de um líder; e neburatu, que é primariamente utilizado para designar uma criança adotiva singular (Allard 2010ALLARD, Olivier. 2010. Morality and Emotion in the Dynamics of an Amerindian Society (Warao, Orinoco Delta, Venezuela). PhD diss., University of Cambridge.:117). Assim como no caso da distinção entre cliente e empregado para os Paumari (Bonilla 2016BONILLA, Oiara. 2016. “Parasitism and Subjection: Modes of Paumari Predation”. In: Marc Brightman, Carlos Fausto & Vanessa Grotti (eds.), Ownership and nurture: Studies in native Amazonian Property Relations. Oxford e New York: Berghahn. pp. 110-132.:117), a diferença entre nebu e neburatu tem a ver com a temporalidade e a estabilidade da relação. Por sua vez, tal temporalidade associa-se ao fato de que “esses tipos de relações são uma ferramenta de transformação, mudando especialmente a identidade, o etos e as capacidades do filho adotivo subordinado ou empregado” (Allard 2010:118ALLARD, Olivier. 2010. Morality and Emotion in the Dynamics of an Amerindian Society (Warao, Orinoco Delta, Venezuela). PhD diss., University of Cambridge.). Isto se aplica tanto à adoção interétnica (como no caso dos jovens que vão trabalhar temporariamente para um patrão) quanto à adoção transespecífica mais duradora praticada por xamãs (:120).

Independentemente das diferenças categoriais, o cuidado e o controle são a marca de todas as relações assimétricas que, aqui, são sobrecodificadas pelo esquema da adoção temporária. Este duplo aspecto da relação (cuidado e controle), diz Allard, implica que, diferentemente da relação mestre-escravo hegeliana, a maestria ameríndia deva ser mediada pelo ato alimentar. Isto vale para todas as suas modalidades - entre dono e xerimbabo, pais adotivos e criança, patrão e empregado, líder e seus seguidores, xamãs e espíritos auxiliares, mestre de animais e membros da espécie - as quais são definidas pelo “aspecto dual de controle e cuidado” (2010:114ALLARD, Olivier. 2010. Morality and Emotion in the Dynamics of an Amerindian Society (Warao, Orinoco Delta, Venezuela). PhD diss., University of Cambridge.) - um ponto que Allard (:124) elabora explicitamente a partir de Fausto (2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14 (2):329-366.:333).

Curiosamente, todo esse desenvolvimento sobre as relações assimétricas entre os Warao, tão central à tese de Allard, desaparece do texto de Kelly e Matos. Allard comparece aí apenas como um exemplo privilegiado da política da consideração, e da separação entre agente e causa da ação - algo que soa natural pelo fato de Allard construir seu argumento nos quadros de uma ética do cuidado. Contudo, ele o faz para explorar suas implicações no interior de uma teoria etnográfica da maestria, avançando em um aspecto que restava, então, subelaborado em nossos trabalhos. A sua ênfase nas emoções, ademais, permite-lhe oferece uma contribuição ao problema do idioma da obrigação, sobre o qual nos referimos acima. Na conclusão da tese, ele afirma que, embora alguns possam ler seu trabalho como se as pessoas ponderassem entre obrigações, esta seria uma leitura incorreta, pois

Por um lado, as pessoas se deparam antes com expectativas do que com obrigações e, portanto, não se trata de uma questão de dever, mas sim de como elas querem se relacionar com pessoas específicas. Por outro lado, a metáfora da “ponderação” é muito mecânica, como se as decisões fossem determinadas pelo estado objetivo do mundo.

E aqui ele insere outro conceito, o de escolha, enfatizando seu caráter potencialmente conflitivo:

[…] tento descrever como as pessoas têm escolhas a fazer, não tanto sobre que tipo de sujeito querem ser, mas principalmente sobre a consideração que dão aos outros: de fato, isso conduz a disputas, raiva e, consequentemente, a afastamentos, precisamente porque é conceitualizado como uma escolha [...] entre cuidar ou não cuidar (2010:182-83).

Para os Warao, a escolha é entre ser e ter dependente(s) - a autonomia não é um horizonte almejado. As expectativas e as escolhas de que fala Allard não podem ser separadas do desejo cósmico de fabricar o parentesco - algo que, na Amazônia, é sempre feito “out of others” (Vilaça 2002)VILAÇA, Aparecida. 2002. “Making Kin out of Others in Amazonia”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 8 (2):346-365..

***

Na segunda parte deste artigo, veremos como esse desejo e essa heteronomia são neutralizados pela política da consideração de Kelly e Matos, de tal modo que a afinidade acaba por ser eclipsada. Mostraremos como a articulação intrínseca entre afinidade e filiação já aparece no átomo do parentesco de Lévi-Strauss, fornecendo o caminho para nossa elaboração do átomo do metaparentesco, pensado como um esquema dinâmico de conversão da metafinidade em metafiliação. Analisaremos, ainda, as formas ameríndias de alinhar a ação de diferentes actantes, humanos e não-humanos, e o que isto pode nos esclarecer sobre o tipo de agência magnificada que analisamos em trabalhos anteriores. Em seguida, voltaremos à interpretação de dados empíricos, dessa vez concentrando-nos nas etnografias sobre os povos arawá e katukina, que conheceram um grande desenvolvimento na última década. À guisa de conclusão, indicaremos o que, afinal, se perde ao deixar de lado a política dispersiva e múltipla dos donos ameríndios.

Agradecemos a Anne-Christine Taylor, Aparecida Vilaça, Marcelo Moura e Maria Luísa de Souza Lucas pela leitura e os comentários cuidadosos a versões anteriores deste texto. As traduções para o português de obras em outras línguas são nossas.

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Notas

  • 1
    Os autores não consideram outros textos em que tratamos de assuntos correlatos (Brightman, Fausto & Grotti 2016BRIGHTMAN, Marc; FAUSTO, Carlos & GROTTI, Vanessa. 2016. “Introduction: Altering ownership in Amazonia”. In: BRIGHTMAN, Marc; FAUSTO, Carlos & GROTTI, Vanessa, Ownership and nurture: Studies in native Amazonian property relations. New York: Berghahn. pp. 1-35.; Costa 2010COSTA, Luiz. 2010. “The Kanamari Body-Owner. Predation and Feeding in Western Amazonia”. Journal de la Société des Américanistes, 96 (1):169-192., 2013COSTA, Luiz. 2013. “Alimentação e Comensalidade entre os Kanamari da Amazônia Ocidental”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 19 (3):473-504., 2016COSTA, Luiz. 2016. “Virando Funai: Uma Transformação Kanamari”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 22 (1):101-132., 2019COSTA, Luiz. 2019. “Language and Ethnography: A Reply to Allard”. Journal de la Société des Américanistes, 105 (1):143-160.; Costa & Fausto 2019COSTA, Luiz & FAUSTO, Carlos. 2019. “The Enemy, the Unwilling Guest and the Jaguar Host”. L'Homme, 231-232 (3-4):195-226.; Fausto 1999FAUSTO, Carlos. 1999. “Of Enemies and Pets: Warfare and Shamanism in Amazonia”. American Ethnologist, 26:933-956., 2001FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos Fiéis: História, Guerra e Xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp.; Fausto & Costa 2013FAUSTO, Carlos & COSTA, Luiz. 2013. “Feeding (and Eating): Reflections on Strathern’s ‘Eating (and feeding)’”. Cambridge Anthropology, 31:156-162.).
  • 2
    Nós mesmos fizemos isso, investigando, por exemplo, as tradições venáticas na Amazônia, América boreal e Sibéria (Fausto 2007FAUSTO, Carlos. 2007. “Feasting on People: Eating Animals and Humans in Amazonia”. Current Anthropology, 48:497-530.), ou as diferenças entre a maestria amazônica e fenômenos similares na Ásia Central, no Mediterrâneo, e nos Andes (Costa & Fausto 2019COSTA, Luiz & FAUSTO, Carlos. 2019. “The Enemy, the Unwilling Guest and the Jaguar Host”. L'Homme, 231-232 (3-4):195-226.).
  • 3
    Na tradução de Bauer: “If the external being had not exercised its efficacy and thus had not summoned the subject to exercise its efficacy, then the subject itself would not have exercised its efficacy. The subject's activity as such is conditioned by the activity of the being outside it” (2000:39-40).
  • 4
    Aufforderung e Forderung costumam ser traduzidos para o inglês, justamente, por demand, claim, call, request, invitation, incitement.
  • 5
    Fichte exerceu grande influência sobre Hegel durante o período em que este último esteve em Jena (1801-1806). Tal influência seria decisiva para a elaboração da Fenomenologia do Espírito, publicada em 1807. Como sugere Honneth (2003:47)HONNETH, Axel. 2003. Luta por Reconhecimento: A gramática Moral dos Conflitos Sociais. São Paulo: Ed. 34., o salto fundamental de Hegel foi o de dinamizar, por meio do conflito, o modelo de reconhecimento de Fichte. Foi esse passo que permitiu a Fausto (2001:537-41)FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos Fiéis: História, Guerra e Xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp. fazer ressoar o modelo hegeliano com a predação e a luta de perspectivas na Amazônia. Para uma discussão sobre o conceito de reconhecimento, ver Ricouer (2005)RICOUER, Paul. 2005. The Course of Recognition. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. e Ikäheimo e Laitinen (2011)IKÄHEIMO, Heikki & LAITINEN, Arto. 2011. Recognition and Social Ontology. Leiden: Brill..
  • 6
    O termo usado por Hegel é Knecht, frequentemente traduzido, em inglês, como servant ou bondsman. As traduções em português, no entanto, costumam seguir a tradição francesa, vertendo o termo por “escravo”.
  • 7
    É essa “saída por baixo” que será criticada por Nietzsche - pelo menos na interpretação de Deleuze (1962)DELEUZE, Gilles. 1962. Nietzsche et la Philosophie. Paris: Presses universitaires de France., para quem a dialética mestre-escravo hegeliana expressa a perspectiva ressentida e reativa do escravo e não a potência afirmativa do mestre. Essa potência dionisíaca é hierárquica: “a origem é a diferença na origem, a diferença na origem é a hierarquia, isto é, a relação de uma força dominante com uma força dominada, de uma vontade obedecida por uma vontade obediente” (1962:8DELEUZE, Gilles. 1962. Nietzsche et la Philosophie. Paris: Presses universitaires de France.). Para uma interpretação distinta, crítica à leitura de Deleuze, ver Williams (2012)WILLIAMS, Robert R. 2012. Tragedy, Recognition, and the Death of God: Studies in Hegel and Nietzsche. Oxford: Oxford University Press ..
  • 8
    Esse é um tema aristótelico clássico, discutido no livro 12 da Metafísica, em que o autor se pergunta sobre a existência de uma substância primeira que é eterna, inamovível e separada das coisas sensíveis; substância esta que não tem magnitude, nem é partível ou divisível (1977:151; Livro 12, Cap.VII, 12)ARISTÓTELES. 1977. The Metaphysics. Books X-XIV. The Loeb Classical Library XVIII. Cambridge, MS e London: Harvard University Press/W. Heinemann.. Em seguida, Aristóteles se pergunta se há uma ou mais de uma substância desse tipo (cap. VIII, 1) e conclui, por meio de uma conhecida citação da Ilíada, que “[a] regra de muitos não é boa; deixe um só ser o rei”. É interessante notar que La Boétie abre o Discurso da Servidão Voluntária retomando a mesma passagem em Homero: “De ter senhores demais, nenhum bem verei; que um, sem mais, seja o mestre e que um só seja o rei” (2002:127LA BOÉTIE Étienne de. 2002. Le Discours de la Servitude Volontaire. Paris: Payot.). Assim como La Boétie, nosso modelo pensa a política na Amazônia como implicando dispersão e multiplicidade, algo já indicado pelo título “Donos demais” (Fausto 2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana: Estudos de Antropologia Social, 14 (2):329-366.) e discutido também em Costa e Fausto (2019)COSTA, Luiz & FAUSTO, Carlos. 2019. “The Enemy, the Unwilling Guest and the Jaguar Host”. L'Homme, 231-232 (3-4):195-226..
  • 9
    A discussão de Overing é devedora, sobretudo, do livro Moral Prejudices (1995)BAIER, Annette 1995. Moral Prejudices: Essays on Ethics. Cambridge: Harvard University Press. de Annette Baier, uma filósofa moral especialista em Hume. Aqui, não entramos em detalhes sobre as compatibilidades e as incompatibilidades entre a ética do cuidado e a ética da virtude (esta sim esposada por Baier).
  • 10
    Valeria a pena comparar essa performance com aquela, descrita por Penfield (2017)PENFIELD, Amy. 2017. “Dodged Debts and the Submissive Predator: Perspectives on Amazonian Relations of Dependence”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 23:320-337., dos Sanüma em face dos Ye’kuana. Nesse caso, vemos um outro povo yanomami realizar a mesma “performance do desamparo” no contexto de relações interindígenas, o que sugere que esta é uma estratégia geral de navegação em situações de assimetria, produzindo aquilo que Penfield designa “a deferential pity-eliciting demeanour” (2017:9PENFIELD, Amy. 2017. “Dodged Debts and the Submissive Predator: Perspectives on Amazonian Relations of Dependence”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 23:320-337.). No caso yanomae, Marcelo Moura (info. pessoal) sugere que esse mesmo comportamento é característico dos visitantes yanomae que chegam a outra aldeia aliada fora do contexto das festas. Ele indica, ainda, que essa modalidade de elicitar pena não se aplica de modo tão claro à relação sogro-genro, como Penfield sugere no caso sanüma.
  • 11
    Como escreve Strathern: “Na verdade, muito da política melanésia se volta para a avaliação crítica das intenções mentais de outras pessoas, tais como reveladas por suas ações, no contexto de uma relutância geral em presumir o que vai em suas mentes. Esta é uma maneira em que o impacto ou a eficácia de toda uma gama de atos (um roubo, digamos, ou uma partilha de alimentos) é registrada: por meio do que as pessoas computam como sendo as intenções por trás disso” (1987:23STRATHERN, Marilyn. 1987. “Introdução”. In: STRATHERN, Marilyn (ed.), Dealing with Inequality: Analysing Gender Relations in Melanesia and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press . pp. 1-32.). Sobre a opacidade de outras mentes na Melanésia, ver Robbins e Rumsey (2008)ROBBINS, Joel & RUMSEY, Alan. 2008. “Introduction: Cultural and Linguistic Anthropology and the Opacity of Other Minds”. Anthropological Quarterly, 81:407-420..
  • 12
    Como afirma Safatle (2017)SAFATLE, Vladimir. 2017. To be the Owner of my Own Person: Toward a Concept of Freedom as Heteronomy without Servitude. Conferência no International Consortium of Critical Theory, 28 fevereiro de 2017., “autolegislação e autogoverno são necessariamente baseados em um princípio muito mais decisivo e pregnante, a saber, a noção de autopertencimento”.
  • 13
    No caso xinguano, a figura do feiticeiro aproxima-se daquela do agente que age tendo como causa única e exclusiva a sua própria vontade - ou mais exatamente a sua inveja (Fausto 2014FAUSTO, Carlos. 2014. “Killing for Nothing: Witchcraft and Predation in Amazonia”. Texto apresentado no seminário The Anti-Gift: Musings into Unrequited Reciprocity, Mistrust, Social Parasitism and Gratuity. Soprabolzano, Itália, 23-25 agosto de 2014.). Já no caso kanamari, o jaguar mítico existia na forma de uma singularidade plural, que continha todas as presas em si. O animal contemporâneo, esse sim, é um devorador solitário (Costa 2010:185-186COSTA, Luiz. 2010. “The Kanamari Body-Owner. Predation and Feeding in Western Amazonia”. Journal de la Société des Américanistes, 96 (1):169-192.; 2017 190-194COSTA, Luiz. 2017. The Owners of Kinship: Asymmetrical Relations in Indigenous Amazonia. Chicago: HauBooks.).
  • 14
    Os autores preferem traduzir a expressão de Gow como “demanda recíproca”, sem fazer qualquer distinção entre mutualidade e reciprocidade.
  • 15
    Note-se que a expressão é de Kelly e Matos. Gow não utiliza uma só vez o termo “necessidade” com este sentido. O que ele diz é: “Parentes reais precisam respeitar uns aos outros. O respeito toma a forma de jamais gracejar uns com os outros, jamais fazer demandas explícitas uns para os outros, e sempre antecipar os desejos [wishes] dos outros” (1991:165).
  • 16
    A ênfase nas relações de cuidado explica a perspectiva piro sobre a adoção, prática em que conexão física e cuidado têm origens distintas (Gow 1991:160GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon Press.).
  • 17
    Não temos como analisar aqui a assimetria entre germanos na Amazônia. Embora esta seja a relação de identidade por excelência na região, quase todos os povos indígenas distinguem terminologicamente irmão mais velho e irmão mais novo de mesmo sexo (e, quando não o fazem, marcam-na por meio de atitudes). Na mitologia sobre os gêmeos, a diferença entre eles é marcada por possuírem pais distintos e/ou pela ordem de nascimento (Lévi-Strauss 1991LÉVI-STRAUSS, Claude. 1991. Histoire de Lynx. Paris: Plon.). A distinção entre mais velho e mais novos introduz, assim, uma diferença em um conjunto indiferenciado, fraturando a identidade plena entre germanos. Nem sempre isto tem consequências sociológicas importantes, mas, na Amazônia, ali onde há hierarquia é comum que a ordem de nascimentos forneça o princípio de hierarquização.
  • 18
    Vale notar que este último termo ocorre na tradução em espanhol. No original em francês, o termo usado é apprivoiser, que o dicionário on-line da Academia Francesa glosa como: “tornar um animal menos selvagem, menos feroz, mais familiar” e, por analogia, “tornar alguém [humano ou não] mais doce”. No que se segue, traduzimos apprivoiser por “familiarizar”, distinguindo-o de “domesticar”.
  • 19
    O tema só retorna, páginas à frente, em uma breve citação de Vanzolini, sem conexão com a discussão de Surrallès.
  • 20
    Entre os Mamaindê-Nambikwara, uma mulher pode chamar seu marido de “minha criação”, mesmo termo usado para se referir a seus xerimbabos e a seus filhos (Miller 2018:119MILLER, Joana. 2018. As Coisas: Os Enfeites Corporais e a Noção de Pessoa entre os Mamaindê (Nambiquara). Rio de Janeiro: Mauad X/ Faperj.).
  • 21
    No caso jívaro, isso implica sair “da posição de ‘presa’ da criança e se colocar sempre em posição de agente antes do que paciente na interação com o outro” (2006:72), algo que é adquirido por meio de experiências visionárias propiciadas pelo isolamento, o jejum e o consumo de alucinógenos.
  • 22
    A contribuição de Allard nos escapou inteiramente nesses trabalhos. Aproveitamos a ocasião para registrar, aqui, nosso lapso e fazer jus às ideias pioneiras do autor.
  • 23
    Para um exemplo similar, ver Erikson (2009).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2021
  • Aceito
    06 Set 2021
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