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A PRIMAVERA DAS MULHERES: RECITAÇÃO DE MITOS E TRAJETOS DE MEMÓRIA EM CAPAS DE REVISTAS

The Women’s Spring: Recitation of Myths and Memory Moves on Magazine Covers

La primavera de las mujeres: recitación de mitos y memoria en portadas de revistas

Resumo

Este artigo analisa discursivamente as capas das revistas Época e Istoé publicadas em novembro de 2015, período de efervescência de manifestações de mulheres nas ruas das grandes cidades brasileiras. Objetiva-se compreender como os discursos dessas mídias fabricam o acontecimento Primavera das Mulheres na relação entre imagens e legendas, produzindo sentidos sobre o que é visto e lido. O arsenal-teórico se serve da interlocução entre o conceito de mito desenvolvido pela Semiologia de Roland Barthes e postulados da Análise de Discurso francesa acerca da imagem como operadora social de memória, uma vez que os discursos das mídias tensionam formas, significação e história. A análise demonstra que as capas apresentam procedimentos de conotação que deslocam significantes, atribuindo-lhes significados históricos. Assim, recitam mitos como o da “juventude que sonha com a revolução” e acionam, por analogia e associação a imagens anteriores, trajetos de memória que remontam ao acontecimento da Primavera Árabe.

Palavras-chave:
Discurso; Semiologia; Mídia; Feminismo

Abstract

This article presents a discursive analysis of Época and Istoé magazine covers published in November 2015, an effervescent period of women’s protests in major Brazilian cities’ streets. We propose understanding how these media discourses constitute the Women’s Spring event in the correlation between images and captions, producing significance about what is seen and what is read. We establish the theoretical foundation on the interlocution between the concept of myth developed by Roland Barthes’ Semiology and postulates of French Discourse Analysis about the image as a social memory operator because the media discourses challenge forms, signification, and history. The analysis demonstrates that the magazine covers present connotation procedures that move significants, atributting then historical meanings. Thus, the magazine covers recite myths such as the “youth who dreams about revolution” and activate, by analogy and association to previous images, memory trajectories that date back to the event of Arab Spring.

Keywords:
Discourse; Semiology; Media; Feminism

Resumen

Este artículo analisa discursivamente portadas de las revistas Época e Istoé publicadas en noviembre de 2015, un período de efervescencia de manifestaciones de mujeres en las calles de las grandes ciudades brasileñas. El objetivo es comprender cómo los discursos de estos medios fabrican el acontecimiento Primavera de las Mujeres en la relación entre imágenes y subtítulos, produciendo significados sobre lo que se ve y lo que se lee. El arsenal teórico se basa en la interacción entre el concepto de mito desarrollado por la Semiología de Roland Barthes y los postulados del Análisis del Discurso francés sobre la imagen como operadora social de la memoria, ya que los discursos de los medios tensan formas, significados e historia. El análisis demuestra que las portadas presentan procedimientos de connotación que desplazan significantes, atribuyéndoles significados históricos. Así, recurren a mitos como el de “la juventud que sueña con la revolución” y activan, por analogía y asociación con imágenes anteriores, trayectorias de memoria que se remontan al evento de la Primavera Árabe.

Palabras clave:
Discurso; Semiótica; Medios de comunicación; Feminismo

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, analisamos as capas das revistas Época e Istoé de novembro de 2015, que noticiam a proliferação simultânea de manifestações de mulheres pelas ruas das grandes cidades do Brasil. Designada pela revista Época de “Primavera das Mulheres”, a ação feminista1 1 Neste trabalho, assumimos a concepção de feminismo enquanto “[...] movimento que produz sua própria reflexão crítica, sua própria teoria” para entender e modificar situações de opressão contra as mulheres (Pinto, 2010, p. 15). Dada sua historicidade, nota-se a existência de feminismos, no plural, que refletem as necessidades, transformações e impasses de diferentes gerações, identidades, classes e raças de mulheres em variados lugares do mundo. A título de exemplo, podemos citar o feminismo sufragista, que marca a primeira onda do feminismo no século XX, bem como o feminismo que reivindica a autonomia e liberdade dos corpos em favor dos direitos reprodutivos, militância situada nos anos 1960, no contexto da Guerra do Vietnã e do movimento hippie (Pinto, 2010). No Brasil, os feminismos se caracterizam conforme as urgências históricas, como, por exemplo, a legalização do voto feminino, o regime militar, a abertura política, o trabalho das mulheres acadêmicas no espaço universitário, entre outros (Pinto, 2010). Neste artigo, optamos por utilizar o termo feminismo no singular, apesar de constatarmos que o movimento de mulheres de 2015 se organiza em um contexto cujas lutas giram em torno de pautas identitárias como gênero, raça e classe, e da resistência a práticas opressoras como o assédio sexual, a misoginia e o racismo. não surgiu de forma aleatória, uma vez que foi motivada por acontecimentos2 2 No final de 2015, houve uma conjunção de fatores que constituíram as condições de produção para a circulação e a ampla visibilidade de discursos sobre feminismo em grandes veículos midiáticos brasileiros, tais como a) a retramitação do Projeto de Lei 5069/2013, pelo então deputado federal Eduardo Cunha, que tornava mais complexas as regras para o aborto em caso de estupro; b) o caso de pedofilia no Twitter à menina Valentina, participante do programa de televisão Masterchef; c) a campanha viral #meuprimeiroassedio nas redes sociais; d) os ataques racistas a mulheres negras que trabalham na TV aberta (a atriz Taís Araújo e a jornalista Maria Júlia Coutinho); e) o tema de redação do ENEM de 2015, que abordou a persistência da violência contra a mulher e a questão da prova referente à filósofa francesa e feminista Simone de Beauvoir. daquela pontualidade histórica referentes à condição da mulher, debatidos nas mídias digitais e impressas e, sobretudo, nas redes sociais.

As capas das revistas trazem imagens de mulheres jovens protestando nas ruas, acompanhadas de legendas explicativas, uma “[...] passagem do visível ao nomeado” (Pêcheux, 1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. In: ACHARD, P. (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57., p. 51) que atribui ao acontecimento contornos de primavera política. Ademais, para noticiar o fato, as mídias mobilizam imagens e enunciados verbais que recitam mitos cotidianos, favorecendo a produção de efeitos de lembrança e analogia a movimentos juvenis e revoluções sociais. Com isso, as mídias realizam um trabalho sobre as formas e a mensagem fotográfica, que, ao registrar um fato cotidiano e explicá-lo ao leitor, acabam produzindo o histórico (Barthes, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980.).

Nesse sentido, chama a atenção a significação produzida a respeito daquela manifestação feminista em particular, registrada pelas capas das revistas. Diferentemente de protestos feministas anteriores (como a Marcha das Vadias, em 2011, por exemplo), os protestos de novembro de 2015 são colocados em discurso com destaque (surgem na capa) e como um espetáculo aos olhos do leitor: um levante feminista que irrompe como primavera política. Posto isso, podemos questionar: as imagens e manchetes que estampam as capas representam de forma “neutra” o evento noticiado? Elas significam “naturalmente” uma Primavera das Mulheres? A mensagem denotada pelas capas encerra uma verdade através daquilo que vemos e lemos?

Dada essa problematização, atentamos para a produção de sentidos das capas com vistas a descrever o funcionamento de discursos midiáticos na fabricação do acontecimento denominado Primavera das Mulheres. Para tanto, analisamos as significações daquilo que é visto e dito acerca do fato, numa relação do simbólico com o histórico que permite a recitação de mitos (como aqueles ligados aos movimentos revolucionários juvenis) e a retomada de trajetos da memória social (como a Primavera Árabe de 2011).

No que tange à fundamentação teórica, estabelecemos uma articulação entre a Análise de Discurso francesa, campo que investiga as determinações históricas na produção dos sentidos pela linguagem, e a Semiologia de Barthes, campo que abrange a dimensão discursiva de linguagens verbo-visuais. Essa proposta se justifica porque, conforme assinala Gregolin (2011GREGOLIN, M. R. Análise do discurso e semiologia: enfrentando discursividades contemporâneas. In: PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. Discurso, semiologia e história. São Carlos: Claraluz, 2011. p. 83-105.), a análise dos discursos da mídia demanda uma Semiologia de caráter histórico e social, um trabalho com as formas (a imagem e o verbal) que tensiona significação e historicidade.

Assim, mobilizamos de Roland Barthes (1990BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.; 1980) os conceitos de mito, denotação e conotação da mensagem fotográfica, analogia e associação. Trata-se, pois, de pressupostos teóricos que permitem interlocução com postulados de Michel Pêcheux (1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. In: ACHARD, P. (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57.) e Jean Davallon (1999DAVALLON, J. A imagem, uma arte da memória? In: ACHARD, P. et. al. (Org.). Papel da memória. Tradução José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 23-33.) acerca da imagem como operadora social de memória. Assim, a imagem funciona como materialidade discursiva que comporta um programa de leitura e agencia uma lei do legível para a produção de sentidos.

Antes de continuar, contudo, convém assinalar que este artigo apresenta recorte de análise desenvolvida em um estudo maior, a saber, nossa tese intitulada Novo feminismo: acontecimento e insurreição de saberes nas mídias digitais (Gonzaga, 2018GONZAGA, J. A. Novo feminismo: acontecimento e insurreição de saberes nas mídias digitais. 2018. 393 f. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) - Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo, 2018.). Consonante ao trabalho anterior, propomos compreender como os discursos das capas das revistas Época e Istoé fabricam o acontecimento Primavera das Mulheres através da recitação de mitos e trajetos de memória. Naquele trabalho, assumimos como objetivos específicos: i) compreender a produção de sentidos de “primavera das mulheres”, atentando para a relação entre imagens, manchetes e legendas; ii) verificar como o procedimento de conotação nas fotografias das capas deforma a mensagem denotada para atribuição de significados históricos (recitação do mito); e iii) identificar os trajetos de memória que contribuem para que as imagens sejam lidas por analogia e associação à Primavera Árabe.

Nos gestos de interpretação, voltamo-nos para o deslocamento das imagens de um sistema semiológico primeiro para uma significação segunda, que deforma e impõe historicamente sentidos de Primavera das Mulheres. Descrevemos os processos de conotação empregados (filtros, cores das letras, continuidade entre imagem e legenda, pose na cena fotografada) que contribuem para analogia com outros acontecimentos e, assim, recitam o mito da revolução social como um ideal juvenil.

Num segundo momento, mostramos como as mídias operam trajetos de memória ao repetir poses e gestos nas capas e utilizar sintaxe fotográfica que fala antes e em outros lugares da história. Demonstramos, dessa forma, uma passagem do visível ao nomeado através da analogia e associação entre imagens e da existência de uma lei do legível que aciona uma memória da Primavera Árabe e permite interpretar o acontecimento no Brasil com contornos de primavera política.

2 O MITO NA SEMIOLOGIA DE ROLAND BARTHES

A trajetória de Barthes no campo da Semiologia é marcada pela incursão em teorias da linguagem, como as de Saussure e Hjelmslev. No decorrer de suas obras, o autor se deslocou de uma Semiologia estritamente estrutural para uma Semiologia que abrange a dimensão discursiva de linguagens verbo-visuais, voltando-se para as relações entre forma, significação e história.

O autor mobiliza na obra Mitologias (Barthes, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980.) o sistema semiológico para explicar que o mito é fabricado quando uma significação é transformada em forma. Dito de outro modo, Barthes afirma que o mito se produz quando determinados sentidos são associados a uma imagem e a “deformam”, impondo dadas interpretações à sociedade. Para recitá-lo, as imagens são utilizadas como significantes, como materialidade para a produção de sentidos culturais e históricos e para fabricar acontecimentos discursivos.

Segundo Barthes (1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980., p. 131), “[...] o mito é uma fala”, de modo que podemos dizer que surge como acontecimento na e pela enunciação. Com efeito, o mito não é uma fala qualquer, mas uma fala que funciona como mensagem enunciada por um sujeito a partir de uma posição na história para outro sujeito - também historicamente posicionado - que irá interpretá-la. Essa fala tem “limites”, ou seja, não pode tudo dizer a respeito de qualquer coisa. Ela é enunciada de acordo com as condições históricas. Assim, os mitos podem ser antigos, mas não eternos. Transformam-se e deslocam-se no tempo e no espaço. Trata-se de “[...] uma fala escolhida pela história [que] não poderia de modo algum surgir da ‘natureza’ das coisas” (Barthes, 1980, p. 132).

Por ser uma fala, o mito é dotado de forma (significante verbal ou visual) e sentido (significado). Uma fotografia, um artigo de jornal ou uma capa de revista podem representar um mito, desde que constitua uma fala que signifique alguma coisa historicamente. A mitologia barthesiana é o estudo de uma fala histórica. Ela analisa o modo como os signos são mobilizados pelas mídias para falar de alguma coisa e produzir significações para uma sociedade. Por isso, a Semiologia barthesiana se atenta ao modo como a história atribui uma dada forma a uma significação (Barthes, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980.).

O mito é fabricado por um sistema semiológico particular. Nele, encontramos o esquema tridimensional saussuriano: significante, significado e signo. Essa tríade é a base material sobre a qual se constitui o mito, que por sua vez é formado por um “[...] sistema semiológico segundo” (Barthes, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980., p. 136). Desse modo, o signo (associação entre significante e significado) constitui um primeiro sistema e servirá de significante (materialidade) para um segundo sistema de significação: o mítico, como pode ser visto na figura 1, a seguir:

Figura 1:
Esquema tridimensional do mito

O signo é tomado no mito como forma significante de um segundo significado que lhe é atribuído cultural e historicamente. Ao segundo sistema do mito, o autor dá o nome de significação, ordem em que se dão as relações entre a história e os significados da língua. Assim, a primeira ordem de significado nomeia um ser ou objeto, e a segunda lhe atribui outra significação, que é histórica. Tal sistema semiológico demonstra que “[...] o mito tem efetivamente uma dupla função: designa e notifica, faz compreender e impõe” (Barthes, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980., p. 139). O mito é recitado quando um sujeito situado historicamente enuncia e/ou interpreta um signo e identifica um significado diferente em relação a um primeiro. Nessas condições, recitar um mito é “deformar um signo” e, ao mesmo tempo, produzir um acontecimento singular.

O papel do sujeito e da história nas mitologias cotidianas nos conduz a uma questão relevante para a produção dos sentidos: a arbitrariedade do signo. Segundo Saussure (2009SAUSSURE, F. Curso de Linguística geral. Tradução de Antônio Chelini et al. São Paulo: Cultrix, 2009 [1916]. [1916]), o signo é arbitrário, pois o significante não é motivado pelo significado. Na língua, a arbitrariedade decorre da ausência de justificativas na natureza do objeto para que ele seja designado tal como é. Entretanto, há alguns signos que são parcialmente motivados, pois recebem formas significantes devido a “relações associativas”, como, por exemplo, a palavra amável que vem de amor - há uma derivação motivada pelo radical em comum das palavras (Barthes, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980., p. 147).

No caso do mito, o signo não é tomado arbitrariamente como significante de um segundo significado. Se o mito é uma fala cujo significado “deforma” o signo, atribuindo-lhe cultural e historicamente uma segunda significação, sua escolha como significante do mito é motivada. Aqui, é preciso atentar para a não-aleatoriedade do signo no mito, porque “[...] fala escolhida pela história” (Barthes, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980., p. 132, grifos nossos).

A significação mítica é sempre motivada e produzida em parte por relações de analogia e associação. Só existe a segunda ordem de significação porque é baseada em associações com a significação primeira. É graças à motivação e à analogia que o mito se estrutura em dois sistemas de significação. Dessa forma, “[...] a motivação é necessária à própria duplicidade do mito; o mito joga com a analogia do sentido e da forma: não existe mito sem forma motivada” (Barthes, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980., p. 147).

A associação entre elementos significantes é o que permite mobilizar um dado signo, deslocá-lo e construir significados outros. Logo, escolher um signo como significante do mito não decorre da natureza dos objetos. A motivação que leva as mídias a selecionarem uma dada forma para um significado mítico decorre dos valores compartilhados pela sociedade e de imagens que circulam historicamente. Assim, muitos mitos são recebidos como “naturais” porque assimilados a uma forma cuja aparência é conhecida por rememoração e associação a significados já existentes. Por isso, não causam ao leitor desconfiança nem estranhamento. O mito se constrói sob uma “falsa evidência”, sob uma espécie de “familiaridade” com já-ditos.

Para Barthes (1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980.), a função do mito é transformar a história em natureza. O mito torna a construção de significados históricos em significados “puros” e “verdadeiros”. Aos olhos do leitor que interpreta os mitos, a imposição de sentidos é manifesta e, ao mesmo tempo, aparentemente neutra: “[...] a causa que faz com que a fala mítica seja proferida é perfeitamente explícita, mas é imediatamente petrificada numa natureza” (Barthes, 1980, p. 150).

No mito, a imagem é utilizada como se provocasse naturalmente o conceito, como se o significante criasse o significado. É como se houvesse uma relação objetiva e essencial entre imagem e significação, quando, de fato, o mito surge do deslocamento de uma imagem para ser significante de um segundo significado imposto historicamente. Desse modo, o sistema semiológico do mito o faz parecer natural, embora a seleção de um significante - motivada historicamente - para um sentido segundo demonstre que ele é construído.

A impressão de naturalidade no mito, ainda que falsa, refere-se a um uso estratégico de signos pela mídia, pois são escolhidos justamente por oferecer interpretações que contribuem para a manutenção ou modificação de certos valores e comportamentos sociais, bem como de certos embates entre sujeitos na história. É o que ocorre no caso da fotografia que, ao ser lida como representação da “realidade”, coloca em cena o tratamento e a configuração de elementos que lhe asseguram contornos de objetividade, pureza, verdade.

Considerada reprodução analógica da realidade, a fotografia comporta uma mensagem denotada. A denotação é uma descrição exata daquilo que é visto pelas lentes que fotografam. Na fotografia, a denotação é a mensagem primeira que “[...] preenche plenamente sua substância” e que esgota as possibilidades de significação (Barthes, 1990BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990., p. 14). Diante dela, a sensação de plenitude de sentidos é tão forte que parece ser impossível descrevê-la tão bem quanto a própria imagem o faz.

Assim, utilizar a denotação para significar acontecimentos na mídia implica a produção de mitos sobre o que ocorre “realmente” na cena fotografada. O efeito de verdade atribuído à imagem é criado pela denotação analógica dos fatos cotidianos. Apesar disso, não deixa de passar por uma conotação. O ato de fotografar sempre passa por um olhar interpretativo e explicativo por parte daquele que captura e trabalha a imagem de um determinado acontecimento. Daí, a hipótese de Barthes (1990BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990., p. 14): “há uma forte probabilidade [...] para que a mensagem fotográfica (ao menos a mensagem de imprensa) seja também ela conotada”.

A conotação da imagem “[...] consiste precisamente em acrescentar à mensagem denotada um relais ou uma segunda mensagem” (Barthes, 1990BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990., p. 14), como uma espécie de filtro ou explicação para aquilo que é visto. Nas mídias, a mensagem fotográfica é conotada em função da interpretação sobre um acontecimento cotidiano registrado pela imagem. Nesse sentido, Barthes estabelece ligação entre a conotação na fotografia jornalística e a fabricação de mitos na criação de uma significação segunda.

A recitação do mito nos discursos midiáticos se dá por um trabalho de conotação sobre a imagem, pela imposição de significados históricos a determinados significantes que representariam “objetivamente” a realidade fotografada (Barthes, 1990BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990., p. 13). Então, ao conotar a imagem, a mídia impõe uma leitura (cultural e histórica) sobre ela, deslocando-a de um sistema semiológico primeiro para um sistema semiológico segundo, instaurando sentidos singulares e construindo o acontecimento.

3 A PRIMAVERA DAS MULHERES: A RECITAÇÃO DE MITOS NAS CAPAS DE REVISTA

Considerados os pressupostos teóricos, passemos a analisar as capas das revistas Época e Istoé, publicadas, respectivamente, em 7 e 11 de novembro de 20153 3 Justificamos a seleção dessas materialidades discursivas em função das condições históricas que motivaram sua publicação. Naquela ocasião, houve a menção a Simone de Beauvoir, referência dos estudos de gênero, em questão do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), bem como a proposta da prova de redação, a respeito do feminicídio no Brasil. Além disso, na internet, circularam casos de assédio sexual a uma participante mirim do programa Master Chef e, ainda, práticas de racismo contra a jornalista Maria Júlia Coutinho. A conjunção desses fatores condicionou uma espécie de “viralização” das pautas feministas, uma dispersão veloz e instantânea de discussões acerca da condição da mulher na sociedade. Logo, é possível interpretar a emergência dessas capas como uma resposta das mídias a esses conflitos sociais de ampla visibilidade naquela pontualidade histórica. .

Figura 2:
Capa da edição 909, de 7 de novembro de 2015, da Revista Época

Figura 3:
Capa da edição 2397, de 11 de novembro de 2011, da revista Istoé

Com fundamento nos pressupostos da Semiologia barthesiana, podemos interpretar as imagens das capas de revista como mensagens, que “falam” e recitam mitos existentes, sendo produzidas por mídias corporativas que circulam por todo país e, inclusive, digitalmente. Além disso, em articulação com os postulados da Análise de Discurso francesa, depreendemos que a posição de quem fala é assumida por mídias cujos discursos obedecem às condições históricas da época (Pêcheux, 2005). Nesse viés, é preciso levar em conta fatores da ordem da enunciação que indicam os modos de produção e circulação das revistas, tais como a amplitude dos meios em que circulam (para todo o país), o perfil dos leitores das revistas (grupos sociais mais amplos) e as corporações de comunicação às quais se vinculam (grupos que ocupam posição favorecida em relação a mídias alternativas, por exemplo). A posição de quem fala é ocupada também por aqueles que produzem as capas: são técnicos, fotógrafos, jornalistas que selecionam e interpretam informações e que compõem e retocam as imagens para então dar forma à notícia.

As capas nas figuras 2 e 3 são compostas por imagens semelhantes: mulheres jovens em manifestações feministas nas ruas do país. Em ambas, há complementos que a circundam, como a diagramação, o nome das revistas, o título da edição vinculado à matéria principal ([A primavera das mulheres] e [As mulheres dizem não]). Ademais, as capas surgiram num mesmo período histórico e se referem à mesma problemática.

Apesar dessas semelhanças, o modo de se referir à reação das mulheres nas ruas é distinto, pois somente a revista Época a designa como “Primavera das Mulheres”. Por certo, não haveria possibilidade de repetir a nomeação, pois as revistas são concorrentes e disputam espaço entre público leitor de perfil semelhante, e a revista Istoé destacou o tema depois da revista Época (repetir a expressão não seria estratégico comercialmente). Apesar de não nomearem o acontecimento da mesma forma, ambas revistas se referem ao fato como sendo protagonizado por “mulheres”, afinal o substantivo se repete nas duas manchetes.

Quando publicadas nas revistas Época e Istoé, as imagens e os enunciados verbais podem promover efeitos de aceitabilidade social - pois têm posição favorável na produção e circulação de verdades - e apresentam uma suposta adesão dessas mídias ao feminismo. Assim, verificamos uma ruptura nas práticas discursivas midiáticas. Se o feminismo era antes silenciado nesse tipo de mídia (corporativa), ele surge em 2015 não apenas como matéria no interior da edição, mas também como notícia principal. Possivelmente, a singularidade está no fato de as revistas - cujo histórico se liga a posições hegemônicas e conservadoras - darem destaque ao feminismo e o situarem como tema autorizado e não silenciado.

Além da posição de quem fala, é preciso atentar para o que é falado nas capas. A começar pelas imagens, o que é dito passa pelo viés da denotação. As fotografias que ilustram as capas representam, analogicamente, a cena ocorrida na realidade empírica. São mulheres que caminham nas ruas, algumas erguem os braços, outras colocam as mãos ao redor dos lábios para gritar. Nas duas capas, um traço se repete: as mulheres fotografadas são jovens. Nos rostos, a expressão de força se mistura à de euforia. Há uma sutileza de alegria nos sorrisos e olhares das jovens que aparecem nas imagens.

Na capa da Época, a imagem denota manifestações feministas nas ruas de São Paulo e se refere a elas como uma “primavera”. Nessa capa, é possível que o leitor tenha impressão de continuidade entre o que é visto e o que é dito [mulheres nas ruas = uma primavera feminista]. Por isso, mobilizar imagens de um conjunto de jovens feministas e explicá-las com a legenda “Primavera das Mulheres” deforma um signo primeiro (mulheres manifestando nas ruas), que se torna significante de um mito (revolução de jovens feministas). A partir do deslocamento da imagem e da imposição de uma interpretação, podemos dizer que é criada uma relação entre significante (imagem das jovens feministas) e significação segunda (primavera política).

Dessa forma, selecionar fotografias que denotam a cena da manifestação com mulheres jovens instaura efeitos de objetividade entre o dito e o visível, pois representação analógica do real. É como se existisse entre o visível e o dizível uma “objetividade” sobre o que se diz - afinal, as imagens esgotam os sentidos através de sua mensagem primeira (denotação). Neste ponto, é possível identificar analogias entre a imagem de jovens feministas e o conceito histórico de “primavera”4 4 Primavera é uma expressão utilizada para se referir a revoluções promovidas pelo povo contra um regime opressor. Metaforicamente, liga-se às ideias de despertar e florescer. Trata-se de uma forma de dizer que, embora o povo seja tolhido num dado momento, as sementes da transformação social hão de germinar e florescer futuramente. Nesse sentido, podemos citar a “Primavera dos Povos” de 1848, uma série de revoluções que ocorreram simultânea e dispersamente entre os países europeus. Segundo Eric Hobsbwam, a “Primavera dos Povos” foi uma afirmação de nacionalidade, pois foi o momento em que países como França, Alemanha, Itália, Hungria, Polônia, entre outros, “[...] afirmaram seu direito de serem estados independentes e unidos, abraçando todos os membros de suas nações contra governos opressores” (Hobsbawm, 1988, p. 97-98). .

As significações primeiras de “juventude” e “primavera” se referem a uma fase que passará e dará lugar a outra - depois da juventude, vem a fase adulta e, depois da primavera, vem o verão. A partir disso, a imagem de jovens manifestantes é tomada como significante de sentidos que indicam um “desabrochar”, o instante de passagem de um estado para outro. A associação produz significações ligadas às ideias de transição e crescimento das mulheres para o engajamento político e a autonomia e, sobretudo, para o ápice de suas forças em coletividade.

A relação entre “o que se vê” e “o que se diz sobre o que é visto” produz efeitos de naturalidade na associação entre juventude, feminismo e primavera. Distribuir elementos verbais e visuais desta forma, em continuidade e identidade, situa a primavera feminista como uma verdade evidente para todos [manifestação maciça de jovens feministas nas ruas = primavera feminista].

Embora as capas imprimam uma objetividade, o funcionamento semiológico das materialidades demonstra que entre o significante (imagem de jovens feministas) e a significação (primavera das mulheres) podem existir relações de motivação cultural e histórica - e não uma relação natural. A significação produzida pelas capas dá a entender, em primeira instância, que o feminismo atual é formado e impulsionado fortemente pela juventude. Às jovens, cabe a posição de exercer o feminismo e difundir tais valores para a sociedade, e não a outras faixas etárias.

Nesse sentido, se as imagens de jovens podem ser mobilizadas para instaurar a naturalidade de um “despertar feminista”, acabam funcionando como signos para uma fala histórica que impõe a leitura das mídias corporativas acerca do acontecimento. Tendo em conta a posição das mídias e dados trajetos de memória, podemos dizer que as imagens servem de forma significante para sentidos ligados a movimentos de oposição com objetivos “utópicos” - ações historicamente marcadas pela participação da juventude.

Assim, o mito recitado pelas capas corresponde à interpretação do movimento feminista como expressão de um ideal da juventude, que, apesar de idealista, simboliza abertura para possíveis (e não efetivas) mudanças nas relações sociais. Alguns acontecimentos históricos motivam a recitação desse mito como o Woodstock, a geração “paz e amor” dos hippies, formada por jovens que se opunham à Guerra do Vietnã e ao sistema capitalista nos EUA; e o Maio de 68 - marcado por manifestações de estudantes de Filosofia, História, Artes, Literatura, Cinema, Sociologia, que “sonhavam” com reformas na educação e melhores condições para os trabalhadores franceses.

A partir desses acontecimentos históricos, identificamos movimentos de memória que definem os contornos do mito recitado pelas capas de Época e Istoé: a crença na revolução é algo típico da juventude. Da mensagem denotada nas capas [jovens feministas militando nas ruas], podemos questionar sua objetividade: seria ela uma “verdade” encerrada pelas fotografias? Quem move o feminismo é a juventude? São as jovens as responsáveis por uma Primavera das Mulheres no Brasil?

Para responder a essas questões, voltamo-nos para o processo interpretativo das capas e, por conseguinte, para o leitor. Se o mito é uma “fala histórica” (Barthes, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 4. ed. São Paulo: Difel, 1980.), uma mensagem produzida pelas capas, é pertinente analisar não só quem fala e sobre o que fala, mas também para quem o mito fala. Nesses termos, questionamos: qual é a posição do leitor e como ela determina interpretações do acontecimento?

Para Davallon (1999DAVALLON, J. A imagem, uma arte da memória? In: ACHARD, P. et. al. (Org.). Papel da memória. Tradução José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 23-33.), aquele que vê a imagem relaciona fatores de ordens distintas (representação, informação, cultura) para então interpretá-la. O leitor “[...] desempenha uma atividade de produção de significação”, visto que a imagem “[...] não lhe é transmitida ou entregue toda pronta” (Davallon, 1999, p. 28). Logo, as leituras podem variar a depender dos saberes colocados em jogo pela posição do leitor, bem como das possibilidades que ele tem de relacionar os elementos da imagem a uma dada cultura e história.

No caso das capas da Época e da Istoé, temos algumas relações entre leitor e imagens. Por exemplo, ao leitor que adere ao discurso feminista, as capas são aceitas e lidas como verdade; àquele que se opõe ao discurso feminista, as capas são um disparate e não representam a verdade; ao leitor que não atribui eficácia a movimentos sociais (como o feminismo, por exemplo), as capas significam uma luta utópica, um ideal ilusório; àquele que desconhece o discurso feminista, as capas oferecem saberes e evidências sobre a atualidade histórica, dentre outras possibilidades de leitura.

Em ambos os posicionamentos, podemos identificar a atualização do mito da “juventude que sonha com a revolução” e, ainda, a forma como ele é interpretado e recebido, atualmente, no Brasil.

Por outro lado, é preciso considerar que toda imagem comporta um programa de leitura, que “[...] assinala um certo lugar ao espectador”, regulando uma “[...] série com a passagem de uma a outra posição de receptor no curso da recepção” (Davallon, 1999DAVALLON, J. A imagem, uma arte da memória? In: ACHARD, P. et. al. (Org.). Papel da memória. Tradução José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 23-33., p. 29). Ler uma imagem é, então, seguir uma espécie de percurso indicado pelo referencial cultural e histórico da própria composição imagética. Esse programa de leitura permite passar de uma parte informativa para outra ou, ainda, relacionar um elemento referencial a sentidos históricos.

A atividade de percorrer e relacionar elementos das imagens nos conduz à passagem da mensagem denotada à mensagem conotada pelas capas. É através da conotação que o sujeito (enunciador) organiza e trabalha as materialidades conforme uma regra de formação de discursos naquela atualidade histórica: é preciso colocar o feminismo em posição de fala e visibilidade. Essa regra é depreendida na própria materialidade discursiva, visto que as duas capas repetem o mesmo gesto referente à fala, ao mostrar jovens que levam as mãos ao redor dos lábios para projetar a voz e lançar seu grito pela condição das mulheres.

Entretanto, compete-nos questionar: essa necessidade é evidenciada de forma neutra e natural pelas mídias que “fornecem o espaço” de suas capas ao feminismo? Uma forma de “desconstruir” a pretensa naturalidade na recitação do mito é analisar como as mensagens verbais e visuais das capas são conotadas. Para Barthes (1990BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Tradução de Léa Novaes. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990., p. 13), a conotação é uma espécie de “mensagem suplementar”, o que é comumente chamado de “estilo da reprodução”. A conotação pode contribuir para a fabricação mítica e é uma forma de produzir um “[...] sentido segundo, cujo significante é um certo ‘tratamento’ da imagem sob a ação de seu criador e cujo significado estético ou ideológico - remete a uma certa ‘cultura’ da sociedade que recebe a imagem” (Barthes, 1990, p. 13). É através da conotação que uma mídia oferece à interpretação do acontecimento o que ela pensa e a ideologia que constitui seu posicionamento.

Na capa da revista Época, por exemplo, identificamos procedimentos de conotação tanto no tratamento da imagem quanto na disposição e nas cores das letras do título da edição [A Primavera das Mulheres]. As letras são dispostas em tamanho grande e sobre a imagem das jovens feministas, o que pode instaurar efeitos de identidade entre o que é dito e o que é visto - a imagem é explicada pela legenda, que lhe insufla sentidos numa relação do tipo [x (visível) significa y (dizível)]. Além disso, a cor laranja das letras [cor quente] destaca somente os termos “primavera” e “mulheres” e pode manifestar uma associação a outros sentidos para a nomeação do acontecimento: a primavera surge no calor das agitações das mulheres nas ruas, no ápice do “desabrochar” coletivo.

Figura 4:
Capa da edição 909, de 7 de novembro de 2015, da Revista Época

O tratamento estético da imagem na figura 4 é realizado através de um filtro vermelho que recobre toda a dimensão da capa. A cor vermelha é marcada por significações anteriores que circularam em diferentes épocas, o que nos permite identificar uma interdiscursividade que atravessa os sentidos. Sujeitos históricos, em diferentes conjunturas, utilizaram-na para simbolizar ora sangue, violência, luta e morte, ora atenção, força, perigo, alarme. Há, ainda, sentidos políticos simbolizados pela cor vermelha como, por exemplo, aqueles do comunismo e dos grupos revolucionários de esquerda, alicerçados em ideologias socioeconômicas contrárias à propriedade privada e à centralização do poder pelo Estado. Ademais, a nomeação de acontecimentos e movimentos sociais, por vezes, serviu-se da cor vermelha como signo, motivada por suas representações e condições históricas em que emergiram. São exemplos o Domingo Sangrento na Rússia, o Exército Vermelho na URSS, a bandeira do Comunismo [vermelha com brasão amarelo], os cartazes de artistas e estudantes no Maio de 68.

Nesse sentido, convém assinalar que a conotação sobre a imagem das capas apresenta traços que rememoram os cartazes de Maio de 68. Neles, também há uso da cor vermelha, bem como da imagem de braços erguidos e punhos cerrados num gesto de força em coletividade nas ruas.

Figuras 5 e 6
Cartazes do Maio de 68

A conotação impõe uma determinada interpretação sobre a manifestação maciça de jovens feministas nas ruas, e é nessa direção que podemos verificar o deslocamento do sistema semiológico primeiro para uma mensagem segunda atribuída à imagem. Desse modo, é possível que o filtro vermelho atribua uma significação referente às revoluções estudantis e, ainda, às lutas da esquerda. A motivação de união da cor vermelha (operação estética) ao significado de revolução da juventude feminista se dá pelo ponto de vista sobre a cena fotografada.

Embora dê espaço central ao feminismo (capa), isso não significa necessariamente uma adesão da revista Época ao feminismo. Afinal, a revista imprime um ponto de vista sobre o acontecimento: trata-se de um movimento cujo posicionamento se alia àquele dos movimentos de esquerda e de oposição. Visto que essa mídia é conhecida, justamente, por sustentar posicionamento de direita, é possível dizer que há uma divisão de sentidos que resulta numa espécie de atenuação da filiação da revista Época ao movimento feminista.

Assim, para o leitor que observa a capa apenas do ponto de vista denotativo, a recitação do mito surge com sentido despolitizado, aparentemente ingênuo e neutro. Porém, sob o filtro vermelho, o mito mascara uma pretensa naturalidade da “adesão ao feminismo”, constituindo uma falsa evidência. Essa “filiação” não é ingênua nem natural, mas motivada pela história. A revista obedece às regras de formação dos discursos da época, dá espaço ao feminismo, pois se trata de postura que coincide com aquilo que é aceito pelo público nas mídias digitais. As redes sociais, convém salientar, funcionam como uma espécie de vigilância do dizer e interferem fortemente na formação da opinião pública.

Com esse tipo de publicação, que coloca o feminismo em posição de destaque e protagonismo, a revista “melhora sua imagem” diante do público leitor e se torna aceitável publicamente. No entanto, o veículo não deixa de marcar sua posição política através de um efeito de conotação da imagem. A revista Época significa a Primavera das Mulheres sob a égide dos movimentos sociais de oposição, atribuindo ao “levante feminista” uma leitura que passa pelo estigma atribuído socialmente à esquerda, ou seja, como uma luta utópica, uma aglomeração nas ruas que visa desestabilizar o status quo.

A conotação produzida pelo tratamento da imagem com filtro vermelho indica uma “brecha” na regra: “é preciso dar voz e visibilidade ao feminismo nas mídias”. Ela permite imprimir o ponto de vista da revista: esse tipo de acontecimento é de oposição e funciona à semelhança dos protestos da esquerda e do Comunismo - que, historicamente, é o posicionamento político refutado pela revista. Portanto, de um lado, a revista admite o feminismo dando-lhe espaço, retomando seus discursos, apropriando-se e se valendo deles para obter aceitação dos leitores - sobretudo aqueles inscritos nas mídias digitais e engajados ao discurso feminista. Por outro lado, o efeito de conotação da imagem pode demonstrar que a revista compreende a manifestação feminista nas ruas pelo viés de uma “estigmatização revolucionária”.

4 ASSOCIAÇÃO E ANALOGIA ENTRE IMAGENS: TRAJETOS DE MEMÓRIA NO ACONTECIMENTO PRIMAVERA DAS MULHERES

A associação e a analogia conduzem às relações entre a materialidade das imagens e a historicidade, o que nos permite compreender que o acontecimento Primavera das Mulheres não só recita mitos, mas também apresenta percursos de memória. Nas capas, há repetição de traços que permitem ao leitor estabelecer associações e analogias com imagens anteriores. Daí a função “operadora social de memória” (Davallon, 1999DAVALLON, J. A imagem, uma arte da memória? In: ACHARD, P. et. al. (Org.). Papel da memória. Tradução José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 23-33., p. 27) que a imagem exerce: sua significação depende do domínio de memória e do saber compartilhado entre produtor das capas e leitor.

A significação de “primavera política” decorre das relações que o leitor estabelece com aquilo que já foi lido e visto antes e em outros lugares. A começar pelo título [Primavera das Mulheres], em destaque na capa da revista Época, verificamos que a memória e o saber compartilhado são determinantes para analogia e associação a um acontecimento anterior: a Primavera Árabe. Os movimentos de retorno e atualização da significação das imagens estão relacionados à emergência do acontecimento discursivo, que “[...] se dá no ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória” (Pêcheux, 2006PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006., p. 17).

A Primavera das Mulheres surge no discurso da mídia, que a enuncia como acontecimento, mobilizando legendas e imagens que habitam um domínio de memória em uma atualidade histórica pontual para produzir sentidos singulares. Assim, a significação histórica [primavera das mulheres] deforma a mensagem denotada da capa, impondo essa interpretação motivada por determinadas condições históricas [o projeto de lei de Cunha; o assédio sexual e o racismo contra as mulheres; o machismo] e por associações e analogias entre imagens, enunciados verbais e redes de memória.

Pelos trajetos de memória, os discursos das mídias realizam conotação sobre as imagens através de um trabalho estético de repetição de formas e traços de imagens que habitam uma memória da Primavera Árabe. A fabricação do acontecimento estabelece tensões com um dispositivo complexo de memória, o que nos remete a uma operação realizada através da imagem: “a passagem do visível ao nomeado” (Pêcheux, 1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. In: ACHARD, P. (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57., p. 51, grifos nossos).

Com efeito, nomear a imagem de mulheres manifestando por seus direitos nas ruas como [A primavera das mulheres], repetir a expressão “primavera” e, até mesmo, gestos e disposições das mulheres na fotografia [punhos cerrados, braços erguidos, cartazes, bandeiras, aglomerações nas ruas] aciona conhecimentos culturais e domínio de memória que determina as interpretações daquilo que é visto. Nesse sentido, a imagem “[...] seria um operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar” (Pêcheux, 1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. In: ACHARD, P. (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57., p. 51, grifos nossos).

Em relação ao percurso das imagens na figura 9, é preciso compreender as razões que motivaram a analogia e a associação das capas ao acontecimento histórico anterior, ou seja, compreender o papel da memória na significação histórica das formas que compõem as capas. Para tanto, compete-nos levantar algumas características e condições históricas da Primavera Árabe.

Indícios apontam que o levante de protestos surgiu no final de 2010 e se propagou em 2011 no Oriente Médio e em países da África do Norte, tais como: Egito, Líbia, Tunísia, Síria, Marrocos, Argélia. Uma das principais motivações da Primavera Árabe referiu-se à existência de regimes autoritários, ao modo como o Estado conduzia (e ainda conduz) essas sociedades: de forma austera e dominante. No Egito, por exemplo, o ex-ditador Hosni Mubarak permaneceu no poder durante trinta anos, e somente acabou renunciando diante de protestos e revoltas da população.

Considerada um fenômeno revolucionário, a Primavera Árabe eclodiu e se alastrou graças às mídias digitais e às redes sociais, em especial o Facebook, o Twitter e o YouTube. Por conseguinte, as mídias são consideradas “condicionantes”, mas não a causa do acontecimento (Ramos, 2015RAMOS, L. F. G. Origens da Primavera Árabe: uma proposta de classificação analítica. 2015. 30f. Artigo (Especialização em Relações Internacionais). Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2015. Disponível em: http://bdm.unb.br/bitstream/10483/11377/1/2015_LuizFelipeGondimRamos.pdf. Acesso em: 20 jun. 2017.
http://bdm.unb.br/bitstream/10483/11377/...
). Assim, a conjunção de determinados fatores - crise política, regimes autoritários, problemas sociais, pobreza e interdições, uso das mídias digitais, possibilidade de organização e mobilização nas redes sociais - possibilitaram a emergência da Primavera Árabe. Soma-se a isso o papel das mídias corporativas, que noticiaram os protestos e deram amplitude local e global para os acontecimentos, designando a onda de manifestações como “primavera”, como despertar do poder político do povo árabe.

Figuras 7 e 8
Mulheres manifestantes da Primavera Árabe

Figura 9:
A proliferação de manifestações feministas no Brasil (Istoé, 2015)

Figura 10:
Homens manifestantes da Primavera Árabe

Nesse sentido, a capa da revista Época estabelece analogia de sentidos não só pela nomeação do visível [A primavera das mulheres], mas também pelos enunciados verbais que explicam a imagem e a manchete: [As mulheres tomam as ruas e as redes sociais e criam um movimento que agita o país]. O principal fator que motiva associação do acontecimento no Brasil àquele dos países árabes refere-se à organização nas redes sociais e ao deslocamento da internet para os espaços públicos. Naquela conjuntura, o que condiciona o acontecimento de uma primavera política é a intersecção entre os lugares de enunciação e a fala: redes sociais, espaços públicos, amplos protestos e manifestações.

Desta feita, tanto no acontecimento da Primavera Árabe quanto naquele da Primavera das Mulheres, identificamos condições históricas semelhantes: organização e mobilização de sujeitos pelas mídias digitais (principalmente, em redes sociais como o Facebook); posição de resposta e recusa ao governo exercido sobre a conduta dos membros da sociedade; aglomerações maciças de pessoas nas ruas das grandes cidades; cobertura midiática ampla e distribuição local e global da notícia pela internet aos moldes de espetáculo; e presença tanto de homens quanto de mulheres (nas imagens da revista Época, é possível verificar homens nas manifestações e, na Primavera Árabe, as mulheres também saíram às ruas para protestar).

Os mecanismos de rememoração e aproximação entre os acontecimentos demonstram que os sentidos de primavera entram em dispersão e retornam descontinuamente - a primavera árabe surge em 2010-2011 e reverbera, ao acaso, associada ao movimento feminista de 2015. O recorte de tempo é a curta duração, os movimentos de memória se dão quase que simultaneamente, contudo o que chama a atenção é a mudança repentina na maneira como as mídias corporativas enunciam o feminismo. E, aqui, verificamos uma descontinuidade histórica, que reflete na mudança da posição das mídias (passam a dar destaque para o feminismo) e na interpretação que impõem sobre as manifestações feministas de 2015 (contornos de primavera política).

Figura 11:
Capa da edição 2397, de 11 de novembro de 2011, da revista Istoé

Figura 12:
Capa da edição 2155, de 2 de março de 2011, da revista Istoé

A descontinuidade entre a irrupção de imagens e os movimentos de memória promovem um efeito de “quebra-cabeças no qual faltam peças” (Gregolin, 2011GREGOLIN, M. R. Análise do discurso e semiologia: enfrentando discursividades contemporâneas. In: PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. Discurso, semiologia e história. São Carlos: Claraluz, 2011. p. 83-105., p. 99). É neste ponto preciso que o olhar semiológico pode ajudar a preencher lacunas, isto é, a compreender o “desenho” de uma memória social com as “peças encaixadas”. Logo, voltamo-nos para a capa da revista Istoé (2015), publicada simultaneamente à da revista Época, que também traz a imagem de jovens mulheres manifestando nas ruas, porém, sem nomear o evento como uma primavera.

Na capa, chama a atenção o fato de que, embora não haja referência verbal explícita à Primavera Árabe, é possível verificar que essa memória ressoa no modo como os elementos são ordenados na imagem. Há uma relação de repetição entre a imagem da capa e outras imagens proliferadas pela mesma mídia referentes ao levante árabe. Tendo em vista tais considerações, vejamos as figuras 11 e 12:

Na ordem de (re)aparecimento das imagens, Pêcheux (1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. In: ACHARD, P. (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57., p. 52) assinala uma “dialética da repetição e da regularização”, que constitui uma “lei do legível”, ou seja, a lei daquilo que pode ser lido no visível. Assim, a imagem manifesta uma densidade histórica no modo como interpretamos aquilo que vemos. É por isso que Davallon (1999DAVALLON, J. A imagem, uma arte da memória? In: ACHARD, P. et. al. (Org.). Papel da memória. Tradução José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 23-33.) e Pêcheux (1999) pensam a força da imagem como “operadora da memória social”. Ela não só “representa a realidade”, mas “[...] pode também conservar a força das relações sociais” (Davallon, 1999, p. 27), devido à espessura histórica que a atravessa.

Por seu caráter analógico e, ao mesmo tempo, de rememoração e atualização, a imagem sugere uma função: ela contribui para o estabelecimento da memória coletiva de uma sociedade em que o visual tem, cada vez mais, proeminência. Daí sua eficácia simbólica, pois “[...] o agenciamento da materialidade discursiva instaura uma ordem do olhar e constrói o acontecimento para o futuro” (Gregolin, 2011GREGOLIN, M. R. Análise do discurso e semiologia: enfrentando discursividades contemporâneas. In: PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. Discurso, semiologia e história. São Carlos: Claraluz, 2011. p. 83-105., p. 92).

Entre repetições e regularizações, a imagem opera dada memória de acordo com as condições históricas que, por serem mutáveis, podem modificar a lei daquilo que pode e deve ser visto numa época. Por isso, a memória não pode ser concebida como uma “[...] esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas” (Pêcheux, 1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. In: ACHARD, P. (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57., p. 56).

O silenciamento da nomeação “primavera” em presença de uma imagem que evoca capa anterior da mesma revista, que aborda a Primavera Árabe, dá a ver a relação entre um sentido efetivamente enunciado [primavera política] e um sentido implícito [jovens mulheres feministas em manifestação]. Nessa direção, verificamos, na relação entre a imagem anterior e a imagem atual, um agenciamento de memória, uma vez que: “[...] a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’” (Pêcheux, 1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. In: ACHARD, P. (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57., p. 52).

É a memória que estrutura a materialidade discursiva que, por apresentar organizações semelhantes entre elementos na composição das capas, retoma e atualiza sentidos. Assim, apesar de não nomear o visível (como o fez a revista Época), a capa da Istoé rememora os sentidos da Primavera Árabe tanto no dizível quanto no visível.

Os vestígios dessa memória no visível referem-se, em especial, à composição e à sintaxe da imagem. A repetição de traços da imagem que retoma o fato anterior permite ao leitor reconhecê-la e vê-la como familiar. A edição de 2015 (“As mulheres dizem não”, figura 11) estampa a capa com uma personagem feminina jovem, que grita nas ruas e que inclina o olhar para a direita. Do mesmo modo, a edição de março de 2011 (“Epidemia de Liberdade”, figura 12) traz uma mulher jovem com o rosto pintado nas cores da bandeira da Líbia, com o olhar voltado para a direita, projetando sua voz. Nas duas capas, as mulheres apresentam semblante juvenil mesclado à expressão facial de força e tensão, também manifestas no “grito” e nos olhares firmes e destemidos.

Quanto ao dizível, os enunciados que intitulam a edição da Istoé de 2015 explicam o que é visto da seguinte maneira: [As mulheres dizem não; não ao assédio sexual, não ao racismo, não à perda dos direitos civis, não à intolerância, não a Eduardo Cunha]. A negação atribui à “agitação” das mulheres sentidos de refutação e posição de discordância à ação do deputado federal e a práticas já legitimadas historicamente, dando ao movimento contornos de oposição à política vigente.

Dentre essas materialidades, destacamos posicionamento discursivo expresso na sequência discursiva de referência: [As mulheres dizem não à perda dos direitos civis]. Na conjuntura histórica da época, como já afirmado, a perda dos direitos civis estava ligada ao possível fim do direito ao aborto em casos de estupro, fato que também é citado quando se faz referência ao autor do projeto de lei, Eduardo Cunha.

Entretanto, falar de perda de direitos civis sem retomar as condições históricas em que a capa foi produzida torna os sentidos indeterminados, opacos. Afinal, a quais direitos civis a revista se refere? Os sentidos não são determinados somente pela linguagem, de maneira que é preciso identificar, na densidade da língua, determinações históricas. Dessa forma, falar de um problema social bastante pontual daquele momento [o projeto de criminalização do aborto em casos de estupro] de forma generalizada [a perda dos direitos civis] pode ter sido uma forma de acionar uma dada memória para produzir significações que se aproximam da Primavera Árabe, porém sem dizê-la explicitamente no campo da formulação.

A proliferação de protestos no Oriente se deu na urgência de derrubada de ditadores e em circunstâncias em que a população se revoltou contra a perda de direitos civis, exigindo a instauração de regime democrático. Com isso, é possível que os efeitos de imprecisão e generalização do enunciado verbal [não à perda de direitos civis] produzam, na opacidade da língua, significação que rememora a Primavera Árabe, porque também produzem sentidos parecidos com o posicionamento daqueles sujeitos [de negação à hegemonia política] e com as condições daquele cenário político.

O enunciado verbal aciona uma memória e permite associações de sentidos entre a “primavera feminista”, no Brasil, e a Primavera Árabe, justamente em função das condições históricas. Os manifestantes árabes e as feministas brasileiras se aproximam por um posicionamento semelhante: ambos se opõem à forma como governantes subtraem-lhes direitos civis. Assim, a ausência de um enunciado verbal que se refira, no nível do intradiscurso, à Primavera Árabe coexiste, paradoxalmente, com a referência a uma condição histórica em comum nos dois acontecimentos.

Por outro lado, se comparamos as capas, notamos uma regularização tanto na ordem dos elementos quanto na escolha de quem surge como destaque nas imagens. Trata-se de uma lei do legível, que permite ao leitor retomar a imagem anterior - edição de 2011 sobre Primavera Árabe - e interpretar o acontecimento da capa de 2015 como sentidos que se aproximam da ideia de primavera política. Há, então, uma “ordem do olhar” que determina o aparecimento e a composição dessas capas, uma vez que a imagem, ao operar uma memória social, repete e desloca sentidos históricos produzidos antes e em outros lugares - no caso, produzidos na Líbia em 2011, numa conjuntura de levante popular contra um ditador.

Na repetição-atualização da imagem, verificamos o surgimento de um acontecimento novo que “abala” essa memória e que se sobrepõe à regulação primeira. Na figura 12, o grito e a expressão feminina de força e coragem são signos de uma transformação histórica relacionada a objetivos gerais - a derrubada do ditador Muamar Kadafi da Líbia, por exemplo. Em contrapartida, na figura 11, um signo semelhante [imagem de jovem mulher manifestando] é utilizado para retomar a ideia de primavera política e, ao mesmo tempo, deslocar tais sentidos para um contexto de lutas por objetivos específicos e subjetivos - a autonomia das mulheres sobre o corpo e a sexualidade.

Dessa maneira, é o papel da memória de estruturar a materialidade discursiva que faz os implícitos na capa de 2015 “falarem” e significarem. O retorno e o deslocamento são os movimentos de memória que determinam a notícia do acontecimento na Líbia [a “Epidemia da Liberdade”, a onda de derrubada de ditadores] como condição para podermos interpretar o acontecimento no Brasil [a amplitude de um “despertar feminista”]. A repetição/atualização tem como efeito possível uma espécie de ruptura no interior dessa memória discursiva.

E é justamente nessa ruptura que a Primavera das Mulheres irrompe como acontecimento nos discursos das mídias. Afinal, os sentidos de primavera política, no período histórico em questão, modificam-se e passam a ser associados à ampla visibilidade do feminismo e à urgência histórica de dever mostrar e dizer o feminismo.

A singularidade está, portanto, em uma nova significação de “primavera” produzida quando deslocada do contexto árabe e imposta ao evento de 2015 no Brasil. Naquele momento preciso, “primavera” passa a significar, além do despertar político e do mito revolucionário da juventude, a espetacularização e a “viralização” simultâneas do feminismo nas mídias digitais, nas mídias impressas e no espaço urbano.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, tomamos como objeto de análise as capas das revistas Época e Istoé de novembro de 2015, publicadas em momento de efervescência de pautas do feminismo nas mídias digitais e impressas e nas redes sociais. A partir da articulação entre a Análise de Discurso francesa derivada dos trabalhos de Michel Pêcheux e pressupostos da Semiologia de Roland Barthes, verificamos a existência de sistema semiológico próprio do mito nas capas, uma vez que elas tensionam formas e historicidade na produção de sentidos.

O processo analítico pautou as relações entre imagens, manchetes e legendas e deu a ver a mobilização de signos “deslocados” de um sistema semiológico primeiro para uma significação segunda, atribuída cultural e historicamente. A deformação da mensagem denotada (imagens de jovens mulheres manifestando nas ruas), além da associação e analogia a imagens de movimentos jovens e revolucionários (o Maio de 68, por exemplo), possibilitam que as capas recitem mitos cotidianos tais como “a revolução social é um ideal juvenil” ou, ainda, aquele da “juventude que sonha com a revolução”.

Analisar a recitação de mitos nas capas das revistas mostrou como as mídias mobilizam e “deformam” signos por meio de processos de conotação - como operações estéticas sobre as imagens (filtros, cores, seleção de poses e gestos) e a relação de continuidade e identidade entre o visível e o legível, produzindo significações novas e, por conseguinte, fabricando o acontecimento. Desse modo, constatamos que as imagens das manifestações nas capas não representam a Primavera das Mulheres de forma “neutra”. As imagens do real fotografado não provocam esse acontecimento, tampouco encerram a verdade de que o fato noticiado é uma primavera política.

Nas capas das revistas, o funcionamento semiológico da mensagem mítica apresenta associações com imagens das revoluções e manifestações em países árabes em 2011, o que também evidencia trajetos de uma memória das primaveras políticas. A tensão repetição-regularização, própria da lei do visível nas mídias, permite ao leitor um efeito de lembrança entre aquilo que vê e lê nas capas e aquilo já foi visto e dito antes e em outras mídias. A repetição de elementos, gestos, expressões faciais, bem como a retomada de dada sintaxe fotográfica demonstra que as imagens das capas funcionam como “operadoras de memória social” (Pêcheux, 1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. In: ACHARD, P. (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57.).

As imagens comportam um programa de leitura e acionam um trajeto de imagens da sociedade já vistas em notícias anteriores sobre a Primavera Árabe. Esse agenciamento do olhar, pelos discursos das mídias, obedece às leis do que é permitido ver e dizer a respeito de uma primavera política. Em consequência, condiciona uma passagem do visível ao nomeado [imagens de jovens feministas mobilizadas pela internet manifestando nas ruas = Primavera das Mulheres] e determina as interpretações acerca do acontecimento fotografado.

Sendo assim, a Primavera das Mulheres não pode ser considerada um evento que ocorreu, naturalmente, na história, mas sim um acontecimento fabricado pelos discursos das mídias ao explicar e atribuir sentidos históricos àquilo que foi registrado pelas lentes. A leitura do fato de novembro de 2015 como “primavera” é discursiva, ou seja, produzida historicamente através de formas (fotografias, legendas, manchetes), que significam posicionamento político e valores sociais.

Em função do funcionamento semiológico do mito e dos trajetos de memória constitutivos das imagens, as revistas Época e Istoé têm condições de nomear (pelo que é efetivamente dito e pela repetição da sintaxe fotográfica) o acontecimento de “Primavera das Mulheres”. Portanto, a emergência do acontecimento se dá pelo trabalho das mídias sobre materialidades discursivas que entrecruzam memória e atualidade e que convergem por aspectos históricos semelhantes.

REFERÊNCIAS

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    » https://istoe.com.br/126147_A+EPIDEMIA+DA+LIBERDADE+PARTE+1
  • 1
    Neste trabalho, assumimos a concepção de feminismo enquanto “[...] movimento que produz sua própria reflexão crítica, sua própria teoria” para entender e modificar situações de opressão contra as mulheres (Pinto, 2010PINTO, C. R. J. Feminismo, história e poder. In: Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 18, n. 36, p. 15-23, jun. 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsocp/a/GW9TMRsYgQNzxNjZNcSBf5r. Acesso em: 14 set. 2023.
    https://www.scielo.br/j/rsocp/a/GW9TMRsY...
    , p. 15). Dada sua historicidade, nota-se a existência de feminismos, no plural, que refletem as necessidades, transformações e impasses de diferentes gerações, identidades, classes e raças de mulheres em variados lugares do mundo. A título de exemplo, podemos citar o feminismo sufragista, que marca a primeira onda do feminismo no século XX, bem como o feminismo que reivindica a autonomia e liberdade dos corpos em favor dos direitos reprodutivos, militância situada nos anos 1960, no contexto da Guerra do Vietnã e do movimento hippie (Pinto, 2010). No Brasil, os feminismos se caracterizam conforme as urgências históricas, como, por exemplo, a legalização do voto feminino, o regime militar, a abertura política, o trabalho das mulheres acadêmicas no espaço universitário, entre outros (Pinto, 2010). Neste artigo, optamos por utilizar o termo feminismo no singular, apesar de constatarmos que o movimento de mulheres de 2015 se organiza em um contexto cujas lutas giram em torno de pautas identitárias como gênero, raça e classe, e da resistência a práticas opressoras como o assédio sexual, a misoginia e o racismo.
  • 2
    No final de 2015, houve uma conjunção de fatores que constituíram as condições de produção para a circulação e a ampla visibilidade de discursos sobre feminismo em grandes veículos midiáticos brasileiros, tais como a) a retramitação do Projeto de Lei 5069/2013, pelo então deputado federal Eduardo Cunha, que tornava mais complexas as regras para o aborto em caso de estupro; b) o caso de pedofilia no Twitter à menina Valentina, participante do programa de televisão Masterchef; c) a campanha viral #meuprimeiroassedio nas redes sociais; d) os ataques racistas a mulheres negras que trabalham na TV aberta (a atriz Taís Araújo e a jornalista Maria Júlia Coutinho); e) o tema de redação do ENEM de 2015, que abordou a persistência da violência contra a mulher e a questão da prova referente à filósofa francesa e feminista Simone de Beauvoir.
  • 3
    Justificamos a seleção dessas materialidades discursivas em função das condições históricas que motivaram sua publicação. Naquela ocasião, houve a menção a Simone de Beauvoir, referência dos estudos de gênero, em questão do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), bem como a proposta da prova de redação, a respeito do feminicídio no Brasil. Além disso, na internet, circularam casos de assédio sexual a uma participante mirim do programa Master Chef e, ainda, práticas de racismo contra a jornalista Maria Júlia Coutinho. A conjunção desses fatores condicionou uma espécie de “viralização” das pautas feministas, uma dispersão veloz e instantânea de discussões acerca da condição da mulher na sociedade. Logo, é possível interpretar a emergência dessas capas como uma resposta das mídias a esses conflitos sociais de ampla visibilidade naquela pontualidade histórica.
  • 4
    Primavera é uma expressão utilizada para se referir a revoluções promovidas pelo povo contra um regime opressor. Metaforicamente, liga-se às ideias de despertar e florescer. Trata-se de uma forma de dizer que, embora o povo seja tolhido num dado momento, as sementes da transformação social hão de germinar e florescer futuramente. Nesse sentido, podemos citar a “Primavera dos Povos” de 1848, uma série de revoluções que ocorreram simultânea e dispersamente entre os países europeus. Segundo Eric Hobsbwam, a “Primavera dos Povos” foi uma afirmação de nacionalidade, pois foi o momento em que países como França, Alemanha, Itália, Hungria, Polônia, entre outros, “[...] afirmaram seu direito de serem estados independentes e unidos, abraçando todos os membros de suas nações contra governos opressores” (Hobsbawm, 1988HOBSBAWM, E. A era do capital: 1848-1875. Tradução de Luciano Costa Neto. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., p. 97-98).

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Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2021
  • Aceito
    26 Ago 2023
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