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(H)ERÉTICA: SOBRE EREÇÕES E ÉTICA

Heretics: Erection and Ethics

(H)Erética: sobre erecciones y ética

Resumo

Que possibilidades éticas a universalidade tem a oferecer a uma humanidade fundada na e sustentada pela desigualdade? Essa é a questão que este artigo pretende tensionar ao observar os gatilhos afetivos do discurso em duas situações de embate ético na etnografia linguística. Analisa uma interação entre um professor do norte global e um doutorando sul-americano negociando limites éticos para argumentar por uma ética de pesquisa que seja radicalmente particular e contextual. Para tanto, também analisa o deboche de participantes em grupos de WhatsApp para performances íntimo-espetaculares quanto ao pedido de consentimento. Deboche é evidência de que, ao contrário de sujeitar nossos colaboradores a nossos métodos burocráticos, pode ser mais ético que o pesquisador abrace o modelo ético que responde às expectativas da comunidade em que se insere. Antes da análise, o artigo oferece uma revisão bibliográfica sobre ética e colonialismo que respalda teoricamente a discussão empreendida.

Palavras-chave:
Ética de Pesquisa; Bareback; Linguística Aplicada Indisciplinar; Colonialismo; Afeto

Abstract

What are the ethical possibilities the universality has to offer to a humanity founded and sustained by inequality? This is what the paper want to stress, observing the discourse’s affective trigger in two situations with ethical clash in the linguistic ethnography. It analyzes an interaction between a global north teacher and a South American doctoral student, both negotiating ethical boundaries to argue for a research ethics that is radically particular and contextual. To this end, this study also analyzes the mockery of participants in WhatsApp groups for intimate and spectacular performances regarding their request for consent. Such mockery evidences that, unlike the subjection of our collaborators to the bureaucratic methods of ours, it may be more ethical for the researcher to embrace the ethical model that meets the expectations of the community in which he operates, though. Prior to the analysis, there is a bibliographical review about ethics and colonialism that theoretically supports the discussion undertaken in this proposition.

Keywords:
Research Ethics; Bareback; Undisciplined Applied Linguistics; Colonialism; Affect

Resumen

¿Qué posibilidades éticas ofrece la universalidad a una humanidad fundada y sostenida por la desigualdad? Esta es la pregunta que ese artículo pretende contestar al observar los detonantes afectivos del discurso en dos situaciones de choque ético en la etnografía lingüística. El artículo analiza una interacción entre un profesor del norte global y un estudiante de doctorado sudamericano negociando límites éticos para defender una ética de la investigación que sea radicalmente particular y contextual. Por ello, también analiza el desenfreno de los participantes en los grupos de WhatsApp por actuaciones íntimas-espectaculares respecto a la solicitud de consentimiento. El libertinaje es evidencia de que, en lugar de someter a nuestros colaboradores a nuestros métodos burocráticos, puede ser más ético para el investigador abrazar el modelo ético que responde a las expectativas de la comunidad en la que opera. Antes del análisis, el artículo ofrece una revisión de la literatura sobre ética y colonialismo que sustenta teóricamente la discusión efectuada.

Palabras clave:
Ética de la Investigación; Bareback; Lingüística Aplicada Indisciplinar; Colonialismo; Afecto

1 INTRODUÇÃO

Não assumiremos o repertório dos senhores colonizadores

para sermos aceitos de forma subordinada em seus mundos

(Luiz Rufino, Pedagogia das Encruzilhadas)

Herético, pernicioso e maléfico é como o conhecimento marginal foi conceitualizado na sociedade disciplinar. Feitiçaria, curanderismo, fitoterapia; bruxaria; a sabedoria popular são epítomes para conhecimento insignificante, ingênuo e não científico (HALBERSTAM, 2005HALBERSTAM, J. In a queer time and place: transgender bodies, subcultural lives. New York: New York University Press, 2005.), (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.). A nomeação é, por si, uma performance afetiva de descrédito e desconsideração. Herético significa marginal de uma maneira profana. Profanar significa destruir o sagrado, aquilo que é intocável. Portanto, a agenda dos hereges não é uma, mas justamente várias profanações da unidade para defender uma diversidade de perspectivas éticas: "Ética Marica" (VIDARTE, 2007VIDARTE, P. Ética marica. Madrid: Egales 2007.); “ética indecente” (DE LA TORRE, 2013DE LA TORRE, M. A. Doing Latina/o Ethics from the Margins of Empire: Liberating the Colonized Mind. Journal of the Society of Christian Ethics, v. 33, n.1, p. 3-20, 2013.); “ética do desconforto” (FOUCAULT, 2000); “Ética maori” (HOSKINS, 2012HOSKINS, T. K. A fine risk: Ethics in Kaupapa Māori politics. New Zealand Journal of Educational Studies: v. 47, n. 2, 2012.) “ética indizível” e ética do antagonismo (WILDERSON, 2010WILDERSON, F. B. Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Durham & London: Duke university Press, 2010.) “ética para foder” (DE LA TORRE, 2013), “ética da melancolia” (HANNABACH, 2013HANNABACH, C. Choreographing a queer ethics: Between Bill T. Jones and Keith Hennessy. Women & Performance: a journal of feminist theory, v. 23, n. 1, p. 83-106, 2013.).

Analisando duas situações distintas, acusarei a falta de ética do universalismo e criticarei alguns conceitos éticos predefinidos na pesquisa como “consentimento” e “intimidade” cujo caráter absoluto e irrefutável deve ser colocado sob o escrutínio do contexto. Antes da análise na seção 3, apresentarei diferentes perspectivas sobre ética na seção 2.

Ao criticar o ideal de universalidade na ética da pesquisa e seu enrijecimento conceitual, insisto com Hannabach que criticar não é destruir um objeto ou discurso, mas um dever ético do pesquisador em revelar suas falhas e propor novas trajetórias possíveis. No entanto, “a crítica é um projeto inescapavelmente afetivo, produzindo encontros que deslizam entre prazer, dor, alegria, raiva e esperança, pois permitem distanciar-se das estruturas sociais existentes” (HANNABACH, 2013HANNABACH, C. Choreographing a queer ethics: Between Bill T. Jones and Keith Hennessy. Women & Performance: a journal of feminist theory, v. 23, n. 1, p. 83-106, 2013., p.99). Nesta perspectiva, pode-se afirmar que (H)Erética não visa a uma alternativa ética inovadora, nem a demolir os brilhantes trabalhos que foram feitos no campo, mas refere-se a exigir uma resposta prática aos questionamentos éticos inquietantes, para os quais não tenho uma solução, mas muitas proposições hereges que nas margens não devem ser mantidas.

2 ÉTICA DAS MARGENS E PARA AS MARGENS

What are we to make of a world that responds

to the most lucid enunciation of ethics with violence?

(Frank Wilderson, Red, White, & Black)

O berço filosófico da ética a condiciona a um campo necessariamente aberto à discussão e reflexão, mutatis mutandis. Que a natureza das relações éticas é multiconfiguracional e aberta ao contexto, região, tradição acadêmica é consenso no campo (BRASIL, 2016; MARKHAM; BUCHANAN, 2016; MORTENSEN, 2016). No entanto, a ética como disciplina não foi capaz de responder às críticas sobre o ideal de universalidade, que a torna antiética. Nesta seção, revisito as agendas de autores que desafiam discursos dominantes sobre ética, introduzindo perspectivas silenciadas e propondo mudanças práticas para democratizar e expandir o sujeito ético.

O humanismo estava determinado a reconhecer que todos os homens são iguais. Todos sabemos que isso não é verdade, e a própria permissividade da palavra ‘homens’ para generalizar é evidência do esquecimento de algumas subjetividades. No sentido prático, a igualdade entre as pessoas é uma utopia, pela qual luto também eu. Contudo, a história dos humanos é uma história de diferenças em tensão e assim deve ser reconhecida. Apesar disso, a ética tem sido historicamente considerada uma prática de igualdade, um campo comprometido com a demolição da diferença que estruturou a humanidade, um campo envolvido na domesticação da diferença sob um código de conduta. Para sujeitos marginalizados, a ética acabou se tornando uma questão de assimilação e violência.

Segundo Warren (2014WARREN, C. Onticide Afropessimism, New York: Queer Theory, & Ethics, 2014.), Wilderson (2010WILDERSON, F. B. Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Durham & London: Duke university Press, 2010.) e Wynter (1994WYNTER, S. No Humans involved: an open letter to my colleagues. In: Forum N.H.I., v. 1, n. 1, Fall. Stanford Institute, 1994.), o mundo é antiético para sujeitos negros, porque “humanidade está previamente definida em termos da classe média branca” (WYNTER, 1994WYNTER, S. No Humans involved: an open letter to my colleagues. In: Forum N.H.I., v. 1, n. 1, Fall. Stanford Institute, 1994., p.44). Para Warren, “o impulso ético do pensamento humanista” é justamente tornar o “sofrimento legível” (2014, p. 6) e, assim, investir em um modelo político baseado na liberdade subjetiva. A negritude, no entanto, representa um sofrimento ou falta de liberdade que desarticula a ética como antiética, já que os corpos negros não têm um “lugar dentro do simbólico da identidade, da política, da história, da sociologia ou da lei” (WARREN, 2014WARREN, C. Onticide Afropessimism, New York: Queer Theory, & Ethics, 2014., p.7). Warren propõe o termo Onticide para denunciar tanto a prática racista de desontologização de corpos negros quanto o terreno ontológico em que a ética prospera:

O campo da ética oculta um segredo sujo: o terreno ontológico em que se situa é antiético. A ética subverte a si mesma, mas só pode existir através dessa mesma subversão. Todos os discursos éticos organizados em torno da eliminação do sofrimento ou das experiências de liberdade são imbricados nessa falta de ética. A negritude é a vida e a morte do humanismo e sua ética [...]. (WARREN, 2014WARREN, C. Onticide Afropessimism, New York: Queer Theory, & Ethics, 2014., p.7)

A ontologização dos corpos produz a autoridade ética da cultura dominante. Essa autoridade ética é atacada pela própria existência da negritude - e por muitas outras existências, penso eu. Para Wilderson, a ética baseia-se em uma compreensão ontológica do mundo para reforçar o conceito de soberania que "explicaria" o genocídio, enquanto sugeria o outro selvagem - os americanos nativos - como não ontológicos. Ele sugere que tanto os negros quanto os nativos são "posicionados ontologicamente, por genocídio, em oposição à soberania" (2010, p. 247). Por serem deslocados de uma reivindicação de existência histórica, os corpos não-brancos são esmagados sob a demanda de uma ética branca, de maneira devastadora e parasitária:

A imposição da sociedade civil ao corpo político nativo é ao mesmo tempo devastadora e parasitária, devastadora na medida em que prejudica a capacidade do povo nativo de pensar em seus corpos e em suas relações subjetivas através de rubricas de seu próprio imaginário cultural, e parasitário, pois requer que povos nativos sejam implicados em um concurso [pageantry] de mímese social. (WILDERSON, 2010WILDERSON, F. B. Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Durham & London: Duke university Press, 2010., p.168)

De La Torre (2013), por outro lado, sugere, inspirado no desespero das comunidades minoritárias marginalizadas, uma “ética para joder (foder)”. Uma que perturbe os discursos éticos eurocêntricos normativos que legitimam o “Império”. A maior preocupação de De La Torre acerca da ética eurocêntrica é a imperialização da mente dos latinos e a internalização do império como uma preocupação ética geral. De La Torre propõe a desesperança como uma “metodologia que impulsiona para a práxis” (2013, p.10) e abraça a indecência constitutiva da experiência latina perante os gringos como alternativa ética. Nas suas palavras:

O que é necessário é uma ética indecente e vulgar que reflita as condições indecentes e vulgares que os latinos são obrigados a suportar. Os marginalizados requerem uma ética “perturbadora” e subversiva que descentraliza a ética eurocêntrica normativa projetada para legitimar o estilo de vida burguês dominante. (DE LA TORRE, 2013DE LA TORRE, M. A. Doing Latina/o Ethics from the Margins of Empire: Liberating the Colonized Mind. Journal of the Society of Christian Ethics, v. 33, n.1, p. 3-20, 2013., p.8)

Ele também adverte que o engajamento “no discurso ético eurocêntrico [...] condena latina/os” (2013, p.8), porque a ética em si representa uma prática colonizadora, e a liberdade só poderia ser verdadeiramente alcançada através da negação de uma ética imperialista que colabora com nossa própria opressão:

Antes de podermos falar sobre a libertação de nosso povo das estruturas sociais, políticas e econômicas de opressão, precisamos primeiro nos libertar de nossas próprias mentes colonizadas, de equiparar o ápice do discurso ético à subjetividade eurocêntrica. Começamos o processo de descolonizar nossas mentes não perpetuando a ética eurocêntrica que contribui para nossa própria opressão. (De La Torre, 2013, p. 5)

Na opinião de De La Torre, sujeitos de cor “têm uma obrigação moral de se envolver em práticas éticas definidas por quem está no poder como antiéticas” (2013, p.11). De La Torre (2004) propõe uma metodologia de ética libertadora, na qual coloca os marginalizados no centro da análise ética, enquanto interrompe a tendência dos eticistas privilegiados de se omitirem em suas análises. De La Torre (2004, 2013) encoraja uma crítica das suposições morais públicas e da reescrita ética através de nossa perspectiva subjetiva racializada e colonizada.

Outro latino, Paco Vidarte, em seu manifesto Ética Marica, defende uma ética que se preocupa com a felicidade de gays, lésbicas e pessoas trans. Ética que, apesar da homofobia latente nos discursos da igreja, da filosofia, na escola, na família, na política, na cultura, no cinema e na moral, protege e defende os direitos queer em seus próprios desejos. Uma ética “feita por nós e para nós” (VIDARTE, 2007VIDARTE, P. Ética marica. Madrid: Egales 2007., p.7). Ele argumenta que a Ética Bicha exige que a contextualidade e a memória sejam consideradas. Vidarte explica que, porque sua escrita é política, a Ética Marica não pode ser universalizante:

A Ética Marica será sempre particular, dada a nossa particularidade de ter sido bicha antes de qualquer outra coisa. Toda ética universalista, feita para o mundo inteiro, acabou nos massacrando, nos discriminando, nos prejudicando. Quando alguém fala em nome de uma ética universal, uma ética para a humanidade, pode-se dar como certo que o que é dito irá contra nós (VIDARTE, 2007VIDARTE, P. Ética marica. Madrid: Egales 2007., p.7).

Vidarte traz uma lição importante do movimento LGBT: uma radicalização da diferença é tomada como uma implicação ética para denunciar a impossibilidade de ética igualitária não baseada em particularidade. Uma ética não pode preexistir como um código de conduta para o contexto em que permeia. A ética está imbricada em seu contexto particular de surgimento. E queers - ou maricas - sabem disso porque somos os primeiros a serem esquecidos pela ética. Além da exigência de particularidade e contextualidade e o delineamento da Ética Marica, a memória também é apontada como um ingrediente-chave para um mundo ético. Memória curta e longa:

Não pode haver Ética Marica sem memória, uma longa memória que remonta a anos, décadas, séculos, e que talvez devolva um espírito de solidariedade e dissolva o nojento autoconceito que agora temos de nós mesmos como livres e satisfeitos consumidores na economia capitalista da democracia de mercado; e memória curta, incluindo a percepção imediata da realidade, sem muita memória, de quantas bichas foram excluídas da possibilidade de se enunciar como sujeitos livres que gozam plenamente dos direitos e vantagens que a sociedade reserva apenas para poucos. Existe uma responsabilidade inalienável por todos aqueles a quem a luta por nossos direitos excluiu, silenciou, atropelou e manteve fora de qualquer mesa de negociação. (VIDARTE, 2007VIDARTE, P. Ética marica. Madrid: Egales 2007., p.7)

A memória pode estabelecer laços de empatia e solidariedade e é a alma da Ética Marica. Para tornar o corpo queer visível e pulsante, Vidarte insiste em que a ética feita com a razão não funcionou, por isso devemos investir em uma ética anal ou, como ele diz “Analética”: ele sugere que minorias como LGBTs vivem metaforicamente com seus rabos para cima, constantemente “sendo fodidas” por uma “situação estrutural de submissão, opressão, discriminação” (2007, p.10). Ele defende que devemos ter liberdade de usar nossos rabos como desejamos, enquanto temos no horizonte que ter o rabo pra fora significa uma vida precária “conformada com a metade” (2007, p.10). A metáfora do rabo também sugere um ataque às ideologias neoliberalistas, uma vez que o cu é “absolutamente incompatível com a propriedade privada e a circulação do capital” (2007, p.10). Não apenas algumas partes do corpo, mas também alguns corpos, ficam em desacordo com o neoliberalismo, porque são "desontologizados" (WARREN, 2014WARREN, C. Onticide Afropessimism, New York: Queer Theory, & Ethics, 2014.), “antagonizados” (WILDERSON, 2010WILDERSON, F. B. Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Durham & London: Duke university Press, 2010.) ou porque não contam como corpos vivos, como descreve Hannabach (2013HANNABACH, C. Choreographing a queer ethics: Between Bill T. Jones and Keith Hennessy. Women & Performance: a journal of feminist theory, v. 23, n. 1, p. 83-106, 2013.), sobre as assunções de morte antecipada para indivíduos soropositivos pelas políticas de saúde durante a explosão do vírus HIV.

Hannabach investe em uma ética queer se perguntando que possibilidades éticas a melancolia ofereceria. Ela analisa os trabalhos de dois coreógrafos para descrever uma ética queer enraizada em nosso momento político contemporâneo e capaz de resistir a uma mentalidade bélica e à construção do império dos EUA ao abraçar a perda e a melancolia. Os coreógrafos fornecem exemplos sugestivos da ética melancólica: Sol Niger, de Henessey, encarna a violência e a dor do capitalismo neoliberal, imperialismo e pobreza, enquanto Untitled, de Jones, “responde a um momento particular do neoliberalismo americano, quando identidade nacional, raça e sexualidade foram produzidos juntos por meio de discursos sobre a aids” (2013, p.97). Ela argumenta que a melancolia oferece perspectivas diferentes para a ética: corporal e visceral. Hannabach sugere que a sensação de perda, a falta, a ausência (ou a negação dela como ela entende a melancolia) tornam possíveis relações necessárias e imprevisíveis. A melancolia é, portanto, uma perspectiva privilegiada “para elucidar uma ética” porque “dramatiza os laços de alguém com os outros” (2013; p.86). Inspirada nos escritos de Butler, ela pensa na relação ética com a perda e com o luto, características da vida queer. Ela sugere o corpo em relação ética pela empatia com o luto: “Nossos corpos são assombrados pelo que perdemos, pelo toque, o cheiro, a sensação daquilo que não está mais presente, mas que continua a reverberar dentro e sobre o nosso luto de novas formas intangíveis” (2013, p. 83). A melancolia, em suas palavras, insiste na presença e nos efeitos contínuos de um objeto perdido. Ela propõe que a melancolia é uma instância afetiva sempre presente da vida LGBT, que pode ser investida em agendas políticas. Uma “ética melancólica”, como ela enfatiza, elege o luto da perda como perspectiva ética. A melancolia gay não estaria apenas claramente conectada com a própria perda - frequentemente violenta - comum aos sujeitos LGBT, mas principalmente com a negação “do direito ao luto” [grievability]. Negação do “direito ao luto” é uma das mais cruéis violências neoliberais contra corpos queer:

Negar tal implicação corporal, tal socialidade fundamental [o direito ao luto], é negar a ética e, finalmente, uma relação com os outros em favor da violência política. Tal negação nega não apenas o fato de que outros possam nos ferir de maneiras irreparáveis, mas também que essa capacidade de outros de nos ferir é realmente constitutiva da vida, de nossa relação inerentemente encarnada com os outros. A política pode então se tornar uma maneira de negar essa relação incorporada e possíveis ferimentos em favor de um ferimento preventivo (mesmo que reacionário) de outros na tentativa de proteger a si mesmo. (HANNABACH, 2013HANNABACH, C. Choreographing a queer ethics: Between Bill T. Jones and Keith Hennessy. Women & Performance: a journal of feminist theory, v. 23, n. 1, p. 83-106, 2013., p. 86)

A naturalização de feridas preemptivas e continuamente infligidas a nossos corpos queer e a consequente negação do direito de luto pela perda infligida é um exemplo especial sobre como os sujeitos queer não são cobertos pela ética universal que coloniza todos os nossos corpos.

Uma resposta diferente ao colonialismo ético dos corpos pode ser encontrada em Kaupapa Maāori, definido como um conjunto de discursos, conhecimentos, código ético e moral e uma metodologia. Os Maāori oferecem subjetividades e perspectivas interacionais marcadas pela responsabilidade pelo outro “incorporada no pensamento e nas práticas culturais” (2012, p. 91). Te Kawehau Hoskins, refletindo sobre a ética cultural dos Maāori, oferece a possibilidade de teorizar as relações sociais e políticas além da oposição binária colonizadx/colonizador, uma vez que para Kaupapa Maāori “a responsabilidade ética pelos outros se originou na conscientização de nossa constituição heterônima” (HOSKINS, 2012HOSKINS, T. K. A fine risk: Ethics in Kaupapa Māori politics. New Zealand Journal of Educational Studies: v. 47, n. 2, 2012., p. 90). Os binarismos não podem ser poderosos lá onde a diferença é pressuposta. Hoskins entende que a inversão de colonizador ruim e bom colonizado não é sustentável na realidade Maāori. Tal divisão também coloca em primeiro plano um pensamento dualista, que “evocaria acriticamente as relações binárias como a ‘verdade’ essencial” (HOSKINS, 2012, p. 86-87), fornecendo uma base simbólica para o essencialismo florescer.

Hoskins aproxima a ética Maāori do entendimento de Lévinas de que estamos primariamente vinculados ao outro para afirmar que “A própria existência do Outro é a fonte de minha responsabilidade ética” (2012, p. 91). A filosofia política e jurídica Maāori baseia-se não na racionalidade abrangente, mas na complexidade das boas relações éticas entre pessoas de uma comunidade. A principal preocupação ética de Kaupapa Maāori é uma responsabilidade e obrigação para com os outros. Trata-se de um arriscado valor ético, como Hoskins nos lembra, pois a assimilação cultural e a colonização podem ser um destino. A fonte dessa preocupação é o “reconhecimento de nossa relacionalidade antecedente” (HOSKINS, 2012HOSKINS, T. K. A fine risk: Ethics in Kaupapa Māori politics. New Zealand Journal of Educational Studies: v. 47, n. 2, 2012., p. 90). O reconhecimento, então, se torna um conceito-chave para a ética Maāori: reconhecimento do outro e de sua diferente constituição. Reconhecimento, nesse sentido, permanece em desacordo com a indiferença. De fato, a ética maori também “repousa na impossibilidade de completa indiferença aos outros” (2012, p. 95).

Em suas agendas, os autores trouxeram o corpo como uma preocupação ética, sugerindo que a diferença deve estar no cerne da ética. Como qualquer idealização, a universalidade moldou uma ética do protagonismo violenta e segregatícia - uma ética que entende padrões euro-americanos como universal e natural e não como uma imposição violenta. Os trabalhos citados apresentaram propostas éticas antagônicas e até ‘antiética como responsabilidade política’ (DE LA TORRE, 2013DE LA TORRE, M. A. Doing Latina/o Ethics from the Margins of Empire: Liberating the Colonized Mind. Journal of the Society of Christian Ethics, v. 33, n.1, p. 3-20, 2013.). O antagonismo é uma cicatriz para o humanismo, porque significa que nem todo mundo é coberto pela ética, porque não somos iguais. Wilderson (2010WILDERSON, F. B. Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Durham & London: Duke university Press, 2010.) acredita que o antagonismo é o dilema ético do humanismo. Não porque seja impossível superá-lo, mas porque coloca em primeiro plano a violência como mediadora das relações de poder, ou o “idioma do poder”, como ele diz:

Minha tese sobre a estrutura dos antagonismos americanos coloca a violência como um idioma de poder que marca a relação triangulada da modernidade (vermelho, branco e preto) como o amplo efeito institucional do Hemisfério Ocidental e a expressão mais perniciosa dessa institucionalidade, Estados Unidos da America. Minha afirmação, baseada no poder explicativo dos afro-pessimistas, é que a violência está no centro desse idioma de poder. A violência determina os contornos essenciais das relações Colono / “Selvagem” e Mestre / Escravo. (WILDERSON, 2010WILDERSON, F. B. Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Durham & London: Duke university Press, 2010., p. 247)

Acredito que as discussões éticas devem ter um engajamento mais prático e contextual e que não repouse na universalidade. Os textos são inspiradores para nosso engajamento com outras formas de dialogar com as demandas éticas feitas por sujeitos “indecentes”. Eles também me falam como um convite para demolir a ética como um código preestabelecido, a fim de celebrá-la como uma prática subjetiva efêmera radicalmente contextual. São um convite para sepultar a ética que representa uma “construção eurocêntrica” e é solidária com narrativas “que privilegiam a visão e as virtudes dos euro-americanos” (DE LA TORRE, 2013DE LA TORRE, M. A. Doing Latina/o Ethics from the Margins of Empire: Liberating the Colonized Mind. Journal of the Society of Christian Ethics, v. 33, n.1, p. 3-20, 2013., p.9), pois não podemos ser éticos sem rejeitar o imperialismo, a misoginia, o racismo e a colonialidade como dilemas morais do humanismo.

A próxima seção conta uma história em duas partes. Uma história de como a ética universal na área da pesquisa falhou em dois casos.

3 ANÁLISE (H)ERÉTICA

Aqui, a discussão ética é fomentada na análise de duas interações de natureza distinta. A primeira parte desta seção mostra como os “agentes intermediários” são mobilizados como agentes éticos que policiam e fiscalizam, a fim de garantir uma perfeita adequação à ética colonial e a propagação da ideologia colonialista. A história é contada através do reviver de uma conversa real no ambiente acadêmico, através das lentes analíticas, dos “gatilhos afetivos do discurso” (BONFANTE, 2018BONFANTE, G. M. A língua deles no meu corpo: o autoetnógrafo como corpo-experienciador da linguagem e do campo. Revista Veredas: Autoetnografia em Estudos da Linguagem e áreas interdisciplinares, v. 22, n. 1, p. 150-167, 2018.).

3.1 A FALTA DE ÉTICA DA UNIVERSALIDADE E O PAPEL DOS AGENTES INTERMEDIÁRIOS

O fundamento positivista que serviu de base para a construção da hierarquia entre modos de conhecimento (heréticos/profanos vs. científicos) serviu como terreno fértil para o florescimento da ética como restrição disciplinar: o fundamento da universalidade. O que, exatamente, se espera performar quando se reivindica a universalidade no campo da ética no sentido prático? Para responder a esta pergunta, reconstituo um diálogo que um doutorando sul-americano teve com um professor do norte global durante um congresso internacional sobre linguagem e sexualidade realizado na Europa. Após a apresentação do aluno sobre etnografia virtual em aplicativos de paquera com geolocalização, na qual ele defendia que o próprio consentimento livre e esclarecido, espinha dorsal da ética de pesquisa, não se referia a uma exigência ética, mas deveria ser considerado em cada contexto, alguém fez perguntas relacionadas à ética de pesquisa e as discussões continuaram neste assunto até o painel terminar. Após o término, aluno e professor continuaram conversando cercado por alguns espectadores. A seguir, é apresentada uma tentativa de reproduzir o diálogo1 1 Este exemplo foi traduzido do inglês, idioma em que ocorreu a interação. Portanto, algumas especificidades do discurso, assim como alguns detalhes analíticos, se perderam na tradução. :

Excerto 1:
Interação entre professor e aluno em congresso internacional

Embora em contexto acadêmico, a discussão foi cercada de emoções, desencadeadas por elementos discursivos, os gatilhos afetivos da linguagem. A conversa foi muito frustrante para o aluno e também muito ameaçadora. Hierarquicamente, a discussão foi extremamente eficaz no posicionamento de ambos os interlocutores. O posicionamento de ambos os sujeitos foi baseado principalmente nas emoções performadas discursivamente como frustração, ameaça e desaprovação.

Na posição hierarquicamente mais elevada estava o professor performando descontentamento, reprovação e não legitimação ou não reconhecimento; no outro lado, um estudante frustrado e ameaçado tentando defender seu trabalho. A configuração emocional do diálogo era, por si só, antiética - embora não fosse surpreendente, tendo em mente as várias relações emocionalmente abusivas entre supervisores e alunos no ambiente acadêmico. A hierarquia de poder como efeito perlocucionário da expressão de emoções possui muitas camadas, e uma delas é precisamente uma hierarquia ética distribuída globalmente que, por si só, produz ética como antiética. Por sermos moralmente sensíveis às relações éticas, a ética ou a falta dela são ambas afetivas. É por isso que as acusações de antiética nos falam de maneira ofensiva, ao contrário de profissional, e as negociações de limites éticos são sempre “práticas afetivas” (WETHERELL, 2012WETHERELL M. Affect and Emotion: A New Social Science Understanding. London: Sage, 2012.). As acusações de antiética são extremamente afetivas, pois trazem à perspectiva profissional uma falha moral pessoal.

Exercendo seu privilégio ético de julgar, o professor sugeriu que a ética deveria ser universal, pois há “consenso na área”. Portanto, ética não refletiria o contexto cultural em que as relações realmente florescem e não estaria “aberta à discussão”, como sugerido. Essa atitude discursiva também está alinhada com a descrença de uma possibilidade ética que não esteja conformada com sua própria tradição privilegiada: a euroamericana. Alguns atos de fala podem ser observados na interação, como desdém e ameaças. No início da interação, o professor desdenha o aluno dizendo que “o supervisor deveria estar preocupado”, descreditando o aluno como capaz de fazer suas próprias escolhas e decisões éticas, despindo-o de sua capacidade profissional, de sua autonomia e até de sua autoria.

Os efeitos ameaçadores foram alcançados com o emprego da negação do verbo modal will: “você não será publicado!”. A semântica da publicabilidade foi definitivamente o gatilho afetivo do ato de fala de ameaçar, pois a não conformidade com padrões éticos do Norte global levaria à impossibilidade de ser publicado ou mesmo reconhecido como pesquisador. Por fim, saliento o silêncio do professor durante a conversa como tópico analítico. Silêncio pode ser o mais barulhento no discurso, especialmente em uma conversa dialógica, como aquela entre professor e aluno. Os professores geralmente são investidos de poder sobre o turno de fala, podendo controlá-lo e organizá-lo, e o silêncio do professor tem efeitos performativos poderosos. Naquela interação, o silêncio desdenhoso performou menosprezo, com ajuda de gestos faciais como o “levantar das sobrancelhas” e o “torcer dos lábios”. Atos de fala como desdém, ameaças e desprezo não são apenas ferramentas para colocar alguém em seu lugar subordinado - às vezes em nome da ética garantida por uma posição privilegiada. Atos de fala também nos ajudam a organizar o mundo emocionalmente. Na posição hierárquica mais alta, existe alguém que pode executar e produzir sensações e emoções negativas no outro. No extremo mais baixo está um candidato a doutorado da América do Sul que deveria suportar nos ombros sua posição submissa. Se essas emoções negativas devem ser produzidas discursivamente em nome da preservação da Ética universal e seu status quo, então esse modelo ético deve ser questionado como antiético, violento (WILDERSON, 2010WILDERSON, F. B. Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Durham & London: Duke university Press, 2010.) racista (WARREN, 2014WARREN, C. Onticide Afropessimism, New York: Queer Theory, & Ethics, 2014.; WYNTER, 1994WYNTER, S. No Humans involved: an open letter to my colleagues. In: Forum N.H.I., v. 1, n. 1, Fall. Stanford Institute, 1994.), homofóbico (VIDARTE, 2007VIDARTE, P. Ética marica. Madrid: Egales 2007.), colonialista, e deve ser denunciado como guardião de privilégios e instrumento de manutenção do status quo. Como Johnson afirma:

O privilégio concede a autoridade cultural para fazer julgamentos sobre os outros e fazer com que eles se mantenham. Privilégio permite que as pessoas definam a realidade e que as definições prevalecentes da realidade se ajustem à sua experiência. Privilégio significa ser capaz de decidir quem é levado a sério, quem recebe atenção, quem é responsável por quem e por quê. (JOHNSON, 2001JOHNSON, A. Privilege, Power and Difference. Mountain View, CA: Mayfield, 2001., p. 33)

O privilégio ético é disfarçado sob o ideal de universalidade, como Vidarte sugere, posicionando requisitos éticos de forma análoga aos procedimentos de controle e opressão:

Toda ética universal, em última análise, é absolutamente particular. É uma ética de classe, de pessoas eleitas, de heterossexuais, de homens, de uma maioria que procura impor uma ética específica - na medida em que é um pensamento dominante - a todos, em benefício próprio e em detrimento de minorias que não pertencem aos arredores do poder: a fundação ou proclamação de uma ética é sempre uma operação de poder, de opressão, de controle social. (VIDARTE, 2007VIDARTE, P. Ética marica. Madrid: Egales 2007., p. 8)

Embora meus argumentos sejam precisamente de que alguém pode ser antiético em nome da ética e que ética é necessariamente uma prática opressora e controladora social para o outro, precisamos entender com mais detalhes como o privilégio é organizado entre os agentes éticos. Portanto, introduzo o conceito de agentes intermediários, para discutir uma categoria de agentes que acreditamos ter a liberdade de escolher, mas que são, em última instância, coagidos.

Kay (2013KAY J. W. Middle Agents as Marginalized: How the Rwanda Genocide Challenges Ethics from the Margins. Journal of the Society of Christian Ethics, v. 33, n.2, p. 21-40, 2013.), analisando o papel ético do colonialismo no genocídio de Ruanda, nos lembra como “agentes intermediários” podem ser eticamente esquecidos, ficando expostos à grande violência de seus pares. Seu texto ilustra como os tutsi, embora a classe privilegiada em Ruanda, fora subornada e ameaçada pelas forças coloniais com o intuito de emprestar seu rosto à exploração colonial, tornando-se vítimas de um genocídio de 2 milhões de pessoas. Tanto o professor, nesse caso, quanto os comitês de ética locais são agentes intermediários em relação às determinações éticas que advogam pela colonização docilizada. Kay (2013) acredita que agentes intermediários também são coagidos a posições subordinadas e a exploração, que podem ser disfarçadas pelos privilégios sociais que possuem. Ao direcionar para os agentes intermediários (professores, comitês) a frustração de “sujeitos antiéticos” e de “sujeitos para quem a ética falha”, a “ética universal” é mantida protegida de criticismo e preocupada com a liberdade e o sofrimento de alguns sujeitos apenas, enquanto esquece outros e subjuga todos eles. Assim, uma ética das margens e para as margens não é mais suficiente. Precisamos de ética que penetre os privilégios e se faça no centro, e para tanto precisamos convencer e dobrar agentes intermediários.

Sugiro os comitês locais de ética e a supervisão de professores serem agentes intermediários no que diz respeito ao colonialismo ético, pois possuem o privilégio de ter “uma visão correta” da ética, que não é, contudo, livre, mas coagida pelo caráter universalista da ética na área de pesquisa. É inútil criticar comitês e estudiosos sem empatia e enorme respeito, como observa De La Torre: “Poucos especialistas em ética euro-americanos e eticistas de cor tentando assimilar as definições euro-americanas de excelência acadêmica reconhecem como os paradigmas éticos que eles advogam são reforçados por uma localização social e privilegiados pela classe econômica e pela branquitude.” (DE LA TORRE, 2013DE LA TORRE, M. A. Doing Latina/o Ethics from the Margins of Empire: Liberating the Colonized Mind. Journal of the Society of Christian Ethics, v. 33, n.1, p. 3-20, 2013., p. 8).

3.2 “TÁ CHOVENDO PIROCA”: DEBOCHANDO DO CONSENTIMENTO

No segundo empreendimento analítico deste artigo, estudo interações que tive durante meu campo etnográfico doutoral estudando o intercâmbio de performances “íntimo-espetaculares” em grupos de WhatsApp para performances de sexo bareback: sem camisinha. O objetivo da investigação era entender a relação entre linguagem e corpo através da análise de disposições afetivas e performances de partes de corpo em interações sexuais online. Ilustro através da análise de uma interação que tive com os participantes em um dos grupos de WhatsApp investigados que o consenso - concebido no campo da pesquisa ética - nem sempre faz sentido porque não corresponde à compreensão ética de diferentes “comunidades de prática” (WENGER, 1998WENGER, E. Community of practice: learning, meaning and identity. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.). Também argumento que comunidades têm diferentes entendimentos de intimidade e de quais características subjetivas devem ser cuidadas e preservadas pelo pesquisador, já que relações éticas são construídas contextualmente. Os grupos de WhatsApp com os quais interagi eram voltados à performance do sexo bareback (BB) - sem camisinhas - entre homens. O intenso compartilhamento de pornografia e da própria intimidade nos grupos do WhatsApp BB chama a atenção para o paradigma da intimidade espetacular. Contemporaneidade íntimo-espetacular corresponde à performance da vida contemporânea, baseada na extensa espetacularização dos mais íntimos detalhes, abraçando um modelo ético que privilegia uma superexposição anônima de corpos e partes deles, e reformula o conceito de obscenidade: o que deve estar fora de cena não é a intimidade do corpo, mas alguns corpos indesejados. Além da espetacularização da intimidade como parâmetro ético nos grupos, pode-se apontar também que o “risco compartilhado” (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009PELÚCIO, L.; MISKOLCI, R. A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 1, p. 125-157, 2009.) do sexo desprotegido também é projetado como fundamento ético no compartilhamento de imagens e descrições íntimas, que, embora íntimas, não são privadas. Como Berlant e Warner (2013BERLANT, L.; WARNER, M. Sex in Public. In: HALL, D.; JAGOSE, A.; BEBELL, A.; POTTER, S. (Org.). The Routledge Queer Studies Reader. New York: Routledge, 2013, p. 165-179.) apontam: não apenas sexo é público, como intimidade não é o antônimo de público.

A resolução brasileira de ética de 2016 prevê as ciências humanas como campo específico do conhecimento que não pode ser submetido acriticamente a códigos éticos das áreas biológicas e da medicina, porque apresentam distintos riscos a sujeitos sensíveis. Ademais, espera-se que a pesquisa em ciências humanas se envolva em uma discussão sobre ética sempre que necessário. Assim, alguns procedimentos metodológicos e/ou natureza dos dados são automaticamente liberados da atenção (ou vigilância) ética pelos comitês. Dentre essas peculiaridades, destaca-se o artigo III: “pesquisa utilizando informações de domínio público” e o artigo V: “pesquisa com bancos de dados, cujas informações são agregadas, sem possibilidade de identificação individual”. Embora eu acredite que o documento seja muito bem escrito e de vanguarda em comparação com a literatura da área, existem dois problemas principais: 1) foco nas peculiaridades de conceitos metodológicos que foram implodidos pelos fenômenos de “descomputadorização” (VARIS, 2014VARIS, P. Digital Ethnography. In: Tilburg Papers in Cultural Studies. Paper 104, 2014.) como dados e campo. 2) Os documentos não consideram como as relações éticas e os conceitos que as guiam são forjadas in situ.

Abordemos 1): Internet móvel causou uma confusão categórica na etnografia digital, na medida em que conceitos como campo, documento e público se tornaram contextuais. Eles precisam ser explicitados para não direcionar a análise para a abordagem tradicional (que é sempre colonial) dos dados. Os grupos com os quais pesquiso são anônimos, abertos e elegem a performance íntimo-espetacular (envio e consumo) como principais técnicas de sociabilidade. Os participantes mostram conhecimento sobre a ampla circulação de suas performances, a qual eles aprovam. Os que não aprovam a circulação de seu conteúdo não participam enviando, mas apenas consumindo. As performances analisadas não são originárias nem exclusivas dessa mídia. Todos os conteúdos (memes, fotos, vídeos, discursos) também podem ser encontrados fora dos grupos, em domínio público. Contudo, localizar a pesquisa no WhatsApp é importante porque o aplicativo funciona como a ferramenta de pesquisa no ambiente de circulação de performances íntimo-espetaculares: o meu próprio celular.

Considerando as especificidades do contexto de pesquisa e do interesse científico, o conceito de documentos para basear experiência on-line não parece atualizado, até porque os dados não são armazenados nem guardados: eles nos visitam, nos inspiram e são esquecidos. O esquecimento dos dados é uma responsabilidade ética. Documentos não é adequado, pois ninguém os assina. A internet oferece diferentes territórios de circulação que nos permitem escolher o grau de anonimato. Portanto, como pesquisadores, não devemos nos perguntar se um documento é público ou não, mas como é a circulação de discursos e performances e como é o acesso a eles. Assim, entendo que meus espaços on-line para pesquisa são constituídos pela livre passagem de pessoas anônimas, livres para ir e vir como quiserem, compartilharem e consumirem livremente, vivendo de acordo com as regras éticas do "risco compartilhado" e da "espetacularização de intimidade". Um fato interessante sobre o campo é precisamente o compartilhamento de links para participar dos grupos. Eles são compartilhados no WhatsApp, em sites pornográficos e perfis no Twitter, e facilitam a participação e saída quando desejadas. Portanto, em vez de documentos de domínio público, entendo os grupos do WhatsApp como territórios de trânsito livre e troca livre de performances, e os dados como discursos públicos sobre desejo bareback e performance de partes do corpo circuladas extensamente.

Sinto-me muito confortável quanto a minhas escolhas éticas e à prescindibilidade de “pedir consentimento” para pesquisar performances oriundas de práticas sociais e não expressões individuais, como metáforas, memes, gírias, descrições, especialmente se circuladas em espaço público. Porém, me propus a obter consentimento livre para me proteger de críticas de agentes intermediários, como professores e comitês, mesmo defendendo a contextualidade de sua preteribilidade. É previsto, no artigo XXII da Resolução brasileira de Ética de 2016, que o registro do consentimento é diverso: um

documento em qualquer meio, formato ou mídia, como papel, áudio, filmagem, mídia eletrônica e digital, que registre a concessão do consentimento livre e informado. A forma do registro é escolhida respeitando as características individuais, sociais, linguísticas, econômicas e culturais dos participantes da pesquisa e relativa às abordagens metodológicas aplicadas. (BRASIL, 2016)

Seguindo a recomendação, publiquei em um dos grupos uma mensagem explicando minha pesquisa e pedindo pelo consentimento para usar dados que fluíam ali e que na realidade não eram possuídos por ninguém. O pedido em si era descabido, pois se referia à circulação de performances e não da criação de conteúdos originais, contudo abracei as recomendações éticas do meu comitê. Na mensagem enviada, divulguei detalhes sobre a pesquisa e expliquei como nós (eu também) poderíamos lucrar com a divulgação dos resultados da pesquisa, especialmente no que se refere à saúde sexual. Pedi a eles que comentassem com "ok" para expressaram seu consentimento e os convidei a fazer perguntas, caso quisessem. Dos 134 participantes, 33 escreveram "ok", o que me levou a abordá-los uma segunda vez, visando os consentimentos faltantes. O texto a seguir é uma transcrição da segunda mensagem e das respostas obtidas:

Excerto 2:
Interação entre pesquisador e colaboradores

Explícitas ao leitor estão a corporalidade de tal experiência semiótica online e o emprego de performances de partes do corpo para zombar de exigências burocráticas de consentimento e de seu caráter interventivo como um código ético estranho2 2 Foi-me um tanto embaraçoso insistir no pedido de consentimento porque tal insistência performava uma falta de intimidade com a dinâmica do contexto estudado, causando um estranhamento dos participantes do grupo e uma desconfiança quanto a eu ser um deles, ou mesmo um sujeito confiável. . O corpo e suas emoções, sentimentos e sensações estão presentes através de imagens e emoticons que nos guiam afetivamente de maneira significativa através dessas performances desejantes. O deboche foi performado através da mobilização de gatilhos afetivos: vocabulário específico de pesquisa, como “consentimento” e “pesquisa”, associados à performance semiótica de seus órgãos genitais. “Consente isso”; “pesquisa meu cu” são performances de desrespeito ou desobediência a códigos éticos dominantes, dos quais meus sujeitos não comungam. Simultaneamente, zombar de nosso código ético como um exagero, distorcendo os sentidos de vocabulário típico da burocracia acadêmica ao sabor do desejo, declara seu conhecimento e concordância sobre a presença do pesquisador no campo, enquanto performa desinteresse pela pesquisa sendo desenvolvida ali e talvez descrédito da assunção de que ela poderia nos beneficiar.

Fato analítico pulsante é como meu próprio corpo foi trazido para a discussão. Não apenas meu corpo, mas também minha sexualidade e suposta promiscuidade. Nos grupos com que interagi, a performance da promiscuidade é altamente apreciada, de modo que praticantes frequentes de sexo são elogiados e não criticados quando chamados de “promíscuos”. BONFANTE (2019BONFANTE, G. M. Breeding Theory: Foucault e Goffman no estudo de performances do desejo bareback em grupos do WhatsApp In: MAIA, H. T.; OLIVEIRA, T. (Org.) Práticas sexuais: itinerários, possibilidades e limites. Salvador: Devires, 2019.) sugere que o deboche elogioso da promiscuidade é partidário do “paradigma do sexo e da amizade”: performances de camaradagem baseada em relações sexuais. Assim, acredito serem atestados claros de acolhimento do pesquisador e consentimento da pesquisa, sugestões de que eu “consenti pra geral” ou ainda de que sou “arrombada”, enquanto performavam um deboche do meu apego ingênuo à coleta do consentimento. As formas de construir discursivamente o pesquisador também são interessantes: “pesquisador”, “minha putinha”, “essa arrombada”, “gato”, pronomes como “tu” e “ele” e até meu nome próprio. Primeiramente, essa alternância radical sugere que, nos grupos de WhatsApp BB, a distinção entre pesquisador e participante não pode ser sustentada, nem quando se trata de relações de poder nem de papéis preestabelecidos na pesquisa. Em segundo lugar, até performances conhecidamente profissionais podem e serão sexualizadas. Terceiro, embora almejasse ao empreendimento investigativo, é impossível ignorar a presença afetiva do corpo-pesquisador em contextos sexualizados de pesquisa.

Voltar-se para nossos arredores, para nossa linguagem e para o próprio corpo foi, para pesquisadores sobre sexualidade, a única alternativa viável para contornar os requisitos éticos que comumente impossibilitam pesquisas sobre sexualidade. Um exemplo é a pesquisa de Bolton (1996BOLTON, R. Tricks, friends and lovers: erotic encounters in the field. In: KULICK, D.; WILSON, M. (Org.). Taboo: sex, identity and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. New York: Routledge, 1996 [1995]. p. 140-167. [1995]), que “não teria sido possível se ele não tivesse estudado seus amigos e amantes”. Para o etnógrafo de práticas sexuais entre homens gays na década de 1980, sexo com informantes forjava intimidade e laços duradouros de afeto, fundando um diálogo honesto e diluindo as fronteiras entre sujeito e objeto. Também Dean (2009DEAN, T. Unlimited intimacy: reflections on the subculture of barebacking. Chicago: University of Chicago Press, 2009.) pesquisou a subcultura bareback como praticante de sexo desprotegido. Sua inserção no campo não apenas permitiu acesso às práticas sexuais que investigou, mas contribuiu para a desmistificação de suposições patológicas ou suicidas sobre práticas sexuais consentidas que buscavam a intensificação de prazeres. O corpo de Dean, seu sexo e seu próprio sêmen eram meios de interação com o campo.

Assim, passei a acreditar que “o corpo do pesquisador na prática etnográfica pode ser convertido em um instrumento de acesso ao campo” (ZAGO; SOUZA, 2014, p. 46) e um instrumento de interação com os dados. Atenção ao nosso próprio corpo nos ajuda a não nos abster de interações sensuais que circulam através de semioses corpóreo-afetivas como forma de entender as experiências do campo através de sensações e sentimentos, pois 'todas as percepções e experiências são potencialmente dados' (BOLTON, 1996BOLTON, R. Tricks, friends and lovers: erotic encounters in the field. In: KULICK, D.; WILSON, M. (Org.). Taboo: sex, identity and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. New York: Routledge, 1996 [1995]. p. 140-167. [1995], p.148; BENÍTEZ, 2007, p.95). Atenção aos efeitos perlocucionários que o corpo do pesquisador provoca também é relevante para a narrativa para entender diferentes histórias por trás de corpos distintos. A atratividade física deve ser discutida no campo como uma influência nos resultados da pesquisa (KENDALL, 2008, p. 106; BRAZ, 2007). Como o episódio acima sugere, meu corpo e todos os valores sociais em torno dele não foram discretos no campo, eles serviam tanto como sustentação da subjetividade de pesquisador quanto tópico investido em interações. Meu corpo também se tornou o alvo simbólico do deboche da metodologia. Ao me enviar fotos de pênis eretos, os sujeitos de pesquisa não apenas debocharam dos procedimentos ético-metodológicos, mas profanaram o “intocável” corpo-pesquisador perante nossa moral e ética ao sexualizá-lo.

Após o episódio descrito, senti-me ridicularizado como pesquisador e menosprezado como promotor de bem-estar na vida da comunidade que estudava. Acompanhado por essas perturbações, escrevi ao moderador do grupo e compartilhei com ele minha angústia de não obter o consentimento livre de todos. Uma angústia causada por uma expectativa ético-metodológica não-flexível. Sua resposta segue:

Excerto 3:
Declaração de apoio e consentimento

Nesta resposta, gostaria de destacar três pontos: primeiramente, a redescrição da intimidade e da privacidade: de acordo com ele, coletar dados como nome e RG para obter o consentimento parecia mais invasivo do que analisar e compartilhar performances íntimo-espetaculares. Em outras palavras, requerer consentimento assinado significaria um atentado à privacidade muito mais sério do que analisar performances da genitália, cujo intuito era a circulação semi-anônima. Em segundo lugar, o moderador entende uma diferença importante entre colaborar na pesquisa e se envolver burocraticamente nela, que os códigos éticos parecem não compreender: a forma mais confortável de participar seria a de “quem cala consente”, encorajando-me a analisar os dados, contudo sem o comprometimento de uma anuência assinada. Assinar um consentimento garante o envolvimento burocrático na pesquisa e a conformidade com a posição preestabelecida de sujeito estudado, mas não a colaboração livre de um sujeito. Finalmente, ressalto as declarações de confiança e apoio. Na resolução de ética brasileira de 2016, o “processo de obtenção de consentimento” é descrito no artigo XX como: “um processo baseado na construção de uma relação de confiança entre pesquisador e participante da pesquisa, de acordo com sua cultura e continuamente abertos ao diálogo e ao questionamento, sendo o registro deles obtido não necessariamente por escrito”. Se o consentimento é construído sobre a confiança, as declarações de confiança e apoio dos participantes deveriam por si ser entendidas como expressões de consentimento. Embora a resolução sugira que a relação seja aberta a questionamento, ela não prevê questionamentos dos colaboradores que deslegitimem sua autoridade como diretriz universalizante nas relações éticas.

Por outro lado, acredito ser bastante justo que os participantes elejam o modelo ético que permeia suas vidas, porque a ética nos “fode o rabo” (VIDARTE, 2007VIDARTE, P. Ética marica. Madrid: Egales 2007.), sendo especialmente moralizante para a promiscuidade. A presença de uma ética universal como parâmetro reproduz a dinâmica do colonialismo, que, possibilitada pela demanda de ética universal, estipula lugares fixos no empreendimento científico: o colonizado é investigado pelo colonizador que produz verdades sobre eles enquanto conhecimento produzido através de ético-metodologia marginal será sempre considerado antiético para os grupos dominantes, fundando uma violência ética que aposta na desvalorização de conhecimentos marginais e nativos. A ética tornou-se, em muitos casos, um instrumento de deslegitimação do conhecimento produzido por pesquisadores colonizados que resistem à colonização. Falar com nossas próprias vozes é um ato de fala frequentemente rechaçado como conhecimento (h)erético. Ao impor uma perspectiva ética de base euroamericana que não necessariamente faz sentido no contexto investigado, comitês de ética e pesquisadores bloqueiam simbolicamente a produção de conhecimentos que poderiam ser libertadores, pois permitiriam que nossos conhecimentos fossem forjados com nossas próprias palavras, sentimentos e modelos éticos, livrando-nos do “parasitismo e devastação” (WILDERSON, 2010WILDERSON, F. B. Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Durham & London: Duke university Press, 2010.) do colonialismo. Como Cowan e Rault (2018COWAN, T. L.; RAULT, J. Onlining queer acts: digital research ethics and caring for risky archives. Women & Performance: a journal of feminist theory, v. 28, n. 2, p. 121-142, 2018.) apontam: os benefícios mais claros da pesquisa geralmente são um acréscimo ao corpo de conhecimento, e não melhorias práticas para a comunidade estudada. Acredito que a não aplicabilidade do conhecimento pode ser impossibilitada pela necessidade de universalização ética de sujeitos e grupos que rejeitam um modelo ético euro-americano. Imposições étnico-metodológicas fazem muitas vezes as pautas dos grupos pesquisados se perderem em tradução ética.

Privilegiar a ética universal em detrimento da dos participantes brasileiros significa perpetuar a hierarquia entre o norte e o sul global. Como De La Torre observa: “Para que a ética seja libertadora, ela deve ir além da ética da cultura dominante. Por quê? Porque a maioria das éticas baseadas na América do Norte ignora ou fornece justificativa para as estruturas predominantes de opressão”. (2013, p. 9). As implicações ético-metodológicas da imposição de um código ético produzem um corte entre a ciência válida (produzida nos moldes do norte) e o conhecimento profano. Tal cisão entre pesquisa boa, justa, correta e conhecimento herético, ruim, desqualificado não pode mais ser sustentada pelo argumento de que a última seria coroada pela falta de ética.

4 ÉTICA E LIBERDADE: A HERESIA DA EMANCIPAÇÃO

Ética é a forma refletida assumida pela liberdade.

(Michel Foucault, Ditos e Escritos)

Como o principal interesse de Foucault era a subjetividade (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, M. Afterword: the subject and Power. In DREYFUS, H.; RABINOW, P. (Org.) Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. London: Harvester Wheatshea, 1996. p. 208-226.), ele inspirou minha busca pela liberdade e por uma ética libertária. Nas suas palavras: “o sujeito é constituído pelas práticas de sujeição, ou mais autonomamente, pelas práticas de libertação e liberdade [...]” (1984, p. 291). Acreditando, com Foucault, que “a liberdade é a condição ontológica da ética” (1984, p. 267), não sugeri neste artigo apenas um caminho ético alternativo possível, mas propus diferentes maneiras de ser antiético aos olhos de uma ética de pesquisa euro-americana. Falhar a ética universal significa para uma subjetividade indesejada ser livre, ter voz e viver pela sua própria ética. As antiéticas que abracei aqui são três e representam meu compromisso com a transgressão (PENNYCOOK, 2006PENNYCOOK, A. Por uma Linguística aplicada transgressiva In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma Linguística Aplicada (In)disciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 98-122.) e com o “desaprender” (FABRICIO, 2006FABRÍCIO, B. F. Linguística Aplicada como espaço de “desaprendizagem”: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma Linguística Aplicada (In)disciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 34-62.) como responsabilidade ética dos pesquisadores, uma vez que temos a obrigação de ser antiéticos aos olhos do opressor (VIDARTE, 2007VIDARTE, P. Ética marica. Madrid: Egales 2007.; DE LA TORRE, 2013DE LA TORRE, M. A. Doing Latina/o Ethics from the Margins of Empire: Liberating the Colonized Mind. Journal of the Society of Christian Ethics, v. 33, n.1, p. 3-20, 2013.). Neste artigo, me propus a ilustrar com análises que: 1) a universalidade é a maior falta de ética da ética; relações éticas são inerentemente locais e contextualmente construídas; 2) consentimento livre e esclarecido não é entendido universalmente nem garante a proteção dos participantes; e 3) os significados de “íntimo” e “público” não devem ser definidos previamente por pessoas brancas heterossexuais, mas negociados in situ.

Sugeri também que a universalização da ética é um procedimento nefasto de controle metodológico da pesquisa. O norte controla o que o sul global ou os corpos queer pensam e como pensam, a fim de garantir que os procedimentos do pensamento reforcem e legitimem seus próprios direitos como opressores. Exigir total adequação à ética euro-americana como condição de publicação é exigir a submissão e prisão de diversos sujeitos e seus corpos em suas posições colonizadas, contribuindo para a grandeza do Império de outros e para a produção do conhecimento que o colonizador julga pertinente. Afinal, como o colonizado pode se rebelar contra seu opressor, seguindo as regras da própria opressão? A colonização nunca pode ser questionada adequadamente segundo os recursos simbólicos que os colonizadores nos fornecem. Ética, entre eles.

A ética não deve proteger o pesquisador em sua ação, mas nos desafiar a ficar sempre desconfortáveis com nossas próprias palavras (FOUCAULT, 2000FOUCAULT, M. For an ethic of discomfort, 2000. Disponível em: https://monoskop.org/images/b/b9/Foucault_Michel_Power_2000.pdf. Acesso em: maio 2019.
https://monoskop.org/images/b/b9/Foucaul...
). Ética em pesquisa deve nos manter indefinidamente em horizonte de autoquestionamento, o que não pode ser alcançado apenas seguindo medidas burocráticas, pois “a proteção dos participantes da pesquisa depende muito mais da integridade, intenções e inteligência dos pesquisadores, e da preocupação com o bem-estar da população estudada do que com instrumentos formais e burocráticos” (BOLTON, 1996BOLTON, R. Tricks, friends and lovers: erotic encounters in the field. In: KULICK, D.; WILSON, M. (Org.). Taboo: sex, identity and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. New York: Routledge, 1996 [1995]. p. 140-167. [1995], p.156). (H)erética foi inspirada por meus colaboradores quando zombaram do consentimento, performando suas ereções. (H)erética é uma resposta eticamente justificável ao professor que esmagou o trabalho do aluno sul-americano sob expectativas colonizadoras da experiência científica. Deboche (dos colaboradores) e Desdém (do professor) me fizeram desrespeitar um metadiscurso de privilégio eurocêntrico que ajudei a erigir para buscar a verdadeira libertação do meu corpo sul-americano, queer, promíscuo. (H)erética clama por uma ética local e corporificada, porque somos nossas performances corporais e elas definem nossas experiências no mundo. As éticas devem ser corporificadas para dramatizar a dimensão afetiva das relações sociais. A necessária corporificação das relações éticas denuncia a falta de ética dispensada a alguns corpos e demole o universalismo, ressaltando que se a liberdade é condição da ética, poucos são deveras abrangidos por ela. A liberdade também é condição ética para cuidado do outro (FOUCAULT, 1984, p. 270) para o cuidado de si mesmo. Portanto, a proposta da Herética é emancipatória e libertária não apenas porque nos permite cuidarmos uns aos outros, mas porque realça a necessidade de uma ética de resistência contra nossa exclusão da mesa de privilégios. Liberdade, entre eles.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Este exemplo foi traduzido do inglês, idioma em que ocorreu a interação. Portanto, algumas especificidades do discurso, assim como alguns detalhes analíticos, se perderam na tradução.
  • 2
    Foi-me um tanto embaraçoso insistir no pedido de consentimento porque tal insistência performava uma falta de intimidade com a dinâmica do contexto estudado, causando um estranhamento dos participantes do grupo e uma desconfiança quanto a eu ser um deles, ou mesmo um sujeito confiável.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2020
  • Aceito
    23 Jun 2021
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