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POSSÍVEIS OLHARES PARA A RELAÇÃO LINGUAGEM E(M) TRABALHO NA ATIVIDADE DE REVISÃO TEXTUAL

Possible Perspectives on the Relationship between Language and Work in the Text Review Activity

Posibles enfoques para la Relación entre lenguaje y trabajo en la actividad de revisión textual

Resumo

Este trabalho tem por objetivo principal analisar aspectos da dimensão axiológica emergentes no desenvolvimento da atividade de revisão de textos durante o trabalho de uma revisora na tese de sua cliente, a partir da análise de enunciados trocados via e-mail entre os sujeitos que foram investigados. Subsidiam as reflexões apresentadas os princípios epistemológicos da análise dialógica do discurso e da abordagem ergológica para tratar da atividade de trabalho do revisor. Assim, o artigo investiga de que modo as relações intersubjetivas se organizam e desenvolve reflexões que permitem mostrar a (in)tensa negociação de sentidos estabelecida na e por meio da linguagem, com a mobilização de vozes sociais em um processo recheado de valores e múltiplos tons axiológicos.

Palavras-chave:
Revisão de textos; Análise dialógica do discurso; Abordagem ergológica do trabalho

Abstract

This work has as main objective to analyze axiological dimensions emerging in the development of the text review activity during the work of a reviewer in the thesis of her client, based on the analysis of discourses exchanged via e-mail between the subjects that were investigated. The reflections presented support the epistemological principles of the dialogical analysis of the discourse on language and the ergological approach to deal with the reviewer's work activity. Thus, we investigated how intersubjective relationships are organized and developed reflections that allowed us to show the (in) tense negotiations of meanings established in and through language, which mobilize social voices in a process full of values ​​and multiple axiological tones.

Keywords:
Textual Review; Dialogical Discourse Analysis; Ergological Approach to Work

Resumen

El objetivo principal de este trabajo es analizar aspectos de la dimensión axiológica emergente en el desarrollo de la actividad de revisión de textos durante el trabajo de una revisora en la tesis de su cliente, a través del análisis de enunciados intercambiados por correo electrónico entre los sujetos investigados. Para respaldar las reflexiones presentadas, se utilizan los principios epistemológicos del análisis dialógico del discurso y del enfoque ergológico para abordar la actividad laboral del revisor. De esta manera, el artículo investiga cómo se organizan las relaciones intersubjetivas y desarrolla reflexiones que permiten mostrar la (in)tensa negociación de significados establecida en y a través del lenguaje, con la movilización de voces sociales en un proceso lleno de valores y múltiples tonos axiológicos.

Palabras clave:
Revisión de textos; Análisis dialógico del discurso; Enfoque ergológico del trabajo

INTRODUÇÃO

Debruçar-se sobre variadas situações comunicativas e atividades em diferentes esferas sociais com vistas a melhor compreender de que modo se instauram os processos de construção e estabilização dos sentidos é uma tarefa recorrente no trabalho dos linguistas, principalmente daqueles que, como nós, ancoram-se em estudos discursivos da linguagem. Partindo de princípios epistemológicos postulados por Mikhail Bakhtin e outros autores do Círculo, como Volóchinov e Medviédev, desenvolvemos nossos trabalhos a partir de constructos da análise/teoria dialógica do discurso - ADD (BRAIT, 2010BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 9-31.).

Sob essa perspectiva, investigamos, dentre outros elementos, palavras tomadas enquanto signos ideológicos (VOLÓCHINOV [1929] 2018), colocadas em relação nos enunciados produzidos em situações concretas da comunicação por sujeitos sócio-historicamente situados em diferentes esferas da atividade humana. Além disso, para tratar de nosso objeto de pesquisa, o trabalho do revisor de textos1 1 Desde nossa pesquisa de mestrado desenvolvida em 2012, temos investigado a atividade de revisão de textos realizada em gêneros acadêmicos (BARBOSA, 2012; 2017). , estabelecemos também um diálogo com a abordagem ergológica (SCHWARTZ, 2010SCHWARTZ, Y. Trabalho e ergologia. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, Y. (Org.). Trabalho & ergologia: conversas sobre a atividade humana. Trad. de Milton Athayde et al. 2. ed. Niterói: UFF, 2010. p. 131-188.) da atividade de trabalho, uma perspectiva pluridisciplinar que se debruça sobre práticas laborais a fim de melhor compreender sua complexidade constitutiva. Nas palavras do professor e filósofo Yves Schwartz (2016SCHWARTZ, Y. Uma entrevista com Yves Schwartz. Revista Letrônica, Porto Alegre: Edipucrs, v. 9, n. especial, 2016. p. 222-233,., p. 231), a ergologia deve ser considerada como uma abordagem “[...] que requer outras, todas outras disciplinas, notadamente as das Ciências Humanas, sempre em uma situação de discussão com elas às vezes de crítica, numa dimensão de uso e de polêmica com essas disciplinas”.

Assim, ao inter-relacionarmos pressupostos que nos permitem abordar linguagem e(m) trabalho, temos por objetivo, neste artigo, analisar aspectos da dimensão axiológica emergentes no desenvolvimento da atividade de revisão textual quanto à compreensão e avaliação dessa atividade sob os olhares de uma profissional da revisão de textos e sua cliente (uma doutoranda), a partir de enunciados trocados entre elas durante a revisão de uma tese. Para tanto, consideramos trocas linguageiras estabelecidas via e-mail entre esses dois sujeitos mencionados, que ocorreram em diferentes momentos da realização do trabalho de revisão textual: uma durante seu desenvolvimento e outra na conclusão da atividade.

Isso nos permitiu refletir sobre facetas comumente silenciadas no fazer do revisor de textos, tendo em vista que uma das características desse trabalho é atuar de modo bastante isolado, o que faz com que, na grande maioria das vezes, apenas o contratante e o profissional saibam quando e de que maneira a atividade acontece. Em consequência, poucas são as pesquisas que conseguem acesso a materiais como o nosso2 2 As trocas interlocutivas presentes na análise foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) em agosto de 2016, com o número CAAE 58857716.9.0000.5336. , que permitem investigar os discursos emergentes do e no trabalho dessa prática tão complexa, sobre a qual alguns estudos discorrem, mas raros são os que mostram-na em realização, com vistas a melhor compreender aspectos da dimensão valorativa emergentes nesse fazer laboral. Além disso, conforme destaca Di Fanti (2012, p. 311), “a contribuição de linguistas em pesquisas que têm como objeto de estudo a atividade humana de trabalho, tradicionalmente investigada por outros domínios de conhecimento [...] ainda tem sido pouco reconhecida”. Tais aspectos salientam, portanto, a relevância deste estudo para o âmbito dos estudos discursivos da linguagem e ergológicos do trabalho, tal como se poderá observar no decorrer deste trabalho.

Sendo assim, este texto está estruturado (além desta seção, das considerações finais e das referências que encerram a escrita) em três seções principais: duas que versam sobre os conceitos-chave mobilizados, advindos, respectivamente, da análise dialógica do discurso e da perspectiva ergológica do trabalho e, após, a maior parte do artigo concentra-se na análise do material. A escolha dessa distribuição se dá, em primeiro lugar, por defendermos que a maneira particular do pesquisador em apreender o objeto desvela-se, de fato, na análise dos dados, quando os conceitos são mobilizados, deixando que “[...] os discursos revelem sua forma de produzir sentido, a partir de um ponto de vista dialógico, num embate” (BRAIT, 2010BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 9-31., p. 24). E, em segundo lugar, devido à compreensão de que a particularidade de nosso material necessita ser compartilhada no meio acadêmico, já que, como dissemos, ainda são poucas as pesquisas que têm acesso a conversas entre revisores e autores de materiais revisados e, com isso, podem ter um melhor entendimento de aspectos advindos de situações concretas de interação que compõem esse fazer.

2 A COMPREENSÃO DA LINGUAGEM PELO VIÉS DISCURSIVO DA ADD: ALGUNS CONCEITOS-CHAVE

Na ADD, a palavra é considerada “o fenômeno ideológico par excellence” (VOLÓCHINOV, [1929] 2018, p. 98, grifo do autor) que, ao lado dos fenômenos naturais, dos produtos tecnológicos e de consumo, constitui o universo dos signos ideológicos. Uma de suas principais particularidades, em relação a esses outros, está no fato de que a palavra não significa apenas em si, mas remete a uma realidade exterior. Segundo Medviédev, “[...] os instrumentos de produção [tomados de maneira isolada] não têm qualquer caráter semiótico, eles não expressam e nem refletem nada, eles têm apenas finalidade externa e a organização técnica de seu corpo físico adaptada à sua finalidade” (MEDVIÉDEV, [1928] 2012, p. 51). Mas, ao passarem para o âmbito dos signos ideológicos, os objetos e instrumentos do mundo, assim como os sinais linguísticos, passam a “[...] refratar e a refletir outra realidade” (VOLÓCHINOV, [1929] 2018, p. 92), o que significa que não mais se referem apenas a uma realidade interna a seu existir, mas também a outra que lhes é exterior.

Nessa perspectiva, encontram-se em uma combinação orgânica nos signos ideológicos reflexos de valores sócio-historicamente reiteráveis pela significação compartilhada na memória discursiva dos sujeitos, ao mesmo tempo que refratam uma multiplicidade de sentidos ligados aos diferentes acentos valorativos que emergem na particularidade das enunciações. O signo, sob esse viés, carrega em si a possibilidade de não só absorver aspectos de dada realidade, mas também de complementá-la, alterá-la, modificá-la, de dar-lhe diferentes tonalidades, a depender, dentre outros fatores, dos valores que compartilha e das relações que estabelece com outros signos da cadeia discursiva que engendra.

A unidade de análise real da língua, nessa compreensão, é o enunciado, e “[...] todo trabalho de investigação de um material linguístico concreto [...] opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais) relacionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicação” (BAKHTIN, [1952] 2016, p. 16). Para os autores, a preocupação em trabalhar com enunciados - isto é, com as “unidades reais do fluxo discursivo” (VOLÓCHINOV, [1929] 2018, p. 182) que evidenciam a concretude da linguagem e consideram também o(s) interlocutor(es) e a sua posição responsiva - é um problema de grande relevância para os estudos da linguagem tomados sob a perspectiva sociológica. Conforme destacam Pereira e Brait (2020PEREIRA, R. A; BRAIT, B. Revisitando o estudo/estatuto dialógico da palavra-enunciado. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 20, n. 1, jan./abr. 2020. p. 125-141., p. 135), “Para o Círculo, a palavra, como palavra-enunciado, é entendida como unidade da comunicação discursiva, necessitando ser estudada em sua concretude em situações de interação específicas”, tal como o fazemos neste trabalho, por exemplo, ao considerar em nossa análise enunciados produzidos por duas interlocutoras em situação real da comunicação.

Ainda quanto à definição do enunciado, cabe-nos dizer que ele é compreendido também como um elo na cadeia de comunicação discursiva, relacionado intimamente, de um lado, com enunciados anteriores a ele, assim como com os enunciados que lhe serão posteriores: “[...] antes de seu início, há os enunciados de outros; e, depois do seu término, os enunciados responsivos dos outros” (BAKHTIN, [1952] 2016, p. 29). E, de outro lado, não podemos desconsiderar também a íntima relação dos enunciados com os sujeitos que os mobilizam nas mais variadas situações em que se situam; afinal, “o discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir” (BAKHTIN, [1952] 2016 p. 28).

Além de pertencer a dado sujeito que desempenha o papel de Eu, o enunciado também é constituído por um Outro ao qual se direciona, que pode não ser necessariamente um destinatário real/concreto, mas alguém ou uma ideia presumido(a) pelo locutor do discurso. Há, portanto, uma intrínseca relação de alteridade que perpassa toda organização enunciativa, de onde decorre o postulado de que “o enunciado é de natureza social” (VOLÓCHINOV, [1926] 2019, p. 176), sendo até mesmo nossa consciência formada e realizada “no material sígnico criado no processo da comunicação social de uma coletividade organizada” (VOLÓCHINOV, [1929] 2018, p. 97).

Ao enunciarmos, mais do que simplesmente organizarmos palavras, mobilizamos signos ideológicos em dada situação concreta e singular da vida a serviço de nossas intenções discursivas (BAKHTIN, 1952 [2016] p. 37), e esperamos pela(s) resposta(s) de nossos interlocutores, isto é, por uma tomada de posição responsiva que, de modo mais ou menos direto, desperta uma postura compreensivo-ativa em relação a nossos dizeres, pois “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva [...] e, nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante” (BAKHTIN, 1952 [2016] p. 37). Isso faz com que o interlocutor assuma a função de locutor do discurso, mantendo ativa e ininterrupta a engrenagem dialógica que (trans)forma a linguagem.

Nessa teia dialógica de instauração de sentidos que se desenvolve, dois outros importantes elementos devem ser considerados pelo analista que busca melhor compreender as relações constituídas discursivamente por meio da produção de enunciados: a situação extraverbal e a entonação. Volóchinov ([1930] 2019, p. 117) afirma que “a palavra na vida não é autossuficiente. Ela surge da situação cotidiana extraverbal e mantém uma relação muito estreita com ela”, ou seja, além daquilo que está posto, verbalmente (ou não), nas enunciações, há sempre uma parte fundamental subentendida que influencia o(s) sentido(s) estabelecidos e, em consequência, a compreensão dos enunciados. Essa parte extraverbal que forma a situação é composta por três aspectos principais: um espaço e um tempo (onde e quando a situação ocorre), um objeto ou tema do enunciado (a respeito do que se fala) e a natureza da relação estabelecida entre os interlocutores em interação (a avaliação) (VOLÓCHINOV, [1930] 2019, p. 285). Partindo de uma postura sociológica para a linguagem, não basta, por exemplo, que tenhamos conhecimento a respeito de possíveis sentidos para alguns signos ideológicos bem como dos posicionamentos mais ou menos característicos de determinados interlocutores, se não considerarmos também a análise do contexto extraverbal em que os enunciados são gerados.

Essas informações são essenciais para o estabelecimento das possíveis leituras que desenvolvemos, independentemente de qual seja nosso objeto de pesquisa. Do mesmo modo, tal como destaca Volóchinov ([1930] 2019, p. 287), “a relação do enunciado e seu auditório (interlocutores) é criada, primeiramente, pela entonação”, entendida como “a expressão sonora da avaliação social” ([1930] 2019, p. 287) e que, dependendo de seu matiz axiológico (ironia, escárnio, elogio, crítica etc.), o tom incitado pode mudar completamente o(s) objetivo(s) bem como a compreensão dos enunciados produzidos em dada situação comunicativa.

Dessa maneira, tratar da linguagem e, em consequência, das palavras tomadas pelo viés discursivo da análise dialógica do discurso, exige a percepção de que nessa perspectiva “[...] o organismo e o mundo exterior se encontram, de forma integrada e confluente, no signo ideológico” (PEREIRA; BRAIT, 2020PEREIRA, R. A; BRAIT, B. Revisitando o estudo/estatuto dialógico da palavra-enunciado. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 20, n. 1, jan./abr. 2020. p. 125-141., p. 132) com vistas a desvelar o complexo processo de produção e circulação dos sentidos construídos linguisticamente.

3 A ATIVIDADE DE TRABALHO PELA ABORDAGEM ERGOLÓGICA

A abordagem ergológica nasceu na França, na década de 1980, a partir da inquietação de um grupo de professores universitários3 3 Este grupo, denominado Analyse Pluridisciplinaire des Situations de Travail (APST), era composto por Yves Schwartz, Daniel Faïta e Bernard Vuillon, que trabalhavam na Universidade de Provence, na França. ligados a disciplinas sobre o trabalho que buscava um conhecimento mais profundo e rigoroso do mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2006SCHWARTZ, Y. Entrevista. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, 2006, p. 457-466.). Nesse contexto, Yves Schwartz (filósofo), junto aos colegas Daniel Faïta (linguista) e Bernard Vuillon (sociólogo), contando também com a colaboração de Jacques Duraffourg (ergonomista), iniciaram atividades em um estágio de formação contínua com trabalhadores da região de Provence-Côte d’Azur, por meio de “uma microscópica experiência de trabalhar com eles sobre seu próprio trabalho” (SCHWARTZ, 2006, p. 458).

De caráter pluridisciplinar desde seu começo, a ergologia contou com três principais influências em sua constituição: i) a experiência de pesquisa-intervenção, na Fiat italiana, do médico e psicólogo italiano Ivar Oddone; ii) constructos da ergonomia da atividade, advindos principalmente de Alain Wisner; e iii) princípios filosóficos de George Canguilhem (SCHWARTZ, 2006SCHWARTZ, Y. Entrevista. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, 2006, p. 457-466., p. 459-460).

Quanto aos pressupostos de Ivar Oddone, os ergólogos se inspiraram “no conceito de ‘comunidade científica ampliada’, a qual tinha por principal objetivo aproximar, em um contexto específico, os operários da Fiat italiana, os integrantes dos sindicatos e o pessoal da universidade” (DI FANTI, 2012DI FANTI, M. G. C. Linguagem e trabalho: diálogo entre a translinguística e a ergologia. Revista Desenredo, Passo Fundo, v. 8, n. 1, 2012. p. 309-329., p. 313). Da ergonomia, veio a preocupação em ir além de uma visão mecânica da atividade para alcançar as variáveis humanas que ocupam o espaço do trabalho, permitindo que o trabalhador fosse inserido nessa reflexão como um elemento ativo e integrante do cotidiano da atividade, ao invés de um mero executor de tarefas; e dos pressupostos de Canguilhem advém a compreensão de que as normas do trabalho têm “[...] inevitavelmente um aspecto mecânico, mas só são normas pela sua relação com a polaridade axiológica da vida, da qual a humanidade é a tomada de consciência” (CANGUILHEM, 2001CANGUILHEM, G. Meio e normas do homem no trabalho. Pro-posições, Campinas, v. 12, n. 2-3 (35-36), 2001 (1947). p. 109-121., p. 121). Segundo Di Fanti (2012, p. 314), os estudos da ergologia ancoraram-se nessas reflexões “[...] para ampliar o conceito de atividade, considerando o trabalho sob a compreensão de uma atividade industriosa, que envolve sempre um debate de normas”, o que coloca em evidência a relação entre social e singular, a possibilidade de fazer escolhas e o debate de valores (SCHWARTZ, 2010SCHWARTZ, Y. Trabalho e ergologia. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, Y. (Org.). Trabalho & ergologia: conversas sobre a atividade humana. Trad. de Milton Athayde et al. 2. ed. Niterói: UFF, 2010. p. 131-188.).

Nessa perspectiva, “[...] todo sujeito, todo grupo humano no trabalho é um centro de vida, uma tentativa de apropriação do meio, e sua vida no trabalho não é uma cerca separada de sua ambição global” (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, 2011. p. 19-45., p. 28). O sujeito passa a ser considerado então como um corpo-si, um ser enigmático que, em permanente debate de normas com seu meio de vida, tenta “[...] atualizar essas normas, sempre editadas em uma relativa intemporalidade, e as personalizar, pois elas se estabilizaram fora de toda consideração de sua singularidade como ser vivo” (SCHWARTZ, 2016, p. 254, grifos do autor).

Esse corpo-si do qual trata Schwartz não é o corpo biológico somente, mas a união desse componente biológico com uma série de outros elementos constitutivos do ser humano: memória, sentimentos, emoções, entre outros, os quais, juntos, fazem parte das situações de trabalho e devem ser considerados pelo analista que se situa nessa área de conhecimento. Assim, podemos dizer, por exemplo, que o trabalho exige do ser humano um contínuo e permanente entregar-se “de corpo e alma” ao desenvolvimento de certa atividade, administrando toda uma série de conflitos e não ditos que estão diretamente envolvidos com o cotidiano do trabalhador.

Para a Ergologia, apesar de todo fazer também comportar uma parcela de invisibilidade ou penumbra, toda a atividade de trabalho é perpassada por um debate contínuo entre as normas antecedentes (as quais preexistem a toda a atividade e englobam o conhecimento das práticas diárias mais comuns bem como as teóricas) e as renormalizações (resultantes da capacidade humana de ressignificar a prática, a partir das situações concretas em que atua). Vivemos imersos nesse debate de normas, cabendo ao ator da atividade (aquele que a desenvolve) administrar esse jogo de valores, normas e saberes envolto na concretização do trabalho, saberes estes que se dão entre os investidos e os instituídos. Segundo Schwartz (2010SCHWARTZ, Y. Trabalho e ergologia. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, Y. (Org.). Trabalho & ergologia: conversas sobre a atividade humana. Trad. de Milton Athayde et al. 2. ed. Niterói: UFF, 2010. p. 131-188., p. 44), os saberes investidos dizem respeito àqueles “que ocorrem em aderência, em capilaridade com a gestão de todas as situações de trabalho, elas mesmas adquiridas nas trajetórias individuais e coletivas singulares”; e os saberes instituídos se referem aos “saberes acadêmicos, formais, que são desinvestidos, ou seja, que podem ser definidos e relacionados com outros conceitos independentemente das situações particulares” (SCHWARTZ, 2010SCHWARTZ, Y. Trabalho e ergologia. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, Y. (Org.). Trabalho & ergologia: conversas sobre a atividade humana. Trad. de Milton Athayde et al. 2. ed. Niterói: UFF, 2010. p. 131-188., p. 44).

Considerar essa complexidade característica da atividade de trabalho - que exige do profissional não só o domínio dos conteúdos específicos advindos dos conhecimentos teóricos da sua formação, mas também as experiências resultantes das práticas profissionais - permite despertar o interesse para “as dimensões de frágil visibilidade da atividade humana em geral, do trabalho em particular, que atrai a atenção sobre esses múltiplos debates que se desenvolvem dialeticamente entre micro e macro, entre o local e o global” (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, 2011. p. 19-45., p. 42).

Outro aspecto caro à Ergologia diz respeito à análise das relações entre linguagem e trabalho, a qual não é nada simples, segundo Schwartz (2010SCHWARTZ, Y. Trabalho e ergologia. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, Y. (Org.). Trabalho & ergologia: conversas sobre a atividade humana. Trad. de Milton Athayde et al. 2. ed. Niterói: UFF, 2010. p. 131-188.), e merece ser investigada por meio do diálogo com outras ciências, notadamente as advindas das ciências da linguagem, considerando que “é muito importante verbalizar sobre o trabalho para reconhecê-lo” (DI FANTI, 2012DI FANTI, M. G. C. Linguagem e trabalho: diálogo entre a translinguística e a ergologia. Revista Desenredo, Passo Fundo, v. 8, n. 1, 2012. p. 309-329., p. 322). Dar o devido valor a quem fala, de onde fala, com quem e quando fala é muito importante para que seja possível refletir sobre a atividade, visando melhorá-la, sempre que possível e necessário.

4 LINGUAGEM E(M) TRABALHO NO FAZER DO REVISOR DE TEXTOS: A DIMENSÃO AXIOLÓGICA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

Nesta seção, passamos à análise de trocas interlocutivas estabelecidas em situação de trabalho por uma revisora e sua cliente, uma doutoranda, quanto à atividade desempenhada na tese em questão. Depois de já contratado o serviço, elas discutem, nos exemplos analisados, via a troca: de quatro e-mails, com respeito a como se dá o desenvolvimento da atividade; e, em dois e-mails finais, registram como ocorre a conclusão do trabalho e a despedida entre elas. Nos enunciados analisados, a partir da mobilização de pressupostos da ADD e da Ergologia, colocamos em evidência elementos da dimensão valorativa do trabalho do revisor de textos que emergem em situações concretas de associação da linguagem em (e do) trabalho.

Desenvolvimento da Atividade

E-mail 1:

Oi, [Nome]. Tudo bem?

Envio, em anexo, os capítulos 2 e 3. Estou tão chateada por não ter conseguido te escrever antes... Peço desculpas, mas, além de ter ficado sem internet no final de semana, o trabalho na universidade tem me exigido demais. Ontem não consegui parar sequer pra te mandar o e-mail com o anexo, o que faço agora. Encaminho, então, o capítulo da metodologia, junto de meus comentários e minhas sugestões para que possa apreciá-los, ok? [Nome], fique muito à vontade para discutirmos as minhas inserções em teu texto, para discordar dos meus apontamentos e, se quiseres, até para brigar comigo, se eu merecer, hehe. Sei o quanto as questões de escrita são delicadas, então, algumas vezes, até mesmo por questões de embasamentos teóricos específicos, nós revisores também cometemos umas gafes na escrita de nossos comentários... Eu costumo brincar com os autores dos trabalhos que reviso, pedindo que eles não liguem se eu der "pitaco errado", hehehe. Bem, sinta-se à vontade para conversarmos, ok? Outra coisa que quero te dizer é que usei a ferramenta "controlador de alterações", a fim de que possas verificar todas as minhas intervenções no arquivo, certo?

Quanto às questões de espaçamento e configuração de página, queria te falar que as verificarei no final, quando tiver o arquivo único, pois, agora, não adianta ficar mexendo nisso, já que, na hora de montar o arquivo final, as configurações acabam mudando, ok?

Qualquer coisa, me escreve, tah? Prometo-te que não demorarei no retorno, como aconteceu desta vez. Se quiseres me mandar o arquivo grande, eu trabalharei nele no final de semana e, na segunda-feira, se der, já te envio.

Beijos e bom trabalho,

[Revisora].

E-mail 2:

[Revisora],

Nossa, quando abri os arquivos, confesso que levei um susto, porque era tanta observação para ler e tanta pergunta que fiquei apavorada pensando se foi bom mandar para a revisão ou não. Marquei com a minha orientadora um encontro amanhã para mostrar o que você escreveu e ver com ela os próximos passos até porque meu prazo é curto e tem muitas coisas para ver ainda. Peço que você aguarde meu contato amanhã de noite para ver o que faremos daqui pra frente. [Autora].

E-mail 3:

Prezada [Nome],

Não tenho certeza, mas, pelo e-mail que me mandaste mais cedo, parece que ficaste chateada com o trabalho realizado por mim em teu texto. No entanto, quero ratificar o que conversamos desde o primeiro e-mail trocado: a minha revisão é linguística e não uma passada de olhos em questões estritamente gramaticais, até porque, se fizesse somente isso, tenho absoluta certeza, depois da defesa, você certamente reclamaria da revisão a partir dos comentários da banca sobre o texto como um todo, principalmente em suas questões semânticas. Como te disse, [Nome], observo o todo da escrita, se as partes estão coesas, se as seções estão bem organizadas, se os objetivos de cada capítulo são cumpridos etc. Claro, devo dizer novamente que você, na condição de autora, tem todo o direito a discordar do trabalho realizado e a discutir comigo as questões colocadas nos arquivos. Porém, acredito que não podes ficar chateada com o excesso de observações, pois elas demonstram o zelo com a tua escrita e o cuidado com o trabalho final que será entregue e apresentado. Por fim, [Nome], se optares por não continuarmos a revisão, peço que me informes ainda hoje, pois tenho outras pessoas na fila, as quais deixei de atender em razão do compromisso assumido contigo.

Aguardo teu retorno.

Atenciosamente. [Revisora].

E-mail 4:

[Revisora],

Começo este e-mail te pedindo muitas desculpas se te deixei com a impressão de que não gostei do teu trabalho. Não foi o que aconteceu! A verdade é que ando muito nervosa e estressada nessa época de final de doutorado, então, quando vi meu texto lotado de comentários e marcações coloridas, senti uma espécie de fracasso, sabe como é? Isso não tem nada a ver com você, mas parecia que nada do que eu tinha feito estava bom, apesar de tanto empenho e tanta dificuldade... Enfim, só quem já passou por essa experiência sabe o que significa a escrita de uma tese. Por isso, se acabei transparecendo sentimentos equivocados sobre a tua revisão, por favor, peço que desconsidere e não fique aborrecida comigo. Conversei com a minha orientadora hoje e ela amou as tuas colocações, a revisão ficou muito boa e você é ótima no que faz, pode ter certeza! Já começamos inclusive a realizar algumas das modificações propostas por você. Apenas o que era muito específico da linguagem do nosso referencial teórico nós não modificamos. Continuaremos o trabalho no texto e, assim que acabar, envio a você, com as alterações realçadas em verde para que fique melhor a sua leitura. Ah, modificamos também a tabela aquela com a explicação cientifica dos conceitos, tens razão no item (c) e (d) estavamos fazendo referência a resultados da analise. Estou inserindo também alguns bilhetes em lugares onde tenho duvida. Da uma olhada e ve se ficou melhor. Nessa semana, depois que minha orientadora me devolver, vou te passar o resto dos arquivos, tá. Preciso te dizer também que minha orientadora vai tentar aumentar meu prazo de entrega para que possamos atender as colocações no texto com calma e melhorar o meu trabalho. Beijos [Autora].

Nessa primeira troca linguageira estabelecida entre a revisora e sua cliente, podemos perceber, já no início da enunciação, um tom de pesar que marca o dizer da profissional, ao se justificar à autora do texto sobre a demora no retorno do trabalho: “Estou tão chateada por não ter conseguido te escrever antes... [...] além de ter ficado sem internet no final de semana, o trabalho na universidade tem me exigido demais. Ontem não consegui parar sequer pra te mandar o e-mail com o anexo, o que faço agora” (Revisora). Esse tom de lamento por não ter cumprido com a atividade no tempo que desejava justifica-se, no enunciado da revisora, não só pela falta de acesso à internet, que inviabilizou o contato com a autora da pesquisa, mas também pelo acúmulo de funções que desempenha, pois, na época dessa interlocução, a profissional em foco atuava na revisão textual como freelancer e desempenhava outra atividade remunerada em uma universidade federal (bolsista na Educação a Distância).

Se considerarmos o cansaço da profissional a partir do olhar ergológico lançado ao trabalho, compreendemos que toda atividade demanda uma polarização de valores, que envolve um conjunto de recursos do corpo-si, levando-o, muitas vezes, ao esgotamento (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, 2011. p. 19-45.). No exemplo, podemos vislumbrar essa questão na atividade da revisora, principalmente, pela refração do signo ideológico sequer, o qual recupera vozes que mostram a falta de tempo disponível para atividades aparentemente rápidas, como o envio de uma correspondência eletrônica. Ademais, contribui ainda para tal sensação de fadiga o acúmulo de atividades, típico dos profissionais dessa área, que normalmente atuam como revisores para complementar a renda, o que lhes exige um gerenciamento de microescolhas constantes, advindas de diferentes demandas profissionais e, em consequência, um debate de valores que está em permanente (re)construção e exige muito do corpo-si.

Na sequência do diálogo em análise, possivelmente, a fim de evitar outro pedido de desculpas e um novo estresse em situação futura, a revisora reorganiza seu discurso de modo que não se compromete com uma data exata para a entrega do trabalho, mas deixa claro seu empenho para que tal retorno ocorra o mais depressa possível - até porque ela sabe que lida com um prazo apertado4 4 Essa informação foi dada pela doutoranda no primeiro contato com a revisora, em enunciados que foram por nós analisados e publicados no artigo intitulado Relações dialógicas e discurso bivocal na atividade de trabalho do revisor em teses acadêmicas: tensões e(m) sentidos, publicado na Revista Bakhtiniana, em 2021, e referenciado ao final deste trabalho. . Assim, a revisora desenvolve seu discurso de modo a equilibrar o comprometimento com a conclusão do trabalho e a possibilidade de que o contato não ocorra no período por ela mencionado (final de semana), tal como mostra o enunciado a seguir, sobretudo a expressão sublinhada por nós, que permite melhor observar essa estratégia discursiva da profissional: Prometo-te que não demorarei no retorno, como aconteceu desta vez. Se quiseres me mandar o arquivo grande, eu trabalharei nele no final de semana e, na segunda-feira, se der, já te envio (Revisora).

Ao analisarmos os enunciados da revisora no primeiro e-mail da série direcionada à doutoranda, é possível visualizarmos também a constante presença da inter-relação Eu/Outro, no dizer da profissional, na medida em que ela se coloca no lugar de sua interlocutora (seu Outro, neste caso, a doutoranda), buscando “olhar a atividade com os olhos da autora da tese”. Nesse sentido, a profissional antecipa a possibilidade de um algum descontentamento com o trabalho realizado, destacando que, se isso ocorrer, a autora tem todo o direito de discordar de seus comentários e de questionar o que sentir necessidade: “[Nome], fique muito à vontade para discutirmos as minhas inserções em teu texto, para discordar dos meus apontamentos e, se quiseres, até para brigar comigo, se eu merecer, hehe. Sei o quanto as questões de escrita são delicadas” (Revisora).

Cabe destacar também que o signo ideológico delicada para caracterizar a escrita reflete uma postura atenciosa da profissional não apenas para o texto que está em revisão, mas também para a autora que está passando por esse processo de ter sua escrita “avaliada” pelo revisor. Soma-se a isso a questão de que o signo mencionado também refrata o cuidado da revisora com o trabalho, posto que se propõe a dialogar com a doutoranda para admitir e se desculpar por qualquer equívoco que possa ter cometido: “[...] Então, algumas vezes, até mesmo por questões de embasamentos teóricos específicos, nós revisores também cometemos umas gafes na escrita de nossos comentários... [...]. Bem, sinta-se à vontade para conversarmos, ok?” (Revisora).

Embora a possibilidade do pedido de desculpas esteja colocada em forma de discurso indireto, sabemos que a revisora está, na verdade, dialogando diretamente com a doutoranda, isto é, ela antecipa uma possível reação negativa ao trabalho e organiza seu discurso, buscando evitar um descontentamento e ressaltar a importância do diálogo entre as duas e, em consequência, do trabalho em conjunto, defendido com ênfase nos dizeres dessa profissional.

Outro aspecto que cabe enfatizar desse primeiro e-mail da série que estamos analisando está atrelado à quantidade de perguntas da revisora à doutoranda: “Tudo bem?”;[...]ok?”; “[...]ok?”; “[...]certo?”; “[...]ok?”; e “Qualquer coisa, me escreve, tah?”. As diversas interrogações inseridas têm o objetivo principal de manter o diálogo com a doutoranda, marcando a importância da contrapalavra do interlocutor para que possam desenvolver e dar continuidade ao trabalho realizado. Essa necessidade de contato e chamamento da palavra do outro nos enunciados da revisora permite melhor compreender a importância desse outro para a concretização do trabalho. Logo, fazer com que a doutoranda se sinta compreendida na enunciação e seja compelida a respondê-la é uma maneira da revisora de manter o vínculo e estreitar o laço com sua cliente, já que a profissional depende do retorno da autora para que possa prosseguir com seu trabalho.

Pela óptica bakhtiniana, entendemos que compreender sempre envolve uma tomada de posição ativa e criadora: ativa porque requer o posicionamento de alguém e criadora no sentido de dar vida a valores. Partindo desse pressuposto, ao contemplarmos o retorno da doutoranda ao e-mail da revisora, vislumbramos uma compreensão negativa do trabalho realizado em seu texto e uma tensão que se instaura a partir de um tom de insatisfação e crítica quanto ao modo de desenvolvimento da atividade: “Nossa, quando abri os arquivos, confesso que levei um susto, porque era tanta observação para ler e tanta pergunta que fiquei apavorada pensando se foi bom mandar para a revisão ou não” (Autora).

Essa tensão discursiva destaca a complexidade envolta no trabalho, o qual contempla não só acordos e comunhão de valores, como também conflitos e desentendimentos. Isso se dá sobretudo porque os sujeitos envolvidos com a atividade reúnem diferentes concepções de mundo, diversas formas de valorar e de definir, por exemplo, o que significa fazer algo bem ou malfeito, o que é essencial ou supérfluo, o que deve e pode acontecer em determinada tarefa e o que não pode, etc., afinal, de acordo com a ergologia, os valores não existem como um dado externo às dramáticas da atividade, externo às experiências vividas”, mas são intrínsecos a elas e, em consequência, ao trabalho. No caso analisado, podemos observar que a doutoranda fica bastante incomodada com a quantidade de observações inseridas pela revisora em seu texto e chega a questionar a necessidade do trabalho contratado: “[...] fiquei apavorada pensando se foi bom mandar para a revisão ou não” (Autora), o que indica uma quebra com relação ao que era esperado/desejado pela contratante da atividade e aquilo que recebeu da revisora.

Na busca pela resolução do conflito instaurado, a autora demonstra que a palavra de autoridade nesse contexto compete à orientadora da pesquisa; afinal, será ela quem validará o trabalho do revisor e influenciará na decisão sobre o prosseguimento (ou não) da revisão: “Marquei com a minha orientadora um encontro amanhã para mostrar o que você escreveu e ver com ela os próximos passos até porque meu prazo é curto e tem muitas coisas para ver ainda” (Autora). A despedida do e-mail da doutoranda ocorre marcada por um tom de ameaça, que deixa subentendida uma possibilidade de quebra/cancelamento do contrato de trabalho com a revisora, como podemos perceber em: “Peço que você aguarde meu contato amanhã de noite para ver o que faremos daqui pra frente” (Autora).

A réplica da revisora ao enunciado da autora da tese inicia da seguinte maneira “Prezada [Nome]”; um modo que, se fosse tomado como uma frase isolada da língua, pareceria não revelar estranhamento ou algum sentido que mereça a atenção do analista da linguagem, já que se trata de uma maneira bastante comum de iniciar um diálogo via e-mail. Todavia, ao ser contemplado como um enunciado da linguagem e ser colocado em relação dialógica com os enunciados da doutoranda veiculados no e-mail anterior, percebemos que se referir à autora da tese por meio de um vocativo até então inédito entre essas duas parceiras da enunciação marca uma formalidade no diálogo e refrata um afastamento entre as interlocutoras, distanciamento esse que parece essencial na organização do projeto enunciativo da revisora para responder às críticas recebidas. Ainda assim, a profissional evita acusar diretamente a autora pelo julgamento à recepção do trabalho e começa o diálogo de uma maneira sutil, buscando se defender de novos desentendimentos: “Não tenho certeza, mas, pelo e-mail que me mandaste mais cedo, parece que ficaste chateada com o trabalho realizado por mim em teu texto” (Revisora).

Embora todos os demais argumentos, na continuidade desse enunciado, venham contradizer e questionar o posicionamento da autora do texto, dizer “parece que...” é uma estratégia discursiva da profissional para se isentar de um embate mais direto com sua cliente, pois, ao não acusá-la de modo explícito por qualquer opinião que julgue inadequada, a revisora cria um efeito de sentido que busca suavizar sua fala e, apesar de ser firme no conteúdo de seu discurso, deixa subentendido que tudo pode não passar de um mal-entendido entre as duas. Ademais, se for o caso de a impressão do “parece que” estar inadequada, a autora deve desconsiderar os argumentos da profissional e até desculpá-la pelo ocorrido. Esses embates permitem melhor compreender o que postula a perspectiva ergológica quanto ao fato de que trabalhar é muito além de desempenhar uma dada função ou ter um emprego, trabalhar envolve uma constante “redescoberta das dimensões enigmáticas da atividade industriosa (SCHWARTZ, 2016SCHWARTZ, Y. Uma entrevista com Yves Schwartz. Revista Letrônica, Porto Alegre: Edipucrs, v. 9, n. especial, 2016. p. 222-233,., p. 233).

Sabemos, ainda, que todo diálogo é sempre pleno de transmissões e interpretações das palavras alheias. No diálogo em análise, torna-se possível observar essa questão a partir da retomada da voz da doutoranda no discurso da revisora, quando esta faz referência, ainda que de modo não explícito, ao signo ideológico olhadinha, advindo de um diálogo já desenvolvido entre as duas interlocutoras em momento anterior, no qual definem a atividade de revisão sob seus diferentes pontos de vista: “[...] quero ratificar o que conversamos desde o primeiro e-mail trocado: a minha revisão é linguística e não uma passada de olhos em questões estritamente gramaticais” (Revisora)5 5 Reflexão apresentada no artigo ao qual nos referimos na nota de rodapé anterior. . A revisora resgata então esse embate discursivo para mostrar que, em tese, não fez nada que não houvesse explicado antes à contratante, a qual, por essa razão, na opinião da profissional, não deveria estar surpresa com o trabalho realizado.

Na sequência, para defender sua concepção de trabalho, a revisora destaca novamente que acredita ter feito o melhor no texto da autora, como mostra o enunciado:

[...] tenho absoluta certeza, depois da defesa, você certamente reclamaria da revisão a partir dos comentários da banca sobre o texto como um todo, principalmente em suas questões semânticas. Como te disse, [Nome], observo o todo da escrita, se as partes estão coesas, se as seções estão bem organizadas, se os objetivos de cada capítulo são cumpridos etc. (Revisora).

Como vemos, emergem relações dialógicas com enunciados que dizem que o texto não estava bem escrito e que, por isso, a revisora anotou o que precisava ser destacado no material, mesmo que isso implicasse a escrita de diversas observações na produção textual. Tais debates de valores são pertencentes ao mundo do trabalho, mas pouco discutidos ou percebidos pelos atores da atividade na maioria das vezes.

Quanto à tensão discursiva instaurada entre essas duas interlocutoras, cabe ponderar também sobre o fato de que a revisora havia antecipado a possibilidade desse desentendimento entre elas, quando destacou, no primeiro e-mail de retorno do material, que a doutoranda poderia, se quisesse, “até brigar” com a profissional. Contudo, é relevante perceber que, embora prevendo o problema, a profissional não aceita as críticas da autora da tese, pois deixa subentendido que elas não se legitimam, já que não fazem menção ao conteúdo das questões colocadas e ao trabalho realizado em si, mas, sim, destacam apenas a quantidade de comentários inseridos na escrita. Isso demonstra também que os debates e conflitos que se instauram no trabalho “são, em grande parte, não antecipáveis por qualquer que seja o modelo de interpretação científica” (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, 2011. p. 19-45., p. 42).

Assim, entre as interlocutoras, observamos uma tensão que se coloca, de um lado, entre críticas possíveis e aceitáveis pela revisora e, de outro, com o descontentamento da autora quanto à atividade realizada:

Claro, devo dizer novamente que você, na condição de autora, tem todo o direito a discordar do trabalho realizado e a discutir comigo as questões colocadas nos arquivos. Porém, acredito que não podes ficar chateada com o excesso de observações, pois elas demonstram o zelo com a tua escrita e o cuidado com o trabalho final que será entregue e apresentado (Revisora).

Mantendo o mesmo tom de insatisfação do e-mail recebido da autora, a revisora encerra o diálogo entre elas, por meio de enunciados que destacam a pressa em resolver o mais rápido possível o conflito e dar fim a essa relação que parece não ter sido bem-sucedida, embora, para isso, seja necessário quebrar o contrato firmado e romper com o desenvolvimento do trabalho: “Por fim, [Nome], se optares por não continuarmos a revisão, peço que me informes ainda hoje, pois tenho outras pessoas na fila, as quais deixei de atender em razão do compromisso assumido contigo” (Revisora).

Contudo, mesmo ao tratar desse provável cancelamento da atividade, a revisora, ao dialogar com o dizer da autora sobre o prazo para decidir quanto ao prosseguimento ou não do trabalho, em nenhum momento desculpa-se pelos desentendimentos que emergiram ou busca convencer a doutoranda a mudar de decisão, mas, ao contrário, utiliza-se de signos ideológicos que refletem o prestígio de seu trabalho, afirmando que chega a ter pessoas em fila de espera que aguardam por ela. Com esses dizeres, a profissional busca ratificar que o problema de falta de compreensão da importância do trabalho realizado na tese é de responsabilidade da autora do texto e não da maneira como a atividade foi organizada. Assim, nesse mesmo tom de formalidade, a profissional encerra a conversa a partir de um signo ideológico que ainda não havia aparecido até então entre esses sujeitos e que ratifica o efeito de afastamento entre elas: “Atenciosamente”.

Após concluirmos a leitura das duas últimas correspondências eletrônicas trocadas entre a doutoranda e a revisora, pensamos que há uma grande probabilidade de quebra do contrato de trabalho e de fim da relação estabelecida entre as duas; no entanto, quando lemos o e-mail seguinte que a doutoranda envia à profissional, notamos uma radical mudança no tom da resposta e um consequente alívio da tensão que havia se instaurado: “Começo este e-mail te pedindo muitas desculpas se te deixei com a impressão de que não gostei do teu trabalho. Não foi o que aconteceu! A verdade é que ando muito nervosa e estressada [...]” (Autora).

O signo desculpas, relacionado às justificativas de nervosismo e cansaço característicos do contexto em que se encontra a autora (final do doutorado), cria efeitos estilísticos que buscam justificar o estresse ocorrido e convencer a revisora de que não há motivos para ressentimentos. Corrobora o pedido de desculpas da doutoranda a afirmação de que o problema não estava no trabalho realizado ou na profissional em questão, mas nos sentimentos e nas impressões da autora, que se encontra em um momento de fragilidade advindo da pressão de final de curso, como mostra o enunciado:

Isso não tem nada a ver com você, mas parecia que nada do que eu tinha feito estava bom, apesar de tanto empenho e tanta dificuldade... [...] se acabei transparecendo sentimentos equivocados sobre a tua revisão, por favor, peço que desconsidere e não fique aborrecida comigo (Autora).

Ademais, percebemos nesses enunciados a importância da voz da orientadora da pesquisa, que funciona como responsável por validar a atividade do revisor, posto que, depois da conversa com a orientadora e de esta dizer que o trabalho estava bom, a autora da tese muda o tom e sua avaliação da atividade: “Conversei com a minha orientadora hoje e ela amou as tuas colocações, a revisão ficou muito boa e você é ótima no que faz, pode ter certeza! Já começamos inclusive a realizar algumas das modificações propostas por você” (Autora). No recorte transcrito, observamos também pistas da voz da revisora na reelaboração da escrita da tese, quando a doutoranda afirma que já começou a trabalhar suas reescritas a partir das considerações da profissional, o que indica que, no texto final, há um entrelaçamento das vozes dessas duas protagonistas do diálogo.

A autora não só explicita que as intervenções da profissional são válidas, como também passa a considerá-las na reorganização do dizer, inserindo questões que exigem a contrapalavra da revisora para a continuidade e finalização do texto:

Ah, modificamos também a tabela aquela com a explicação cientifica dos conceitos, tens razão no item (c) e (d) estavamos fazendo referência a resultados da analise. Estou inserindo também alguns bilhetes em lugares onde tenho duvida. Da uma olhada e ve se ficou melhor. Nessa semana, depois que minha orientadora me devolver, vou te passar o resto dos arquivos, tá (Autora).

A perspectiva ergológica nos ensina também que toda atividade de trabalho, ao tratar das escolhas que implicam a ressingularização de cada fazer, envolve arbitragens responsáveis por trazer um novo modo às relações no que se refere ao debate de valores (SCHWARTZ, 2010SCHWARTZ, Y. Trabalho e ergologia. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, Y. (Org.). Trabalho & ergologia: conversas sobre a atividade humana. Trad. de Milton Athayde et al. 2. ed. Niterói: UFF, 2010. p. 131-188.). Quando observamos o desenvolvimento da atividade de revisão entre as duas protagonistas em foco e, mais especificamente, o final do diálogo em questão, percebemos que esse novo ar nas relações estabelecidas chega a mudar até a prioridade quanto à data de entrega do texto, ou seja, o cumprimento de um prazo antes poderia ser muito importante, agora, parece ceder espaço para a qualificação do trabalho. Essa modificação está relacionada à reescrita da pesquisa a partir do diálogo com a revisora: “Preciso te dizer também que minha orientadora vai tentar aumentar meu prazo de entrega para que possamos atender as colocações no texto com calma e melhorar o meu trabalho” (Autora). Nessa atmosfera discursiva harmônica, a autora encerra o diálogo com “Beijos”, o que reflete um efeito de reaproximação entre as duas interlocutoras e refrata uma satisfação com a atividade realizada em sua tese.

Discorridas as reflexões sobre o desenvolvimento da atividade de revisão entre a revisora e sua cliente, a seguir passamos à análise do fechamento dessa interação entre os sujeitos em análise.

Conclusão do Trabalho/Despedida

E-mail 1:

[Revisora],

Ontem imprimi a tese e entreguei. Agora é só aguardar a defesa. Tenho certeza de que tudo vai dar certo e que meu texto está infinitamente melhor depois do seu trabalho. Minha orientadora comentou que irá indicar outras orientandas a você e fiquei bem feliz. Quero te agradecer por tudo nessa caminhada, obrigada pela atenção e carinho na revisão do material. Obrigada também pela paciência com as minhas loucuras. És uma pessoa muito especial e nunca esquecerei dos nossos diálogos. Beijo grande [Autora].

E-mail 2:

[Autora],

Obrigada pelo retorno e pela parceria durante o trabalho que dividimos. Os ruídos e os mal-entendidos fazem parte do processo e, no final, só nos acrescentam e fazem crescer como profissionais. O trabalho do revisor tem dessas coisas, a maioria das pessoas pensa que apenas passamos os olhos no texto (olhadinha, lembra? Hehe) e que é algo muito simples e fácil (em alguns casos até é mesmo!). Porém, quando dão de cara com uma revisora assim como eu, tão chata (hehehehe), percebem a enorme quantidade de trabalho que há por trás de um “simples texto revisado”. O importante é que me deste a chance de mostrar a relevância da minha profissão e o nosso resultado foi ótimo, tenho certeza! Um grande abraço e parabéns pela conquista do doutorado [Revisora].

No processo ininterrupto da cadeia dialógica em que emergem e se (trans)formam os discursos, conseguimos acompanhar, pelos e-mails trocados entre a revisora e a autora, diálogos sobre a compreensão e o desenvolvimento da atividade de revisão textual, que envolveram debates, acordos, discordâncias e conflitos, conforme mostra a análise dos enunciados até então. Ao contemplarmos a última interação entre os dois sujeitos em questão, podemos dizer que, de modo geral, o trabalho desenvolvido pela profissional recebeu uma avaliação positiva e um reconhecimento quanto a sua importância para o fechamento do texto entregue à banca avaliadora, tal como mostra o enunciado: “Tenho certeza de que tudo vai dar certo e que meu texto está infinitamente melhor depois do seu trabalho” (Autora).

Como vimos, para a doutoranda, chegar a essa conclusão sobre o trabalho de revisão textual envolveu um (in)tenso processo dialógico de sentidos, que demarcou movimentos e confrontos entre as duas protagonistas envolvidas para que chegassem à construção colaborativa da atividade de revisão. Outro aspecto muito marcante dessa atividade e que se pode perceber nesses dizeres está relacionado ao silenciamento do trabalho, pois, como vimos, mais ninguém, fora a doutoranda e a orientadora, toma conhecimento da atividade realizada no texto, posto que não há um espaço no gênero em questão para explicitar o trabalho do revisor; então, é algo que permanece formalmente na invisibilidade e no silêncio.

A última fala da doutoranda para a revisora no exemplo em análise, portanto, marca o agradecimento pela atividade e retoma, de modo sutil e irônico, os tumultos do processo, como podemos observar em: “Quero te agradecer por tudo nessa caminhada, obrigada pela atenção e carinho na revisão do material. Obrigada também pela paciência com as minhas loucuras” (Autora). Os signos ideológicos atenção e paciência, assim como os sentidos que emergem dessa enunciação, só são compreendidos pelos interlocutores e leitores desse diálogo quando colocados em relação dialógica com os demais enunciados proferidos por essas duas pessoas durante o processo de revisão textual.

Nesse sentido, compreendemos que atenção reflete, por exemplo, o cuidado com a escrita e as questões linguísticas que demandaram o conhecimento acadêmico da profissional para o desenvolvimento da atividade; já paciência relaciona-se aos desentendimentos que ocorreram entre as duas e às maneiras como esses percalços foram administrados e conduzidos pela revisora, o que, necessariamente, exigiu muito mais dos saberes investidos na profissão do que propriamente dos saberes instituídos pela academia, embora eles também sejam relevantes. Todo esse percurso, portanto, faz com que a doutoranda chegue à conclusão de que a profissional era merecedora de reconhecimento pela atividade, como vemos nas palavras com que encerra o contato com a revisora: “És uma pessoa muito especial e nunca esquecerei dos nossos diálogos. Beijo grande” (Autora).

A revisora, por sua vez, também encerra o contato com essa cliente via tom de agradecimento e de carinho pela relação estabelecida: “Obrigada pelo retorno e pela parceria durante o trabalho que dividimos” (Revisora). Ademais, ela recupera as tensões discursivas que fizeram parte do processo de maneira bem sutil e com uma avaliação positiva, defendendo que elas promovem seu crescimento profissional: “Os ruídos e os mal-entendidos fazem parte do processo e, no final, só nos acrescentam e fazem crescer como profissionais” (Revisora).

Na sequência dessa última troca linguageira entre as duas protagonistas do discurso analisado, a profissional ancora-se em discursos comumente proferidos sobre a atividade de revisão para, depois, por meio de uma relação irônica, novamente, defender sua postura de trabalho com a linguagem: “O trabalho do revisor tem dessas coisas, a maioria das pessoas pensa que apenas passamos os olhos no texto (olhadinha, lembra? Hehe) e que é algo muito simples e fácil (em alguns casos até é mesmo!). Porém, quando dão de cara com uma revisora assim como eu, tão chata (hehehehe), percebem a enorme quantidade de trabalho que há por trás de um “simples texto revisado” (Revisora).

Nesse discurso, percebemos que o signo ideológico trabalho, tal como é dito pela revisora, tem seu sentido ampliado pela expressão adjetiva “enorme quantidade”, carregando vozes socais que marcam as dificuldades e complexidades típicas de uma atividade que comporta grande parte de silenciamento e invisibilidade. Afinal, como já o dissemos e ratificamos, apesar de todo o envolvimento com a atividade realizada, apenas a doutoranda e sua orientadora têm conhecimento do que foi desenvolvido pela revisora, pois não há um espaço oficial no próprio gênero tese para tal reconhecimento do trabalho feito.

Em meio a essa problemática característica da atividade, a revisora encerra a interação entre elas destacando o valor de ter seu fazer reconhecido por sua interlocutora: “O importante é que me deste a chance de mostrar a relevância da minha profissão e o nosso resultado foi ótimo, tenho certeza! Um grande abraço e parabéns pela conquista do doutorado” (Revisora). Essas questões lembram o que ensina a perspectiva ergológica quanto ao fato de que toda atividade de trabalho é sempre o espaço “mais ou menos infinitesimalmente, de reapreciação, de julgamentos sobre procedimentos [...] e por aí não cessa de ligar um vaivém entre o micro do trabalho e o macro da vida social cristalizada, incorporada nessas normas” (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, 2011. p. 19-45., p. 33). Ademais, elas também reforçam a compreensão dialógica de que o “movimento progressivo da língua realiza-se no processo da comunicação do homem com o homem, comunicação esta que não é só produtiva, mas também discursiva” (VOLÓCHINOV, [1930] 2019, p. 267).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, ancoramo-nos em pressupostos da análise dialógica do discurso e da abordagem ergológica para tratar de aspectos da dimensão valorativa sobre a atividade que emergem no exercício profissional de uma revisora de textos, durante o trabalho em uma tese acadêmica. Dessa maneira, ao nos debruçarmos sob situações concretas de “inter-ação” humana, foi possível refletir sobre uma multiplicidade de valores que circulam no discurso dos sujeitos analisados e que, em negociação, disputam o (in)tenso processo de sentidos que se configura no decorrer da atividade de trabalho do revisor textual.

De acordo com o que foi apresentado neste artigo, podemos destacar também que a ADD, no que diz respeito à linguagem, recusa uma visão idealista e abstrata tanto de sujeito quanto de língua/linguagem para fundamentar uma explicação científica que considera o sujeito em momentos reais de manifestação da linguagem. O mesmo ocorre com a abordagem ergológica da atividade, tendo em vista que parte de subsídios que não permitem a redução do humano a mero executor de tarefas e busca compreender o homem em atividades concretas (de linguagem e de trabalho), tomando-o como um ser crítico e reflexivo, capaz de interferir no trabalho que realiza e de renormalizá-lo, em vez de seguir literalmente as prescrições/normas antecedentes.

Essas colocações indicam, portanto, a preocupação social dos dois olhares que ora aproximamos, assim como ratificam a construção de interfaces entre essas perspectivas. Nesse sentido, pelo intercâmbio entre os estudos da linguagem e do trabalho, tal como apresentados nesta escrita, buscamos contribuir com a realização de estudos que se ancoram na ADD e/ou na Ergologia para problematizar o trabalho do revisor de textos e, principalmente, observar aspectos pouco aparentes e ainda pouco compartilhados que são constitutivos desse fazer.

REFERÊNCIAS

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  • VOLOCHÍNOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2018 (1928).
  • VOLOCHÍNOV, V. A construção do enunciado. In: VOLOCHÍNOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Trad., ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019 (1930). p. 266-305.
  • 1
    Desde nossa pesquisa de mestrado desenvolvida em 2012, temos investigado a atividade de revisão de textos realizada em gêneros acadêmicos (BARBOSA, 2012; 2017).
  • 2
    As trocas interlocutivas presentes na análise foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) em agosto de 2016, com o número CAAE 58857716.9.0000.5336.
  • 3
    Este grupo, denominado Analyse Pluridisciplinaire des Situations de Travail (APST), era composto por Yves Schwartz, Daniel Faïta e Bernard Vuillon, que trabalhavam na Universidade de Provence, na França.
  • 4
    Essa informação foi dada pela doutoranda no primeiro contato com a revisora, em enunciados que foram por nós analisados e publicados no artigo intitulado Relações dialógicas e discurso bivocal na atividade de trabalho do revisor em teses acadêmicas: tensões e(m) sentidos, publicado na Revista Bakhtiniana, em 2021, e referenciado ao final deste trabalho.
  • 5
    Reflexão apresentada no artigo ao qual nos referimos na nota de rodapé anterior.

Editado por

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2020
  • Aceito
    03 Jul 2023
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