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UM PROJETO DE PESQUISA “À ESQUERDA”: GILDO MARÇAL BRANDÃO E A INTERPRETAÇÃO MARXISTA DO PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO

TAKING A LEFT TURN: GILDO MARÇAL BRANDÃO AND THE MARXIST INTERPRETATION OF BRAZILIAN POLITICAL THOUGHT

Resumo

Este artigo faz uma análise da trajetória intelectual de Gildo Marçal Brandão (1949-2010), com especial dedicação ao projeto temático no qual buscou delinear as linhagens do pensamento político brasileiro. O artigo sustenta, a partir de uma abordagem contextualista, que Gildo construiu uma interpretação marxista das tradições políticas brasileiras, distinta daquelas deixadas por Wanderley Guilherme dos Santos, de pendor nacionalista, e por Bolívar Lamounier, de índole liberal. O artigo também procura desvendar o contexto de produção do projeto de pesquisa de Brandão, apontando suas fontes de inspiração, mas também seus eventuais limites.

Palavras-chave:
Gildo Marçal Brandão; Marxismo; Pensamento Político Brasileiro; Linhagens

Abstract

This article analyzes the intellectual trajectory of Gildo Marçal Brandão (1949-2010), with emphasis on the thematic project in which he sought to trace the lineages of the Brazilian political thought. For that, it understands that Gildo offers a Marxist interpretation of Brazilian political traditions different from the nationalist one offered by Wanderley Guilherme dos Santos and the liberal one by Bolívar Lamounier. The article also seeks to unravel the production context of Brandão’s research project, naming its sources of inspiration and possible limitations.

Keywords:
Gildo Marçal Brandão; Marxismo;, Brazilian political thought; Lineages

Introdução

O presente artigo visa a se debruçar sobre a obra de Gildo Marçal Brandão com o objetivo específico de descrever a empreitada que o professor uspiano tomou a peito em seus últimos anos de vida: a de oferecer uma interpretação marxista do pensamento político brasileiro. Um estudo como este se justifica por diversos motivos. Em primeiro lugar, ao contrário das interpretações precedentes de Wanderley Guilherme dos Santos e de Bolívar Lamounier, o contexto intelectual em que Gildo se aventurou já não era aquele da década de 1970, conformado pela discussão do autoritarismo. Ele enfrentava outras questões e adversários que precisam ser identificados para a compreensão dos seus objetivos. Em segundo lugar, seu projeto de pesquisa foi produzido contra a moderna ciência política de corte norte-americano, com o propósito de defender duas tradições que lhe eram caras: a do comunismo democrático, a que devotou sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB) por boa parte de sua vida, e a do pensamento crítico da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), formado por intelectuais engajados à esquerda, como Antônio Candido e Roberto Schwarz na literatura, Florestan Fernandes na sociologia, Fernando Novais na história e Francisco Weffort na ciência política. Eram grupos políticos, personagens e tradições ignorados ou criticados nas interpretações preexistentes de Guerreiro Ramos, Wanderley e Bolívar, lacuna que incomodava Gildo e que ele pretendia não só preencher como lhes dar um lugar digno. Em terceiro lugar, o projeto baseado em sua interpretação, denominado Linhagens do pensamento político brasileiro, foi o que maior repercussão obteve no processo de revitalização da subárea homônima. Gildo formou um importante grupo dedicado ao estudo do pensamento político brasileiro em São Paulo que, com a ajuda de colegas seniores e de outras áreas, levou adiante o projeto depois de sua morte. O sucesso consolidou o campo de estudo no principal estado da federação, permitindo sua ramificação para além de Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Fica clara a esta altura a necessidade de, quase 15 anos depois de sua publicação, revisitar a interpretação de Gildo Marçal Brandão e seu contexto de produção, bem como as motivações e intenções que a motivaram. Nascido em Alagoas em 1949 e assombrado a vida toda por uma cardiopatia congênita, Brandão se graduou em Filosofia na Universidade Federal de Pernambuco em 1971, onde militou no movimento estudantil e na esquerda católica. Ao abandonar o tomismo de sua formação, seu filósofo favorito passou a ser Hegel, que lhe oferecia “uma visão global do processo histórico que tornava possível enquadrar e dar sentido aos fenômenos políticos que agitavam o país e as nossas cabeças” (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 36). De Hegel o jovem alagoano chegou a Marx, cuja articulação entre práxis e filosofia da história lhe pareceu particularmente eficaz para compreender e influir na sociedade à sua volta. Admirador da “mítica Maria Antônia” e alimentado pelo velho “sonho uspiano” de escrever uma dissertação de mestrado sobre Hegel sob a orientação de Paulo Arantes, Gildo se mudou para São Paulo em 1973, onde frequentou os cursos de professores como Francisco Weffort. Ele se notabilizou como editor-chefe do jornal A voz da Unidade, alinhado ao comunismo de Marco Aurélio Nogueira, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Luiz Werneck Vianna. Era um grupo que, no interior do PCB, combatia o marxismo de Luiz Carlos Prestes, por eles atacado como positivista e stalinista. Gildo também atuou em revistas como Escrita, Ensaio e Temas de Ciências Humanas, dedicada a contribuir para “a produção teórica e a luta ideológica no processo de fortalecimento da nossa sociedade civil e da democratização do país” (Nogueira e Brandão, 1980NOGUEIRA, Marco Aurélio; BRANDÃO, Gildo Marçal. 1980. Temas, três anos depois: produção teórica, luta ideológica, unidade política. Revista Temas de Ciências Humanas , São Paulo: Livraria Editora de Ciências Humanas., p. VII). Eram atividades que lhe davam imenso prazer e compensavam seus percalços de saúde: “Quem não viveu nem sonhou na São Paulo daqueles anos de decadência da ditadura não sabe o que perdeu” (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 57).

Gildo finalmente optou por se fixar na vida acadêmica com o propósito de continuar suas atividades políticas como um intelectual público, por intermédio da universidade. Como seus companheiros de partido, ele seguia de perto as ideias de um autor de grande influência nas formulações da esquerda da época - Antonio Gramsci - sobre o maior protagonismo dos intelectuais em cenários de capitalismo atrasado. Convicto de que a universidade - a USP principalmente - ocupava um lugar de crescente destaque na disputa política, Gildo a elegeu como uma “cidadela estratégica, cuja conquista se constitui em importante passo na luta pela construção da hegemonia” (Brandão, 2010, p. 212). Antes mesmo de defender sua dissertação de mestrado em Filosofia, o intelectual alagoano passou para o doutorado em Ciência Política, onde foi aluno de professores que viriam a ser seus colegas: Celia Galvão, Tereza Sadek, Oliveiros Ferreira, Gabriel Cohn e Francisco Weffort (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 58). O departamento de ciência política lhe parecia mais adequado porque conciliava a reflexão filosófica com uma visão mais prática da política. Junto àquele time de professores, Gildo começou a participar do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), fundado e liderado por Weffort, seu orientador de doutorado. Sua tese - A esquerda positiva: as duas almas do Partido Comunista (1920-1964) -, defendida em 1992 e publicada em 1997, tinha por objeto o partido no qual militara por tantos anos. Indagado sobre sua possibilidade de escrever de modo científico ou imparcial sobre o tema, Gildo respondia à maneira de Tocqueville: ele estava “próximo o bastante para entrar o espírito dos que se lançaram à aventura, mas distante o bastante para não ser afetado por suas paixões” (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 63).

Na plenitude de suas funções docentes como doutor, Gildo atuou junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP-USP) e à Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS). Desejando fortalecer sua área de estudos, que era a de teoria política, ele criou, em 1994, a primeira versão de um grupo de trabalho (GT) dedicado à área, denominado Teoria Política e História das Ideias. Ao retornar de seu pós-doutorado em Pittsburgh (Pensilvânia - Estados Unidos), onde se dedicou ao estudo do pensamento dos federalistas estadunidenses - Madison e Hamilton, sobretudo -, Gildo se tornou editor da Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS) e secretário adjunto da prestigiada ANPOCS. Sua tese de livre docência - Linhagens do pensamento político brasileiro -, foi defendida em 2004 e publicada primeiro como artigo e depois em livro, ao lado de outros capítulos de sua autoria. Ela também serviu de base para seu projeto de pesquisa homônimo que, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), reuniu uma plêiade de estudiosos de diversas gerações e contribuiu fortemente para revitalizar o estudo do pensamento político brasileiro. Gildo assumiu a liderança do campo, que exerceu com a sua excelência habitual e o entusiasmo dos colegas mais moços. Nessa qualidade, começou a redigir a tese de titularidade, que defenderia no primeiro semestre de 2010. Ela dava sequência às hipóteses desenvolvidas à época de sua livre docência, acrescentando algumas e corrigindo outras. Antes de ver concretizadas todas as suas esperanças e expectativas, todavia, Gildo foi vencido pela cardiopatia. Faleceu aos 60 anos de idade durante o carnaval de 2010.

Devido à suas qualidades como articulador, intelectual e amigo, Gildo recebeu grande número de homenagens, muitas em textos publicados à sombra do choque da perda. Apesar da valia desse material, acredita-se ter chegado a hora, depois de quase quinze anos, de reavaliar a contribuição de Gildo para o estudo do pensamento brasileiro. É com a perspectiva do distanciamento, senão afetivo, pelo menos intelectual, que se pretende tal reavaliação, levando em conta o contexto de produção e as intenções do autor e evitando as fáceis críticas externas. Ao contrário da abordagem que encara e aplica Linhagens como um texto isolado, destinado a servir de introdução ao estudo da subárea e preocupado exclusivamente com os argumentos internos, os autores tentarão interpretá-lo no conjunto de outros por ele produzidos na virada do século, a fim de perscrutar o que ele “estava fazendo” com seu projeto de pesquisa. Seus escritos foram lidos em ordem cronológica, verificando seu encadeamento intelectual e respeitando tanto quanto possível seus diferentes momentos. Pretende-se analisar o projeto Linhagens do Pensamento Político brasileiro de modo a refletir sobre seus principais argumentos e reconstruir o contexto político e intelectual de sua produção. Suas eventuais fraquezas, apontadas na parte final deste artigo, fazem parte do propósito mais amplo de homenageá-lo como modelo de liderança acadêmica. Gildo amava o contraditório do debate intelectual com uma paixão de esportista, sempre guiado pelas maiores elevações de espírito. Era o primeiro a pedir pareceres sobre seus trabalhos, organizando inclusive seminários para debatê-los com franqueza e generosidade, independentemente de filiações ideológicas. Gildo era uma liderança agregadora, cuja firmeza de convicções se combinava com o respeito ao pluralismo e a crença na superioridade dos métodos democráticos.

O marxismo de Gildo Marçal Brandão: a teoria política entre a filosofia e a história das ideias

O pensamento de Gildo Marçal Brandão foi conformado pelo marxismo que, na qualidade de “filosofia viva do nosso tempo”, oferecia ao seu juízo “uma estrutura mental de alta rotação, a partir do qual os problemas filosóficos, políticos e sociais que nos angustiavam podiam finalmente ser equacionados” (Brandão, 2010cBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010c. Ideias e argumentos para o estudo da história das ideias políticas no Brasil. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., pp. 372). Única grande escola de ciências sociais de que o país supostamente dispusera antes do golpe de 1964, o marxismo formara uma cultura política “em sentido sartreano”, que fornecia “os lineamentos gerais de todas as reformas econômicas fundamentais propostas no Brasil” (Brandão, 2010cBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010c. Ideias e argumentos para o estudo da história das ideias políticas no Brasil. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., pp. 373). Tratava-se de uma “concepção de mundo tornada norma de conduta”, através da qual seria “possível casar organicamente o destino do indivíduo com o sentido de uma época” (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., pp. 40-41). No entanto, aquele era um marxismo oposto àquele hegemônico no PCB, para quem a política era “sempre determinada pela economia, o poder que interessa é o nacional, a democracia só é possível quando os comunistas e seus aliados chegarem ao poder, o único caminho para isso é a luta insurrecional de massas”. No final da década de 1970, a democracia representativa era para ele “o patamar de todo o avanço possível, o valor que se universaliza a partir de determinados condicionamentos históricos” (Brandão, 2010dBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010d. O significado do “prestismo” na vida política brasileira. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 170). Só o seu exercício abriria caminhos para o socialismo, entendido como o ideal de superação “da distinção entre dirigentes e dirigidos de que falava Antônio Gramsci” (Brandão, 2010eBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010e. Representação e participação política. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 132). Ele creditava o fracasso do socialismo real justamente à falta de democracia, esta

[…] potencializada por um sistema que não dispunha de nenhuma forma de aferição das tendências reais, e na extraordinária capacidade conservadora e reacionária revelada por sua classe dirigente, entrincheirada no Partido Comunista da União Soviética.1 1 A importância do método crítico de investigação encontrava guarida no PCB, mas ecoava de forma diversa na USP. Sob a liderança de José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso e Fernando Novais, o grupo do Capital se estabeleceu contra a burocratização do marxismo pelo partido e adotou uma perspectiva crítica do nacional-desenvolvimentismo. Florestan Fernandes também conferia grande centralidade às disputas em torno do método. Toda essa herança seria relevante para os caminhos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e o CEDEC. Mesmo respeitoso dessa tradição, a reivindicação por Gildo do tema do desenvolvimento e o elogio de figuras como Celso Furtado revelavam sua intenção de ter voz própria (Brandão, 2007). (Brandão, 2010gBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010g. Marx e o fracasso do socialismo real. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 256).

Além das influências de Hegel e Marx, o núcleo teórico e epistêmico mais explícito de sua obra estava na obra de Lukács e em formulações dela tributárias, como as de Lucien Goldmann e Michel Löwy. Era ao marxismo de acento hegeliano que Gildo atribuía a parte mais sólida da sua formação intelectual. A dialética constituía o instrumento por excelência de conhecimento da realidade histórica, capaz de viabilizar “a superação (naquele sentido hegeliano do termo) tanto do idealismo quanto do materialismo (vulgar)” (Brandão, 2010hBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010h. O Partido Comunista e o sistema partidário. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 177; 2010iBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010i. Para uma história estadual de um partido nacional. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 197; 2010jBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010j. Totalidade e determinação econômica. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 161; 2010kBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010k. Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 143). Como bom hegeliano, Gildo se interessava menos pela história em si mesma, representada como um “amontoado caótico de fatos, coisas e objetos, e em si desprovida de sentido” (Brandão, 2010jBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010j. Totalidade e determinação econômica. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 151), do que pela filosofia da história, isto é, a “filosofia enquanto expressão especulativa da própria história” (Brandão, 2010kBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010k. Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 138). O estudioso da política não deveria se concentrar na reconstituição dos fatos, mas na apreensão do significado e do sentido da História (com H maiúsculo). Somente o exame das ações humanas em seu contexto de classe em seu devir permitiria compreender as sucessivas estruturas do real e, por conseguinte, a totalidade do processo histórico:

[Gildo] defendia racional e vigorosamente uma perspectiva de análise, inspirada no marxismo hegeliano, que rompesse o isolamento ascético do fenômeno examinado para reconstituir seus elos com o processo histórico e suas tendências imanentes do desenvolvimento. (Sallum Jr., 2010SALLUM Jr., Brasilio João. 2010. Trajetória interrompida. In: COELHO, Simone de Castro Tavares. Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 18)

O conceito de práxis era essencial: ao envolver-se na política, o sujeito não só a modificava, como também se transformava. Por essa razão, Gildo condenava todos os métodos que aspiravam à neutralidade axiológica: “A questão de método é uma questão política” (Brandão, 2010jBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010j. Totalidade e determinação econômica. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 146). Era o conjunto da intelectualidade brasileira que carecia de “um banho de dialética” (Brandão, 1977BRANDÃO, Gildo Marçal. 1977. Totalidade e determinação econômica. Revista Temas de Ciências Humanas, São Paulo, n. 1., pp. 153-154). Essa adesão categórica ao método dialético o levava à condenação frequente dos demais marxismos que, ao seu juízo, “infeccionavam” a produção acadêmica da década de 1970, como o soviético, que ele acusava de positivista, e os de Althusser e Foucault, considerados formalistas ou avessos à dialética.

O marxismo hegeliano de Gildo se projetava no modo com que concebia o campo de estudos e pesquisas da teoria política. Ele a definia como:

[…] uma área de pesquisa interdisciplinar, autônoma intelectualmente, capaz de servir à educação política de homens socialmente empenhados e de contribuir para a internacionalização ativa e não passiva da ciência social que se faz na América do Sul e no Brasil. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 189)

Orientado pela concepção da atividade teórica enquanto práxis, seu estudo deveria “superar tanto a visão praticista, que despreza o papel ativo da teoria, quanto a visão acadêmica, que adora ficar doutrinando sobre os ‘erros’ historicamente cometidos pelos práticos” (Brandão, 2010lBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010l. Temas, três anos depois: produção teórica, luta ideológica, unidade política. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 209). Era preciso pensar a teoria no cruzamento da filosofia política e da história das ideias, buscando a “integração entre teoria política e história das ideias” e a promoção da “aliança entre ciência social e filosofia” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 193). Visto que Gildo pensava as ideias em ação, a teoria política deveria conter um bocado de história social e ser narrada de forma conexa à história das instituições - vale dizer, como parte da ciência política. Os clássicos da política, como Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, Madison, Hamilton, Tocqueville e Marx, também mereciam atenção, porque compunham parte essencial das ciências sociais. Isso parecia ainda mais indispensável na América Latina, subcontinente que, à maneira de Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes, Gildo considerava de “capitalismo retardatário, democracia frágil e globalização subalterna” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 142). Cumpria enfrentar o preconceito dos que acreditavam em uma divisão internacional do trabalho intelectual, que reservava aos países cêntricos o papel de produzir teoria política, e aos periféricos, a simples tarefa de aplicá-la ao plano local:

E é claro que sempre há aqueles para quem “a teoria é para os outros” e que nos aconselham sempre a se limitar à pesquisa empírica, que já nos dá trabalho suficiente e, bem-feita, nos assegura cidadania acadêmica intelectual. Atitude que se casa com um ponto de vista generalizado no e do próprio centro, para o qual “nós fazemos teoria, vocês devem falar dos seus países”. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 188)

Gildo também acreditava na perspectiva hegeliana do “grande cânone”, cujo pressuposto era aquele

[…] segundo o qual as obras primas, os textos fundacionais, as grandes criações culturais são mais capazes - porque mais coerentes, mais amplas, mais profundas e mais autônomas - de revelar a natureza de uma época e a consistência de uma concepção política. (Brandão, 2010mBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010m. Prefácio de Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 283)

Os latino-americanos deveriam ousar disputar de igual para igual a interpretação dos “clássicos da política” com os intelectuais dos países cêntricos. A ciência política brasileira se afirmaria produzindo “teoria de primeira qualidade” e “leituras inovadoras dos grandes pensadores políticos”. Era o que viriam fazendo Luiz Eduardo Soares, em sua tese sobre Hobbes, e Marcelo Jasmin, em sua tese sobre Tocqueville. Este “desafio institucional inelutável” da teoria no Brasil seria complementado pela tradução para o inglês, francês ou alemão daquelas análises dos grandes autores “universais”. Era assim que ombrearíamos com os estrangeiros.

Se não quisermos nos condenar a comparecer ao mercado internacional de ideias apenas como produtores de matérias-primas para consumo e industrialização dos países centrais, é preciso também disputar a produção da teoria política e leituras inovadoras dos grandes pensadores políticos. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 188)

Sua concepção da teoria política como um cânone de “clássicos” estava também ligada à recusa de uma visão da sociedade como conjunto de partes desarticuladas, intrínseca ao conceito de totalidade de Hegel relido por Lukács (2003LUKÁCS, György. 2003. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo, Martins Fontes.).2 2 A totalidade ocupava papel de destaque em História e Consciência de Classe, obra posteriormente reformulada em Ontologia do Ser Social. Sobre as trajetórias do conceito de totalidade em Lukács, ver Jay, 1984; Nobre, 2001; Mészáros, 2013. Por isso, o marxismo dialético de Gildo recusava a tese de uma autonomia do político centrada nas instituições, admitindo na melhor das hipóteses uma autonomia relativa. A determinação última da realidade era conferida pela economia e pela sociedade: “Processos e variáveis políticas não passam de subprodutos de tendências macrossociais e macroeconômicas” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 191). A despeito de sua legalidade própria, a política não deveria perder de vista sua relação com a totalidade social.

Crise do socialismo e defesa da tradição: a crítica ao neoliberalismo, à especialização acadêmica e ao neoinstitucionalismo

As transformações provocadas pela queda do Muro de Berlim criaram enormes desafios para a esquerda brasileira, que já sofria mudanças estruturais decorrentes da transição para a democracia, do declínio do PCB e da ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT), agremiação descomprometida com o marxismo. Esses câmbios se refletiram no mundo das ciências humanas, no qual o modelo de intelectual público foi cedendo lugar àquele do especialista. Para Gildo, tratava-se de um período de “crise das grandes teorias e da derrota do marxismo” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 191). Ele traduzia, no plano teórico, “o relativo fracasso do marxismo em construir uma teoria política suficientemente consistente” e, ao mesmo tempo,

[…] capaz de dar conta dos processos ocorridos após Hegel e Marx e da ascensão do neoliberalismo como visão de mundo capaz de revitalizar a teoria contratualista e enfrentar ofensivamente os problemas atuais da organização do mundo e da política. (Brandão, 2010kBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010k. Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 145)

O fim do socialismo real foi acompanhado pela emergência de uma sociedade identificada com o capitalismo e pelo adensamento do liberalismo como “ideia força na formação social brasileira” (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 75). Era uma nova configuração de mundo, na qual “a própria ideia de desafio à ordem social burguesa parece ter sido arquivada” (Brandão, 2010dBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010d. O significado do “prestismo” na vida política brasileira. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 165). A situação da esquerda lhe parecia lamentável: “Há tempos ela não produz ideias novas, não faz teoria, não reflete globalmente sobre o país, não apresenta alternativas factíveis, não disputa a direção intelectual e moral dos grandes grupos sociais” (Brandão, 2010iBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010i. Para uma história estadual de um partido nacional. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 198). A crítica era direcionada principalmente ao PT, acusado de ser pragmático no poder, ideológico na oposição e irresponsável no enfrentamento dos escândalos de corrupção.

O partido oficial da esquerda brasileira, o dos Trabalhadores, há muito não produz teoria, se é que algum dia o fez, apenas se dedica a justificar a sua política, legitimar as ações de governo, a defender-se de acusações. De um lado o pragmatismo, do outro a ideologia. Análise concreta da situação concreta nunca foi o forte dessas seitas de extrema esquerda que ressurgiram no país com o deslocamento do PT para o centro do sistema político. De fato, esses pequenos partidos ‘revolucionários’ preferem exumar o marxismo e citar os velhos textos e autores como se entre eles e nós não tivesse se passado século e meio. Além disso, passam ao largo do problema político central da vida brasileira de hoje: como promover transformações sociais profundas em democracia e pela democracia. (Brandão, 2010dBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010d. O significado do “prestismo” na vida política brasileira. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 169)

Tratava-se, no fundo, de uma disputa sobre a hegemonia dentro do campo da esquerda. Gildo representava um “marxismo de matriz comunista” que perdia seu antigo protagonismo para outro partido, cuja reflexão teórica parecia menos relevante do que a afirmação dos movimentos sociais (Sader, 1988).

Entretanto, a crise do socialismo atingiu também a área de ciência política. A tradição da teoria estudada próxima à filosofia e orientada pelo marxismo, forte na Europa do pós-guerra, passou a ser atacada como anacrônica por colegas comprometidos com o modelo vigente nos Estados Unidos, mais positivista e quantitativista. Gildo resistia, criticando o mundo novo e hostil que se levantava à sua volta, de modo sistemático e sem tréguas. Ele lamentava a

[…] derrota ideológica da esquerda, o predomínio acachapante do liberalismo, a transformação dos Estados Unidos em modelo indisputado de boa vida e boa teoria, a perda da capacidade da universidade de decidir autonomamente sua agenda de pesquisa, e as políticas de fomento adotadas pelas fundações internacionais e pelas agências governamentais, têm levado à progressiva americanização das ciências sociais. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 182)

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por sua vez, era acusada de

[…] impor a hegemonia de um partido acadêmico que retalha o conhecimento em autarquias, reifica o método ao tomá-lo com independência do objeto que se quer investigar e como substituto da teoria, e reduz a formação científica ao aprendizado e ao refinamento de procedimentos técnicos - ao tempo em que, externa corporis, professa uma fé desmedida na engenharia institucional. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 184)

Gildo também se preocupava com o desprestígio crescente dos métodos dialéticos marxistas voltados para a apreensão da realidade desde a “totalidade”. A defesa da dialética e do olhar para a “totalidade” tornou Gildo Marçal Brandão um dos mais virulentos críticos dos métodos empíricos e quantitativos introduzidos na década de 1990. Ao bloquearem a possibilidade de “pensar o conjunto”, a especialização da atividade intelectual e a fragmentação da pesquisa reduziam a reflexão “à expressão reificada do próprio processo social” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 156). O resultado era “a transformação do intelectual em especialista, das ciências sociais em técnicas de racionalização das demandas sociais, do trabalho acadêmico em reprodução dos interesses e programas das agencias estatais e financeiras” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 156). Seus ataques visavam especialmente os institucionalistas que começaram a disputar hegemonia dentro do seu próprio departamento, orientados pela ciência política associada ao antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), encabeçado por Wanderley Guilherme dos Santos (atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - IESP-UERJ), e ao Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), encabeçado por Fábio Wanderley Reis. Seus novos colegas de departamento na Universidade de São Paulo pecariam pela “absorção acrítica da antiga revolução behaviorista”, pela ignorância de questões de epistemologia e por difundirem a ignorância “quanto aos problemas formais da exposição” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 185). A “nova ciência política” não passaria de uma pseudociência que, julgando as instituições autônomas em relação à sociedade e à economia, não dava conta da “reconstituição da totalidade” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 190). Tratava-se de verdadeiro “analfabetismo ilustrado que reifica tabelas e números e se enfada com a enésima leitura de Maquiavel, Hobbes ou Rousseau, sem ao menos advertir que não há exemplo de ciência política no mundo que as tenha dispensado” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., pp. 187-188).

Ao mesmo tempo, Gildo lamentava também o progressivo desaparecimento na universidade da figura do professor como intelectual orgânico, substituído por aquela do especialista. Sua crítica se estendia aos novos métodos de pesquisa de teoria política baseados em críticas à insuficiência da história da filosofia hegeliana, como a história dos conceitos de Reinhart Koselleck e o contextualismo linguístico de John Pocock e Quentin Skinner, recepcionados por Marcelo Jasmin e João Feres Jr. no antigo IUPERJ. Incapazes de dar conta da construção de tradições e dos vínculos entre pensamento e ação, os novos métodos impediriam a crítica da realidade social (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores.).

Nenhuma (grande constelação ideológica) pode ser inteiramente resolvida - dissolvida - em seu contexto: um corpo de ideias, quando é realmente significativo, sobrevive ao seu contexto de origem, é universalizável e pode ser legitimamente interpelado a partir de outras agendas e circunstâncias históricas. (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 88; 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 33)

Gildo esperava um dia retornar ao seu texto sobre Maquiavel, no qual “ajustaria contas” com o “humanismo cívico” de Quentin Skinner e Pocock (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 60). Ele reafirmava desse modo sua preferência pelo estudo dos “grandes autores” e dos “grandes textos”, únicos capazes de iluminar o momento histórico:

Na contramão das tendências recentes, não há como fugir do suposto segundo o qual as obras mais significativas, os textos fundamentais, as criações teóricas mais típicas são capazes - porque mais coerentes, mais amplas, mais profundas e mais autônomas - de revelar a natureza de uma época e a consistência de uma concepção política. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., pp. 41-42)

Para Gildo, era urgente reagir a tais mudanças e ameaças. Nada melhor do que fazê-lo através de um grande projeto de pesquisa “à esquerda”, capaz de disputar a hegemonia na ciência política universitária.

Um programa de pesquisa teórica “à esquerda”

Do ponto de vista de seu substrato teórico e ideológico, o projeto de pesquisa “à esquerda” de Gildo Marçal Brandão pretendia aproveitar o que havia “de melhor na velha cepa marxista” (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p.92), amalgamando-a com materiais da velha tradição “progressista” da FFLCH-USP, representada por intelectuais como Antonio Candido, Roberto Schwarz e Florestan Fernandes: “O novo é radical quando consegue reinventar a tradição” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 11).3 3 Gildo frequentemente alude a Candido como autoridade, endossando sua célebre (e muito discutível) tese segundo a qual Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Junior teriam sido os “três pais fundadores da moderna ciência social brasileira” (Brandão, 2010m, p.282).

No que diz respeito à área da ciência política, Gildo difundiu uma versão alternativa àquela dos institucionalistas, para os quais a ciência política brasileira datava do “fiat lux pronunciado pelos heróis fundadores que estudaram nas universidades norte-americanas ou foram financiados pela Fundação Ford” (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 80). Passou a sustentar que haveria no departamento da USP uma tradição que remontava a Lourival Gomes Machado, identificada com o estudo dos clássicos da política e do pensamento brasileiro, e que valia a pena defender. Do ponto de vista do objeto, Gildo desejava investigar as relações entre democratização e capitalismo, a fim de formular no contexto periférico de dependência novos projetos para a nação.

A reavaliação do caminho percorrido e a articulação do novo projeto envolvem a articulação do conhecimento científico dos mecanismos de transformação dos capitalismos avançado e periférico, e da morfologia política e social brasileira (e sul-americana), com a capacidade de propor soluções positivas para os problemas nacionais e regionais - e nada disso é possível […] sem pesquisa acadêmica, sem universidade, sem os intelectuais. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 169)

A superação da crise da esquerda dependia de um projeto amplo e coletivo que propusesse chaves de leitura para o Brasil na conjuntura global. O PT se revelava incapaz de fornecê-los, devido ao seu reformismo tímido e sua aversão à teorização.4 4 O PT reunia desde parte das esquerdas comunistas até católicos progressistas - todos insatisfeitos com os caminhos do PCB. Nascido de fortes críticas à tradição nacional-desenvolvimentista, anos depois o PT a abraçaria ao longo das disputas com o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e em razão do grande sucesso eleitoral do partido, que exigia uma linguagem mais “nacional” para se difundir de forma mais sólida país afora (Lynch, Chaloub, 2018).

Para caracterizar nossa trajetória política, Gildo descartava, pois, “o institucionalismo rasteiro para o qual, se as instituições funcionam, tudo está bem, basta não fazer marola nem pretender mudanças abruptas e profundas” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 166). Preferia recorrer ao conceito de autocracia burguesa de Florestan Fernandes (1987FERNANDES, Florestan. 1987. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 3. ed., Rio de Janeiro: Guanabara.): “É sob tal enquadramento histórico e analítico que temos de pensar e atuar” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 167). Ele pretendia desvelar dialeticamente as falazes perspectivas ideológicas da luta política por meio de uma análise crítica do chamado “pensamento político brasileiro”, também referido como pensamento social no Brasil, pensamento político brasileiro e pensamento político-social brasileiro. Uma adequada reflexão sobre os “clássicos” brasileiros e suas respectivas linhagens intelectuais poderia servir de “instrumento para interpelar inusitadamente a sociedade e a história que os produz” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 23). Apontar a proficuidade do estudo das linhagens do pensamento brasileiro chocaria o senso comum para o qual

[…] a vida intelectual nunca deixou de ser o passatempo de senhores ociosos, que nunca houve conservadorismo entre nós porque nesse campo não há pensamento, o liberalismo foi sempre de fachada, o socialismo não passou de amalgama entre positivismo e estupidez etc. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 45)

A vida ideológica brasileira fazia sentido, “embora seja (ou tenha sido) descontínua, sujeita a ciclos de substituição cultural de importações que, às vezes, parecem fazer tábula rasa de todas as anteriores configurações” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 45). Nossa elaboração intelectual estava vinculada à ação concreta dos partidos que disputavam a hegemonia. Havia um elo inextricável entre teoria e prática: autores eram atores e vice-versa. Ao invés de recair sobre a identidade entre sujeitos e objetos do conhecimento, criticada a partir de Lukács na segunda edição do História e Consciência de Classe (2003LUKÁCS, György. 2003. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo, Martins Fontes.[1969]), o vínculo entre ideias e prática se estabeleceria a partir da relação recíproca de interação entre elas. Se os clássicos intervinham com suas ideias na sociedade, a sociedade também reagia intelectualmente sobre eles.

Porque a articulação dialética entre os dois campos ressaltaria o caráter provisório das práticas e das visões de mundo, Gildo julgava o conceito de linhagem preferível aos de modelo ou paradigma. A elaboração de uma interpretação marxista das linhagens do pensamento brasileiro passava por criticar aquelas que a haviam precedido, fossem de sabor nacionalista, como as de Guerreiro Ramos e Wanderley Guilherme dos Santos, fosse a de tempero liberal, produzida por Bolívar Lamounier (Lynch, 2013aLYNCH, Christian Edward Cyril. 2013a. The institutionalization of brazilian political thought in the social sciences: Wanderley Guilherme dos Santos’ research revisited (1963-1978). Bras. Political Sci. Rev [online], v. 7, n. 3, pp. 36-60. Disponível em: Disponível em: https://bityli.com/OUW2I . Acesso em: 16 ago. 2021.
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, 2015LYNCH, Christian Edward Cyril. 2015. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Cadernos CRH, Salvador, v. 28, n. 73, pp. 7-45. Disponível em: Disponível em: https://bityli.com/JOHGi . Acesso em: 16 ago. 2021.
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; Lynch e Cassimiro, 2018LYNCH, Christian Edward Cyril; CASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. 2018. Freedom through form: Bolívar Lamounier and the liberal Interpretation of brazilian political thought. Bras. Political Sci. Rev [online], v. 12, n. 2, e0002. DOI: 10.1590/1981-3821201800020002
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). Elas estariam contaminadas pela ideologia de seus intérpretes, porque elaboradas à revelia da dialética oferecida pelo marxismo hegeliano. Cumpria substituir “o fetiche desses ‘idealismos’ opostos e complementares” por uma abordagem que, com “identidade de esquerda”, obtivesse da realidade brasileira um “conhecimento totalizante”, valendo-se da “inter e a transdisciplinaridade” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 158-162). Mais eficaz no processo de análise da realidade, a perspectiva crítica do marxismo lhe permitiria deixar de lado a impossível “neutralidade axiológica” e admitir seus próprios comprometimentos políticos, sem incorrer na pecha de ideológico: “Não se pode travar a luta ideológica, a batalha das ideias, com métodos estreitos” (Brandão, 2010lBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010l. Temas, três anos depois: produção teórica, luta ideológica, unidade política. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p.210). Haja vista seus vínculos com a ordem capitalista global, para Gildo, os clássicos brasileiros também deveriam ser lidos em relação à totalidade mais ampla na qual eles se inseriam. Daí sua preferência pelos autores que haviam se dedicado ao gênero do “ensaio histórico sobre a formação nacional”. Apenas o olhar dialético permitiria compreender adequadamente as marcas de estilo e argumentos dos “intérpretes do Brasil”, determinados por seus respectivos lugares na totalidade social.

Embora desejasse desmentir a tese de que não se produzia pensamento político no Brasil, nem por isso Gildo achava que o que aqui se fazia estivesse à altura dos “clássicos” da Europa Ocidental e da América do Norte. O Brasil se encontrava na América Latina, cuja economia se desenvolvera sob o signo da dependência, própria do capitalismo periférico, razão pela qual sua produção se ressentia do imperialismo cultural e do elitismo ideológico. O autor de Linhagens seguia aqui as lições da tradição da “casa” uspiana, que interpretava a literatura brasileira a partir do lugar do Brasil na ordem capitalista global: “O que vale para a literatura vale, a fortiori, para o pensamento político-social” (Brandão, 2010kBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010k. Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 141). Este último merecia ser lido pelas mesmas razões por que Antonio Candido lia a literatura brasileira. Ainda que não servisse para conhecer o mundo, nosso pensamento serviria para nos conhecermos, identificando a “relação entre as ideias e a experiência coletiva de determinadas gerações e grupos sociais, o modo como pensaram a própria vida” (Brandão, 2007c, p. 371). Se aprendemos a pensar a política com os clássicos da política universal, com os brasileiros aprenderíamos “a pensar o país”, fornecendo subsídios para explicar e interpelar o presente de modo crítico (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores.).5 5 Gildo rejeita a perspectiva de Florestan em sua fase positivista, quando aplicava o método “institucional” de análise da produção nacional. Em nota de rodapé, faz o elogio a Wanderley Guilherme dos Santos: ele teria sido o primeiro e o mais enérgico opositor da ideia de fazer da divisão acadêmica do trabalho intelectual critério de verdade, legitimando o estudo da história das ideias e consagrando a expressão “pensamento político-social brasileiro” que, para Gildo, “a rigor seria mais adequada para caracterizar a natureza da reflexão” (Brandão, 2007, p. 25). Ademais, conforme percebera Roberto Schwarz (2000SCHWARZ, Roberto. 2000. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34 .), os “mestres na periferia do capitalismo” identificavam questões ocultas aos clássicos do centro, o que lhes facultava criticá-los com acuidade. Esse era um motivo adicional para conhecer o pensamento político brasileiro, ainda que ele fosse qualitativamente inferior à teoria política produzida no centro do capitalismo mundial.

“Linhagens do pensamento político brasileiro”: considerações e hipóteses do projeto de pesquisa

Em seu projeto de pesquisa “à esquerda”, batizado como Linhagens do pensamento político brasileiro, Gildo afirmava que o campo de estudos do pensamento político brasileiro se caracterizava por sua interdisciplinaridade. Ele compreendia “antropologia política e sociologia da arte, história da literatura e história da ciência, história das mentalidades e sociologia dos intelectuais, filosofia e teoria política e social e história das ideias e visões do mundo” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 22). Originado com Sílvio Romero na década de 1870, esse campo teria adquirido autonomia em relação à literatura por volta de 1950, renovando seus esquemas interpretativos cerca de vinte anos depois, graças à emergência de novos repertórios. A maturidade plena chegaria na década de 1990, quando

[…] a exaustão do Estado nacional-desenvolvimentista se manifesta por todos os poros, a especialização exacerba a fragmentação do mundo intelectual, a sociedade se vê diante do imperativo de reformular suas instituições e redefinir seu lugar no mundo; e uma comunidade acadêmica consciente de sua própria força pode, enfim, confessar suas dívidas intelectuais para com os ensaístas. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 28)

Diante desse quadro, Gildo se propôs às seguintes tarefas: (1) produzir um balanço bibliográfico de toda a literatura que pudesse ser incluída na rubrica do pensamento brasileiro; (2) fazer um levantamento empírico dos principais intelectuais do período; (3) reconhecer as áreas identitárias dos intelectuais; (4) providenciar-lhes uma tipologia que os distinguisse entre tradicionalistas, conservadores, rebeldes, reformistas e revolucionários. Esta última era a mais urgente e a que mais lhe interessava, tendo em vista sua aplicabilidade para a crítica do processo político contemporâneo. Sua principal hipótese era relativa à “existência de famílias intelectuais que, a meu juízo e contra a aparência imediata das coisas, estruturam historicamente o pensamento político e, por essa via, a luta ideológica e política no Brasil” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 15). Ele se dispunha a demonstrar que:

[…] ao contrário das aparências, a vida ideológica brasileira não é aleatória, suas principais correntes não nasceram ontem nem são fenômenos conjunturais, e, para além das conhecidas transformações no padrão de trabalho científico geradas pela institucionalização das ciências sociais, há insuspeitas continuidades entre as principais matrizes intelectuais formuladas pelos “intérpretes do Brasil” e os resultados obtidos pela investigação acadêmica institucionalizada. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 90)

Neste ponto, Gildo discordava tanto de “iberistas” como Richard Morse e Gilberto Freyre, quanto de “anti-iberistas” como Raymundo Faoro. As linhagens do pensamento brasileiro não pairavam sobre a realidade como enteléquias. Elas resultavam, na verdade, das reflexões sobre a especificidade da sociedade brasileira deixadas por intelectuais, desde o advento do capitalismo e do Estado nacional por volta de 1870. Organizadas por imanentes tradições de cultura política, as linhagens não eram estáticas e se adaptavam às contingências da luta:

A constituição de ‘famílias intelectuais’ e formas de pensar é mais um resultado do que um pressuposto - padrões que se constituem ao longo de reiteradas tentativas, empreendidas aos trancos e barrancos por sujeitos e grupos sociais distintos, de responder aos dilemas postos pelo desenvolvimento social. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 55)

As tradições políticas não eram percebidas pelo público como se sempre tivessem existido. O caráter fragmentário da história brasileira frequentemente levava seus pensadores a recomeçarem do zero, ignorando antecessores. Só os conservadores teriam noção da sua linhagem, já que “a hegemonia exige pensadores que estabeleçam e reivindiquem continuidade e não apenas ruptura” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores.c, p. 372).6 6 No texto de Linhagens, ele voltará à carga: “O conservantismo parece ter sido capaz de plasmar formações intelectuais, como a dos saquaremas no Império ou a do pensamento autoritário dos anos 1930, enquanto algumas das melhores leituras liberais parecem façanhas de personagens brilhantes isoladas” (Brandão, 2007, p. 65). A consciência relativa à existência de um pensamento dependia do enraizamento do capitalismo e da densidade do tecido social. Eles permitiriam à sociedade internalizar o seu “centro de decisão”, e aos seus intelectuais, encontrar, nas ciências sociais, o instrumento adequado para pensar a si mesmos (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 57). A relação diacrônica entre os autores no longo prazo só poderia ser reconstituída de maneira intelectual e não histórica: “É uma relação que tem que ser reconstruída, ela existe para o observador que a analisa, mas não é direta e imediata para o sujeito que a vive” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 62). A comprovação da hipótese de pesquisa obrigaria Gildo ainda ao trabalho extra e exaustivo de “passar em revista todas ou quase todas as obras-chave dos chamados ‘intérpretes do Brasil’” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 15).

Embora o principal objetivo do projeto de pesquisa reiterasse a tese da existência de tradições políticas já apontada por outros intérpretes, Gildo sugerira que conhecê-las também permitiria compreender a luta contemporânea dentro da academia. Ele se propunha a demonstrar

[…] a existência de estilos determinados, formas de pensar extraordinariamente resistentes no tempo, modos intelectuais de se relacionar com a realidade que subsumam até mesmo os mais lídimos produtos da ciência institucionalizada, estabelecendo problemáticas e continuidades que permitem situar e pôr sob nova luz muita proposta política e muita análise científica atual. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 29)

Haveria continuidades, identificáveis retrospectivamente, entre Tavares Bastos e Raymundo Faoro, ou entre Maria Sylvia de Carvalho Franco, Oliveiros Ferreira e Maria Isaura Pereira de Queiroz - a respeito da sociologia política de Oliveira Viana -, ou Rui Barbosa, Vicente Barreto e Bolívar Lamounier. “Mapear estruturas intelectuais que se cristalizam historicamente como a priori analíticos, e ver como se articulam com a perspectiva política mobilizada - eis o núcleo do trabalho” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 30). A dialética materialista facultaria ao estudioso detectar e compreender as ideologias como historicamente determinadas e socialmente ancoradas. Assim, Gildo sustentava que, do ponto de vista objetivo, liberalismo e conservadorismo não passavam de “uma simplificação grosseira da realidade e um lero-lero convincente para os incautos” (Brandão, 2010qBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010q. Desconstruindo Huntington. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 232). Isso porque cada uma delas, “menos do que uma construção científica, é uma arma de combate: fornece um discurso aparentemente racional para a nova elite dominante, obriga os recalcitrantes à ordem unida, luta enfim para convertê-lo em hegemônico” (Brandão, 2010qBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010q. Desconstruindo Huntington. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 237). Nem por isso tais ideologias perdiam relevância como instrumento de ação social, sendo nessa qualidade que adquiriam dignidade como objetos de investigação dos estudiosos. As linhagens expressavam ideias-força sociopolíticas que atuavam “como componentes internos das práticas e das instituições” (Bastos, 2010BASTOS, Elide Rugai. 2010. Gildo Marçal Bezerra Brandão (1949-2010): um analista do pensamento brasileiro. Dados [on-line], v. 53, n. 1, pp. 5-10. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/37JD41o . Acesso em: 16 ago. 2021.
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, p. 6).

Haveria quatro linhagens discerníveis no pensamento político brasileiro. As duas primeiras carregariam o timbre do elitismo antidemocrático e teriam dominado a cena até o começo da democratização do país entre 1930 e 1950. Eram elas o “idealismo orgânico” e o “idealismo constitucional”. As duas categorias, criadas originalmente por Oliveira Vianna, eram ressignificadas à luz do marxismo dialético com propósito de neutralizar “suas petições de princípio e a esvaziar o que contém de justificação ideológica de um projeto de monopólio de poder e de saber” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 30). O idealismo orgânico, cujo founding father seria o Visconde de Uruguai (Brandão, 2010sBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010s. Prefácio de centralização e descentralização no império. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 275), teria norteado o programa conservador de regimes autoritários como o Segundo Reinado, o Estado Novo e o Regime Militar:

O programa conservador brasileiro, que foi responsável no século passado pela consolidação do Estado nacional e forneceu neste a direção básica da ação dos grupos políticos e burocracias dominantes no país - do tenentismo ao geiselismo, de Agamenon Magalhães a Antônio Carlos Magalhães, se assentava na tese de que não era possível construir um Estado liberal (e democrático) numa sociedade que não era liberal. A consequência prática é que esta precisava ser tutelada. (Brandão, 2010tBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010t. O fracasso dos conservadores. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 250)

Partindo do diagnóstico de um divórcio entre o país legal e o país real, o idealismo orgânico “subordina todo dever-ser à estreita métrica do existente, reduz o necessário ao possível e este ao imediato, assume e transfigura a empiria” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 146). Dessa corrente faziam parte atores históricos como os saquaremas, os tenentes, o varguismo, o trabalhismo e o militarismo de 1964. Os “grandes conservadores modernizantes” teriam sido intelectuais como Alberto Torres, Oliveira Viana e Azevedo Amaral (Brandão, 2010uBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010u. O peregrino da ordem do desenvolvimento. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 296).7 7 Possivelmente, Gildo incluía Gilberto Freyre nessa linhagem. Ao recordar sua mocidade em Pernambuco, sublinhava que, fora da universidade, reinava absoluto o Instituto Joaquim Nabuco, “empresa patrimonialista e familiar, que se beneficiava dos serviços do seu chefe ao regime militar e aglutinava a açucarocracia política e intelectual. Reduto do inimigo, nada tinha a ver com o nosso mundo” (Brandão, 2010b, p. 30). O mais brilhante representante teria sido mesmo Oliveira Viana, cujo programa evitava a luta de classes, priorizava a ordem sobre a liberdade, conferia autonomia ao poder judiciário e construía a sociedade civil para só no fim do processo admitir a democracia. “Liberdade civil, unidade territorial e nacional garantida pela centralização político-administrativa, e Estado autocrático e pedagogo, eis o programa conservador” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 48). Entretanto, tratava-se de um programa que perdera sentido: ninguém mais acreditava que a sociedade civil fosse inorgânica e que a unidade nacional dependesse somente da atuação do Estado. Pior, o programa conservador não cumprira sua promessa de educar para a liberdade: “É aqui que o desempenho dos conservadores foi mais pífio, suas promessas mais hipócritas, suas expectativas mais fraudadas” (Brandão, 2010tBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010t. O fracasso dos conservadores. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 252). O idealismo orgânico erigira

[…] uma sociedade em que a vida cotidiana é marcada pela violência, impunidade, insegurança, dificuldade de acesso à justiça, corrupção. Justamente o que ele havia prometido debelar e em nome dos quais nos privou várias vezes da liberdade. (Brandão, 2010tBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010t. O fracasso dos conservadores. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 252)

A existência de uma esquerda nacionalista que apostava no desenvolvimentismo pesava pouco para Gildo Marçal Brandão.8 8 Além de ter feito a autocrítica do velho Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), Guerreiro Ramos teria dado “dois ou três passos além” ao formular em outras bases o tema do formalismo (Brandão, 2007, p. 149). Se a direita “orgânica” errava ao dar diagnósticos defasados, a esquerda “orgânica” se iludia ao imaginar ser viável combater o neoliberalismo pela revalorização do Estado.

Se a primeira linhagem do pensamento político brasileiro - o idealismo orgânico -, espelhava o conservadorismo, a segunda - o idealismo constitucional -, espelhava o liberalismo. Os liberais acreditariam que a boa lei produziria a boa sociedade; que os problemas nacionais eram políticos; e que o segredo do sucesso residia na construção institucional cumulativa. Essa linhagem priorizaria os problemas da representação, do federalismo, do parlamentarismo, do presidencialismo e do papel arbitral do judiciário. Dela fariam parte Tavares Bastos, Joaquim Nabuco, André Rebouças e Rui Barbosa. O idealismo constitucional também afirmaria a centralidade do Estado na formação brasileira, mas em chave negativa. Herdeiro do Estado português, transmigrado ao Brasil, ele seria o grande responsável pela situação de sufocamento e fragmentação da sociedade nacional. Haveria aqui uma “sublinhagem” interpretativa que começaria em Tavares Bastos e terminaria em Simon Schwartzman, passando por Raymundo Faoro. Diante da distância imensa entre o país legal (dever-ser) e o país legal (ser), os liberais recusariam o passado para se refugiar na utopia:

Na ausência de mediações entre o que é e o que deve ser, o passado é fardo, o futuro é tempestade. Uma vez que esperança e razão, ética e história se desentendem, não há meio termo e daí o desespero, que leva a uma posição revolucionária: fiat justitia pereat mundus. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p.145)

O idealismo constitucional teria se tornado dominante no Brasil da década de 1990, graças aos antigos social-democratas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) alçados ao governo durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso. Na academia, o partido do idealismo constitucional seria representado pelos neoinstitucionalistas contra os quais Gildo movia sua cruzada (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores.).

A partir das décadas de 1930 e 1950, com a massificação da política decorrente da urbanização e da industrialização, as duas formas elitistas e antidemocráticas de pensamento - o idealismo orgânico e o constitucional - teriam sofrido a concorrência de outras, de caráter “progressista” e “anti aristocrático”. A primeira seria aquela do radicalismo de classe média, assim batizada originalmente por Antonio Candido para aludir à orientação “progressista” hegemônica da USP. Mas, à maneira do que fizera com Oliveira Vianna, Gildo mais uma vez ressignificava a categoria de um predecessor (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp.). Na sua própria interpretação, o pensamento radical teria envolvido “a maior parte dos socialistas e comunistas e se cristalizou a partir das décadas de 1940 e 1950, especialmente na Universidade de São Paulo e a despeito das intenções elitistas de seus fundadores” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 37). O radicalismo de classe média era definido como um pensamento democrático “socializante, quase sempre socialista, de matriz liberal, por vezes constitucionalista” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 38). Embora meros radicais, porque queriam mudança sem revolução, autores como Sérgio Buarque de Holanda já representavam um “enorme avanço diante do grosso do pensamento que era maciçamente conservador, e não raro reacionário” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 37). Seria possível enquadrar ainda, nessa linhagem, intelectuais como Manuel Bonfim, Nestor Duarte, Victor Nunes Leal, Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso.

O “materialismo histórico” ou “marxismo de matriz comunista” seria a quarta e última linhagem do pensamento político brasileiro. Ela se distinguiria do radicalismo de classe média por buscar “a unidade entre, digamos, a infra e a superestrutura na explicação do social” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 30 e 38). Na primeira versão do projeto, essa linhagem compreenderia uma série de intelectuais que, embora não fossem todos marxistas, teriam estudado a sociedade como uma totalidade em movimento, combatendo os idealismos e evitando, “tanto quanto possível, o conservantismo de um e o utopismo de outro” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 38). Teriam pertencido a essa tradição Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Lima Barreto, Caio Prado, Werneck Sodré, Celso Furtado e Florestan Fernandes. Todos teriam se esforçado por “ver as coisas globalmente, de conhecer as conexões entre elas” (Brandão, 2007c, p. 374). Em uma época de falta de quadros e ensino de qualidade, o materialismo histórico teria sido por muito tempo a única grande escola de ciências sociais do Brasil. Embora o marxismo de matriz comunista possuísse originalmente uma vertente autoritária, desde a década de 1950 se desenvolvera uma vertente positiva que admitia a compatibilização da democracia política.

Em sua conclusão, Gildo avançava quatro hipóteses de pesquisa. A primeira era a de que o atual liberalismo brasileiro partiria de um diagnóstico de má formação nacional que começava em Tavares Bastos, passava por Faoro e chegava a Schwartzman e outros “americanistas”, que desejavam romper com a tradição ibérica para instaurar o predomínio do mercado. A segunda hipótese postulava que os trabalhos de Guerreiro, Wanderley e Bolívar eram eles mesmos expressivos das linhagens mais antigas e antipopulares. Os dois primeiros autores renovariam, pela esquerda, o idealismo orgânico de Uruguai e Oliveira Vianna, ao passo que Bolívar analisava o pensamento brasileiro na perspectiva do idealismo constitucional de Tavares Bastos e Rui Barbosa. A terceira hipótese supunha que, na década de 1950, as duas linhagens teriam se renovado com a agenda política. Emergindo o desenvolvimento como tema central, passando a democracia à categoria de questão subjacente, a agenda da construção do Estado cedera lugar àquela da “emergência da sociedade e de sua transformação como problema” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 36). Teria sido este o contexto da emergência do radicalismo de classe média e do marxismo de matriz comunista: aquele da ascensão da sociologia como “a principal forma de intelecção da realidade” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 36) e de novos atores como a FFLCH-USP e o Partido Comunista, com a correspondente decadência do catolicismo, da literatura e do culturalismo. Gildo advertia que as quatro linhagens descritas não eram necessariamente excludentes: um personagem poderia ser enquadrado em mais de uma linhagem, porque elas não cobriam todos os autores e obras. Citando Michael Löwy, advertia-se para a necessidade de

[…] não transformar as ‘afinidades eletivas’ entre idealismo orgânico e conservadorismo, entre idealismo constitucional e liberalismo, entre materialismo histórico e socialismo, em vias de mão única, relações de causa e efeito ou homologias entre ideologias e posições políticas. (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 39)

Em outras palavras, o mapeamento oferecido pelas linhagens não era um instrumento classificatório dos autores, que os enquadrassem em grupos excludentes. Pretendiam ser apenas meios de ressaltar afinidades e construir diálogos entre os diversos caminhos intelectuais da história política brasileira.

Um balanço da interpretação marxista de Gildo Marçal Brandão sobre o pensamento político brasileiro

Há diversas considerações para um balanço da pesquisa de Gildo Marçal Brandão. Em primeiro lugar, uma análise séria de Linhagens não pode prescindir da reconstituição do quadro mais amplo das intenções de seu autor. Foi a oposição ao novo cenário que emergia na década de 1990 que o motivou a elaborar um projeto de pesquisa “à esquerda”. Ele estava inconformado com as mudanças que decretavam a morte do intelectual público, descomprometiam a ciência social com o objetivo de transformação da realidade e enfraqueciam sua capacidade de construir grandes narrativas. Mas Gildo Marçal Brandão queria também protestar contra o desprestígio crescente da tradição socialista e comunista na ciência política. Verberava contra o esquecimento de Caio Prado Júnior, enquanto os liberais endeusavam Sérgio Buarque, os conservadores ressuscitavam Gilberto Freyre e a esquerda estatista desenterrava Oliveira Vianna (Brandão, 2010mBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010m. Prefácio de Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp.). No campo político-partidário, ele queria recuperar o lugar do marxismo contra a esquerda petista e os liberais tucanos e, na ciência política, resistir à investida dos neoinstitucionalistas. No campo das interpretações do pensamento brasileiro, ele pretendia ajustar contas com o nacionalismo de Wanderley Guilherme e o liberalismo de Bolívar Lamounier, destacando a relevância do marxismo de matriz comunista pecebista e do radicalismo acadêmico paulistano. Todos os seus adversários se enquadravam implícita ou explicitamente nas duas linhagens do idealismo orgânico e do constitucional, apontadas como elitistas. Gildo se propunha investigar o pensamento brasileiro, não apenas como profissional da história das ideias, mas como intelectual público. Não se lançava por mero amor à arte, mas para confrontar adversários. Seu projeto de pesquisa serviria de trincheira para criticar seus adversários políticos e intelectuais dentro e fora da universidade.

Em segundo lugar, cumpre examinar as consequências do propósito de revitalizar a “velha ciência política” de matriz filosófica franco-alemã, que a “nova ciência política” de matriz estadunidense pretendia aposentar. Gildo estava comprometido com uma vertente específica da velha ciência política, que era a da história filosófica das ideias pelo método marxista de Lukács, Lucien Goldmann e Michel Löwy. Em obras como Goldmann ou a dialética da totalidade (2008 [1973]) e As aventuras do Barão de Munchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento (1987), Löwy (1987LÖWY, Michael. 1987. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Busca Vida.) recorre à dialética marxista para fazer uma crítica epistemológica ao “relativismo” de Mannheim (1959MANNHEIM, Karl. 1959. “Conservative Thought”. In: Essays on Sociology and Social Psychology. Londres: Routledge & Kegan Paul.)9 9 A metodologia de Gildo Marçal contava com alguns elementos residuais de Karl Mannheim, naquilo que se entendia das linhagens como “estilos de pensamento” (Mannheim, 1959). As diferenças entre Marx e Mannheim convivem com uma proximidade: a influência das práticas sociais nos conceitos e ideias. Tanto a sociologia do conhecimento quanto o marxismo reivindicam a relação entre as ideias e o contexto social da sua produção. Se as duas perspectivas teóricas constroem conceitos diversos de classe social, ambas, por outro lado, comungam da importância da trajetória social dos portadores para melhor compreender suas ideias. A diferença fundamental, todavia, está na possibilidade de ultrapassar as condições de produção da análise, algo bem mais difícil nessa tradição marxista do que na sociologia do conhecimento. Tais diferenças tornam a adesão de Gildo à Mannheim bastante limitada. . Em matéria de história das ideias, esta é uma abordagem que não traz somente bônus. Traz também ônus que sobrepesaram no projeto de Gildo, decorrentes do “vírus hegeliano” de que se dizia inoculado e, em especial, da filosofia da história que o atraía. O aspecto mais problemático do marxismo hegeliano é, sem dúvida, o risco do eurocentrismo, de que Linhagens não escapou. Embora Gildo acreditasse que o Brasil se encontrava perifericamente vinculado à ordem capitalista global, nem por isso ele deixava de defender a existência de uma teoria política “universal” elaborada na Europa e nos Estados Unidos, cuja qualidade poderia ser aquilatada por categorias como “originalidade”. Ele pensava a teoria política à maneira da história da filosofia: uma disciplina encarregada de estudar um cânone de autores ou obras “clássicas”, representativo da evolução histórica do pensamento humano.

Em outras palavras, havia uma condição periférica, mas não uma teoria periférica. Era urgente fazer teoria “a partir do Sul”, mas não havia “teoria do sul”. Gildo não discrepava nesse ponto da perspectiva de inserção subalterna da cultura brasileira no mundo, típica dos uspianos da década de 1950, como Cruz Costa e Antonio Candido (Lynch, 2013bLYNCH, Christian Edward Cyril. 2013b. Por que pensamento e não teoria?: a imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1870-1970). Dados, v. 56, nº4, pp. 727-767. DOI: 10.1590/S0011-52582013000400001.
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). Parafraseando este último, pode-se dizer que o pensamento político brasileiro era, para Gildo, “um ramo de um arbusto de segunda ordem no jardim das musas” (Candido, 2008CANDIDO, Antônio. 2008. Formação da Literatura Brasileira. 10. ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras., p. 11). A disputa que ele queria estabelecer com os países cêntricos não passava pela dissolução das categorias etnocêntricas que faziam dos Estados Unidos e da Europa lugares privilegiados da produção da “filosofia universal”, nem pela compreensão das particularidades do pensamento brasileiro como decorrentes - pelo menos em parte - do etnocentrismo de seus próprios produtores. Gildo acreditava, ao contrário, que a teoria política brasileira superaria sua condição periférica quando seus pesquisadores elaborassem interpretações originais dos “clássicos da política”, tomando-os como chave para a compreensão das questões contemporâneas.

O estudo do político brasileiro tinha pouco valor para a “história universal”. Ele servia para fins mais pragmáticos de desvendar a lógica da sua cultura política e denunciar o caráter ideológico dos liberais e conservadores. É certo que ele acreditava na possibilidade de “mestres na periferia do capitalismo”, mas eram raras exceções que, em todo o caso, ainda se encontravam distantes da potência teórica dos clássicos “universais”. Tal perspectiva não excluía a hierarquização entre as tradições intelectuais cêntricas e periféricas. Nenhum dos decantados “mestres da periferia”, como Machado de Assis ou Celso Furtado, merece a qualificação primária de “pensador político”. O visconde de Uruguai, Tavares Bastos, Joaquim Nabuco, Oliveira Vianna, Alberto Torres e Rui Barbosa não poderiam ser considerados “mestres”, porque não ultrapassarem as raias da ideologia.

O projeto de Gildo também partia do pressuposto de que as poucas obras dos “grandes gênios” poderiam dar conta da complexidade ideológica da sociedade. Embora subalterno em relação à galeria dos “clássicos da política” (Tocqueville, Hobbes, Marx etc.), o pensamento brasileiro também é concebido hegelianamente como uma galeria de grandes autores ou obras, os famosos “intérpretes do Brasil”, que mereceriam o estatuto de “clássicos” locais. Apesar da inegável necessidade de retornar às obras de grande impacto, é necessário questionar os modos de produção dos cânones, assim como as influências internas e externas à academia a eles subjacentes. O excesso de atenção aos mesmos autores e obras naturaliza a ausência de outros que foram esquecidos. Para perceber as limitações relativas ao estatuto dos “clássicos”, Gildo não precisaria recorrer ao contextualismo linguístico. Ele as encontraria nas Teses sobre o conceito de História (1987 [1940]) de Walter Benjamin, relativas às narrativas hegemônicas e à importância de olhar para o não dito. O projeto Linhagens também não considerou o fato de que, devido ao subdesenvolvimento da área de estudos do pensamento brasileiro, seu panteão de “clássicos” no fundo coincidia com os poucos autores já estudados à época em que foi concebido. Só faz sentido atribuir a condição de pai fundador do idealismo orgânico ao visconde de Uruguai, e o do idealismo constitucional, a Tavares Bastos, se ainda não se conheceram ou estudaram autores como Azeredo Coutinho, Bernardo de Vasconcelos, o visconde de Cairu ou Evaristo da Veiga. As consequências negativas dessa escolha ficam claras quando Linhagens é pensado como projeto de pesquisa de mais largo fôlego. Na prática, a pesquisa acabou frequentemente reduzida ao estudo de um punhado de “intérpretes do Brasil” e à tarefa de enquadrá-los nesta ou naquela linhagem.

O último risco, por fim, é o presentismo, perspectiva preocupada em extrair do passado apenas o que é considerado útil para a ação do dia. Apesar dos inegáveis vínculos entre toda produção intelectual e o seu contexto, os fins pragmáticos de intervenção no presente não devem ser de tal monta que reduzam a interpretação histórica a um esquema maniqueísta, como por vezes as passagens dos textos de Gildo podem sugerir. Diga-se em sua honra que o anacronismo pragmático era um risco que ele assumia, já que seu principal propósito era o de mobilizar o conhecimento do passado para se municiar de argumentos para a luta do presente. Embora o propósito da mobilização do passado pelo presente para fins de progresso social seja importante, não há como evitar pensar se estamos lendo de fato o Visconde do Uruguai, mesmo que a partir das condições do presente, ou se o reduzimos à condição de avô de Golbery do Couto e Silva. Na medida em que elimina do passado aquilo que é diferente para focalizar apenas o que parece semelhante com o presente, o analista pode transformar o passado em um presente embrionário. A suposição de que passado não guardaria igual complexidade acarreta consigo outra, mais implícita: a de que o presente também não a teria. Em outras palavras, a filosofia da história que quer reduzir a complexidade da história ao que considera essencial acaba funcionando também como um redutor de complexidade analítica. O resultado é quase sempre o empobrecimento da análise dos textos estudados, que ficam subordinados à função de servirem para demonstrar o caráter supostamente teleológico do pensamento humano e se prestarem de cavalo de batalha contra adversários atuais.

O método escolhido por Gildo para a análise das linguagens propriamente ditas do pensamento político brasileiro também era limitado. De início, ele propunha uma nova tipologia das linhagens que, pelo menos formalmente, rompia com as dicotomias das interpretações anteriores. Ao adicionar, como autônomas, as linhagens radical de classe média e marxista de matriz comunista, ele adicionava duas perspectivas ausentes nos mapeamentos de Wanderley Guilherme e de Bolívar Lamounier. A primeira era a do comunismo democrático, identificada com Marco Aurélio Nogueira, Luiz Werneck Vianna, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e o próprio Gildo como militante. A segunda era a academia representada na FFLCH, a que ele passara a pertencer como docente, e à constelação de intelectuais por ele admirados na juventude: Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Antonio Candido e Roberto Schwarz, Lourival Gomes Machado e Francisco Weffort. A opção por um projeto “puro sangue” fazia sentido para quem, como Gildo, pretendia defender uma tradição percebida como ameaçada. Porém, do ponto de vista mais estritamente acadêmico, ela aprisionou as duas linhagens em um “provincialismo” que ignorava, porque naturalizava, a especificidade da cultura política de São Paulo no conjunto da federação. Devido à sua posição excêntrica em relação ao centro do poder - o Rio de Janeiro -, a identidade política paulista se construiu, desde o fim do século XIX, em tensão com um Estado cujo nacionalismo centralista era identificado como um herdeiro autoritário e atrasado da colonização ibérica. Daí porque São Paulo se tornou o principal bastião ideológico do cosmopolitismo - quase sempre sinônimo de americanismo -, que trazia a defesa do federalismo e do liberalismo para salvaguardar a autonomia da província contra a intervenção do alto.10 10 Essa posição paradoxal de centralidade econômica e excentricidade política explica por que obras de autores como Alberto Torres e Oliveira Vianna, que no Rio de Janeiro foram absorvidos pela esquerda nacionalista, ficaram malvistos em São Paulo. É que o socialismo paulista herdou as características cosmopolitas da cultura liberal preexistente, que associava o nacionalismo e o estatismo à centralização e, por conseguinte, ao autoritarismo ou fascismo. A mentalidade hegemônica da FFLCH sempre refletiu fielmente a cultura política paulista, oscilando entre o liberalismo e o socialismo, mas sempre refugando o nacionalismo.

O projeto Linhagens estava comprometido com esse caldo de cultura próprio da “província” paulista. Ao reduzir a interpretação da linhagem do “idealismo orgânico” à expressão de um conservadorismo autoritário, Gildo não compreendeu o fenômeno do nacionalismo e sua especificidade na periferia latino-americana. O assunto sequer é tangenciado em Linhagens. A percepção de uma sociedade fragilizada e atrasada tornou a parte mais importante desse conservadorismo menos retrógrado do que o europeu e aberto a ideologias anfíbias como o absolutismo ilustrado e o positivismo. Também o socialismo tendeu a priorizar na região a luta contra o imperialismo e admitir alianças com uma burguesia julgada incipiente, postergando a questão da luta de classes. O elemento nacionalista do comunismo do PCB, criticado pelos eurocomunistas como stalinista ou positivista, explica-se pela percepção da condição periférica brasileira nas décadas posteriores à fundação do partido e a semelhança de condições entre o Brasil e a Rússia.11 11 As explicações fornecidas por historiadores marxistas como Armando Boito e João Quartim de Moraes são mais persuasivas ao vincular o comunismo prestista menos ao stalinismo que pelo positivismo militar. Foi a incompreensão da especificidade do nacionalismo periférico que levou a tipologia de Gildo a fracassar no enquadramento da esquerda nacionalista, vista à maneira de Weffort (1978WEFFORT, Francisco. 1978. O populismo na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra .) como um amálgama equivocado, porque inassimilável, de conservadorismo e socialismo.

Outro aspecto a se destacar da interpretação de Gildo Marçal Brandão é que, malgrado seu desejo aparente de se diferenciar, seu projeto de pesquisa apresentava evidentes pontos de continuidade em relação àqueles de Wanderley Guilherme e Bolívar Lamounier (Lynch, 2013aLYNCH, Christian Edward Cyril. 2013a. The institutionalization of brazilian political thought in the social sciences: Wanderley Guilherme dos Santos’ research revisited (1963-1978). Bras. Political Sci. Rev [online], v. 7, n. 3, pp. 36-60. Disponível em: Disponível em: https://bityli.com/OUW2I . Acesso em: 16 ago. 2021.
https://bityli.com/OUW2I...
; Lynch e Cassimiro, 2018LYNCH, Christian Edward Cyril; CASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. 2018. Freedom through form: Bolívar Lamounier and the liberal Interpretation of brazilian political thought. Bras. Political Sci. Rev [online], v. 12, n. 2, e0002. DOI: 10.1590/1981-3821201800020002
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). Como eles, Gildo também era um intelectual público que desejava examinar o passado intelectual para elucidar problemas contemporâneos. Era nessa perspectiva que a “problemática das ideias - das teorias e dos intelectuais” se achava no seu horizonte de ação:

Como muita gente de origem marxista, eu queria entender como em um país de capitalismo tardio ou hipertardio, produto da expansão do espírito ocidental, foi gerada uma cultura, modos de ver o mundo e de agir em consonância, e qual teria sido ou era o papel das ideias e dos intelectuais na configuração dessa experiência. (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., pp. 72-73)

Nada mais natural que, uma vez na universidade como professor de teoria política, Gildo pretendesse “usar a história das ideias que os brasileiros pensaram ou aclimataram como via de acesso para compreender a sociedade que construíram” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 72). Sua interpretação estava em diálogo direto e flagrante com a de seus antecessores, visto que também mapeava as tradições, animado pelo propósito de guardar a memória e conferir dignidade intelectual à linhagem a que ele pertencia. Sua ambição passava abertamente por resgatar e pôr em relevo “a história da esquerda” no Brasil, entendida como o marxismo do PCB e o radicalismo da FFLCH (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 71). Correto na hipótese de que as interpretações anteriores representavam a racionalização acadêmica das tradições nacionalista e liberal, Gildo fez o mesmo em relação ao socialismo marxista, ameaçado de submergir e, com ele, o tipo de artesanato teórico-intelectual a ele vinculado na academia paulista.12 12 Vê-se aqui também paralelo com a pesquisa de Wanderley Guilherme dos Santos, que começou pretendendo conhecer as raízes do desenvolvimentismo progressista do ISEB em uma época em que, já extinto, o autoritarismo militar e a USP o criticavam fortemente. Essa valorização do “autoritarismo instrumental” de autores como Oliveira Vianna, encarado como uma espécie de pai do desenvolvimentismo trabalhista, levaria o liberal Bolívar Lamounier a criticar Wanderley e a colocá-lo no mesmo saco indistinto do autoritarismo que, ao seu juízo, desde a década de 1920 sacrificava a liberdade política e civil do Brasil. Para Bolívar, era o liberalismo de Rui Barbosa que precisava ser resgatado da pecha de doutrinário ou formalista que os nacionalistas lhe haviam assacado (Lynch e Cassimiro, 2018). Afinal, o destino do marxismo no Brasil” sempre havia sido sua mais absorvente preocupação intelectual (Brandão, 2010mBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010m. Prefácio de Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 285).

Contra a indiferença de Wanderley e a hostilidade de Bolívar, Gildo acabou incorrendo na tendência oposta de desprezar o trabalhismo e exagerar a importância do comunismo na vida brasileira. Elevou Luís Carlos Prestes à condição de “personalidade política mais marcante da história brasileira no período, à exceção de Vargas” (Brandão, 2010dBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010d. O significado do “prestismo” na vida política brasileira. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 166); menosprezou o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em benefício do PCB, que disporia “de liderança, melhor organização e maiores vínculos com o movimento dos trabalhadores que os seus competidores” (Brandão, 2010nBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010n. A ilegalidade mata: o Partido Comunista e o sistema partidário (1945-1964). In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 172), e afirmou que teria sido a Igreja Católica “a única corrente que criou cultura, quadros, estilos de fazer política alternativos ao PCB” (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 71). Também acreditava piamente que sem o comunismo os operários não teriam capacidade de se organizar (Brandão, 2010nBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010n. A ilegalidade mata: o Partido Comunista e o sistema partidário (1945-1964). In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p.184). A intenção de desqualificar as linhagens adversárias - o idealismo orgânico e o idealismo constitucional - como irrealistas também superou frequentemente seu desejo de evitar correlações automáticas entre as ideologias universais e as linhagens do pensamento brasileiro. Em várias passagens de seus escritos o idealismo orgânico aparece equiparado ao conservadorismo da aristocracia; o idealismo constitucional, ao liberalismo da burguesia e de parte das classes médias; e o radicalismo, aos interesses da classe média mais progressista. Comprometido com o ponto de vista da classe trabalhadora, o marxismo se encontrava numa posição eminente que permitia ao investigador compreender a luta ideológica de modo objetivo ao mesmo tempo e comprometido com a mudança social. Por isso, acabava também frustrada a expectativa de que a tipologia quadripartite de Linhagens fugisse da dicotomia entre “idealistas” e “realistas” que prejudicaria as interpretações anteriores, nas quais cada estudioso puxava a brasa para a sua sardinha. Na prática, permanecia uma oposição binária entre pensamento elitista ou antipopular, idealismo orgânico e constitucional, e pensamento democrático ou popular, radicalismo de classe média e marxismo de matriz comunista. Aquelas, idealistas ou ideológicas. Estas, realistas ou objetivas na tarefa de descrever a “realidade brasileira” (Lynch, 2021LYNCH, Christian Edward Cyril. 2021. Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro: três modelos de história intelectual. Revista Brasileira de Ciência Política [online]. 2021, n. 34, e237103. DOI: 10.1590/0103-3352.2021.34.237103.
https://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.3...
).

Considerações finais

A análise da interpretação marxista de Gildo Marçal Brandão sobre o pensamento político brasileiro não pode ser concluída sem chamar a atenção para o fator que em larga medida explica as insuficiências acima apontadas: o texto-base de sua pesquisa, Linhagens do pensamento político brasileiro, nunca pretendeu ser o texto de um ponto de chegada, mas de partida.13 13 Para além de sua tese de doutorado sobre o marxismo comunista do Partidão, as publicações de Gildo sobre o pensamento brasileiro se limitavam, no essencial, a dois artigos: um sobre Oliveiros Ferreira, seu colega de departamento na USP, e outro sobre um livro de Oliveira Viana, Populações Meridionais do Brasil. Era um brilhante balão de ensaio sobre a natureza do pensamento político brasileiro, com algumas hipóteses gerais e outras mais específicas, elaborado a partir do exame crítico das interpretações anteriores de Wanderley Guilherme e Bolívar Lamounier, em diálogo com a velha tradição uspiana e/ou com seus antigos companheiros do comunismo democrático. Então, era quase inevitável que, como ponto de partida, Gildo adaptasse as descrições deixadas pelos outros intérpretes para descrever suas próprias linhagens intelectuais. Assim, a caracterização do “idealismo orgânico” era, no fundamental, aquela feita por Wanderley a respeito do “autoritarismo instrumental”; da mesma forma, a do “idealismo constitucional” reproduzia largamente aquela formulada por Bolívar acerca da “ideologia de mercado”. O radicalismo de classe média era, por fim, uma adaptação das formulações de Antonio Cândido. A pesquisa propriamente dita estava por ser realizada e, com a morte inesperada de seu autor, às vésperas da titularidade, poucos dos propósitos anunciados puderam ser alcançados. “Abatido em pleno voo”, nas palavras de um colega e amigo, colhido inesperadamente pela morte, o scholar alagoano não teve tempo de fazer a pesquisa avançar, incorporar críticas e testar e reformular suas hipóteses originais, como, aliás, já vinha fazendo.14 14 Gildo reformulava as hipóteses originais da pesquisa à época do seminário interno realizado em novembro de 2009. A morte o surpreenderia três meses depois, quando preparava sua tese de titularidade. Nem por isso sua contribuição deixou de se revelar duradoura. Gildo Marçal Brandão soube ensinar pelo exemplo de intelectual abnegado, que acreditava no que fazia e em uma comunidade científica reunida por um espírito de colaboração, amizade e boa-fé. Em um mundo ideologicamente transtornado e intolerante como o atual, seu exemplo de liderança marcada pela tolerância e generosidade permanece vivo e inspirador.

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  • WEFFORT, Francisco. 1978. O populismo na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra .
  • 1
    A importância do método crítico de investigação encontrava guarida no PCB, mas ecoava de forma diversa na USP. Sob a liderança de José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso e Fernando Novais, o grupo do Capital se estabeleceu contra a burocratização do marxismo pelo partido e adotou uma perspectiva crítica do nacional-desenvolvimentismo. Florestan Fernandes também conferia grande centralidade às disputas em torno do método. Toda essa herança seria relevante para os caminhos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e o CEDEC. Mesmo respeitoso dessa tradição, a reivindicação por Gildo do tema do desenvolvimento e o elogio de figuras como Celso Furtado revelavam sua intenção de ter voz própria (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores.).
  • 2
    A totalidade ocupava papel de destaque em História e Consciência de Classe, obra posteriormente reformulada em Ontologia do Ser Social. Sobre as trajetórias do conceito de totalidade em Lukács, ver Jay, 1984JAY, Martin. 1984. Marxism and totality: the adventures of a concept from Lukács to Habermas. Cambridge: Polity Press.; Nobre, 2001NOBRE, Marcos. 2001. Lukács e os limites da reificação: um estudo sobre História e consciência de classe. São Paulo: Editora 34.; Mészáros, 2013MÉSZÁROS, Istvan. 2013. Para além do capital. São Paulo: Boitempo..
  • 3
    Gildo frequentemente alude a Candido como autoridade, endossando sua célebre (e muito discutível) tese segundo a qual Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Junior teriam sido os “três pais fundadores da moderna ciência social brasileira” (Brandão, 2010mBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010m. Prefácio de Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p.282).
  • 4
    O PT reunia desde parte das esquerdas comunistas até católicos progressistas - todos insatisfeitos com os caminhos do PCB. Nascido de fortes críticas à tradição nacional-desenvolvimentista, anos depois o PT a abraçaria ao longo das disputas com o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e em razão do grande sucesso eleitoral do partido, que exigia uma linguagem mais “nacional” para se difundir de forma mais sólida país afora (Lynch, Chaloub, 2018LYNCH, Christian Edward Cyril; CASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. 2018. Freedom through form: Bolívar Lamounier and the liberal Interpretation of brazilian political thought. Bras. Political Sci. Rev [online], v. 12, n. 2, e0002. DOI: 10.1590/1981-3821201800020002
    https://doi.org/10.1590/1981-38212018000...
    ).
  • 5
    Gildo rejeita a perspectiva de Florestan em sua fase positivista, quando aplicava o método “institucional” de análise da produção nacional. Em nota de rodapé, faz o elogio a Wanderley Guilherme dos Santos: ele teria sido o primeiro e o mais enérgico opositor da ideia de fazer da divisão acadêmica do trabalho intelectual critério de verdade, legitimando o estudo da história das ideias e consagrando a expressão “pensamento político-social brasileiro” que, para Gildo, “a rigor seria mais adequada para caracterizar a natureza da reflexão” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 25).
  • 6
    No texto de Linhagens, ele voltará à carga: “O conservantismo parece ter sido capaz de plasmar formações intelectuais, como a dos saquaremas no Império ou a do pensamento autoritário dos anos 1930, enquanto algumas das melhores leituras liberais parecem façanhas de personagens brilhantes isoladas” (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 65).
  • 7
    Possivelmente, Gildo incluía Gilberto Freyre nessa linhagem. Ao recordar sua mocidade em Pernambuco, sublinhava que, fora da universidade, reinava absoluto o Instituto Joaquim Nabuco, “empresa patrimonialista e familiar, que se beneficiava dos serviços do seu chefe ao regime militar e aglutinava a açucarocracia política e intelectual. Reduto do inimigo, nada tinha a ver com o nosso mundo” (Brandão, 2010bBRANDÃO, Gildo Marçal. 2010b. Memorial. In: COELHO, Simone de Castro Tavares (org.). Gildo Marçal Brandão: itinerários intelectuais. São Paulo: Hucitec; Fapesp., p. 30).
  • 8
    Além de ter feito a autocrítica do velho Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), Guerreiro Ramos teria dado “dois ou três passos além” ao formular em outras bases o tema do formalismo (Brandão, 2007BRANDÃO, Gildo Marçal. 2007. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores., p. 149).
  • 9
    A metodologia de Gildo Marçal contava com alguns elementos residuais de Karl Mannheim, naquilo que se entendia das linhagens como “estilos de pensamento” (Mannheim, 1959MANNHEIM, Karl. 1959. “Conservative Thought”. In: Essays on Sociology and Social Psychology. Londres: Routledge & Kegan Paul.). As diferenças entre Marx e Mannheim convivem com uma proximidade: a influência das práticas sociais nos conceitos e ideias. Tanto a sociologia do conhecimento quanto o marxismo reivindicam a relação entre as ideias e o contexto social da sua produção. Se as duas perspectivas teóricas constroem conceitos diversos de classe social, ambas, por outro lado, comungam da importância da trajetória social dos portadores para melhor compreender suas ideias. A diferença fundamental, todavia, está na possibilidade de ultrapassar as condições de produção da análise, algo bem mais difícil nessa tradição marxista do que na sociologia do conhecimento. Tais diferenças tornam a adesão de Gildo à Mannheim bastante limitada.
  • 10
    Essa posição paradoxal de centralidade econômica e excentricidade política explica por que obras de autores como Alberto Torres e Oliveira Vianna, que no Rio de Janeiro foram absorvidos pela esquerda nacionalista, ficaram malvistos em São Paulo. É que o socialismo paulista herdou as características cosmopolitas da cultura liberal preexistente, que associava o nacionalismo e o estatismo à centralização e, por conseguinte, ao autoritarismo ou fascismo.
  • 11
    As explicações fornecidas por historiadores marxistas como Armando Boito e João Quartim de Moraes são mais persuasivas ao vincular o comunismo prestista menos ao stalinismo que pelo positivismo militar.
  • 12
    Vê-se aqui também paralelo com a pesquisa de Wanderley Guilherme dos Santos, que começou pretendendo conhecer as raízes do desenvolvimentismo progressista do ISEB em uma época em que, já extinto, o autoritarismo militar e a USP o criticavam fortemente. Essa valorização do “autoritarismo instrumental” de autores como Oliveira Vianna, encarado como uma espécie de pai do desenvolvimentismo trabalhista, levaria o liberal Bolívar Lamounier a criticar Wanderley e a colocá-lo no mesmo saco indistinto do autoritarismo que, ao seu juízo, desde a década de 1920 sacrificava a liberdade política e civil do Brasil. Para Bolívar, era o liberalismo de Rui Barbosa que precisava ser resgatado da pecha de doutrinário ou formalista que os nacionalistas lhe haviam assacado (Lynch e Cassimiro, 2018LYNCH, Christian Edward Cyril; CASSIMIRO, Paulo Henrique Paschoeto. 2018. Freedom through form: Bolívar Lamounier and the liberal Interpretation of brazilian political thought. Bras. Political Sci. Rev [online], v. 12, n. 2, e0002. DOI: 10.1590/1981-3821201800020002
    https://doi.org/10.1590/1981-38212018000...
    ).
  • 13
    Para além de sua tese de doutorado sobre o marxismo comunista do Partidão, as publicações de Gildo sobre o pensamento brasileiro se limitavam, no essencial, a dois artigos: um sobre Oliveiros Ferreira, seu colega de departamento na USP, e outro sobre um livro de Oliveira Viana, Populações Meridionais do Brasil.
  • 14
    Gildo reformulava as hipóteses originais da pesquisa à época do seminário interno realizado em novembro de 2009. A morte o surpreenderia três meses depois, quando preparava sua tese de titularidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Ago 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2019
  • Aceito
    18 Ago 2021
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